Aduana em tempo de mudanças globais

Nos dias 28 e 29 de setembro, a International Customs Law Academy (Icla) promoveu sua XVI Reunião Mundial de Direito Aduaneiro. Da presente edição [1], realizada em Berlim, na Universidade de Humboldt [2], participaram representantes de mais de 30 países que esgotaram as inscrições e lotaram o auditório da prestigiosa anfitriã. O encontro marcou o retorno dos eventos presenciais da academia e teve como título “Aduana em tempo de mudanças globais”.

A reunião foi dividida entre as cerimônias de abertura, encerramento e cinco painéis temáticos com palestrantes experts de nacionalidades distintas e representação plural, dentre eles, membros da aduana, de associações civis, universidades e do setor privado. Os temas dos painéis foram muito bem escolhidos permitindo uma visão ampla do cenário atual do comércio internacional, suas implicações aduaneiras, incertezas e inseguranças, o status de implementação do Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), da revisão da Convenção de Quioto Revisada (CQR), uma reflexão sobre temas aduaneiros clássicos (valoração, classificação, origem, infrações e penalidades) e um painel inovador sobre a doutrina e bibliografia aduaneira.

Alguns temas abordados são presentes em discussões e seminários também entre nós. Dentre esses, Sara Armella [3] discorreu sobre a valoração aduaneira e decisões da Corte Europeia de Justiça e da Suprema Corte Italiana. A jurista italiana destacou a posição das cortes europeias sobre o uso de banco de dados da Aduana para análise de risco e início de fiscalização sobre valoração aduaneira. Para tal finalidade, assinalou, as fontes são legítimas; não o sendo, porém, como fontes únicas a fim de se redefinir o valor aduaneiro. Ao contrário, ser a fonte exclusiva para esse fim é rechaçado pela jurisprudência europeia, cabendo à autoridade aduaneira requisitar informações do importador, assegurando-lhe garantias para que haja sua participação e que possa produzir provas em favor do valor declarado [4].

No mesmo painel, Massimo Fábio [5] discorreu sobre a valoração aduaneira e os preços de transferência, tema atual e debatido na pauta brasileira [6]. O palestrante destacou o volume de operações entre empresas do mesmo grupo, os distintos objetivos de arrecadação relacionados à valoração aduaneira e aos preços de transferência, embora ambas as autoridades competentes busquem o cumprimento do princípio arm’s length. Ressaltou a relevância do estudo sobre preços de transferência para a valoração aduaneira, quando ele traz informações sobre as circunstâncias da venda. Apresentou decisão da Suprema Corte Italiana que reconheceu o direito de restituição de tributos aduaneiros pagos pelo importador sempre que se verifique que, “por erro do interessado e não por escolha”, for registrado um montante de direitos aduaneiros não devidos “no momento do pagamento” e desde que os fatos que deram origem ao pagamento indevido não resultem de “fraude do interessado” [7].

Infrações e penalidades aduaneiras e sua harmonização a nível internacional foi tema das reflexões feitas por Fernanda Inga [8] e Pablo Villegas Landázuri [9]. O tema foi apresentado e introduzido sob a ótica do Gatt, do AFC e da CQR. Foram indicados desafios e oportunidades de uma uniformização internacional na matéria sancionatória, abordando a responsabilidade objetiva e subjetiva, as sanções comumente aplicadas (multas, perdimento e restrições administrativas, como não habilitações e advertências), e defendida a ampla aplicação da proporcionalidade e da razoabilidade nos sistemas sancionatórios. Verificamos dificuldades comuns nessa temática, merecendo sua contínua e aprofundada reflexão, urgindo alterações na legislação aduaneira pátria [10].

Temática atual e relevante foi conduzida por José Rijo. Sob o título “As interpretações das Cortes Nacionais sobre o critério de transformação substancial”, o estudioso trouxe o conceito da transformação substancial na OMC, na OMA e na UE, os desafios enfrentados para harmonização do tema, destacando, entre outros, o desacordo sobre normas para alguns setores (café, pescado, produtos têxteis, máquinas) e as questões práticas complexas que geram insegurança e imprevisibilidade nos agentes econômicos. José Rijo relatou pesquisa jurisprudencial apresentando dez decisões de diferentes jurisdições (União Europeia, Portugal, Brasil, Venezuela, Argentina e Estados Unidos) nas quais se divergiu sobre ter ocorrido, ou não, a transformação, ou elaboração substancial, para aplicação das regras de origem. Dentre elas, uma proferida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região [11], na qual se decidiu que a importação de cefradina originária de Porto Rico e produzida com componentes originários da Alemanha, Itália e Irlanda preencheu o conceito de alteração substancial, eis que, nessa decisão, ela foi entendida como aquilo que confere nova individualidade à mercadoria. Ao término, compartilhou algumas dúvidas e inquietudes provocativas questionando como ficará a questão da transformação substancial vs inteligência artificial e as impressões 3D, entre outras questões.

Sob o título “Evolução e futuro do Sistema Harmonizado: é necessário uma nova nomenclatura?”, Enrique Herón Jiménez [12] discorreu sobre o Sistema Harmonizado de Designação e Codificação de Mercadorias, destacando sua utilização por 212 países, sendo 161 deles signatários do tratado. Registrou que a sua primeira versão, em 1988, contava com 5.019 descrições de seis dígitos, contando, a atual 7ª Emenda com 5.609 descrições. Após discorrer sobre o histórico de criação das nomenclaturas, desde 1931, até o início dos trabalhos para criação do vigente Sistema Harmonizado, trouxe à reflexão a visualização de uma possível nova nomenclatura do Sistema Harmonizado, apresentando observações de que o atual sistema vigora há 35 anos em um ciclo semelhante às nomenclaturas que o antecederam; que os progressos alcançados nos recentes ciclos de revisão com alterações do SH viabilizariam uma nova estrutura para o mesmo, sendo necessário destacar não haver continuidade na ordem sistemática dos códigos numéricos devido aos títulos e subtítulos suprimidos, criando-se lacunas na numeração da nomenclatura.

Outras destacadas apresentações trataram da reforma aduaneira na União Europeia e da modernização da Convenção de Quioto Revisada, sendo elas conduzidas, respectivamente, por Matthias Petschke [13] e Achim Rogmann. Para enfrentar o aumento vertiginoso de declarações de pequeno valor via cross-border e-commerce registradas em 2022 (1 bilhão), a ampliação de padrões e regras a serem aplicadas pela Aduana da UE e a complexidade da descentralização dos sistemas informatizados dos membros, o palestrante apresentou as mudanças a serem implantadas e seus objetivos. Dentre esses citou: reduzir os custos de compliance através de procedimentos mais simples, implementar um regime de e-commerce “tailor-made“, aumentar a proteção do mercado comum através do gerenciamento de riscos e criar uma verdadeira união aduaneira agindo como uma só nas fronteiras. Um dos pontos mais relevantes da reforma é a centralização das informações, haja vista, atualmente, serem 111 sistemas informatizados em funcionamento nos 27 Estados membros. Não existe uma base de dados única, nem uma supervisão integrada das cadeias de valor, prejudicando a gestão de riscos.

Sobre a modernização da CQR, o professor Achim Rogmann [14] relatou a recente adesão do 134º membro, qual seja a República de Gâmbia. Ao analisar a estrutura da CQR, observou que nenhum dos seus Anexos Específicos teve mais do que 50 adesões e que até hoje a UE não aderiu a nenhum deles. Em 2016 foi lançada uma iniciativa para revisar a CQR em razão das rápidas mudanças no cenário do comércio internacional e do objetivo de mantê-la como “flagship convention and a blueprint for modern and efficient customs procedures in the 21st century”. Os trabalhos têm sido intensos, com a participação do setor privado e da academia. Já foram apresentadas 186 propostas abrangendo o texto da CQR (Body), o Anexo Geral e os Anexos Específicos, contemplando 37 conceitos. Os que receberam mais propostas de alteração foram: controle aduaneiro (16), regras de origem (12), uso de tecnologias avançadas (11) e o AEO (9). Em conclusão, registrou que a minuta atual demonstra: (a) alinhamento parcial com o AFC, (b) integração com outros instrumentos da OMA, (c) maior inclusão de aspectos presentes no Gatt e (d) manutenção da estrutura atual. Afirmou ser esperada uma compilação dos potenciais projetos de textos pela OMA até 12/2023 e o início das alterações formais para a primavera europeia de 2024.

