Reclassificação de rendimentos e aproveitamento de tributos

No mês passado, a plataforma de pesquisa de acórdãos e resoluções (VER) completou dois anos, ostentando mais de meio milhão de documentos ali inseridos e se tornando a principal fonte de informações acerca das decisões proferidas no âmbito do Carf [1].

Em rápida busca no mencionado banco de dados, já é possível perceber a importância da temática relacionada aos efeitos da reclassificação da receita tributada na pessoa jurídica para rendimentos tributáveis na pessoa física, porquanto mais de mil decisões já foram prolatadas.

A situação é configurada quando rendimentos são originalmente apurados pela pessoa jurídica (PJ) – sobre a qual incide IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, apenas para mencionar os tributos federais – e a fiscalização, a partir da constatação de elementos como ausência de propósito negocial, simulação, inadequação da entidade eleita, etc., reclassifica-os como rendimentos recebidos pela pessoa física (PF).

A questão devolvida às conselheiras e aos conselheiros do Carf é a seguinte: poderão ser deduzidos, quando da apuração do crédito tributário, os valores arrecadados sob códigos de tributos federais exigidos da pessoa jurídica, cuja receita foi reclassificada e reconhecida como rendimentos de pessoa física? Duas são as correntes que se firmaram.

Uma primeira vertente responde de modo negativo a indagação. Para os que à ela se filiam, “incabível o aproveitamento na pessoa física de supostos recolhimentos efetuados indevidamente ou a maior por pessoa jurídica” [2].

O ponto nodal para a negativa do aproveitamento estaria na ausência de previsão legal para que o abatimento seja realizado de ofício pela própria autoridade fiscalizadora no momento do lançamento o que, consequente e evidentemente, obstaria a atuação de julgadores administrativos, estejam eles em primeira ou em segunda instância. Assim, “[s]e a autoridade lançadora não pode aproveitar pagamentos de natureza distintos, a decisão do julgador administrativo, no sentido do aproveitamento de pagamentos, extrapola sua competência, afeta ao controle de legalidade” [3].

Em atenção ao princípio da entidade [4] e à “exegese do art. 170 [do CTN] tem-se que o contribuinte pode compensar débitos tributários próprios com créditos líquidos e certos que possuir com a Fazenda Pública; porém, (…) a compensação de seus débitos com créditos de uma outra pessoa (…) não está previsto na legislação (…)” [5].

Pontuam que “[p]edidos de compensação e restituição possuem rito próprio, não sendo possível sua analise no curso de processo envolvendo o lançamento de crédito tributário, mormente quando o sujeito passivo deste é distinto do contribuinte através do qual foi supostamente recolhido o tributo [6] – ex vi do art. 74 da Lei nº 9.430/1996.

Do escrutínio dos precedentes colhidos, algumas ponderações são levantadas de modo a corroborar a impossibilidade de deferimento do aproveitamento dos créditos, dentre os quais se incluem ausência de prova de que, deveras, foram os valores efetivamente recolhidos pela pessoa jurídica, bem como (in)existência de procedimento específico para a apuração de eventuais débitos, de modo a assegurar a existência de numerário a ser aproveitado pela pessoa física. [7] Questiona-se, ainda, “se caso o aproveitamento de recolhimentos requerido fosse admitido, poderia o contribuinte pleitear, da mesma forma, a dedução de eventuais despesas da pessoa jurídica que estivessem relacionadas à manutenção de sua fonte pagadora? E se os recolhimentos efetuados pela PJ, ao cabo, se mostrarem superiores ao que seria devido pelo recorrente, caberia a este restituição? E os rendimentos recebidos pelo outro sócio a título de distribuição nos lucros, deveria ser imputada omissão de rendimento do trabalho assalariado a tal beneficiário?”
 [8].

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segunda vertente, ao seu turno, autoriza a aproveitamento do que foi pago pela pessoa jurídica pela pessoa física; entretanto, subdivide-se noutras duas correntes, as quais denominaremos restritiva e ampliativa.

corrente restritiva sustenta ser “[c]abível a dedução no lançamento de ofício do imposto de renda da pessoa física, antes da inclusão dos acréscimos legais, com relação aos valores arrecadados de mesma natureza a título de imposto de renda da pessoa jurídica, cuja receita foi desclassificada e considerada rendimentos tributáveis auferidos pela pessoa física” [9].

Dito ser “plenamente razoável a dedução dos eventuais recolhimentos de mesma natureza a título de imposto sobre a renda efetuados pela [pessoa jurídica], tendo em conta, nesse raciocínio, [que parte do] o tributo exigido da pessoa física (….) foi efetivamente pago, ainda que por outrem” [10]. Restaria, para os defensores dessa corrente, possível a dedução apenas dos valores arrecadados a título de imposto de renda das pessoas jurídicas, cuja receita fora desclassificada e considerada como se rendimentos auferidos pela pessoa física fossem.

