O direito contratual atravessa um período inédito no Brasil, marcado por formulações doutrinárias que impactaram a conceituação fundamental dos contratos e seus desdobramentos no sistema jurídico. A vontade, elemento crucial e absoluto para a formação dos contratos, já não é suficiente para definir a contratualidade atual, que agora se baseia no princípio da autonomia privada.
É sabido que a teoria geral dos contratos, alinhada ao direito civil, tem sofrido mudanças, direcionando-se cada vez mais pelo viés do direito civil constitucional. Nesse contexto, diversos fatores contribuíram para a evolução da teoria contratual, incluindo a superação do liberalismo jurídico.
Os princípios contratuais desempenham um papel central no desenvolvimento dos contratos, pois a legislação é elaborada com base nos princípios jurídicos aplicáveis, sejam eles positivados ou não, que acompanham as fases de evolução conceitual da teoria contratual.
A liberdade contratual é delimitada pela aplicação dos valores fundamentais da Constituição, sem negar a autonomia privada das partes na relação contratual. As partes têm liberdade para agir na esfera privada, desde que respeitem princípios como lealdade, socialidade e eticidade, em conformidade com o bem comum e os interesses econômicos e sociais.
A vontade é vista como a base da obrigatoriedade dos contratos, em harmonia com a plena liberdade concedida às partes para celebrar seus negócios. Além disso, os princípios do direito contratual ressaltam a importância do contrato como expressão de consenso e da vontade como fonte de efeitos jurídicos.
A par disso, essa vontade deve ser livre e manifestada de forma clara e insofismável, sob pena de anulabilidade do instrumento.
Quando os contratantes são pessoas plenamente capazes e que podem ler e compreender com exatidão os termos da contratação, a forma de manifestação dessa vontade não exige grandes formalidades, manifestando-se com a simples assinatura dos contratantes.
De outro lado, tratando-se de contratante analfabeto, algumas particularidades se apresentam. Não se discute que a pessoa analfabeta é dotada de capacidade para a prática de praticamente todos os atos da vida civil, entre eles o de contratar e ser contratado.
Testemunhas para contratante analfabeto
Contudo, diante da sua impossibilidade de ler e, assim entender perfeitamente o que está escrito nas cláusulas da avença, o legislador criou uma fórmula para que se possa dar credibilidade à contratação realizada pelo analfabeto, de modo a afastar a ideia de que tenha sido enganado ou induzido a contratar algo que não era o pretendido.
Essa fórmula é expressamente consignada pelo artigo 595 do CC/2002, que exige que, na contratação realizada por analfabeto, a sua manifestação de vontade seja expressada por meio de assinatura a rogo e de duas testemunhas.
Apesar do rigorismo da norma, a jurisprudência pátria — atenta à evolução das formas de contratações — tem abrandado essa regra, contemplando a validade dos contratos quando consta a impressão digital do contratante analfabeto, acompanhada da assinatura de duas testemunhas devidamente identificadas por seus documentos pessoais, ainda que ausente a assinatura a rogo.
Em tais casos, consignou-se que a regra do artigo 595 do CC emprega a expressão “poderá”, o que indica que o instrumento pode ser assinado a rogo, como também pode ser assinado por outros meios legais, a exemplo da aposição da digital.
Portanto, a teor do disposto no artigo 595 do CC, a contratação realizada por analfabeto será válida tanto na hipótese da presença de assinatura a rogo, quando nos casos de aposição de sua impressão digital, desde que, em ambos os casos, haja a assinatura de duas testemunhas identificadas por seus respectivos documentos.
Nesse sentido, destacam-se precedentes do TJ-MA, a exemplo: ApCiv 0817336-64.2019.8.10.0001, relator: JAMIL DE MIRANDA GEDEON NETO, Publicação: 12/04/2022; ApCiv 0800454-65.2020.8.10.0074, relator: JOSE JORGE FIGUEIREDO DOS ANJOS, Publicação: 20/05/2022.
Contudo, essa fórmula só pode ser aplicada aos casos de contratos físicos, onde o contratante esteja de corpo presente na formação da avença.
Solução para forma eletrônica de contrato
A celeuma surge, contudo, quando o contrato é realizado de forma eletrônica.