Um inovador painel foi o que trouxe a doutrina e bibliografia aduaneira, conduzida por Enrika Naujoké e Rosaldo Trevisan. As mais recentes obras aduaneiras produzidas por acadêmicos, ou coordenadas por membros da academia, e outras publicadas nos últimos anos foram destacadas e muito bem comentadas pelos palestrantes.

No painel sobre novas legislações, um tema de relevância e aplicação prática para exportadores de todo o mundo, inclusive brasileiros, especialmente de cimento, eletricidade, fertilizantes, ferro e aço e alumínio. Trata-se do CBAM (carbon border adjustment mechanism), através do qual a UE procura corrigir, de forma mais eficaz, o risco das empresas deixarem de produzir internamente produtos responsáveis por emissão de gases de efeito estufa (GEE) e se desloquem para países em que não exista regulação sobre a matéria, ou haja menor atenção com o tema ambiental. O objetivo é assegurar a equivalência entre o preço do carbono nas mercadorias produzidas na UE e as importadas. O tema foi exposto por Maryanne Kamau e Iain Sandford [15]. O Regulamento da UE no 956/2023 entrou em vigor em 17/05, tendo sua aplicação se iniciado no dia 1º de outubro para um período de transição que vai até 31/12/2025, entrando em sua segunda fase a partir de 1º/01/2026. Alguns conceitos e previsões importantes sobre o CBAM foram apresentados como, por exemplo, o que são emissões diretas e indiretas. As primeiras são aquelas provenientes dos processos de produção de bens, incluindo emissões provenientes do aquecimento e refrigeração consumidas durante a produção e as indiretas provenientes da produção de eletricidade, que é consumida durante os processos de produção de bens, independentemente do local da produção da eletricidade consumida.

No período de transição, de 1º/10/2023 a 31/12/2025, a obrigação das empresas na UE é de enviar relatórios trimestrais contendo informações sobre quantidade total de cada tipo de bem importado e o total de emissões diretas e indiretas incorporadas. Na segunda fase surgem obrigações pecuniárias como de comprar e manter certificados CBAM por bens importados a depender da quantidade total de emissões incorporadas. O não cumprimento das obrigações permitirá a imposição de penalidades aos importadores infratores.

O CBAM é uma medida que poderá provocar questionamentos quanto a sua observância ao Gatt. Na fase 1, de exigência de apresentação dos relatórios, trata-se de requisitos onerosos, incluindo custos e riscos de penalidades, o que pode restringir o comércio de produtos e coloca em questão a observância ao Artigo XI:1 do Gatt/1994. Na precificação da CBAM, há que se levar em consideração os Artigos I e III do GATT/1994 que preconizam, respectivamente, o princípio da nação mais favorecida e do tratamento nacional, no tocante à tributação e regulamentação interna. A discussão passa também pela possibilidade, ou não, de enquadramento do CBAM no regime de exceções do Artigo XX do Gatt, lembrando que tais medidas não podem resultar em discriminações arbitrárias e injustificadas, ou em barreiras não-tarifárias com fins protecionista, sob pena de membros da OMC poderem recorrer ao seu Órgão de Resolução de Litígios. Aos exportadores brasileiros, que negociam com importadores sujeitos ao CBAM, cabe atenção às novas obrigações que os atingirão, avaliando efeitos e ônus.

Ao analisarmos os temas acima, podemos notar como os fatos aduaneiros têm seu universo próprio, envolvendo operações de entrada e saída de bens de um território aduaneiro a outro e que, cada vez mais, ampliam-se os conteúdos das normas que devem ser observadas nas fronteiras pelos intervenientes e pelas Aduanas, atingindo, inclusive, como vimos, questões ambientais.

[1] A primeira reunião promovida pela ICLA deu-se em 2005, na cidade de Guadalajara, no México. Nos anos seguintes as cidades sede foram Montevidéu, Barcelona, Cartagena, Lisboa, Belo Horizonte, Buenos Aires, Cancun, Bruxelas, Nova York, Genebra, Viña del Mar, Roma, Panamá e Sevilha.

[2] A Universidade de Humboldt é a mais antiga da Alemanha. Foi fundada em 1810 como Universidade de Berlim e fica próxima à Bebelplatz, conhecida como a Praça da Ignorância por ser o local onde Hitler, em 10 de maio de 1933, ordenou a queima de livros em perseguição a intelectuais.

[3] Professora Associada da Universidade de Bocconi.

[4] Segue trecho citado por Sara Armella do julgamento da Suprema Corte Italiana, decisão no 22.200, de 24/07/2023: “In particular, the Supreme Court has clearly ruled that any method of inductive determination of values must be based on objective and reliable surveys, referrering to the concrete case and established at the outcome of a procedure that guarantees sufficient guarantees of scientificity, extended statistical basis and assessability by judges and private operators”.

[5] Professor das Universidades de Roma e de Milão.

[6] Sobre o tema há contribuições publicadas nessa coluna escritos por Leonardo Branco: link; Liziane Meira: link, Fernando Pieri Leonardo: link. Também: LEONARDO, Fernando Pieri. Valoração aduaneira e a utilização dos preços de transferência: algumas convergências e dissonâncias, in JÚNIOR, Onofre Alves Batista e SILVA, Paulo Roberto Coimbra, coord.. Direito Aduaneiro e Direito Tributário Aduaneiro. Belo Horizonte: Letramento – Casa do Direito, 2022. p. 361 a 392.

[7] Citação do palestrante Mássimo Fabio: The Italian Supreme Court and the TP in Customs Judgment No. 7716/2013, 27th March 2013″

[8] Presidente do Instituto Equatoriano de Direito Aduaneiro.

[9] Presidente do Instituto Equatoriano de Direito Tributário.

[10] Vários artigos a respeito da temática já preencheram a coluna, entre eles recomendamos o que foi publicado por Leonardo Branco e Thális Andrade: link. Sobre o tema, publicamos: LEONARDO, Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMC, da CQR/OMA e do ATEC, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 164-186.

[11] Disponível em: link. Acesso em 15/10/2023.

[12] Expert em classificação tarifária, foi representante da AGA – Administração Geral das Aduanas, do México, na OMA.

[13] Diretor da Comissão Aduaneira Europeia – DG TAXUD, da União Europeia.

[14] Professor. Dr. Decano da Faculdade de Direito Europeia de Brunswick, Universidade de Ciências Aplicadas da Ostfalia.

[15] Consultores em comércio internacional e aduanas.

Fonte: Conjur

Sistema acusatório: o juiz das garantias e o interesse dos juízes

O juiz das garantias, quando for introduzido no sistema inquisitorial brasileiro em vigor, deve servir — quem sabe tão só — aos juízes; quando, por evidente, deveria servir a todos. É razoável tentar explicar tal assertiva de modo a que, antes de tudo, os próprios juízes possam melhor esclarecer a situação e, depois, aderiram ao acolhimento da refundação do sistema, a fim de que se faça vivo, de fato, o sistema acusatório.

Todos, de uma maneira geral, sabem sobre as diferenças entre os sistemas processuais — muito em voga nos últimos anos — mas, agora, é preciso que não reste dúvida a respeito do tema, de modo a que eventual preconceito contra o sistema acusatório não prejudique sua efetiva implantação. Faz-se tempo, de consequência, de se unir esforços. A matéria referente ao juiz das garantias tem muito a ver com isso. 

De fato, a introdução do juiz das garantias, no ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, foi efetivada pela Lei n° 13.964, de 24/12/19, o chamado “pacote anticrime” que, nascendo no executivo, ganhou alterações (dentre elas as referentes ao juiz das garantias) na Câmara dos Deputados, como obra de uma comissão ali formada.

Era, de certa forma, uma aspiração antiga da doutrina democrática do processo penal, porque o instituto sempre esteve vinculado ao sistema acusatório, e por ele se lutava e luta até hoje. Estava previsto, antes, de lege ferenda, nos artigos 15 a 18, do PLS n° 156/09, o projeto de reforma global do Código de Processo Penal.

