PEC Antidrogas pode ser invalidada com argumentos já usados pelo STF

Em resposta à decisão do Supremo Tribunal Federal que descriminalizou o porte de maconha para consumo próprio, o Congresso tenta, por meio de uma proposta de emenda à Constituição, criminalizar a posse ou o porte de qualquer droga. Na prática, a chamada PEC Antidrogas tem poucas chances de prosperar. Constitucionalistas apontam possível violação a cláusulas pétreas — algo já apontado no julgamento pelos próprios ministros do STF e que permite a invalidação de uma emenda constitucional.

Diferentemente de outras investidas do Congresso contra o Supremo, a ideia da vez é alterar a Constituição — e não criar leis — para contrariar o entendimento da Corte. Embora o STF não possa barrar a tramitação da proposta, nada impede que os ministros invalidem uma PEC com base em parâmetros da própria Constituição.

É o que pode acontecer com PEC Antidrogas, conforme apontam constitucionalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Isso porque, no recente julgamento, os ministros do STF já reconheceram que a criminalização do porte de maconha para consumo ofende a privacidade e a intimidade do usuário.

Constituição x Constituição

De acordo com o constitucionalista Lenio Streck, emendas constitucionais não têm “imunidade hermenêutica”. Já o advogado Georges Abboud, professor de Direito Constitucional, lembra que o STF “tem décadas de experiência com o controle de constitucionalidade de ECs”.

Uma emenda constitucional pode ser invalidada pelo STF de vários modos. Uma das possibilidades é a existência de vícios formais ou processuais, Eles são, por exemplo, problemas nas votações durante sua tramitação no Congresso.

O artigo 60 da Constituição prevê as condições para que uma PEC seja proposta e aprovada. Ela precisa, por exemplo, passar pelas duas casas legislativas, ser votada em dois turnos e conseguir três quintos dos votos.

“Quaisquer irregularidades demonstradas, desde a legitimidade de quem propõe a emenda constitucional até os requisitos exigidos para a sua discussão e votação, serão reconhecidas como vícios processuais e importarão na declaração de inconstitucionalidade ‘formal’”, aponta a constitucionalista Vera Chemim.

Emendas constitucionais também podem ser invalidadas por vícios materiais, ou seja, relativos ao seu conteúdo. Nesses casos, segundo Abboud, um parâmetro usado em especial é o parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição.

READ  Pedido de justiça gratuita relativiza direitos fundamentais?

Esse dispositivo lista as cláusulas pétreas, ou seja, os temas que não podem ser discutidos em PECs: a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos poderes; e os direitos e garantias individuais.

Assim, no geral, os vícios materiais ocorrem quando a proposta tende a violar cláusulas pétreas (que não podem ser alteradas) da Constituição.

Um dos principais precedentes neste sentido é a ADI 939, julgada em 1994, na qual o STF declarou a inconstitucionalidade material de trechos da EC 3/1993, que tratava do antigo Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira (IPMF).

Na ocasião, os ministros constataram, entre outras coisas, que a norma previa uma exceção ao princípio constitucional da anterioridade tributária, tido como uma garantia individual do contribuinte. Por isso, a conclusão foi de que houve violação a cláusula pétrea.

STF x Congresso

PEC 45/2023 altera o inciso LXXX do artigo 5º da Constituição e prevê que tanto a posse quanto o porte de qualquer quantidade de drogas será considerado crime.

Segundo o advogado constitucionalista e professor Raphael Sodré Cittadino, caso a PEC Antidrogas seja aprovada e seu texto seja contestado no STF, “nem todos os argumentos” usados pela Corte no julgamento que descriminalizou o porte de maconha para consumo poderiam ser reutilizados. Isso porque “nem tudo o que está na decisão está correlacionado com alguma cláusula pétrea”.

Assim, caso o STF pretenda declarar a inconstitucionalidade do texto, “o fará com base na alegação de violação a direitos e garantias fundamentais, necessitando detalhar quais seriam tais direitos e garantias fundamentais violados”.

No julgamento sobre a maconha, o ministro Gilmar Mendes, relator do caso, argumentou, dentre outras coisas, que a criminalização ofende a privacidade e a intimidade do usuário.

“Como o direito à privacidade e à intimidade está no rol dos direitos e garantias individuais, sim, neste caso esse é um dos argumentos que pode ser usado, em tese”, avalia Cittadino.

