Tensões separatistas no Donbass: o que muda em Donetsk e Lugansk

Donbass é o nome atribuído à região correspondente à bacia hidrográfica do rio Donets, que hoje abrange as unidades administrativas de Donetsk e Lugansk, situadas entre Ucrânia e Rússia. Devido à sua conformação histórica, trata-se um território que – similarmente à península da Crimeia – é partilhado por uns indivíduos que se identificam como ucranianos e outros que, em função de língua e etnicidade, sentem-se como pertencentes à Federação Russa. Justamente nesse plano é que surge a presente problemática.

No início do século 21, transcorreram na Ucrânia o Euromaidan e a Revolução Ucraniana de 2014, movimentos que buscaram maior integração com a Europa e demandaram o fim da corrupção governamental. Culminaram com a deposição do presidente eleito, Viktor Yanukovych, que não cedeu às demandas. Moscou aproveitou-se do impasse, garantindo exílio ao ex-presidente e assumindo o controle militar da Crimeia, que foi em seguida anexada à Rússia. Com a instabilidade, se radicalizaram os movimentos emancipatórios já existentes no país, recusando-se a reconhecer o novo governo ucraniano [1]. Os separatistas pró-russos de Donetsk e Lugansk tomaram parcela do território reivindicado, convocando eleições legislativas para as autodeclaradas “repúblicas populares autônomas”, ambas apoiadas pela Rússia [2]. A Ucrânia, contudo, opôs-se aos movimentos, declarando que as regiões estariam em verdade ocupadas pelos russos e deflagrando repressão armada contra os insurgentes [3]. Assim, o impasse se prolongou, com o governo de Kiev se negando a estabelecer diálogo com as províncias rebeldes, o que resultou em mais de 14 mil mortos no passar de oito anos.

Hoje, todavia, o reavivamento da guerra entre Ucrânia e Rússia trouxe novos contornos aos enclaves separatistas do Donbass. O interregno que antecedeu a invasão russa em 2022 foi marcado por uma escalada constante da tensão, oriunda da postura ucraniana inclinada em direção a se tornar membro da Otan. Tal fervor atingiu seu ápice com o reconhecimento oficial da independência de Donetsk e Lugansk por Putin (21 de fevereiro de 2022), seguido da invasão desses territórios sob o pretexto de proteger de um genocídio os russos étnicos do Donbass, três dias depois (24 de fevereiro de 2022). À época, diversos estados e organizações internacionais – como os EUA, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Comissão Europeia e a própria Otan – se posicionaram contra a ação, chegando a afirmar o primeiro-ministro britânico que “isso [seria] claramente uma violação do direito internacional. [Seria] uma violação, uma violação flagrante da soberania e integridade da Ucrânia” [4]. Em contrapartida, nos meses subsequentes, Venezuela [5], Síria [6] e Coreia do Norte [7] reconheceram a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, declarando apoio ao Kremlin. Por derradeiro, em setembro de 2022, a Rússia assinou, sustentando-se em referendos populares, a anexação de quatro territórios separatistas ucranianos: Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia[8]. Em resposta, a assembleia-geral da (ONU) aprovou uma resolução condenando os “referendos ilegais” e a “tentativa de anexação“, tendo se posicionado a favor da medida 143 países, cinco contra (Rússia, Síria, Nicarágua, Coreia do Norte e Belarus), e 35 se abstido [9]. Destarte, queda ainda em aberto a questão separatista do Donbass, cujas especificidades serão destrinchadas a seguir. 

Questão jurídica
A questão aqui posta é: com base nos conceitos de Direito Internacional Público, podem Donetsk e Lugansk serem reconhecidos como Estados independentes?

Cumpre, a priori, expor brevemente os elementos considerados indispensáveis à existência de um Estado independente, para que sejam aprofundados adiante. Nesse sentido, o professor Hedley Bull, da Universidade de Oxford, em sua obra A Sociedade Anárquica, conceitua “Estado” como uma comunidade política independente que possui governo efetivo e afirma a sua soberania sobre um território e uma população[10], definição que vai de encontro ao definido pelo artigo 1º da Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados [11]. Portanto, são imperativos quatro critérios para que se possa identificar um Estado: (1) população permanente, (2) território determinado, (3) governo efetivo e (4) soberania.

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1. População permanente
Nesse ponto, exige-se do Estado um “contingente humano” que coexista em determinado espaço e que tenha com ele um vínculo de pertencimento [12]. Esse vínculo corresponde à nacionalidade, aqui adotada em sua concepção sociológica, significando o sentimento de fazer parte de determinado grupo, por partilhar com ele atributos comuns como língua ou costumes [13]. Neste particular, não cabe considerar a nacionalidade em sua acepção jurídico-política. Vale dizer, como sendo o status outorgado por um Estado a um indivíduo. Fazê-lo seria tautológico, posto que o Estado precede à nacionalidade (no sentido de vínculo jurídico), e não o contrário [14]. Assim, basta que haja uma população que se reconheça como integrante da comunidade política em questão, não sendo necessário um Estado que lhe tenha conferido nacionalidade na forma da lei.