Parecia, com a previsão legal, que se estava dando o passo mais importante para a implantação do único sistema processual penal compatível com a Constituição da República. Não era uma refundação propriamente dita porque se tratava de uma reforma parcial mas, mesmo assim, um substancioso primeiro passo. Admitia-se que “o processo penal terá estrutura acusatória…” (artigo 3°-A, primeira parte), ou seja, que todo o processo penal seria regido por tal sistema, de modo a que se não invocasse, contra o dispositivo da lei (plenamente compatível com a CR, repita-se), as inconstitucionalidades, incoerências e maldades do velho sistema inquisitório. Era uma luz no fim do túnel.

A esperança de se ter um processo penal democrático começou a estremecer quando instituições ligadas à magistratura (Associação de Magistrados do Brasil — AMB; e Associação dos Juízes Federais do Brasil — Ajufe), logo depois da publicação da lei, propuseram a ADI n° 6.298, com questionamentos sérios, embora improcedentes; e logo em seguida os partidos políticos Podemos e Cidadania propuseram a ADI n° 6.299, assim como o PLS a de n° 6.300. Por fim, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) propôs a ADI n° 6.305.

Todos, em ultima ratio, não queriam a implantação do juiz das garantias, o que significava manter o status quo, o qual foi mantido em face de liminar concedida pelo relator, ministro Luiz Fux, suspendendo a eficácia de vários preceitos, mormente, quanto ao juiz das garantias, aqueles do artigo 3°-A a 3°-F. A matéria só volta à pauta em junho de 2023, com a conclusão do julgamento em 23/6/23. Nele, a Corte (contra o voto do relator) decidiu, no mérito, pela constitucionalidade e obrigatoriedade do juiz das garantias, o que aparentemente garante que será implementado.

Mas a Corte, porém, mexeu de tal forma no texto referente ao juiz das garantias, com interpretações criativas e outras diatribes que acabou por criar um mostro, uma aberração jurídica. No fundo, confirmou a introdução do instituto (sabidamente ligado ao sistema acusatório), mas glosou (por “interpretações conforme” e declarações de inconstitucionalidade) os preceitos da lei para manter o atual sistema inquisitorial.

Como ele fazia sentido e era adequado aos preceitos que com ele vieram, a perspectiva — não se pode duvidar — é que a experiência não dê certo. E não pelo próprio instituto do juiz das garantias e, sim, pela manutenção do sistema inquisitorial. Por sinal, desde este ponto de vista, pode ser um fracasso como, de regra, acontece com institutos importados do sistema acusatório e alojados no sistema inquisitório, dentre outras coisas pelo fato de terem fundamentos diferentes e, portanto, uma epistemologia que não dialoga com aquela do estranho. Resta o perigo — que sempre ronda situações assim — do instituto ser acusado de não responder ao que veio, embora, com ele fora do devido lugar, seria um despautério.

Por outro lado, se ele vingar, tende a ser por motivo diverso daquele pelo qual responde a sua finalidade.

Ora, o juiz das garantias — pensado como no sistema acusatório — atua basicamente na fase de investigação preliminar e até o recebimento da inicial acusatória, razão por que a ele é dada (inclusive por coerência) o juízo de admissibilidade da acusação. Com isso, decide sobre as questões — começando pelas constitucionais — da referida fase, ou melhor, até o juízo de admissibilidade da acusação.

Deste modo, não tem iniciativa probatória (para se garantir sua imparcialidade em relação às referidas questões), por um lado, mas, pelo outro, impedido de julgar o mérito e remeter o material recolhido (salvo as provas irrepetíveis) para a fase seguinte, garante ao juiz do processo a originalidade cognitiva. E nisso residem os principais pilares de sustentação de um sistema acusatório democrático.

Se tudo isso ficou consumido na decisão do STF, o que sobra de importante ao juiz das garantias tupiniquim?

Por certo que tendo competência funcional, não será — e não deve ser — um mero juiz auxiliar do juiz do processo. Longe disso, embora alguns devam pensar desta forma e, outros, queiram que assim seja na prática, mesmo porque na estrutura inquisitorial do processo penal brasileiro quase tudo é possível. Algo do gênero, então, seria um desastre.

Mas atenção! Ter-se-á, no processo penal, dois juízes atuando no mesmo processo em primeira instância e, portanto, tende a diminuir substancialmente a carga de trabalho do juiz do processo. Não se perde — e isso é muito claro — a jurisdição, logo, o poder; e sim uma parte da competência, ou seja, do trabalho, ou, para ser mais técnico, do exercício jurisdicional. A decisão do STF, deste modo, vem ao encontro de uma demanda histórica da magistratura, qual seja, aquela que aponta para a redução da carga de trabalho.  

O que resta saber é se o juiz das garantias, com o arranjo feito pelo STF, irá  beneficiar tão só aos juízes que, hoje, carregam o trabalho inteiro da persecutio criminis.

A resposta, ao que parece, não se pode dar imediatamente, mesmo porque ela depende — e agora sem a base legal — daquilo que irão fazer os juízes na função de juiz das garantias. A subjetividade, enfim, define o desempenho da função e o que se pode esperar é que todos entendam o instituto como um elemento efetivamente importante do sistema acusatório, fazendo dele algo democrático mesmo que metido na estrutura inquisitorial.

E isso se pode afirmar porque se tratam de situações diferentes. Afinal, o sistema processual penal brasileiro é — reconhecidamente — inquisitorial e muitos — muitos! — juízes são democráticos, inclusive por aplicarem de modo estrito a CR (Constituição da República) e as leis, o que tem sido motivo de larga reputação, mesmo em tempos sombrios.

A decisão do STF, por outro lado, mostrou, escancaradamente, que muitos dos ministros não tinham o conhecimento desejado (em suma: que deveriam ter) sobre o tema dos sistemas processuais penais, o que acabou sendo determinante para a decisão tomada — e ficou estampado nos votos —, a qual se valeu de um decisionismo inconcebível e inaceitável. A exceção — e está registrado — foi o ministro Edson Fachin, que votou contra a maioria em grande parte das questões envolvendo a matéria, sendo sempre vencido. É certo, porém, que se trata de um tempo difícil para discutir tema tão sensível à democracia, o que se percebe pelos inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes no STF.

De qualquer forma — e mais uma vez —, há de se notar que são coisas diferentes; e isso é importante perceber para não se deixar de pensar que as decisões de Brasília, hoje, quase que instantaneamente produzem efeitos no Brasil inteiro. Só Brasília que, não raro, não percebe isso; talvez porque em muitos aspectos siga longe demais do Brasil.

Fonte: Conjur – Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Barroso adia para novembro julgamento que pode mudar correção do FGTS

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, decidiu nesta segunda-feira (16) adiar para 8 de novembro a retomada do julgamento sobre a legalidade do uso da Taxa Referencial (TR) para correção das contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

O adiamento foi anunciado após reunião de Barroso com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e outros ministros do governo federal. A retomada da análise do processo estava prevista para quarta-feira (18)

De acordo com Barroso, o adiamento vai permitir que a União possa apresentar novos cálculos sobre a questão. Durante a reunião, o presidente do STF reiterou que considera “injusta” a correção do fundo por índice menor que a poupança. 

Além de Haddad, também participaram da reunião os ministros das Cidades, Jader Filho, e do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, além do advogado-geral da União, Jorge Messias, e a presidente da Caixa, Rita Serrano. 

O julgamento sobre a correção do FGTS foi suspenso em abril deste ano por um pedido de vista apresentado pelo ministro Nunes Marques. Até o momento, o placar da votação está 2 a 0 pela inconstitucionalidade do uso da TR para correção das contas do FGTS. Pelo entendimento, a correção não pode ser inferior à remuneração da poupança.

Na abertura do julgamento, a Advocacia-Geral da União (AGU) também alertou que eventual decisão favorável à correção poderá provocar aumento de juros nos empréstimos para financiamento da casa própria e aporte da União de cerca de R$ 5 bilhões para o fundo.

