O julgamento do processo dos atos antidemocráticos levanta uma série de questões jurídicas, políticas e morais. Deve o Supremo Tribunal Federal julgar casos que envolvem ofensas a seus ministros? Parece que a resposta é afirmativa nesse caso em função de que os ataques são à instituição do STF, e não às pessoas dos ministros.
Pedir que um dos juízes visados por esses ataques se declare parcial ou suspeito ignora essa distinção, e tornaria todos os 11 ministros incapazes de julgar. Também é verdadeira a conclusão de que o STF existe em grande medida para limitar e punir ações concretas e planos de derrubada da democracia. Ele é, afinal, o “guardião da Constituição”, e a divisão atual do trabalho do Judiciário lhe confere competência jurídica — pois há suspeitos de envolvimento nos atos julgados que possuem prerrogativa de foro.
O que ainda é muito questionado é se o STF deve se autoconter em seu julgamento, com vistas à sua autopreservação institucional, dada a carga política em torno do julgamento. Acredito que a resposta a essa pergunta é negativa em certos termos, que se relacionam com a busca da melhor definição do ideal de moralidade política do “Estado Democrático de Direito.”
Para muitos, essa parece ser uma questão de realpolitik: as cortes constitucionais em geral “não tem a espada nem o tesouro”, como diziam os Artigos Federalistas. Os ministros devem se perguntar se há boas chances de que represálias se imponham a eles e à corte caso decidam como creem ser justificado; suas decisões se resumiriam a questões de fato e de “razão prudencial.” O raciocínio visa à autopreservação: se o STF sofrer represálias — como a limitação dos seus poderes pelo Congresso, o efeito “backlash” —, cada ministro individualmente perderá poderes. Por isso, para a conservação da instituição no médio e longo prazo, algumas decisões teriam de ser minimalistas para evitar atritos políticos.
Por ser a “instituição menos perigosa” (ou mais frágil), no dizer do jurista estadunidense Alexander Bickel, uma corte como o STF deveria estar muito atenta aos efeitos de suas decisões sobre os atores políticos mais relevantes. Poderia se dizer, então que o STF deveria buscar resolver o processo dos atos antidemocráticos em audiências de conciliação – públicas ou privadas; ou estender a sua duração para evitar julgar o caso; ou, ainda, aplicar a estrangeira “doutrina da questão política”, terceirizando a resolução do conflito a outro Poder da República, por conta do peso político do conflito.
Caio Cardoso Tolentino (mestre e doutorando em Direito pela USP) me lembrou, nesse sentido, que há precedentes no Brasil para quem apoia esse último argumento: em 1892, o STF foi instado por Rui Barbosa a julgar a validade de prisões políticos em torno da decretação de estado de sítio por decreto. O Habeas Corpus nº 300 foi rejeitado, entre outras razões, por não ser considerado “da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo” [1]. A decisão veio depois de o marechal Floriano Peixoto afirmar “se os juízes do Tribunal concederem o Habeas Corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão” [2].
No nosso caso, esse argumento ressurge de novas maneiras: pela defesa da votação do projeto de lei de anistia no Congresso; pela postergação da decisão ao/à próximo/a presidente da República (há pré-candidatos fazendo essa promessa caso eleitos); ou pior, pela submissão da decisão a Donald Trump, que chantageia o Brasil a conceder a anistia.
O professor Marcus André Melo levanta uma questão importante do ponto de vista mais descritivo da ciência política em texto recente na Folha de S.Paulo sobre o tema. Ele cita “The politics of the rule of law”[3] (“A política do estado de direito”) de Joseph Raz (1939-2022), grande teórico do Direito dos séculos 20 e 21, como base teórica de seu artigo “Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF”, de 24/8/2025 [4].
Nele, afirma que “há clamor por autocontenção, mas a estrutura de incentivos é o que importa”. Após defender brevemente que juízes devem evitar “grande sofisticação filosófica” ao cumprir seu dever de justificação pública de decisões, o professor Melo logo remete a outros dois artigos seus [5] sobre o tema, onde afirma que “o saldo líquido para a corte [no caso dos atos antidemocráticos] seria negativo em qualquer cenário”. “O julgamento será fatalmente percebido como hiperpolitizado — seu custo proibitivo — em um momento crítico para a democracia brasileira.”
O professor Melo tem razão quanto ao seguinte: juízes constitucionais não devem “jogar para a torcida” com suas decisões. Sua legitimidade é corroída quanto mais se “pessoaliza” a atuação da corte em nome de politicagem ou avanço de projetos pessoais. Por isso, correto o argumento de que o STF deve se pautar por razões jurídicas no julgamento que se avizinha. Isso não significa, contudo, que não haja uma carga moral relevante para fundamentar essa postura judicial. Em outras palavras, não há um dever moral de autocontenção judicial, mas de aplicação do direito e de razões jurídicas por parte dos juízes, o que, se reconhece, inclui respeito à Constituição e a seus princípios e normas fundamentais.