Com efeito, ao longo dos últimos anos acompanhamos uma evolução significativa nos meios de contratação de empréstimos, impulsionada pelo avanço da tecnologia e a necessidade de processos mais rápidos e seguros.
Antes, a contratação de empréstimos geralmente envolvia burocracias e exigia que o cliente se deslocasse até o banco ou instituição financeira para assinar diversos documentos. No entanto, com os avanços tecnológicos, surgiu a possibilidade de realizar todo o processo de forma eletrônica, eliminando a necessidade de papel e agilizando a concessão de crédito.
Isso estabelecido, surge a dúvida: como compatibilizar essas novas formas de contratação com a regra do artigo 595 do CC?
De início, há que se esclarecer que o Código Civil vigente é do ano de 2002, época em que, apesar de já se contemplar diversos avanços tecnológicos, ainda não era possível imaginar todas as inovações digitais que usufruímos hoje em dia, nem as modernas formas de contratação que existem nos dias atuais.
Dessa maneira, afigurava-se impossível ao legislador disciplinar a situação ora em debate. Contudo, não se pode ignorar que os analfabetos, assim como os indígenas, entre outras minorias, não podem estar relegados à invisibilidade digital, de modo a impedir que utilizem as ferramentas modernas trazidas pelas inovações tecnológicas.
Afinal, a Constituição, em seu artigo 3º, estabeleceu como objetivo fundamental da República a erradicação da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e aplicando essa norma ao contexto dos contratos eletrônicos, é imperativo que as pessoas analfabetas não sejam excluídas da esfera digital, garantindo-lhes acesso e inclusão nos meios eletrônicos.
Dinamismo do direito
Doutrinadores como Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho destacam a necessidade de adaptar os institutos tradicionais do direito às novas realidades tecnológicas. Eles afirmam que a interpretação do direito deve ser dinâmica, considerando o contexto social e tecnológico atual, sem perder de vista os princípios fundamentais que regem o ordenamento jurídico.
Nesse sentir, e diante da ausência de disciplinamento específico conferido pelo legislador, ao Judiciário coube, pelo menos por enquanto, o dever de solucionar a questão, em face do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV).
De acordo com a Medida Provisória nº 2.200-2/2001, a assinatura digital deve se operar por meio da “Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira — ICP-Brasil”, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.
Por meio das regras da ICP-Brasil, cada assinatura associa uma entidade, pessoa, processo ou servidor a um par de chaves criptográficas, uma associada àquele que assina digitalmente e outra à autoridade certificadora.
Assim, quando adotada a infraestrutura da ICP-Brasil, o entendimento que prevalece é o de que a entidade certificadora faria as vezes das testemunhas elencadas pelo artigo 595 do CC, de modo a satisfazer a formalidade legal e validar a contratação.
Nesse sentido: TJ-PR ApCiv 0004091-58.2017.8.16.0086, relator: Desembargador Fernando Antonio Prazeres, Data de Julgamento: 01/11/2018, 14ª Câmara Cível, Data de Publicação: 06/11/2018.
Contratação bancária
Todavia, tratando-se de contratos bancários, a contratação eletrônica pode se realizar, hodiernamente, de duas formas: ou por meio de caixa eletrônico de autoatendimento, onde há a utilização de cartão físico por meio do contratante, com assinatura digital através de senha de quatro dígitos e código gerado por meio de token; ou, ainda, por meio de aplicativos bancários inseridos em dispositivos eletrônicos individuais (smartphones ou assemelhados), sem usar a estrutura de chaves da ICP-Brasil.
Em casos assim, a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 não desconhece a existência da assinatura, mas impõe, para sua validade, que seja ela admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento. É essa a dicção do artigo 10, § 2º:
“O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.”
No mesmo sentido se posiciona o inciso II, do artigo 4º, da Lei nº 14.063/2020, a saber:
“II – assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: […].”
Portanto, nesses casos, a assinatura eletrônica só seria válida se aceita pelo contratante; e tendo o consumidor negado a contratação, o documento não possuiria o condão de comprovar a efetiva contratação.
Ocorre que essa fórmula se mostrou de todo imperfeita, porquanto dá margem à atuação de má-fé de pessoas que, mesmo contratando livremente, posteriormente se interessem em não cumprir a avença e, assim, questionar a legitimidade da contratação, ferindo o princípio da boa-fé objetiva encartado no artigo 422 do Código Civil.