Entenda

O caso começou a ser julgado pelo Supremo a partir de uma ação protocolada em 2014 pelo partido Solidariedade. A legenda sustenta que a correção pela TR, com rendimento próximo de zero, por ano, não remunera adequadamente os correntistas, perdendo para a inflação real.

Criado em 1966 para substituir a garantia de estabilidade no emprego, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço funciona como uma poupança compulsória e proteção financeira contra o desemprego. No caso de dispensa sem justa causa, o empregado recebe o saldo do FGTS, mais multa de 40% sobre o montante.

Após a entrada da ação no STF, leis começaram a vigorar, e as contas passaram a ser corrigidas com juros de 3% ao ano, o acréscimo de distribuição de lucros do fundo, além da correção pela TR.

Pelo governo federal, a AGU defende a extinção da ação. No entendimento do órgão, as leis 13.446/2017 e 13.932/2019 estabeleceram a distribuição de lucros para os cotistas. Dessa forma, segundo o órgão, não é mais possível afirmar que o emprego da TR gera remuneração menor que a inflação real.

Fonte: Agência Brasil

Flexibilidade e autonomia descaracterizam vínculo de motorista e Uber, decide TST

A relação de emprego tem como um pressuposto básico a subordinação. Assim, não há que se falar em relação de emprego entre motorista e a Uber nos casos em que há ampla flexibilidade de rotina e autonomia na prestação de serviços. 

Segundo ministro, não há relação de emprego porque motorista não está subordinado
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O entendimento é do ministro Breno Medeiros, do Tribunal Superior do Trabalho, que negou vínculo entre a Uber e um motorista de aplicativo. A decisão é de 25 de setembro. 

Essa é a décima vez que o Tribunal deixa de reconhecer relação de emprego em casos envolvendo a Uber. As decisões em mesmo sentido foram dadas pela 4ª, 5ª e 8ª Turmas. 

“é possível extrair dos elementos contidos no acórdão regional a ampla flexibilidade do autor em determinar sua rotina, seus horários de trabalho, locais em que deseja atuar e quantidade de clientes que pretende atender por dia”, diz o ministro na decisão. 

Ele também afirma que “tal autodeterminação” é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem “como pressuposto básico”, a subordinação, elemento que diferencia o vínculo e o trabalho autônomo. 

Ainda segundo o ministro, a possibilidade de clientes da Uber avaliarem os motoristas não representa a existência de subordinação, servindo apenas como “ferramenta de feedback para os usuários finais”. 

“Nesse passo, o fato da empresa se utilizar das avaliações, promovendo o descredenciamento do motorista mal avaliado, convém não apenas à reclamada para sua permanência no mercado, mas especialmente à coletividade de usuários, a quem melhor aproveita a confiabilidade e qualidade dos serviços prestado”, prossegue.

“Por fim, não se pode olvidar que é de conhecimento geral a forma de funcionamento da relação empreendida entre os motoristas do aplicativo Uber e a referida empresa, a qual é de alcance mundial e tem se revelado como alternativa de trabalho e fonte de renda em tempos de desemprego (formal) crescente”, conclui o juiz. 

De novo
Essa é a nona vez que o TST reconhece não haver vínculo empregatício de motoristas com a Uber. Já se posicionaram da mesma forma as 4ª, 5ª e 8ª Turmas da corte. Em todo o país, de acordo com a empresa, são mais de 4,1 mil decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho afastando o reconhecimento da relação de emprego com a plataforma, além de julgamentos no Superior Tribunal de Justiça e diversas decisões no TST.

Em maio, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, anulou uma decisão da Justiça do Trabalho que reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista e a empresa de transporte por aplicativo Cabify (que já não está mais em operação no país).

Para o ministro, a relação estabelecida entre o motorista e a plataforma de transporte por aplicativo mais se assemelha à situação prevista na Lei 11.442/2007, que disciplina a atuação do transportador autônomo e determina que o seu vínculo com os tomadores de serviço é de natureza comercial e não empregatícia.

Clique aqui para ler a decisão
RR 1001543-75.2021.5.02.0043

Fonte: Conjur

STF vai discutir contribuição previdenciária de empregada sobre salário-maternidade

O Supremo Tribunal Federal vai discutir a constitucionalidade da incidência de contribuição previdenciária a cargo da empregada sobre o salário-maternidade pago pela Previdência Social. A matéria, tratada em Recurso Extraordinário, teve repercussão geral reconhecida por unanimidade pela Corte (Tema 1.274).

STF vai discutir contribuição previdenciária de empregada sobre salário-maternidade

Agência Brasil

Inicialmente, a 1ª Vara Federal de Jaraguá do Sul (SC) julgou o pedido da contribuinte improcedente, por entender que o caso era distinto do tratado pelo STF no RE 576.967, em que foi declarada inconstitucional a cobrança da contribuição previdenciária patronal sobre o salário-maternidade (Tema 72).

Essa decisão, porém, foi modificada pela 3ª Turma Recursal Federal em Santa Catarina em favor da contribuinte e contra a União, que foi condenada a restituir os valores recolhidos.

No RE apresentado ao Supremo, a União argumenta, entre outros pontos, que os ganhos dos empregados devem ser incluídos na base de cálculo das contribuições previdenciárias. Também sustenta que, ao se desonerar a empregada da contribuição previdenciária sobre o salário-maternidade, esse tempo deixará de contar para fins de aposentadoria.

Repercussão geral
Ao se manifestar pela repercussão geral, a relatora, ministra Rosa Weber (aposentada), considerou que o caso tem acentuada repercussão jurídica, social e econômica, e lembrou que há pelo menos 83 processos no Supremo sobre o tema.

Ela explicou que a matéria envolve o custeio da seguridade social, o equilíbrio atuarial e financeiro do fundo previdenciário e a compatibilidade da contribuição previdenciária a cargo da empregada com o entendimento firmado pelo STF em precedente vinculante. Ainda não há data para o julgamento de mérito do recurso. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

RE 1.455.643

Fonte: Conjur

Campanha Outubro Rosa no STJ tem palestra sobre mamografia aberta ao público

Em mais uma iniciativa da campanha Outubro Rosa, de conscientização para a prevenção do câncer de mama, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) promoverá, no próximo dia 19, uma nova edição do Consultório Aberto, com a palestra “Mamografia anual ou bianual? Ponderando riscos e benefícios para uma decisão consciente”.

A palestra vai acontecer na Sala de Reuniões Corporativas, no primeiro andar do Edifício Ministros I, na sede do STJ, em Brasília, a partir das 17h, e terá transmissão simultânea pelo canal do tribunal no YouTube.

O evento será aberto ao público, e os interessados podem se inscrever, até o dia da palestra, nestes linksmodalidade virtual modalidade presencial.

Participarão do debate as médicas Flávia Fernandes, mastologista do Hospital do Câncer Anchieta, representando a Sociedade Brasileira de Mastologia, e Salete da Silva Rios, coordenadora de ginecologia e obstetrícia da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB).

A mediação ficará a cargo do médico Alberto Zaconeta, professor adjunto de obstetrícia da Faculdade de Medicina da UnB e servidor da Secretaria de Serviços Integrados de Saúde (SIS) do STJ.

Exposição e doações

Durante este mês de outubro, a fachada do tribunal está iluminada em rosa, cor-símbolo da campanha. Entre outras atividades destinadas a esclarecer o público sobre a importância da prevenção, está sendo realizada a exposição A mulher e o câncer de mama no Brasil, aberta à visitação até 31 de outubro, na Praça do Servidor. A mostra é organizada pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), em parceria com a Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A SIS também recolherá doações de lenços, cabelos e acessórios para a Rede Feminina de Combate ao Câncer de Brasília. O material pode ser entregue no salão da Associação dos Servidores do STJ e do Conselho da Justiça Federal (ASSTJ) ou na recepção da SIS.

Fonte: STJ

Pagamento de benefícios a agentes políticos exige previsão legal

Para que ocorra o pagamento de benefícios em favor de agentes políticos é imprescindível que haja previsão legal. Assim, a juíza Hallana Duarte Miranda, do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro de Eldorado Paulista (SP), negou o pedido feito por três ex-vereadores e de um atual legislador da cidade que pediam o pagamento de valores relativos a férias não desfrutadas, o acréscimo de 1/3 sobre elas e o 13º salário.

