A judicialização na seara da saúde suplementar, conforme dados registrados pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) [1], tem sido exacerbada por diversos fatores, destacando-se as rescisões unilaterais que não se coadunam com a legislação vigente. A despeito de a Lei Federal nº 9.656/98 prever que a inadimplência do usuário pode ensejar a fulminação do negócio jurídico, desde que haja a sua prévia notificação, abusividades têm sido detectadas, acarretando a crescente busca pelo aparato jurisdicional.
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Objetiva-se, assim, examinar as Resoluções Normativas 593/2023 e 613/2024, editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar acerca do tema, pari passu com as regras protetivas dos interesses e direitos dos consumidores. Tenciona-se apontar a evolução das salvaguardas, mas também identificar as lacunas a serem colmatadas e as falhas que suscitam correção.
Os contratos de assistência suplementar à saúde são intitulados “cativos de longa duração”, como apontam Ghersi, Weingarten e Ippolito, eis que os beneficiários não pretendem usufruir dos serviços prestados por um exíguo espaço temporal, mas, sim, de modo contínuo e indefinido após o cumprimento das carências previstas [2].
Em virtude dessa nota essencial, o artigo 13, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 9.656/98, estabelece que em casos de não pagamento por período superior a 60 dias, será viável o desfazimento do vínculo [3]. No entanto, fixou-se o dever das operadoras de prévia notificação do consumidor até o 50º dia de inadimplência, comprovando-a. A ausência de quitação, nos últimos 12 meses de vigência do contrato, poderá ser de forma consecutiva ou não.
Normas da ANS sobre notificação
Com o desiderato de tratar da suspensão e rescisão unilateral de contratos individuais nas hipóteses de inadimplência, a Agência Nacional de Saúde Suplementar editou a Súmula Normativa nº 28/2015, fixando os pressupostos materiais e formais para que o ato de cientificação fosse considerado válido.
Diante da não localização do beneficiário no endereço fornecido à operadora, o enunciado sumular admitia que a sua notificação fosse formalizada por edital, publicado em jornal de grande circulação do último domicílio conhecido.
Ocorre que, na prática, muitas empresas não atentavam para as exigências impostas pela autarquia reguladora, acarretando a intensificação das demandas judiciais que deságuam no Superior Tribunal de Justiça [4].
Nesse emaranhado de volume processual oriundo das irresignações dos consumidores, a ANS optou por editar a Resolução Normativa (RN) nº 593/2023, disciplinando a matéria mediante o cancelamento da sobredita súmula.
Sem embargo do propósito da autarquia de mitigar os impactos das rescisões unilaterais em descompasso com a legislação vigente, o teor daquela RN apresenta-se limitado. Nos termos do seu artigo 2º, restringe-se aos contratos celebrados após 1º de janeiro de 1999 ou que foram adaptados à Lei de Planos de Saúde (LPS), deixando à margem todos os demais vínculos jurídicos anteriores, impactando na excessiva judicialização.
Ademais, determina que os planos de saúde, firmados antes do início da sua vigência, devem atender às regras estabelecidas no próprio instrumento, exceto se houver o aditamento. Não havendo a atualização do contrato, se a operadora utilizar os meios de notificação previstos na RN, mesmo que não dispostos no instrumento, será considerada válida, desde que o destinatário confirme a sua ciência.
Nessa senda, poderá haver a suspensão ou rescisão do plano de saúde, ou seja, visualiza-se regra contraditória e que corrobora com a assertiva do atendimento às demandas mercadológicas [5].
Outra restrição diz respeito ao não alcance de todas as espécies de planos de saúde, aplicando-se tão somente aos individuais, familiares e aos coletivos empresariais contratados por empresário individual. Incidirá também nas hipóteses em que o beneficiário da modalidade coletiva efetiva o pagamento das mensalidades diretamente à operadora, mesmo que haja uma pessoa jurídica contratante, como, por exemplo, nos casos de autogestões, administradoras de benefícios e ex-empregados em exercício do direito previsto nos artigos 30 e 31 da LPS.
Para cumprir a missão de regulamentar o setor, a ANS deveria atentar para maximizar o espectro da aludida RN, abarcando todas as modalidades contratuais.