Assinalado que, “[q]uanto aos demais tributos pagos, distintos do imposto de renda, o aproveitamento entre pessoas distintas, em qualquer hipótese, dependeria de previsão em lei específica autorizadora de sua realização. Como regra, a compensação no âmbito tributário implica a existência de duas pessoas, simultaneamente credoras e devedoras uma da outra desde a origem, havendo obrigações recíprocas entre as partes (art. 170 do CTN)” [11]. Isso porque, não se deveria “transmudar o processo fiscal de controle do lançamento em procedimento de compensação. A via adequada é, portanto, o pedido de restituição, sem prejuízo da observância do prazo para repetição do indébito e do cumprimento dos demais requisitos estipulados na legislação” [12].

Por derradeiro, a corrente ampliativa, prevalecente na Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf há mais de uma década [13], autoriza não só a dedução do montante recolhido pela pessoa jurídica a título de IRPJ, mas ainda de CSLL, PIS e Cofins, referentes ao período autuado, devendo ser observada a proporção dos rendimentos desclassificados e considerados como auferidos pela pessoa física.

Os filiados à vertente sublinham se tratar “de uma única capacidade contributiva, e as receitas oneradas pelos tributos da legislação atinente às pessoas jurídicas consubstanciam-se de fato, em rendimentos e proventos da pessoa física do recorrente, consoante a reclassificação promovida pela autoridade lançadora verificou, e que já foram parcialmente onerados por tributos federais” [14]. Frisado que o “que se ora admite não é aquela compensação com esteio no artigo 74 da Lei 9.430/96, mas sim o aproveitamento do IR já pago pela pessoa jurídica sobre esses mesmos rendimentos que se entendeu deveriam ter sido tributados na pessoa física (…)” [15].

Ao sentir dos que assim entendem, o aproveitamento dos tributos já pagos, ainda que pela pessoa jurídica, nada mais seria do que uma consequência direta do próprio lançamento, porquanto “teria havido erro no ‘local’ (sob o ângulo do titular da renda) da tributação da renda” [16]. O indeferimento da dedução colidiria com princípios e normas do ordenamento jurídico, fazendo configurar em uma de duas nefastas alternativas, quais sejam: 1) “[a] movimentação desnecessária da máquina administrativa, que deveria restituir o imposto pago pela pessoa jurídica, sendo mais racional realizar o procedimento no curso deste processo” [17]; ou, 2) “[o] enriquecimento ilícito da Administração Pública, que terá recebido duas vezes pelo mesmo fato gerador (bis in idem), sem lei específica para tal, caso se considere impossível o pedido de restituição, por já ter se passado cinco anos do fato gerador” [18]. Além disso, há o entendimento de que, diante da existência de pagamento antecipado, à luz do que disciplina o inciso I do artigo 44 da lei nº 9.430/96, não caberia, sobre o montante já recolhido, a multa de 75% [19].

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Embora, há muito, haja uma prevalência do entendimento da Câmara Superior no sentido da possibilidade do aproveitamento dos tributos recolhidos na pessoa jurídica a título de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins no período autuado, observada a proporção dos rendimentos desclassificados e considerados como auferidos pela pessoa física, poderá o cenário ser modificado – seja pela nova composição que passará exibir, tendo em vista o término do mandato de conselheiras e conselheiros que a integram; seja pela retomada do voto de qualidade no Carf, que oxalá se avizinha, com a tramitação do PL nº 2.384/2023 no Senado Federal.

Como é tempo de despedidas no Carf, não poderiam as subscritoras desta coluna deixar de desejar sucesso às colegas e aos colegas que partem para novos voos, agradecidas e engrandecidas pela singular oportunidade de aprendizado e certas de que a ausência deles é – e continuará a ser – em demasia sentida.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Cf. <http://carf.economia.gov.br/noticias/2022-1/plataforma-de-pesquisa-de-acordaos-e-resolucoes-do-carf-2013-ver-completa-dois-anos-com-meio-mais-de-meio-milhao-de-documentos>. Acesso em: 21 ago. 2023.

[2] CARF. Acórdão nº 2201-009.462, Consª. Rel.ª DÉBORA FÓFANO DOS SANTOS, sessão de 11 nov. 2021 [à unanimidade].

[3] Cf. declaração de voto da Cons.ª SONIA QUEIROZ ACCIOLY em: CARF. Acórdão nº 2202-010.169. Cons.ª Rel.ª SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º ago. 2023 [por maioria].