FreepikGrupo pedia o recebimento de verbas relativas ao período de atividade

O trio cumpriu mandato de 2017 a 2020. O quarto ocupa o posto de vereador até 2024. Todos pediam a condenação da prefeitura local ao pagamento das verbas.

A Procuradoria municipal alegou que não há lei que possibilite as gratificações. Sustentou que o pagamento depende de previsão orçamentária e adequação ao limite com despesas de pessoal, fixado na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ao analisar o pedido, a juíza aderiu à interpretação estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal no caso 484, a qual, resumidamente, afirma que o pagamento aos agentes políticos só pode acontecer se houver respaldo na legislação.

“Conforme narra o próprio autor, no RE 650.898 o STF deliberou sobre a matéria em contexto no qual existia lei prevendo o pagamento de adicional de férias e 13º. Ou seja, há claro distinguishing, haja vista que no caso em julgamento inexiste lei local prevendo o pagamento”, disse.

A magistrada destacou que não cabe ao Judiciário determinar pagamento, sem que haja lei no município que institua isso, inclusive por razões de inexistência de respectiva fonte de custeio. “Há muito já pacificou o STF que não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.”

A defesa do município foi feita pelo procurador municipal Helder Piedade.

Clique aqui para ler as decisões
Processo 1000430-98.2023.8.26.0172
Processo 1000399-78.2023.8.26.0172
Processo 1000401-48.2023.8.26.0172
Processo 1000381-57.2023.8.26.0172

Fonte: Conjur

Legalização do uso da cannabis: medo e ajustes jurisprudenciais necessários

A publicização midiática do julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal decidirá sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 (Lei de Drogas), favoreceu o amplo debate sobre o tema, especialmente nas redes sociais, muitas vezes com projeções alarmantes sobre as consequências que a eventual descriminalização da maconha promoverá no cotidiano brasileiro.

A disseminação a jato de desinformações desnudou a necessidade de uma melhor reflexão sobre o uso de drogas, sobre o estágio civilizacional adequado para se experimentar a nova perspectiva e sobre os princípios de justiça que o envolvem.

A partir dos estudos lançados em ensaios anteriores desta coluna, se pretende aqui debater a respeito da inescapável “marcha do espírito” em favor da legalização do uso de drogas, do reconhecimento da maturidade social para o enfrentamento do fenômeno psicológico representado pelo medo e das estratégias empregadas pelo STF e pelo STJ para, paulatinamente, ajustar a interpretação da constituição, do direito e do processo penal à realidade mais recente que se consolida no horizonte. A conclusão conclama à perfeita delimitação da matéria a ser travada no âmbito do STF e aquela da competência infraconstitucional do STJ, evitando-se o contrassenso de eventuais divergências entre os dois tribunais máximos do país.

Confirmando a primeira hipótese, a exploração da maconha para fins medicinais bem demonstra o desbordo do plano meramente jurídico sobre o tema. Os pacientes simplesmente não podem ser alijados do tratamento canábico por mero capricho do legislador ou por imposições de ordem moral ou religiosa. Por outro lado, a indústria e o mercado igualmente estão reagindo às limitações da produção e cada vez mais pressionam para a normalização do plantio, da manipulação e do comércio da droga. A aceitação do uso recreativo em diversos países, como Estados Unidos, Canadá, Portugal, Espanha, Holanda, Argentina e Uruguai, não deixa dúvida sobre o caráter irrefreável da legalização da maconha.

O negócio já movimenta milhões de dólares e se sedimentou sem maiores rupturas nos países que a ele aderiram. Rápida pesquisa no âmbito do Google bem demonstra a fácil captura da planta pelo agro e a sua conformação com a indústria e o comércio.[1]

Além do reconhecido emprego medicinal, a cannabis e a sua variante, a fibra de cânhamo, são empregadas como matéria prima em mais de 5.000 (cinco mil) produtos de diferentes domínios da cadeia produtiva, como a indústria têxtil, a construção civil, o setor de combustíveis, entre outras. A sua regulamentação, tal como ocorrido nos EUA, onde já representa o quinto maior cultivo,[2] certamente abrirá espaço para o surgimento de outros mercados que ajudarão a desenvolver a economia.

Portanto, é uma realidade que não pode mais ser ignorada pelos poderes.

Ocorre que o discurso proibicionista ainda mantém o assunto como verdadeiro tabu, estigmatizando os usuários como corrompidos, amorais e perigosos, enfim, um risco para “as pessoas de bem”.

Conta muito com o medo decorrente dos falsos alarmes morais, a segunda premissa trabalhada neste artigo.

Para não se alongar o debate em demasia, tomam-se emprestadas as lúcidas conclusões do criminólogo Riccardo Cappi, professor da Uneb (Universidade do Estado da Bahia), ao estudar a influência imposta pelo medo para justificar o movimento em prol da redução da maioridade penal, que em tudo se aplica às drogas. Afirma o autor[3]:

A partir do medo, a percepção sobre o problema é reduzida. O meu medo faz com que eu esteja focado naquilo que pode me atingir, sem ver a complexidade, a circunstância, a história, as possibilidades e as alternativas. O medo e a dor são legítimos. Mas não podemos pautar políticas públicas com base no medo […]. Quando o estado e parlamentares apresentam uma saída distante da legalidade, essa solução mágica passa a ser atraente e a exclusão radical se apresenta como remédio. As entidades tomam a decisão de condenar o indivíduo à morte social. Na criminologia, a questão da periculosidade sempre foi um problema. É impossível fazer uma previsão absoluta e certeira. Há uma relativa incerteza com a qual temos que trabalhar.

Há o medo de a legalização das drogas determinar a piora do quadro e elevar o número de dependentes. Existe o caráter doloroso e amedrontador de que esse pesadelo possa fugir do controle e se tornar endêmico. Com base no discurso catastrófico, políticos reacionários se vestem com a capa da moralidade para obter ganhos junto ao eleitorado cristão-conservador. Tudo muito fora da racionalidade.

Daí a importância do debate sereno e equilibrado sobre a questão. A propósito, vale registrar o recente artigo assinado por David Pinter Cardoso aqui nesta coluna, quando projetou o círculo socialmente maduro alcançado pela sociedade brasileira a partir dos seguintes tópicos: (i) proibir drogas não reduz a oferta e nem a demanda de drogas ilícitas; (ii) regulamentar o uso não necessariamente aumenta o consumo; (iii) maior risco à saúde não guarda relação com drogas serem proibidas; (iv) uso de drogas não é problema de saúde; o problema é o uso abusivo de drogas; (v) a maconha não é porta de entrada para outras drogas; (vi) drogas não geram crimes; proibir drogas sim e (vii) mais prisões não necessariamente reduzem criminalidade.[4]

Apesar disso, o ambiente político atual não permite supor que a formalização da legalização do uso de drogas será enfrentada racionalmente por leis aprovadas pelo Legislativo ou por decisões do Executivo, ficando a problemática, mais uma vez, entregue ao Poder Judiciário.

A corte constitucional (STF) e a corte infraconstitucional (STJ) não fugiram do compromisso e passaram a enfrentar o tema, ambas com estratégias bem calculadas de não favorecer a ruptura brusca do modelo comportamental, indicativo claro de que também não se sentem imunes ao angustiante medo de não saber ao certo até onde a mudança alcançará.

Para a sorte de todos, embora nutrindo a tendência natural de se preocupar mais com os aspectos negativos em detrimento dos alcances positivos das decisões, as maiores instâncias do Poder Judiciário decidiram romper com a paralisia que se arrastava há anos sobre a sempre criticada criminalização do uso de drogas.

Desde a primeira edição do seu festejado “Introdução crítica ao direito penal brasileiro”, em 1990, Nilo Batista já não aceitava a tipificação penal do usuário:[5]

As aplicações legislativas do princípio da lesividade também comparecem como fundamento parcial da impunibilidade do chamado crime impossível (art. 17 CP). O mesmo fundamento veda a punibilidade da autolesão, ou seja, a conduta extrema que, embora vulnerando formalmente um bem jurídico, não ultrapassa o âmbito do próprio autor, como, por exemplo, o suicídio, a automutilação e o uso de drogas. No Brasil, o artigo 16 da Lei 6368/76 incrimina o uso de drogas em franca oposição ao princípio da lesividade e as mais atuais recomendações político-criminais.

