Questão central no Tema 1.156: dano anímico ou dano extrapatrimonial presumido?

Após um pedido de vista da ministra Nancy Andrighi, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deverá retomar no dia 18/4/2024 o julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.962.275/GO, afetado ao rito dos recursos repetitivos sob o Tema 1.156, cuja relatoria é do ministro Villas Bôas Cueva.

De acordo com os autos, a 2ª Seção vai definir “se a demora na prestação de serviços bancários superior ao tempo previsto em legislação específica gera dano moral individual in re ipsa apto a ensejar indenização ao consumidor”, diante da divergência de entendimentos existente entre tribunais de segunda instância, bem como entre as próprias Turmas especializadas em Direito Privado da Corte Superior

Todavia, sob a perspectiva defendida pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) em sua manifestação como amicus curiae, a questão central que o STJ precisará dirimir neste julgamento é que, no Brasil, os danos extrapatrimoniais são tradicionalmente chamados de “danos morais” [1] e com eles são confundidos. Isso se soma ao fato de que, numa parcela da doutrina e em grande parte da jurisprudência, ainda persiste o entendimento bastante ultrapassado de que o dano moral configura-se somente com a dor, o sofrimento, o abalo psicológico da pessoa. [2].

Lições da doutrina

Em face dessa controvérsia, Anderson Schreiber [3] leciona que “a definição do dano moral não pode depender do sofrimento, [da] dor ou [de] qualquer outra repercussão sentimental do fato sobre a vítima, cuja efetiva aferição, além de moralmente questionável, é faticamente impossível”. Para o autor, a definição hodierna do dano moral deve centrar-se no “objeto atingido (o interesse lesado)”, e não nas “consequências emocionais, subjetivas e eventuais da lesão”.

Adicionalmente, Fernando Noronha [4] afirma que, no Brasil, existe uma “tradicional confusão entre danos extrapatrimoniais e morais […] presente em praticamente todos os autores justamente reputados como clássicos nesta matéria, desde Aguiar Dias até Carlos Alberto Bittar e Yussef S. Cahali”. Buscando superar esse problema, Noronha propõe que os danos extrapatrimoniais sejam chamados de “danos morais em sentido amplo”, e que os danos anímicos sejam chamados de “danos morais em sentido estrito”.

Na atualidade, juristas de escol como Francisco Amaral (2018) e o próprio Noronha (2013) convergem no entendimento de que o dano moral em sentido estrito, enquanto espécie de dano extrapatrimonial, pode ser definido como o prejuízo não econômico que resulta da lesão à integridade psicofísica da pessoa, ao passo que o dano moral em sentido amplo, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, conceitua-se como o prejuízo não econômico que decorre da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado [5] – onde a Teoria do Desvio Produtivo inseriu o “tempo do consumidor” [6].

Teoria do Desvio Produtivo

Contudo a prática judicial brasileira revela uma grande dificuldade no reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera anímica da pessoa, o que vem contribuindo para a manutenção de uma jurisprudência anacrônica baseada no argumento do “mero aborrecimento” [7].

Com efeito, a Teoria do Desvio Produtivo, ao identificar e valorizar pioneiramente o “tempo do consumidor” (em sua dimensão estática) como um bem jurídico, demonstra que não se sustenta a compreensão jurisprudencial de que a “peregrinação” a que o consumidor é submetido, diante de um problema de consumo criado e imposto pelo próprio fornecedor, representaria “mero dissabor ou aborrecimento” normal na vida do consumidor [8].

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Partindo da noção de que dano é o prejuízo decorrente da lesão a um bem jurídico, material ou imaterial [9], a Teoria sustenta que, em situações como as esperas excessivas por atendimento bancário, o bem jurídico imediatamente violado é o “tempo do consumidor”, e não a sua “integridade psicofísica”. Por esse motivo é descabido cogitar se tais esperas excessivas geram sentimentos negativos – como “dissabores ou aborrecimentos” –, pequenos (“meros”) ou grandes (“mega”).

De fato, o consumidor que passa – ou melhor, que perde – uma, duas, três horas aguardando por atendimento bancário não sofre dano anímico (ou moral em sentido estrito), mas sim dano extrapatrimonial de natureza existencial (ou moral em sentido amplo), em razão da lesão ao seu tempo vital e a consequente alteração prejudicial e indesejada do seu cotidiano ou planejamento de vida.