Joseph Raz era antes do que analista ou cientista político um grande filósofo moral e político que acreditava que certos deveres morais são reais e objetivos, e por isso não podem ser ignorados. Alguns deles constituem a própria atividade institucional. Um dever moral que todo juiz deve seguir — embora nem sempre consiga fazê-lo, por erro, fraqueza de vontade ou dificuldade de saber o que é certo em casos difíceis — é buscar realizar o ideal político do Estado Democrático de Direito, conforme seu texto clássico “The rule of law and its virtue” (“O estado de direito e sua virtude”), de 1977 [6].
Esse ideal pode ser realizado em graus, e é composto de vários elementos que devem concorrer para o sucesso desse objetivo. Os juízes fazem parte de sua realização ao respeitar princípios de justiça natural — respeitar o devido processo, o contraditório, não ter viés —, usar seus poderes de revisão de ações dos outros Poderes para garantir a conformidade ao direito — o que demanda imparcialidade e independência frente a pressões externas, além de respeito à lei e à divisão dos papeis das instituições – e serem acessíveis – decidindo em prazos razoáveis e com baixo custo.
O Judiciário brasileiro está longe de “bater essas metas.” Mas o fato não invalida seus deveres, que são morais e não postos pela lei. Antes, derivam de do valor moral das cortes em garantir por certos procedimentos a liberdade e a dignidade de todas as pessoas em certo Estado. Mas qual liberdade se busca garantir? Afinal, os réus do processo do golpe clamam por liberdade.
Por vezes surgem nesse debate ecos do sentido hobbesiano de liberdade – entendida como ausência de interferência física para a realização do que se deseja; a liberdade civil surge do desejo mútuo das pessoas de viverem em paz social sob a vigilância de um soberano absoluto. Demandas por anistia em nome da “pacificação” são uma resposta “civil” nesses termos ao desejo de liberdade natural absoluta dos golpistas.
Para Locke, embora coubesse ao soberano garantir a paz no Estado civil pelos meios cabíveis, haveria certos direitos inalienáveis da pessoa humana. Mas eles se resumiam basicamente à propriedade provinda do trabalho e/ou da especulação financeira. Ao governo caberia ser imparcial, estável e previsível na resolução dos conflitos entre os privados.
Por isso, Friedrich Hayek retoma no século 20 a ideia de o Estado de Direito ser uma virtude política, desde que atrelada à liberdade econômica. Os clamores por segurança jurídica então dispararam. Isso não impediu que ditaduras militares do Cone Sul garantissem a estabilidade econômica subtraindo da população a democracia. Não é à toa que Hayek aprovou as medidas do ditador Pinochet no Chile – em 1981, ele afirmou ser “melhor uma ditadura liberal do que um governo democrático sem liberalismo” para justificar o assassinato do presidente eleito Salvador Allende.
Joseph Raz não compactuou com a posição de Hayek; criticou-a por reduzir a liberdade política à liberdade econômica. Os governos podem e devem punir atos que subvertem o governo do direito e a garantia da democracia e dos direitos humanos. Isso implica em se legislar crimes que protejam esses bens, em garantir limites ao poder e, no caso dos juízes, em se garantir a aplicação dessas normas. A realização desses deveres pelos agentes institucionais é essencial para que se respeite a dignidade e a liberdade de todos. Nada disso pode ser superado por ganhos econômicos.
Com isso, Raz ecoa a tradição republicana de Montesquieu e Rousseau, para quem o interesse privado não pode corroer o interesse comum de todos na garantia de um ambiente justo. Sem a proteção do Estado Democrático de Direito – autogoverno fazendo parte de tal ideal –, ninguém poderá ser realmente livre. Sendo tal valor um ideal político, cabe ao Judiciário fazer a sua parte incutindo a incorporação dessa virtude à vida cívica do país pelos procedimentos que lhe cabem.
Grave equívoco
Quem agora defende autocontenção do STF pode compartilhar de uma pauta com os acadêmicos que defendem o julgamento conforme a Lei dos Crimes Contra o Estado democrático de Direito, sem anistia: a crítica a inconsistências e falhas da corte em realizar em maior grau as demandas do ideal político-moral do Estado Democrático de Direito. Afinal, trata-se de um ideal em constante realização, com avanços e retrocessos.
O grave equívoco dos que “clamam” por autocontenção — seja com apelo a fatos, estruturas institucionais ou defesa de certos valores — está em validar a liberdade irrestrita dos golpistas, de um lado, ou a submissão da liberdade política a chantagens — interna e externa, de bolsonaristas e trumpistas — em nome da liberdade econômica, de outro. A liberdade política e civil genuína demanda cooperação constante em prol da proteção da democracia, dos direitos humanos e do Estado de Direito em nome do sentimento de que todos são livres e realmente respeitados pelos três poderes do Estado. Isso demanda que o Judiciário realize sua parte na construção desse ideal moral-político.
[2] COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 30.
[3] RAZ, Joseph. The politics of the rule of law. In: RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. Revised edition. Oxford: Clarendon Press, 1995.
[4] MELO, Marcus André. Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui.
[5] MELO, Marcus André. O STF e o foro. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui. MELO, Marcus André. O STF e a conspiração: por que o saldo líquido do julgamento para a corte será negativo em qualquer cenário? Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui.
[6] RAZ, Joseph. The rule of law and its virtue. In: RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979.
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