READ  Justiça tributária tem de se basear no império da lei

Abboud acredita que “o texto da PEC é suficientemente lacunoso e desproporcional em termos de penalização excessiva para que o STF aplique o mesmo raciocínio” do julgamento da descriminalização e “declare a inconstitucionalidade” do texto da PEC 45/2023 caso aprovado e levado à sua análise.

Nesse caso, segundo ele, a Corte teria por base especialmente o inciso IV do parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, que fixa os direitos e garantias individuais como cláusulas pétreas.

Para o constitucionalista, “a PEC onera de forma excessivamente agressiva condutas tidas como inofensivas e socialmente estigmatizadas — que foi, nos parece, justamente o mote do julgamento do STF”. Com isso, a proposta “limita o campo de escolhas meramente pessoais dos indivíduos”.

Lenio Streck entende que “os mesmos argumentos usados pelo STF poderão estar presentes na eventual ação que questionar a eventual aprovação da PEC 45/2023”.

Além disso, na sua visão, se o Congresso aprovar a PEC Antidrogas, “estará fazendo backlash que viola até mesmo a relação harmônica que deve haver entre os poderes”.

Ele conclui: “Se cabe ao STF dizer por último o que é a constitucionalidade de uma lei, a última palavra na democracia é de quem é o guardião da Constituição e da constitucionalidade das leis”.

Princípios x princípios

Para Chemim, por outro lado, os argumentos usados no julgamento que descriminalizou o porte de maconha “não necessariamente” seriam suficientes para invalidar o texto da PEC Antidrogas.

“É preciso ponderar o fato de que o Congresso Nacional representa a ‘vontade da maioria’ em um regime democrático”, ressalta ela.

Os parlamentares envolvidos com a PEC desejam criminalizar o porte e a posse de qualquer droga “sob a fundamentação de que esta é a vontade da ‘maioria’ da sociedade brasileira e que o tema remete a uma questão relevante de saúde pública, especialmente voltada aos jovens e crianças”.

Se essa for a decisão do Congresso, Chemim afirma que isso “não necessariamente afrontará” o direito à intimidade e à vida privada, “uma vez que o pressuposto é o de que há um interesse comunitário que se sobrepõe aos direitos fundamentais individuais”.

READ  Acidente de trabalho: obrigações para um meio ambiente preventivo

Caso a questão fosse novamente levada ao STF, “a decisão final repousaria na forma de interpretação das normas constitucionais e na possibilidade de haver ou não uma afronta ao seu núcleo, enquanto cláusula pétrea”.

A constitucionalista explica que os direitos fundamentais são princípios constitucionais. Uma técnica de ponderação é escolher o princípio “que se adapta mais àquela situação”.

Nesse caso, há dois princípios: um direito fundamental individual e um direito coletivo. “O caminho correto”, na visão dela, seria ponderar qual deles prevalece. A ponderação a ser feita é: até que ponto a criminalização “afronta o direito à intimidade e à vida privada no sentido de esvaziar a sua essência”?

Com isso, “se houver uma concordância de que há interesse comunitário” — ou seja, de que o tema é de saúde pública e afeta jovens e crianças —, isso “se sobreporia ao direito individual à intimidade e à vida privada”, diz Chemim.

“A relevância do interesse comunitário relativamente aos direitos fundamentais individuais permitirá a restrição destes, atendendo-se ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, tendo em vista que tais direitos remetem aos princípios constitucionais”, assinala.

Ela ainda ressalta que essa ponderação deve ocorrer “independentemente de o STF constatar uma violação à cláusula pétrea”. Segundo a constitucionalista, a discussão sobre o interesse comunitário “teria que estar já inerente a esse raciocínio”.

Por fim, Chemim diz que, “do ponto de vista prático, não se vislumbra aquela afronta ao direito fundamental à intimidade ou à vida privada”. Isso porque o próprio STF decidiu que o porte de maconha para consumo pessoal continua sendo um “ato ilícito”, proibido em local público. Uma eventual discussão do texto da PEC seria apenas para definir se tal ato voltaria a ser considerado crime, com aplicação de sanções penais.

O post PEC Antidrogas pode ser invalidada com argumentos já usados pelo STF apareceu primeiro em Consultor Jurídico.