Prazo para notificação e período de inadimplência
Dispõe o mencionado artigo 13 da LPS que a notificação deverá ser efetivada até o 50º dia de inadimplência e o artigo 4º da Resolução Normativa nº 593/23 reitera esta mesma regra. Todavia, será considerada válida quando recebida após tal prazo “se for garantido, pela operadora, o prazo de 10 dias, contados da notificação, para que seja efetuado o pagamento do débito”.
Ora, constitui benesse que revela a pressão dos agentes econômicos na atuação da ANS, posto que a autarquia reguladora não poderia instituir regra dissonante do texto legal e em prejuízo dos usuários. A expressão “captura das agências reguladoras”, cunhada por Joseph Stigler, infelizmente, tem sido detectada em situações nas quais se identificam posicionamentos contrários aos interesses da coletividade consumerista [6].
De acordo com a Lei de Planos de Saúde, a inadimplência do usuário deverá configurar-se por período superior a 60 dias, consecutivos ou não, nos últimos 12 meses de vigência do contrato. O § 3º do artigo 4º da RN nº 593/23 admite a suspensão e/ou a rescisão unilateral do contrato mesmo quando apenas duas mensalidades não tenham sido pagas em um mesmo período anual, de forma consecutiva ou não.
Ora, o ideal seria que a autarquia reguladora estabelecesse um maior número de parcelas não quitadas, para admiti-las, optando, assim, por adotar a Teoria de Adimplemento Substancial [7], pois não é cabível que o consumidor — que venha quitando os valores durante anos — seja excluído por causa do débito de número exíguo de parcelas.
Conteúdo e objetivo da cientificação
O conteúdo mínimo da notificação por inadimplência encontra-se delineado no artigo 10 da RN nº 593/23, qual seja: 1) a identificação dos sujeitos do negócio jurídico e do respectivo objeto; 2) os meios de contato com a operadora; 3) o quantum debeatur; e 4) as condições para a quitação.
O artigo 12 contempla inovação que não se encontrava presente naquele enunciado sumular, prevendo-se que, na cobrança de mensalidade em atraso, a multa poderá ser de, no máximo, 2%, e os juros de mora não devem ultrapassar o patamar de 1% ao mês, sem prejuízo da correção monetária.
Contudo, na parte final, observa-se a expressão “desde que previstos em contrato” e, no plano fático, os contratos de assistência suplementar à saúde, a despeito de passarem previamente pelo crivo da ANS, em regra, não albergam disposições nesse sentido. Mesmo com esta disposição restritiva, os usuários devem se valer do microssistema consumerista, para que obtenham a proteção cabível e o equilíbrio contratual.
O principal objetivo da cientificação por inadimplência deverá ser a sua desconstituição, permitindo que o usuário possa saná-la, razão pela qual a forma e o prazo para a quitação do débito e a regularização da situação do contrato são elementos que devem estar explicitados de modo claro e preciso.
De acordo com o § 3º do multicitado artigo 4º da RN em análise, a modalidade de pagamento oferecida deve ser, ao menos, a usualmente utilizada para a quitação das mensalidades, possibilitando que o débito seja eliminado, no mínimo, dez dias, a partir da notificação.
A ANS poderia avançar na proteção dos usuários, prevendo parcelamento dos montantes em atraso, evitando-se, assim, a suspensão e/ou rescisão contratual. Relembre-se a incidência do princípio da vulnerabilidade dos consumidores, sobretudo intensificado na seara das saúde suplementar.
Admite-se que, na notificação, sejam registradas outras informações, tais como a possibilidade de inscrição do devedor em cadastros restritivos de crédito e de cobrança da dívida. Será possível também prever a imputação de novas contagens de carência e de cobertura parcial temporária, desde que sejam factíveis.
Ressalta-se que esta última regra contrapõe-se com a redação atribuída pelo inciso XVIII, do artigo 51 do CDC, instituído pela Lei n.º 14.181/2021, contribuindo para o superendividamento dos consumidores. Vedou-se a recontagem de carências após a purgação da mora com o intento de não gerar prejuízos para os destinatários finais de bens no mercado [8]. A ANS não pode estabelecer contra legem e prejudicial aos vulneráveis.
Meios de notificação e permissão para rescindir o contrato
A evolução do universo digital, nomeadamente após o período pandêmico, conduziu a autarquia reguladora do setor a admitir avançados meios para a efetivação do comunicado sobre inadimplência. As operadoras poderão optar pela notificação presencial, por via postal, mediante áudio e pelos meios informatizados.