Ainda assim, mesmo tardiamente, deve-se louvar as posturas atuais das cortes superiores.

Esta coluna também já deixou registradas as principais críticas ao controle penal e ao contundente fracasso da política de guerra às drogas. Não existem mais ilusões a esse respeito. Portanto, é de se aplaudir o movimento jurisprudencial ocorrido tanto no STF como no STJ.

O primeiro, em seu papel maior de guardar a Constituição, corajosamente colocou em pauta e iniciou o julgamento do citado Recurso Extraordinário n.º 635.659, caminhando para confirmar a inconstitucionalidade da tipificação do uso de maconha.

Sem dúvida, empregou postura cautelosa e limitou bastante o alcance do julgado, o que não retira o mérito do enfrentamento da questão e da busca por critérios formais para distinguir o usuário do traficante.

No artigo publicado em 8 de setembro passado, Cristiano Maronna descortinou o desenvolver do julgamento e deixou assentados importantes apontamentos na esperança de contribuir para que, ao final, o STF estabeleça parâmetros de produção e validade dos indícios, afastando-se da centralidade do testemunho policial e das provas a ele ancoradas para a tipificação do tráfico de drogas. [6]

Em acréscimo, considera-se fundamental a convalidação pelo STF da interpretação da legislação infraconstitucional adotada pelo STJ a partir de um sem-número de julgados sobre a matéria.

Controle da constitucionalidade pelo STF; controle da legalidade pelo STJ.

A jurisprudência atual do STJ passou a atacar o instrumento mais perverso da política de guerra às drogas, qual seja, o paulatino rebaixamento do standard probatório para fundamentar o decreto de prisões preventivas e a prolação de sentenças condenatórias.

Entre outros julgados, cuidou (i) de restabelecer a observância dos rigores legais para a validade das buscas domiciliares (HCs 598.051/SP e 766.654/SP), (ii) de considerar insuficientes para a condenação os conjuntos probatórios calcados somente em elementos informativos do inquérito ou em testemunhos indiretos para a sentença condenatória (AgRg no REsp 2.026.690/BA), (iii) de resgatar as formalidades exigidas pelo art. 226 do CPP para o reconhecimento de pessoas (HC nº 598.886/SC) e (iv) de elevar o standard probatório exigível para a busca pessoal ou veicular, sem mandado judicial (RHC 158.580/BA).

Recuperou, dessa forma, a vitalidade das normas infraconstitucionais encarregadas de dar efetividade aos postulados de garantia insertos na CF/88, favorecendo, rapidamente, melhores índices no enfrentamento da superlotação carcerária.

Contudo, conforme informado por esta ConJur, recente julgado do STF, sob o fundamento de violação do Tema 280 de Repercussão Geral, derrubou um acórdão do STJ que reconheceu a nulidade do flagrante em razão da violação de domicílio e, por conseguinte, das provas decorrentes do ato.

Vale destacar o seguinte trecho do voto condutor:[7]

[…] o Superior Tribunal de Justiça, no caso concreto ora sob análise, após aplicar o Tema 280 de Repercussão Geral dessa SUPREMA CORTE, foi mais longe, alegando que, não obstante os agentes de segurança pública tenham recebido denúncia anônima acerca do tráfico de drogas no local e o suspeito tenha empreendido fuga para dentro do imóvel ao perceber a presença dos policiais, tais fatos não constituiriam fundamentos hábeis a permitir o ingresso no domicílio do acusado, haja vista que não houve nenhuma diligência investigativa prévia apta a evidenciar elementos mais robustos da ocorrência do tráfico naquele endereço […].
Nesse ponto, não agiu com o costumeiro acerto o Superior Tribunal de Justiça, pois acrescentou requisitos inexistentes no inciso XI, do artigo 5º da Constituição Federal, desrespeitando, dessa maneira, os parâmetros definidos no Tema 280 de Repercussão Geral por essa SUPREMA CORTE.

A decisão, portanto, não merece prosperar.

Na presente hipótese, o Tribunal da Cidadania extrapolou sua competência jurisdicional, pois sua decisão, não só desrespeitou os requisitos constitucionais previstos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição, restringindo as exceções à inviolabilidade domiciliar, como também, inovando em matéria constitucional, criou uma nova exigência — diligência investigatória prévia — para a plena efetividade dessa garantia individual, desrespeitando o decidido por essa Suprema Corte no Tema 280 de Repercussão Geral […].

Incabível, portanto, ao Poder Judiciário determinar ao Poder Executivo a imposição de providências administrativas como medida obrigatória para os casos de busca domiciliar, sob o argumento de serem necessárias para evitar eventuais abusos, além de suspeitas e dúvidas sobre a legalidade da diligência, em que pese inexistir tais requisitos no inciso XI, do artigo 5º da Constituição, nem tampouco no Tema 280 de Repercussão Geral julgado por essa Suprema Corte.

O embaraço criado com a decisão acima não traz nenhum benefício para a segurança jurídica e representa grave retrocesso no avanço jurisprudencial iniciado pelo STJ em favor da maior racionalidade na aplicação da lei antidrogas.

Com a devida licença, tanto o objeto do Tema 280 como as circunstâncias fáticas que envolveram o caso concreto dizem muito mais respeito à legalidade do que à constitucionalidade, ou seja, a matéria é predominantemente de ordem infraconstitucional, da competência do STJ e não do STF.

O principal instrumento de garantia do indivíduo frente ao poder punitivo estatal é o princípio da legalidade, cuja origem histórica remonta à luta contra o arbítrio e a opressão impostos pelo sistema penal do final do século 18. Portanto, mais do que favorecer a igualdade de todos perante a lei, a busca pela uniformização da interpretação da lei penal e processual penal visa à proteção da liberdade individual, somente alcançável através da estrita observância do princípio da legalidade.

Decidir acerca da regularidade da prisão em flagrante determinada por busca domiciliar sem mandado judicial é tarefa exclusiva do STJ, pois, afinal, todo o procedimento está descrito e limitado em lei federal. Desse modo, é dele a competência para “promover a interpretação condizente do tipo com o espírito do ordenamento imposto pelo Estado Democrático de Direito, adequando o seu alcance até o limite permitido pelo princípio da legalidade”. [8]

A função de zelar pela uniformização da lei federal não pode e nem deve ser repartida com o STF, sob pena de o STJ se transformar em mera instância de passagem. As decisões do Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de matéria infraconstitucional, “hão de ser finais, irrecorríveis, com autoridade de coisa julgada”. [9]

Nesse instante crucial da tão esperada travessia jurisprudencial para o enfrentamento mais efetivo, mais inteligente e mais humanitário do tráfico de drogas e das organizações criminosas que gravitam ao seu redor, avultam as singulares missões de guarda da Constituição pelo STF e de uniformização da interpretação da lei federal pelo STJ.

Espera-se, serenamente, que saibam divisar e respeitar reciprocamente a elevada competência de cada um.


[1] Os seguintes sítios eletrônicos demonstram a força do negócio: https://herbarium.la/https://highwaycannabis.com/https://www.thewoodsweho.com/https://en.cannabisstoreamsterdam.com/https://www.royalqueenseeds.pt/https://www.sirius.nl/https://plantamaestra.cl/https://expocannabis.uy/.

[2] Sobre a assertiva: https://forbes.com.br/forbesagro/2022/11/cannabis-legal-nos-eua-rende-us-5-bi-aos-produtores-em-2022/.

[3] Cappi, Ricardo. A maioridade penal nos debates parlamentares: motivos do controle e figuras de perigo. São Paulo: Editora Casa do Direito, 2017.

[4] CARDOSO, David Pinter. O básico sobre a criminalização de drogas. Disponível em https://www.conjur.com.br/2023-set-29/repensando-drogas-basico-criminalizacao-drogas; Acesso em 11.10.2023.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 92-3.

[6] MARONNA, Cristiano.  Ganhou, playboy!: o standard probatório no crime de tráfico de drogas. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2023-set-08/ganhou-playboy-standard-probatorio-trafico-drogas>. Acesso em 11.10.2023.