Afinal o tempo, enquanto bem personalíssimo, é o suporte implícito da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar [10]. Logo um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que temporal, é existencial pela alteração prejudicial do cotidiano ou do projeto de vida do consumidor [11].

Presunção do dano existencial

Outra questão central que o STJ também precisará dirimir, neste julgamento, refere-se à presunção do dano existencial (ou moral em sentido amplo) que se verifica nas situações de esperas excessivas por atendimento bancário. Nos termos da referida Teoria, o dano extrapatrimonial de natureza existencial resultante de um evento de desvio produtivo é necessariamente presumido, porque o prejuízo existencial é deduzido de dois postulados que representam fatos notórios, a saber: 1°) em sua dimensão estática, o tempo é um recurso produtivo limitado, que não pode ser acumulado nem recuperado ao longo da vida das pessoas; e 2°) ninguém pode realizar, ao mesmo tempo, duas ou mais atividades de natureza incompatível ou fisicamente excludentes, do que resulta que uma atividade preterida/adiada no presente, em regra, só poderá ser realizada no futuro deslocando-se no tempo outra atividade [12].

Conforme bem observou Alexandre Freitas Câmara [13], não se trata aqui de aplicação da presunção legal (absoluta ou relativa), mas sim da praesumptio hominis – também denominada presunção simples ou judicial.

Leonard Ziesemer Schmitz [14] explica a diferença entre os dois institutos: “Na presunção legal, o legislador antecipa efeitos probatórios a certos fatos, que se têm por demonstrados até prova em contrário; na judicial [,] essa eficácia probatória só ocorre por conta da demonstração específica de relação entre fatos. Nas presunções legais há um deslocamento do ônus de prova […]; nas inferências judiciais o que ocorre é uma circunstância específica, que autoriza a suficiência da produção de uma prova não relacionada diretamente ao fato que se quer conhecer”.

De acordo com Schmitz [15], a presunção “não é exatamente um meio de prova – embora o Código Civil assim o trate, no artigo 212, IV –, mas sim um processo de compreensão para que se dê por provado um fato. O que resulta da presunção não é de forma alguma um fato provado, mas o instrumento da presunção atribui a esse fato a mesma eficácia dos fatos provados – aliás, é essa a utilidade do raciocínio presuntivo: dispensar prova do fato e mesmo assim tê-lo por demonstrado”.

Schmitz [16] ensina que as presunções simples ou judiciais “são inferências probatórias que independem de juízos prévios legislativos, e tradicionalmente se apoiam naquilo que ordinariamente acontece (art. 375, do CPC)”. O autor acrescenta que, “em certa medida[,] se poderá dizer que o fato notório, cujo conhecimento é indispensável para que sirva de fato instrumental a uma presunção, […] serve, mesmo que indiretamente, à demonstração daquilo que compõe o objeto de prova”.

Mas Schmitz [17] distingue as regras de experiência dos fatos notórios. As regras de experiência “são juízos universais a respeito daquilo que ordinariamente acontece” e “servem para determinar o modo de ocorrência de fatos cujo inteiro conhecimento por provas diretas não é possível”, enquanto os fatos notórios “são constatações de fatos concretos, ainda que tenham impacto generalizado sobre uma determinada comunidade ou população”.

O autor acrescenta que pode existir certa confusão entre regras de experiência e fatos notórios, visto que “a doutrina é firme na ideia de que as regras da experiência devem surgir como generalizações notórias em si mesmas, no sentido de que sua veracidade ou pertinência não precise ser justificada”. Porém Schmitz esclarece que o que acontece aí é uma confusão sobre “a verdadeira função do art. 374, I, [do CPC,] que se presta apenas a dispensar prova de determinados fatos” [18].

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Portanto, na questão controvertida ora em análise, a presunção simples, judicial ou hominis permite ao juiz, com base nas regras de experiência, desenvolver um raciocínio probatório por inferência observando aquilo que ordinariamente acontece – no caso, o modo de ocorrência dos dois postulados existenciais anteriormente enunciados (fato-base notório) –, relacionando-o a outro fato que se quer conhecer – no caso, o prejuízo existencial (fato presumido) que ordinariamente resulta de um evento provado de desvio produtivo –, para que ele, juiz, possa concluir e assim reconhecer que o dano extrapatrimonial ou moral em sentido amplo está demonstrado no caso concreto (presunção em si).