Analisando o caso concreto, seria possível que o critério populacional fosse preenchido pelos habitantes de Donetsk e Lugansk. Além de evidentemente configurarem um “contingente humano”, uma parcela populacional expressiva da região do Donbass sente-se como pertencente a uma nação própria – a russa – tendo língua e tradições particulares em função de suas raízes étnico-culturais historicamente construídas. Além disso, em 2019, o parlamento ucraniano aprovou algumas medidas de desincentivo à utilização da língua russa [15], o que resultou em um enorme descontentamento da população de etnia russa que habita nessa região, visto que a língua materna desses povos vem sendo subutilizada. Dessa maneira, fato é que existe um vínculo de nacionalidade à parte, sendo então o problema que esse laço é direcionado a uma nação que já possui um Estado próprio. Não se satisfaz, nessa perspectiva, o critério populacional, dado que o vínculo de pertencimento não é com uma nação específica de Donetsk ou Lugansk, mas sim com a nação russa.

2. Território determinado
No que tange a esse elemento, é preciso que haja um certo espaço físico sobre o qual o Estado exerce sua jurisdição e onde seus poderes são efetivamente aplicados. Não se exige a definição absoluta de suas fronteiras, o que naturalmente não é possível em locais onde haja litígios fronteiriços, sendo suficiente o controle efetivo de parcela substancial do espaço reivindicado, independentemente da incerteza quanto aos seus limites [16]. Ademais, o domínio do território não pode ter origem na violação do direito à integridade territorial de um Estado por outro já existente [17].

Nessa ótica, observa-se que há de fato um espaço físico sobre o qual as autoridades de Lugansk e Donetsk exercem suas respectivas autoridades. A questão é controversa, porém, no que diz respeito ao princípio da higidez territorial. É preciso indicar, para dirimir essa complicação, que no direito internacional a violação da integridade territorial é aplicável apenas às relações interestaduais. Nessa linha, não se aplica a violações oriundas de dentro do próprio território do Estado precedente. Desse modo, caso se considere que a região foi conquistada precipuamente devido à atuação dos indivíduos de dentro do território, as leis internacionais não vedariam o ato, revestindo o que demanda o requisito em tela. Entretanto, caso se julgue que o território foi adquirido em virtude da intervenção russa (uma força externa), haveria violação da integridade territorial ucraniana, não podendo daí surgir um novo Estado.

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3. Governo efetivo
Tratando-se do requisito de governo efetivo, o delineamento se torna um pouco mais turvo devido à dificuldade de se classificar na prática o que configura ou não tal efetividade. O relevante aqui é que a autoridade instituída seja capaz de atingir expressivamente os efeitos buscados em sua atuação. Isto é, consiga cumprir com suas funções de governo de maneira satisfatória. Nesse espectro, defende-se que a exigência é condicionada às particularidades do caso concreto. Na hipótese de criação de um novo Estado, sua aplicação é mais rígida (exige-se maior efetividade), enquanto em cenários de continuidade de um Estado estabelecido, a observância seria flexibilizada (bastando um patamar mínimo de efetividade) [18]. Desse modo, tratando-se da primeira situação, é preciso verificar o exercício real da autoridade e a legitimidade de tal exercício [19].

Aferir essas características com precisão não é uma tarefa simples. Mostra-se necessário nesse tópico levar em conta que foram realizadas eleições locais nos territórios, tendo participado aproximadamente 80% da população. No pleito, venceram os líderes pró-Rússia Denis Pushilin e Leonid Pasechnik, com 60,9% dos votos em Donetsk e 68,4% em Lugansk, respectivamente. Sem embargo, a Ucrânia e os países ocidentais se manifestaram em contrariedade às eleições, descrevendo-as como farsas [20]. De fato, quando se tem em vista a ocupação russa, a legitimidade do processo é questionável. Cabe, contudo, reconhecer que nos últimos tempos quem tem efetivamente tomado as decisões políticas, logísticas e estratégicas na região – vale dizer, quem tem governado – é a administração das repúblicas populares separatistas. Portanto, conferindo-se o benefício da dúvida às eleições realizadas, pode-se considerar que a votação majoritária seria capaz de garantir a necessária legitimidade ao comando recém-instituído. Por conseguinte, verifica-se que há governo efetivo, uma vez que a autoridade é exercida de forma real e (aparentemente) legítima.