[7] Disponível em < file:///C:/Trabalho/icp%20e%20mais/repensando/stf-cita-inovacao-derrubar-acordao-stj.pdf>. Acesso em 11.10.2023.

[8] MARCHI JÚNIOR, Antônio de Padova. Princípio da legalidade penal: proteção pelo STJ e parâmetros de interpretação. Belo Horizonte: Del Rey. 2016, p. 178.

[9] NAVES. Nilson Vital. O Superior Tribunal e a Questão Constitucional. Revistra dos Tribunais. São Paulo: RT, v. 797, p. 28-42, mar. 2002.

Fonte: Conjur

Sistemas do tribunal podem ficar indisponíveis neste fim de semana

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) informa que, neste fim de semana – sábado (14) e domingo (15) –, serão executadas ações de manutenção em seu ambiente computacional, visando aprimorar a segurança e a disponibilidade de produtos e serviços tecnológicos.

Nesse período, poderão ocorrer pequenas intermitências no funcionamento dos sistemas e serviços disponibilizados pelo tribunal, em todos os ambientes, inclusive no site do STJ.

A Secretaria de Tecnologia da Informação e Comunicação está à disposição para prestar suporte ou esclarecimentos adicionais por meio do Serviço de Atendimento ao Cliente, no telefone (61) 3319-9393.

Fonte: STJ

Lei nº 14.689: fantástica fábrica do metacontencioso tributário

Recentemente, foi promulgada a Lei nº 14.689/23, decorrente da sanção, com vetos, do PL nº 2.384/23 (PL do Carf), alterando profundamente o processo administrativo e judicial tributário e as multas no âmbito federal. Já apresentamos nossas críticas a ele em outra oportunidade [1]. Entretanto, passada a etapa legislativa, devemos ir além e analisar dogmaticamente alguns possíveis problemas concretos na sua aplicação.

1) O §9º-A do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72  o voto de qualidade e seus efeitos
a) Restrição a cada capítulo da decisão
O §9º-A foi bastante amplo ao determinar a exclusão de multas e cancelamento da representação fiscal “na hipótese de julgamento (…) resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”, pois, pela sua literalidade, bastaria que qualquer um dos capítulos da decisão fosse resolvido pelo método de desempate para se gozar do benefício.

Entre os capítulos do acórdão, podemos ter questões de admissibilidade, preliminares processuais, preliminares de mérito e as questões meritórias. Trata-se, na lição da doutrina processual, de parcelas da decisão autônomas e independentes entre si [2] —daí causar espécie, à primeira vista, que a existência de empate com voto de qualidade (VQ) em um deles gere efeitos sobre outros, a despeito da inexistência de qualquer prejudicialidade interna entre as questões.

Entretanto, é preciso compreender que os novos efeitos do voto de qualidade são de natureza exoprocessual (de direito material) e não endoprocessual (de caráter processual) [3]. Logo, não afetam o conteúdo decisório do julgamento (proclamação do resultado), mas apenas o efeito da decisão proferida, que se dá em uma etapa subsequente, de liquidação do julgado pela Receita Federal, após o encerramento do processo administrativo.

Caberá a esse órgão analisar o teor da decisão a fazer refletir os seus efeitos diretos (e.g. reforma parcial do lançamento) e indiretos (previstos na Lei nº 14.689/23) sobre o crédito. Em rigor, os efeitos das novas regras exonerativas, de caráter material, e não processual, sequer devem ser objeto de proclamação do resultado do julgamento, pois são decorrência posterior dele.

Nessa linha, não há óbice lógico para que esses efeitos exoprocessuais alcancem parcelas da decisão que não foram julgados pelo VQ.

Tanto que o artigo 25-A, que dispõe sobre a exclusão de juros de mora caso se pague no prazo de 90 dias, quando a decisão se deu pelo VQ, estabelece em seu §7º que ele se aplica “exclusivamente à parcela controvertida, resolvida pelo voto de qualidade”, dando a entender que, aqui sim, o benefício estaria restrito à parcela da decisão resolvida por esse instrumento. Há uma evidente distinção de alcance entre os dois dispositivos (artigo 25, §9º-A e artigo 25-A), a despeito de ambos tratarem de efeitos legais sobre o crédito tributário mantido pelo VQ.

Nessa situação, há dois possíveis caminhos para a Administração: 1) adotar uma regulamentação infralegal restritiva do alcance do artigo 25, §9-A (a exemplo da Portaria ME nº 260/2020) ou 2) aplicar por analogia o disposto no §7º do artigo 25-A. A primeira tentativa esbarraria em um problema de legalidade, ao passo que a segunda encontraria óbice na própria distinção feita pelo legislador, afinal “a lei não contém palavras inúteis”.

  1. b) Processos de cobrança de multas isoladas
    Outro problema é a sua aplicabilidade aosprocessos de cobrança de multas isoladas. Isso se daria porque o artigo 25-A estabelece que, após a resolução do julgamento por voto de qualidade, com avitória da Fazenda Nacional, haveria a opção de pagamento do valor remanescente – que inexistiria na hipótese de multa isolada, já que a totalidade da multa seria afastada.

Por outro lado, na esteira da existência de alcances distintos para o artigo 25, §9º-A e o artigo 25-A do Decreto nº 70.235/72, poder-se-ia sustentar também que não há conexão normativa necessária entre os dois dispositivos, sendo o primeiro compatível com os processos de multas isoladas, ao passo que o segundo, por uma questão lógica, seria inaplicável a esses casos. Em outras palavras, da inaplicabilidade lógica do artigo 25-A a esses casos, não se pode derivar a inaplicabilidade do artigo 25, §9º-A.

Essa distinção, que confirmaria a aplicação do artigo 25, §9º-A às multas isoladas, é corroborada pela rejeição expressa, no âmbito legislativo, da proposta do Senador Otto Alencar de restringir a exclusão às multas vinculadas a tributos.

  1. c) Voto de qualidade e recurso especial no Carf
    Na esteira do que sustentamos acima, de que os efeitos previstos pela Lei nº 14689/23 sobre o crédito são denatureza exoprocessual, não afetando o conteúdo decisório do acórdão, entendemos que, à luz do atual Ricarf, não haveria possibilidade de recurso especial fundado em diferentes quóruns de julgamento, pois as decisões seriam convergentes, mudando apenas o tratamento jurídico recebido na etapa de liquidação do julgado.

Por outro lado, caso o contribuinte perca o seu caso no Carf por VQ e opte pela interposição de recurso especial sobre a matéria em que houve o empate, estará sujeito à perda das benesses na liquidação do crédito, caso o julgamento na Carf seja desfavorável por maioria. Não haveria aqui qualquer reformatio in pejus, pois manteve-se integralmente o conteúdo da decisão recorrida, afetando apenas efeitos atribuídos à decisão administrativa final, na etapa de liquidação.

2) Artigo 25-A, §§ 3º a 6º do Decreto nº 70.235/72 — a compensação de prejuízos fiscais
Outra novidade é a possibilidade de compensação de prejuízos de controladas ou controladoras diretas ou indiretas, bem como sociedades sob controle comum, com efeito extintivo sujeito a condição resolutória da sua ulterior homologação (§5º), no prazo de cinco anos (§6º).

A medida gerará a criação de um mercado de empresas inativas com saldos acumulados de prejuízos fiscais, para compensar os débitos mantidos pelo VQ. Entretanto, esse procedimento poderá esbarrar numa dificuldade prática: a comprovação documental da existência do prejuízo fiscal.

O Carf possui jurisprudência no sentido de que o Fisco pode analisar fatos, operações e documentos relativos a períodos já atingidos pela decadência, para fins de verificar a repercussão deles no futuro, como na composição do saldo de prejuízos fiscais (e.g. acórdão nº 1402-003.350 e 1402-006.385), ficando apenas vedado lançar créditos tributários referentes a esses períodos.

Parece-nos razoável esperar que essas compensações passem pelo escrutínio criterioso da Receita, que exigirá a comprovação da formação do saldo de prejuízos para homologar a compensação, demandando documentação de um amplo período, relativo a uma empresa inativa. Na hipótese de não homologação da compensação, parece-nos ser o caso de aplicação do §8º, com a inscrição dos valores já constituídos em dívida ativa da União, para cobrança judicial.

