Um pedido de vista do ministro João Otávio de Noronha interrompeu nesta terça-feira (22/8) o julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que discute se a ação que visa a obrigar o ex-coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra a pagar indenização por atos de tortura cometidos durante a ditadura militar se submete à prescrição.
O caso julgado trata da prisão, tortura e desaparecimento do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que teve a morte presumida em 1971 no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo.
Merlino foi torturado por Brilhante Ustra, motivo que levou sua ex-companheira e sua irmã a ajuizar uma ação de indenização em 2010. O ex-coronel foi condenado a pagar R$ 50 mil a cada uma delas em 2012. A sentença reconheceu que foi ele o responsável por, inclusive, dirigir e calibrar a intensidade e duração da tortura contra o jornalista.
Ustra morreu em 2015, enquanto aguardava o julgamento do recurso. Em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) entendeu que a possibilidade de pedir indenização, embora não atingida pela Lei de Anistia de 1979, já estava prescrita. O marco inicial considerado foi a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Até o momento, a 4ª Turma do STJ tem duas posições antagônicas sobre a possibilidade da prescrição. Elas foram apresentadas na sessão do último dia 8 e reiteradas amiúde nesta terça-feira, em voto-vista regimental do ministro Marco Buzzi e em manifestação da ministra Isabel Gallotti.
Buzzi defende que o caso, por envolver tortura — crime contra a humanidade —, tem reparação civil imprescritível. Assim, deve retornar ao TJ-SP para a continuidade do julgamento da apelação contra a condenação de Ustra.
Gallotti, por sua vez, diz que a ação não poderia ser ajuizada contra Ustra, mas, sim, contra o Estado brasileiro. E que, superado esse ponto, a pretensão indenizatória pode prescrever justamente por se tratar de um processo que tem como alvo um agente estatal.
Quem processar?
O tema da legitimidade de Brilhante Ustra para responder à ação indenizatória pelos atos praticados na condição de agente estatal não chegou a ser analisado pelo relator. Ele entendeu que a questão estava preclusa porque não foi ventilada em contrarrazões, nem analisada pelo TJ-SP.
Para a ministra Isabel Gallotti, porém, a legitimidade não precisaria ser invocada porque, sendo matéria de ordem pública, pode ser levantada pelo STJ até mesmo de ofício. Com base no Recurso Extraordinário 1.027.633, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, ela considerou Brilhante Ustra parte ilegítima para responder à ação indenizatória.
Isso porque, segundo o STF, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado. Se condenado, o ente público poderá, no máximo, ajuizar ação de regresso contra seu agente, para ser indenizado pelo prejuízo.
Nesta terça-feira, Buzzi destacou que a 4ª Turma já interpretou a tese do STF no sentido de que ela só vale nas situações em que o dano causado ao particular é provocado por conduta do agente público no cumprimento de sua função. Se a conduta é alheia ao cargo, a ação pode ser diretamente contra ele.
Foi assim que o colegiado condenou o ex-chefe da “lava jato”, Deltan Dallagnol, a indenizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos abusos cometidos no episódio em que uma denúncia contra o petista foi espetacularmente divulgada, com o uso de uma infame apresentação de PowerPoint.
“Não há como cogitar que a prática de tortura, de abusos de toda ordem, de violências à dignidade da pessoa humana, seja considerada conduta que derive das funções publicas regulares do agente estatal. Estado de Direito nenhum dá esses poderes a quem quer que seja”, pontuou o ministro Buzzi.
A ministra Gallotti manteve a divergência, especialmente levando em conta que a interpretação dada pela 4ª Turma foi desafiada por recurso ao STF, que ainda não se debruçou sobre o tema. Até que isso ocorra, ela vai manter a posição de que a ação indenizatória só pode ser ajuizada contra o Estado em qualquer situação.
E a prescrição?
Para Marco Buzzi, a qualificação dos atos praticados por Ustra como crimes contra a humanidade impede o uso do instituto da prescrição, uma vez que houve gravíssimas violações de direitos fundamentais.
Esse entendimento reside no potencial ofensivo dos atos praticados, na afronta à moralidade e à dignidade da pessoa humana, nos empecilhos criados pelo próprio Estado para investigação e no princípio da não repetição, pelo qual se permite proteger a coletividade e a sobrevivência humana.
A divergência da ministra Gallotti, por sua vez, aponta que essa posição vai de encontro ao movimento histórico que levou à aprovação da Lei da Anistia, em 1979, o que permitiu a redemocratização e a abertura política lenta e gradual no país.
“Os crimes foram horrendos e repugnantes, mas exatamente esse lado foi alvo da anistia. O lado criminal foi apagado. O que se busca aqui é uma indenização com base em normas de Direito Civil”, disse ela ao destacar que a regra geral é contar a prescrição a partir da data do fato.
A ação foi ajuizada em 2010, mais de 20 anos desde a promulgação da Constituição de 1988, marco escolhido pelo TJ-SP para decretar a prescrição. “Não havia obstáculo nenhum a ser alegado para impedir o ajuizamento da ação. Durante a ditadura poder-se-ia alegar medo de perseguição. Esse medo, desde a Constituição de 1988, não tem mais fundamento”, disse ela.
Em seu voto-vista regimental, o ministro Marco Buzzi reiterou a posição de que é evidentemente impossível estipular lapso certo para colher informações acerca dos algozes do regime militar com o intuito de pedir indenização, inclusive porque por muitos anos esses dados estavam inacessíveis, sob sigilo decretado pelo próprio Estado.
REsp 2.054.390
Fonte: Conjur