A remessa de carta pressupõe o aviso de recebimento dos correios, mas, não será necessária a assinatura do beneficiário. Como se trata de situação que poderá acarretar o cancelamento contratual, caso o usuário não quite o montante em atraso, o mais correto e justo seria que fosse exigida a subscrição no respectivo AR, harmonizando-se com o direito do consumidor à informação.
Concorda também a ANS que, de forma complementar, seja feita em área restrita da página institucional da operadora na Internet e/ou por meio de aplicativo para dispositivos móveis. São condições que não se congraçam com o direito do consumidor à informação, pois não colimam com o intento de o cientificar satisfatoriamente [9].
Esgotadas, de forma comprovada, as tentativas de notificação por todos os meios comentados nas linhas precedentes, após dez dias da última diligência, a operadora poderá suspender ou rescindir unilateralmente o contrato por inadimplência. Compete-lhe a demonstração inequívoca do exaurimento das diligências, para que não seja invalidado o ato em face do beneficiário.
Caso o consumidor indague acerca do montante devido, a empresa deverá esclarecê-lo e conceder novo e idêntico lapus temporis para o pagamento do valor em aberto, se efetivamente houver. A negociação e o parcelamento do montante contam como possibilidades, mas o ideal seria que a autarquia reguladora garantisse tais diligências, com vistas a prevenir o cancelamento e/ou a suspensão.
A suspensão e a rescisão unilateral de contrato individual são condutas que constituem infrações tipificadas pelo artigo 106 da Resolução Normativa nº 489/22, sob pena de multa no importe de R$ 80 mil. De acordo com o artigo 17 da RN nº 593/23, o mencionado dispositivo passa a prever a dita penalidade também para a exclusão indevida de beneficiário de plano coletivo.
A ANS não aumentou a sanção pecuniária e não avançou para vedar o cancelamento arbitrário dos contratos coletivos, deixando de cumprir a sua missão a contento. Malgrado a RN nº 593 tenha sido editada em 19 de dezembro de 2023, somente iniciaria a sua vigência em 1º de abril de 2024. No entanto, a RN nº 613/24 a postergou para 1º de dezembro de 2024.
Apesar das críticas tecidas, observa-se que este conjunto normativo poderá servir para refrear as práticas arbitrárias empreendidas pelas operadoras mediante a aplicação conjunta com o CDC e a efetiva fiscalização pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
[1] Fórum do Judiciário para a Saúde sugere medidas para reduzir judicialização. Conjur, Melhorias em Debate. 2 de abril de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-02/forum-do-judiciario-para-a-saude-aprova-medidas-para-reducao-da-judicializacao/. Acesso em: 20 ago. 2024.
[2] GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Celia; IPPOLITO, Silvia C. Contrato de medicina prepaga. 2. ed. atual. e ampl. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 55.
[3] BOTTESINI, Maury Ângelo.; MACHADO, Mauro Conti. Lei dos Planos e Seguros de Saúde. 3. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2017, p. 132-138.
[4] Cf.: STJ, AgInt. no AREs. 2133286/SP 2022/0152311-4, 4ª Turma, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 15/05/2023, T DJe 18/05/2023. STJ, AgInt no AREs.: 2445180/PA 2023/0304171-0, 4ª Turma, Relator Ministro Raul Araújo, julgamento em 15/04/2024, DJe 18/04/2024.
[5] BAIRD, Marcello Fragano. Saúde em Jogo: atores e disputas de poder na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020, p. 50-60.
[6] STIGLER, G. J. The Citizen and the State: essay on regulation. Chicago: University of Chicago Press, 1975, p. 67-87.
[7] ERRANTE, Edward. Le droit anglo-américain des contrats/The Anglo-American Law of Contracts. 2e édition. Paris : LGDJ – Jupiter, 2001, p. 56; SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 69.
[8] MARQUES, Claudia Lima.; LIMA, Clarissa Costa de. Do Crédito Responsável: a prevenção ao Superendividamento do Consumidor: os novos paradigmas no crédito ao consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman; et al. Comentários à Lei 14.181/2021: A Atualização do CDC em Matéria de Superendividamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 216 a 224.
[9] Cf. : RAYMOND, G. Droit de la consommation. 5. ed. Paris: Lexis Nexis S.A., 2019, p. 37-55.
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