3) Artigo 44 da Lei nº 9.430/96  as alterações no regime das multas qualificadas
a) Multas qualificadas e agravadas
No âmbito federal, as multas poderiam ser majoradas em 50% pela presença de situações agravantes, como não atendimento à fiscalização, reincidência etc., mas eram aumentadas para 150% na hipótese de situações qualificadoras mais graves (sonegação, fraude ou conluio). O PL original, pretendia revogar as hipóteses agravantes e reduzir a multa qualificada para 100% do tributo, mantendo-se na lei apenas a segunda alteração.

Essa situação gerou uma situação esdrúxula, ofensiva à proporcionalidade das penas, que orienta inclusive a aplicação de sanções administrativas, pois situações qualificadoras, mais graves, estarão sujeitas a uma multa de 100%, ao passo que as agravantes, menos graves, serão penalizadas em 112,5%.

Parece-nos, à luz da proporcionalidade que as penalidades devem guardar com relação à gravidade das condutas, que a Administração deverá observar o artigo 2º, parágrafo único, VI, c/c artigo 65, ambos da Lei nº 9.874/99, para promover uma revisão das sanções e adequá-las ao patamar das multas qualificadas. Ademais, parece-nos que não se trata aqui de um afastamento da regra da multa agravada por inconstitucionalidade, mas sim um controle de adequação “in concreto” das sanções aplicadas, considerando a nova moldura normativa punitiva estabelecida, com vistas a manter uma coerência na atuação sancionadora do Estado.

  1. b) A reincidência nas situações qualificadoras
    A lei prevê que a multa qualificada será alçada a 150% nas hipóteses dereincidênciado sujeito passivo, que, nos termos do artigo 44, §1º-A, se dará quando no prazo de dois anos, contado do ato de lançamento em que tiver sido imputada a ação ou omissão tipificada nos artigos 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/64 e ficar comprovado que o sujeito passivo incorreu novamente em qualquer uma dessas condutas.

Essa condição nova, em nosso entender (com o endosso de outra colunista [4]), fulmina retroativamente todas as multas qualificadas aplicadas, obrigando a sua redução ao patamar de 100%, com fulcro no artigo 106, II, “c” do CTN, incluídas aquelas no âmbito judicial. Não nos parece haver espaço para eventuais diligências por parte dos órgãos de julgamento para verificar a existência de reincidência, sob pena de ostensiva e ilegal inovação dos fundamentos do auto.

O dispositivo traz algumas dificuldades de ordem semântica, pois não deixa claro se basta a repetição de qualquer das circunstâncias dos artigos 71, 72 ou 73, ou se deveria haver uma repetição específica da situação qualificadora, para que se possa aplicar a multa de 150%. Por força do artigo 112, II, do CTN, parece-nos que essa dúvida deve ser resolvida da forma mais favorável ao acusado, com a exigência da reincidência específica.

  1. c) A confusão entre lançamento e processo administrativo
    A exigência da reincidência, por descuido do legislador, é passível de ser burlada pela fiscalização de duas maneiras.

A primeira se baseia no fato de que a reincidência se conecta ao “ato de lançamento” que imputou sonegação ou fraude. O dispositivo foi mal redigido e confunde as coisas, pois conforme o artigo 9º e seu §1º do Decreto nº 70.235/72, cada tributo ou penalidade isolada será objeto de lançamentos distintos, que poderão ser formalizados por meio de um único processo administrativo.

Em suma, pela literal redação do dispositivo, poder-se-ia, em um mesmo processo administrativo, realizar vários lançamentos, imputando fraude ou sonegação a todos, e fazê-los em uma sucessão temporal, para justificar a aplicação de multa de 100% apenas para o primeiro, e 150% aos demais, pois seriam — rigorosamente — lançamentos distintos, e não há regra que condicione a reincidência ao lançamento de um mesmo tributo.

  1. d) Ausência de regra antifragmentação das autuações fiscais
    A segunda falha se baseia na possibilidade de se burlar a exigência do interregno de dois anos por meio da realização de autos de infração fracionados no menor período de apuração possível.

Por exemplo, ao invés de lavrar o auto de infração de IRPJ relativo a vários exercícios, o auditor realizaria vários lançamentos baseados no menor período possível para configurar a multa qualificada no primeiro e lançar a multa de 150% nos demais.

Esse possível ardil poderia ser barrado pelo estabelecimento de uma regra específica que vedasse uma fragmentação artificial de autos de infração em períodos menores, ou estabelecimento de períodos mínimos de autuação. A própria Portaria RFB nº 48/2021, que dispõe a respeito da formalização de processos relativos a tributos administrados, nada dispõe a esse respeito.

  1. e) Reflexos do processo penal tributário sobre a multa
    O artigo 44, §1º-C, II, traz uma previsão bastante interessante: nas hipóteses em que haja sentença penal de absolvição com apreciação de mérito em processo do qual decorra imputação criminal do sujeito passivo, deve ser afastada a qualificação da multa. A lógica do dispositivo é a de que a multa qualificada e os crimes tributários possuem condições comuns de incidência [5].

Esse dispositivo, por uma questão de lógica, destina-se aos casos em que a multa qualificada é objeto de inscrição em dívida ativa e eventual ajuizamento de execução fiscal, tendo em vista que não há tipificação de crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do crédito, inclusive com o encerramento do processo administrativo, nos termos da Súmula Vinculante nº 24 do STF.

Entretanto, a redação do dispositivo levanta questões importantes.

A primeira delas é saber se bastaria a mera prolação de sentença penal de absolvição, sem a necessidade de trânsito em julgado, para que gere seus reflexos sobre a execução fiscal, na forma como dispõe literalmente a lei. Poderia ocorrer, por exemplo, da sentença ser reformada em apelação, e já ter sido afastada a multa qualificada na execução.

A segunda consiste em saber se, a partir da edição da Lei nº 14.689/23, o encerramento do processo penal passa a ser causa de prejudicialidade externa do processo de execução fiscal, impondo a sua suspensão, nos termos do artigo 313, V, “a” do CPC/2015, considerando que o seu desfecho impactará na extensão da relação jurídica discutida.

A terceira é saber se o dispositivo seria aplicável na hipótese de eventual desclassificação do crime contra a ordem tributária para crime comum, que sequer tenha sido imputado pela Receita ou pelo Ministério Público (MP), como falsificação de documentos ou falsidade ideológica, com a subsequente condenação do agente. Nessa situação, pela lógica do dispositivo, parece-nos que a desclassificação do delito teria como efeito secundário afastar então a multa qualificada em execução.

A quarta, na esteira da anterior, é saber se os efeitos do referido dispositivo seriam aplicáveis na hipótese em que o MP, tendo acesso ao lançamento e à representação fiscal para fins penais, entender que não há materialidade delitiva e, na condição de titular da ação penal, deixar de denunciar os contribuintes autuados. Ora, se na hipótese em que houve denúncia e absolvição, a multa deveria cair, parece-nos que, a fortiori, a ausência de denúncia deveria gerar os mesmos efeitos.

Conclusões
Como defendemos em nosso outro artigo, discordamos substancialmente da forma como a nova lei afetou a estruturação do contencioso administrativo e as multas federais.

Deixando de lado nossas vênias e indo além, parece-nos que os problemas redacionais são ainda mais graves. Essa má redação gerará intensas controvérsias a respeito da aplicação de seus dispositivos, estimulando um metacontencioso que prorrogará indefinidamente litígios tributários. Nesse artigo, tentamos antecipar apenas algumas delas.

[1] https://www.conjur.com.br/2023-set-06/direto-carf-pl-carf-analise-critica-alteracoes-paf

[2] DINAMARCO, Candido Rangel. Capítulos de Sentença, p. 42-43.

[3] O §9º do artigo 25 é que apresenta essa característica.

[4] https://www.conjur.com.br/2023-set-27/direto-carf-lei-1468923-voto-qualidade-multas-retroatividade

[5] Premissa essa que não nos parece inteiramente correta, como já falamos em outro artigo: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/1102

Fonte: Conjur