[4] O princípio da entidade é tratado no art. 4º da Resolução CFC nº 750/1993, nos seguintes termos:

Art. 4º. O Princípio da Entidade reconhece o Patrimônio como objeto da Contabilidade e afirma a autonomia patrimonial, a necessidade da diferenciação de um Patrimônio particular no universo dos patrimônios existentes, independentemente de pertencer a uma pessoa, um conjunto de pessoas, uma sociedade ou instituição de qualquer natureza ou finalidade, com ou sem fins lucrativos. Por conseqüência, nesta acepção, o patrimônio não se confunde com aqueles dos seus sócios ou proprietários, no caso de sociedade ou instituição.

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Parágrafo único. O Patrimônio pertence à Entidade, mas a reciproca não é verdadeira. A soma ou agregação contábil de patrimônio autônomos não resulta em nova Entidade, mas numa unidade de natureza econômico contábil.

[5] Cf. declaração de voto do Cons. DENNY MEDEIROS DA SILVEIRA em: CARF. Acórdão nº 2402-008.171, Cons.ª Rel.ª ANA CLAUDIA BORGES DE OLIVEIRA, Redator Designado Cons. LUÍS HENRIQUE DIAS LIMA, sessão de 3 mar. 2020 [desempate pelo voto de qualidade].

[6] CARF. Acórdão nº 2201-009.224, Cons. Rel. RODRIGO MONTEIRO LOUREIRO AMORIM, sessão de 03 set. 2021 [unanimidade]. Em idêntico sentido, aclarado que “à pessoa jurídica foram conferidos mecanismos de restituição de valores pagos indevidamente, e nestes casos de reclassificação de rendimentos/negócio jurídico, compete ao interessado discutir em procedimento apresentado à Autoridade da Administração Tributária na RFB, a aplicação do instituto.” Cf. declaração de voto da Cons.ª SONIA QUEIROZ ACCIOLY em: CARF. Acórdão nº 2202-010.169, Cons.ª Rel.ª SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º ago. 2023 [por maioria].

[7] CARF. Acórdão nº 2201-009.462, Consª. Rel.ª DÉBORA FÓFANO DOS SANTOS, sessão de 11 nov. 2021 [à unanimidade].

[8] CARF. Acórdão nº 2201-009.544, Cons. Rel. CARLOS ALBERTO DO AMARAL AZEREDO, sessão de 03 dez. 2021 [à unanimidade].

[9] CARF. Acórdão nº 2401-009.813, Cons. Rel. JOSÉ LUÍS BENJAMIN PINHEIRO, Redator Designado cons. MATHEUS SOARES LEITE, sessão de 1 set. 2021 [desempate pró-contribuinte].

[10] CARF. Acórdão nº 2401-005.938, Cons.ª Rel.ª LUCIANA MATOS PEREIRA BARBOSA, Redator Designado CLEBERSON ALEX FRIES, sessão de 16 jan. 2019 [desempate pelo voto de qualidade].

[11] CARF. Acórdão nº 2401-009.813, Cons. Rel. JOSÉ LUÍS BENJAMIN PINHEIRO, Redator Designado cons. MATHEUS SOARES LEITE, sessão de 1 set. 2021 [desempate pró-contribuinte].

[12] CARF. Acórdão nº 2401-006.224, Cons. Rel. RAYD SANTANA FERREIRA, Redator Designado CLEBERSON ALEX FRIES, sessão de 07 maio 2019 [por maioria].

[13] Sublinhamos que sói ser utilizado como base de fundamentação o entendimento proferido pelo Cons. LUIZ EDUARDO DE OLIVEIRA SANTOS, no acórdão de nº 9202-002.112, de 09 de maio de 2012. Confira-se, à título exemplificativo, os seguintes precedentes, todos colhidos da Câmara Superior, que comprovam nossa afirmação: 9202-002.451, sessão de 08 nov. 2012; 9202-002451, sessão de 08 nov. 2012; 9202-003.665, sessão de 09 dez. 2015; 9202¬004.458, sessão de 23 nov. 2016; 9202-007.391, sessão de 29 nov. 2018; 9202-008.619, sessão de 19 fev. 2020; 9202-009.957, sessão de 24 set. 2021; 9202-010.441, sessão de 29 set. 2022.

[14] CARF. Acórdão nº 2202-004.869, Cons. Rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 16 jan. 2019 [à unanimidade].

[15] CARF. Acórdão nº 9202-010.812, Cons. Rel. MAURÍCIO NOGUEIRA RIGHETTI, sessão de 29 jun. 2023 [à unanimidade].

[16] Idem.

[17] CARF. Acórdão nº 9202-002.112, Cons. Rel. LUIZ EDUARDO DE OLIVEIRA SANTOS, sessão de 09 maio 2012 [à unanimidade].

[18] Idem.

[19] Cf. CARF. Acórdão nº 2202-010.169, Cons.ª Rel.ª SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º ago. 2023 [por maioria].

Fonte: Conjur