Considerações finais

Diante do que foi exposto e, ainda, com respaldo na Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, é possível então se chegar às seguintes conclusões:

1º) Que a demora na prestação de serviços bancários, em tempo superior ao estipulado na legislação específica, caracteriza vício de qualidade do serviço por “não atender as normas regulamentares de prestabilidade”, conforme prevê o art. 20, § 2º, do CDC;

2º) Que a prestação de serviços bancários em desacordo com tais normas, sempre que verificada de modo reiterado ou excessivo, caracteriza a omissão ou recusa do fornecedor quanto à sua responsabilidade de sanar o vício, representando prática abusiva vedada pelo CDC;

3º) Que o tempo perdido pelo consumidor em esperas excessivas por atendimento bancário, somada à alteração indesejada do seu cotidiano ou projeto de vida, caracteriza a lesão danosa à sua autodeterminação temporal e existencial;

4º) Que uma vez provada a lesão ao tempo do consumidor, presume-se o prejuízo existencial dela decorrente – sendo tal prejuízo inferido pelo juiz com base no que ordinariamente acontece a partir daqueles dois postulados, que são fatos notórios;

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5º) Que o tempo vital e as atividades existenciais do consumidor são bem e interesses jurídicos personalíssimos; logo sua lesão atinge o consumidor enquanto indivíduo, legitimando-o a mover ação em nome próprio – paralelamente à legitimação das entidades que podem promover ação coletiva.

Consequentemente o Instituto Brasilcon, sob nosso patrocínio, pediu ao STJ que negue provimento ao REsp 1.962.275/GO e, no mérito, que fixe a tese assim proposta: a demora reiterada ou excessiva na prestação de serviços bancários, em tempo superior ao previsto na legislação específica, caracteriza vício de qualidade do serviço por não atender às normas regulamentares de prestabilidade, o que gera dano extrapatrimonial de natureza existencial presumido (ou seja, dano moral lato sensu in re ipsa) pela lesão ao tempo e às atividades existenciais personalíssimos do consumidor, ensejando sua reparação tanto em ação individual quanto em tutela coletiva.


[1] SANSEVERINO, Paulo de Tarso V. Princípio da reparação integral: indenização no código civil. 1. ed., 2. tir. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 189.

[2] Veja-se, por todos, CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 8. ed. rev. e ampl. 3. reimpr. São Paulo: Atlas, 2009. p. 83-84, e STJ, REsp 844736/DF, j. 27-10-2009, rel. Min. Luis Felipe Salomão, rel. p/ acórdão Min. conv. Honildo Amaral de Mello Castro.

[3] SCHREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2011. p. 17.

[4] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 591.

[5] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Edição Especial do Autor, 2022. p. 135.

[6] DESSAUNE, 2022, p. 172-173.

[7] DESSAUNE, Marcos. A superação do argumento do “mero aborrecimento” promovida pela Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor na jurisprudência brasileira. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 6, n. 3, p. 113-132, set./dez. 2023. passim.

[8] DESSAUNE, 2022, p. 305.

[9] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10. ed. rev. e modif. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 954.

[10] DESSAUNE, 2022, p. 367.

[11] SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 42-46, passim.

[12] DESSAUNE, 2022, p. 363-364.

[13] CÂMARA, Alexandre Freitas. Debate sobre o PL 2856/22 do Senado que positiva a Teoria do desvio produtivo do consumidor, realizado com DESSAUNE, Marcos em 01-09-2023, no auditório da OAB/RJ no Rio de Janeiro/RJ.

[14] SCHMITZ, Leonard Ziesemer. Raciocínio probatório por inferências: critérios para o uso e controle das presunções judiciais (Tese de doutorado). PUC-SP: São Paulo, 2018. p. 186.

[15] SCHMITZ, 2018, p. 183.

[16] SCHMITZ, 2018, p. 193 e 195-196.

[17] SCHMITZ, 2018, p. 206 e 234.

[18] SCHMITZ, 2018, p. 234.

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