Tipos de assinatura digital
Para solucionar o problema, as instituições financeiras passaram a adotar basicamente dois tipos de assinaturas: por chave criptografada e por biometria facial.
A assinatura digital por chave criptografada é um método de autenticação que utiliza algoritmos de criptografia para garantir a segurança e autenticidade de documentos eletrônicos.
Funciona através da geração de um par de chaves: uma chave privada, conhecida apenas pelo signatário, e uma chave pública, disponibilizada para verificação. Quando um documento é assinado digitalmente, a chave privada é usada para criar uma assinatura digital única, que pode ser verificada usando a chave pública correspondente. Isso garante que o documento não foi alterado após a assinatura e que o signatário é quem ele afirma ser.
Já a biometria facial consiste no reconhecimento da face do indivíduo por meio de um software e tem se mostrado uma solução eficiente e segura para garantir a identidade do solicitante do empréstimo. Por meio de algoritmos sofisticados, a tecnologia é capaz de analisar diversos pontos faciais únicos, como o formato dos olhos, nariz e boca, criando uma assinatura digital exclusiva para cada pessoa.
Esse método traz inúmeras vantagens tanto para os clientes como para as instituições financeiras. Primeiramente, a utilização da biometria facial proporciona maior segurança na identificação do cliente, reduzindo consideravelmente a possibilidade de fraudes. Além disso, a agilidade no processo de contratação é um diferencial importante, permitindo que o empréstimo seja solicitado e aprovado rapidamente, sem a necessidade de deslocamentos ou envio de documentos físicos.
A praticidade proporcionada pela assinatura através da biometria facial também contribui para uma experiência mais satisfatória para o cliente. Não é mais necessário enfrentar filas, enviar documentos pelo correio ou digitalizar papéis, o que simplifica e agiliza todo o processo, tornando-o mais conveniente.
Videoconferência registrada
Além dessas duas formas de assinatura digital, também já se contempla a utilização de videoconferência com registro audiovisual, além de plataformas adaptadas para incluir suporte inclusive a analfabetos, com interfaces de voz e instruções audiovisuais, garantindo que o usuário compreenda e valide o contrato de forma consciente.
É importante destacar que, para garantir a segurança e proteção dos dados dos clientes, as instituições financeiras adotam medidas de criptografia e segurança robustas para proteger as informações pessoais, de modo que o consumidor pode se sentir tranquilo ao utilizar esse meio de contratação de empréstimos, já que oferece maior segurança contra falsificação e adulteração de documentos, elimina a necessidade de armazenamento físico e transporte de papéis e é reconhecida legalmente como equivalente à assinatura física, conforme expressamente consagrado pela Lei nº 14.063/2020.
Em recentes decisões, o Superior Tribunal de Justiça tem manifestado entendimento pela validade dos contratos onde se constata a aposição de assinatura digital, quando ambas as partes, no legítimo exercício de sua autonomia privada, elegeram meio diverso de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, com uso de certificado não emitido pela ICP-Brasil. Nesse sentido o REsp 2.159.442 / PR, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, publicado em 27/09/2024).
Conclui-se, portanto, que o artigo 595 do Código Civil deve ser reinterpretado à luz do contexto atual, em que os contratos eletrônicos são uma realidade consolidada, assegurando que os analfabetos não sejam excluídos do meio eletrônico. A exigência de duas testemunhas ou assinatura a rogo para analfabetos pode e deve ser flexibilizada, desde que se adotem medidas tecnológicas que assegurem a autenticidade e a integridade da manifestação de vontade do analfabeto.
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Referências bibliográficas
1 – GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. In Novo Curso de Direito Civil – Contratos. São Paulo: Saraiva, 2019.
2 – VENOSA, Silvio de Salvo Venosa. In Direito Civil – Contratos em Espécie. São Paulo: Atlas, 2020.
3 – GOMES, Orlando Gomes. In Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
4 – SOARES, Sávio de Aguiar. In Teoria Geral dos Contratos e funcionalização no Direito Privado contemporâneo. Disponível em http://www.lfg.com.br 04 julho. 2008.
5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Manual de Assinatura Eletrônica. Disponível online.
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