4. Soberania
Passando ao último e mais intrincado elemento, impende separar a soberania em interna e externa. Quanto à primeira, é definida como a supremacia do Estado sobre todas as autoridades dentro de seu território e com relação à sua população, encontrando-se ele acima dos demais sujeitos de direito. No tocante à segunda, refere-se à independência do Estado com respeito às autoridades externas, i.e., a não subordinação a nenhum outro ente internacional [21]. Dessa forma, o Estado surge assim que se impõe como soberano no sistema internacional, independente de qualquer ato de outro ente soberano. Não obstante, ainda que em tese não se dependa de reconhecimento externo, este costuma ser almejado pelos Estados recém-formados, visto que representa uma forma de legitimar e sustentar sua declaração de independência, conferindo-lhe a capacidade de entrar em relações com os demais Estados. O reconhecimento, nesse plano, pode se dar de maneira explícita, através de mecanismos formais, ou de forma tácita, por meio de comportamentos concludentes dos quais se pode depreender a cognição (e.g. o firmamento de um tratado internacional, a recepção de uma autoridade local como autoridade de Estado).

Ante essa perspectiva de soberania, nota-se que a dimensão interna é preenchida, pois, como explicitado supra, a autoridade dos governantes eleitos de Donetsk e Lugansk está acima das demais forças existentes dentro dos territórios. No entanto, a dimensão externa da soberania das regiões separatistas é onde se encontra o maior empecilho à sua categorização como estados independentes. Nesse viés, para Donetsk e Lugansk serem dotados de soberania externa, é preciso que sejam independentes de qualquer outro ente do direito internacional. Verifica-se, no entanto, que a região do Donbass é extremamente subordinada à Rússia em sua empreitada separatista, não podendo ser considerada, por isso, soberana.

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Conclusão
Evidencia-se, ex positis, que o reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e de Lugansk como estados independentes pela comunidade internacional seria, no momento, uma decisão precipitada. Ainda que se possa considerar que as unidades administrativas analisadas tenham jurisdição sobre territórios determinados e que, nesses espaços, exerçam governo efetivo, não são revestidos os critérios da população e – menos ainda – o da soberania. Nessa lógica, inexiste um vínculo de pertencimento a uma nação propriamente “donetskiana” ou “luganskiana” como existe em outros casos de nações que lutam pelo separatismo, vide a nação catalã ou a nação basca. Ademais, todo o contexto de emancipação da região do Donbass se deu sob o pretexto de intervenção e orientação russa, não podendo afirmar-se que as repúblicas populares são independentes de qualquer outro ente autônomo no plano internacional. Assim, tudo indica que o caminho trilhado por Donetsk e Lugansk levará um destino similar àquele que teve a Criméia, não resultando na formação de dois novos estados independentes, mas na anexação de dois territórios ucranianos à Rússia.


[1] GONTIJO, Fabiano. Nação, Simbolismo e Revolução na Ucrânia: Experiência etnográfica Tensa na/da Liminaridade. Revista De Antropologia, vol. 63, nº 3, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/178853. Acesso em: 25 mar. 2023.

[2] Rússia reconhecerá o resultado das eleições do leste da Ucrânia | EL PAÍS Brasil

[3] O que é o Donbass e por que é tão importante no conflito atual | CNN Brasil

[4] Putin reconhece independência de duas áreas separatistas da Ucrânia | CNN Brasil

[5] Reconhecimento russo de Donetsk e Lugansk só é apoiado por Venezuela e Síria | CNN Brasil

[6] Aliada da Rússia, Síria reconhece repúblicas separatistas no leste da Ucrânia | Gazeta do Povo

[7] Coreia do Norte reconhece regiões separatistas ucranianas | CNN Brasil

[8] Putin assina anexação de quatro territórios ucranianos à Rússia | CNN Brasil

[9] Assembleia-Geral da ONU condena anexação de territórios ucranianos pela Rússia | CNN Brasil

[10] BULL, Hedley. A sociedade anárquica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002, p. 13.

[11] Ratificada no Brasil pelo Decreto n. 15.70, de 13 de abril de 1937.

[12] BRANT, Leonardo. Teoria Geral do Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020, p. 472 e 473.

[13] KOHN, Hans. The idea of nationalism. New York: Macmillan, 1967, p. 12.

[14] VERGNAUD, Pierre. L’idée de la nationalité et de la libre disposition des peuples dans ses rapports avec l’idée de l’État. Paris: Montchrestien, 1955, p. 123.

[15] “Ucrânia aprova lei para reforçar o uso da língua ucraniana” | Estado de Minas Internacional

[16] BRANT, op. cit., p. 476.

[17] Art. 2 (4) da Carta da ONU; Resolução 68/262 da Assembleia Geral da ONU (A/RES/68/262); e Parecer consultivo da CIJ relativo à independência do Kosovo, exarado em 22.07.2010. Acesso em: 28 mar. 2023.

[18] SIMMA, Bruno; et al. The Charter of the United Nations: A Commentary, 3. Ed, v. 1. Oxford: Oxford University Press, 2012.

[19] BRANT, op. cit., p. 478.

[20] Líderes pró-Rússia vencem eleições em áreas separatistas no leste da Ucrânia | Mundo | G1

[21] BULL, op. cit., p. 13.

Fonte: Conjur – Por Lucas Barion