Conselho Superior do CG-IBS sem municípios e erosão federativa

Desde 2019 [1], temos sustentado que a criação de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) compartilhado entre os entes subnacionais, nos moldes aventados pela PEC 45, continha vício federativo de origem. Demonstramos que o modelo retirava competências tributárias próprias e exclusivas dos estados e municípios e violava o núcleo intangível do pacto federativo.

Prova disso, por exemplo, é o disposto no artigo 104, IV, do ADCT, que permite, em caso de não pagamento de precatórios, sejam retidos os valores de IBS pertencentes aos municípios (§§ 1º e 2º do artigo 158 da CF), conforme alertou Caio Costa e Paula [2]. Se o tributo fosse, verdadeiramente, de competência municipal, ainda que compartilhada com o Estados, conforme prevê o artigo 156-A da Constituição, esse tipo de “retenção” não poderia ocorrer, dado que o conceito de “repasse” supõe transferências financeiras oriundas de participação em tributos que pertencem a outros entes federativos (como a União), não a tributos próprios.

Após a promulgação da EC 132/2023 e edição da LC 214/2025, evidenciamos que os entes periféricos perdiam também capacidade tributária ativa, pois tudo o que antes cada ente federativo fazia isoladamente — arrecadar, fiscalizar, julgar, e interpretar — agora teria de fazer em grupo [3]. Isso, em razão da exigência de regulamento único e deliberação colegiada acerca de todos esses aspectos em Comitê Gestor cujo desenho institucional favorece o poder da União e fragmenta o poder dos demais. Advertimos que a exigência de unanimidade, aliada à distribuição desigual de votos e à representação indireta dos entes subnacionais, tornaria o órgão inoperante ou suscetível à captura pelo poder central [4].

Para tornar tudo ainda mais complexo, recentemente, houve a instalação do Conselho Superior do Comitê Gestor do IBS sem a presença dos representantes municipais, o que também comprova, no plano fático, algumas das advertências a respeito da funcionalidade e constitucionalidade do novo sistema. A reunião de instalação, conduzida virtualmente e composta apenas por representantes estaduais e do Distrito Federal, consagra um arranjo decisório no qual mais de 5.500 municípios ficaram à margem. Ou seja, nem mesmo o que era previsto para ser realizado em grupo pôde ser feito do ponto de vista da representação dos municípios.

A ausência dos Municípios decorre de litígio entre a Frente Nacional de Prefeitos (FNP) e a Confederação Nacional de Municípios (CNM), que discutem, no âmbito do TJ-DFT [5], quem pode credenciar candidatos, quais os requisitos de elegibilidade e se a eleição virtual atende ao princípio da representação paritária. Enquanto isso, o conselho inicia atividades com um vácuo deliberativo que deslegitima qualquer ato subsequente.

Se a instalação dos representantes dos municípios é condição para o funcionamento do Comitê Gestor, formá-lo sem a participação daqueles entes implica inconstitucionalidade. Qualquer ato normativo ou interpretativo emanado do conselho, enquanto estiver sem a representação adequada dos municípios, será inválido.

Mesmo em um cenário de colegialidade plena advertíamos que os entes subnacionais não teriam maioria, nem possibilidade de representação adequada de seus interesses. Afinal, enquanto a União forma um bloco monolítico, com interesses claramente alinhados e representação de 50% nos comitês de harmonização (4 representantes, todos indicados pelo ministro da Fazenda — artigo 320, III da LC 214/25), os 27 estados e DF (dois representantes — 25%) e os mais de 5.570 municípios (dois representantes – 25%), que possuem uma pluralidade de interesses regionais/locais, inclusive antagônicos entre si (conforme, aliás, demonstra a disputa entre CNM e FNP), respondem, juntos, pelos demais 50%. Portanto, os entes subnacionais nem sequer possuem maioria na representação de seus interesses nos comitês.

Agora constata-se situação ainda mais grave: os municípios nem sequer estão no grupo, já que o comitê foi criado sem eles. Mas, mesmo se os municípios vierem a participar do Comitê por meio de representação da CNM, possivelmente não haverá representação dos pequenos municípios, conforme alerta a FNP. O Comitê Gestor tornou-se, de saída, um condomínio inconstitucional em que apenas os Estados ocupam o salão de assembleias, enquanto os municípios aguardam na antessala, disputando direito de ingresso.

Reforma ameaça converter estados e municípios em autarquias da União

Por outro lado, a União, que já detém metade dos assentos nos fóruns e comitês de harmonização e exerce papel central na definição das normas e procedimentos do IBS e da CBS, vê seu poder amplificado. Sem a participação efetiva dos municípios, a representatividade da União, que já era dominante, torna-se mais preponderante, reduzindo substancialmente o poder de influência dos entes subnacionais e tornando o sistema decisório ainda mais centralizado, o que compromete o equilíbrio federativo que deveria nortear a gestão do novo tributo.

Esse déficit de representatividade viola frontalmente o artigo 156-B da Constituição, que exige atuação integrada e paritária de estados, Distrito Federal e municípios na administração do IBS. Viola também a ratio decidendi dos precedentes do Supremo Tribunal Federal que qualificam a repartição de competências e de receitas como pilar da autonomia dos entes e não permitem a criação de estruturas administrativas que esvaziem o poder decisório dos entes federados (ADIs 2.024, 4.228 e RE 591.033). Se, por emenda constitucional, já era duvidoso reduzir a capacidade de autodefinição dos entes, mais temerário é prosseguir na implementação prática quando um dos pilares da tríplice engrenagem federativa está ausente.

A comparação internacional confirma a inconstitucionalidade do modelo [6]. No Canadá, a harmonização do GST/HST foi voluntária e gradativa: províncias aderiram por negociação bilateral, mantendo competência plena sobre alíquotas e fiscalização local. Na Índia, o conselho atribui 2/3 dos votos aos Estados, exigindo maioria qualificada de 75 %. No Brasil, a União não apenas participa de fóruns de harmonização com metade dos assentos, como estes já funcionam mesmo quando a cadeira municipal permanece vazia.

Tudo, em síntese, vem a confirmar nossa hipótese: o desenho adotado para o novo sistema tributário reduziu competência tributária, capacidade ativa e, agora, possibilidade de efetiva representação dos interesses subnacionais, mesmo em grupo. Se já era difícil conceber um órgão que exigisse unanimidade entre quase 6 mil entes, mais impraticável é fazê-lo funcionar sem a representação dos municípios. O resultado previsível é a prevalência dos interesses da União — bloco monolítico dotado de iniciativa legislativa e poder de fato – sobre uma federação enfraquecida e desarticulada. A reforma tributária ameaça converter estados e municípios em meras autarquias administrativas da União, conforme bem observado por Fernando Facury Scaff [7], fato que desfigura a forma de Estado federal, cláusula pétrea na Constituição.


[1] SOUZA, Hamilton Dias; CARRAZZA, Roque Antonio & ÁVILA, Humberto. A reforma tributária de que o Brasil precisa. In: Polifonia – Revista Internacional da Academia Paulista de Direito, n. 3., p. 284-305. Disponível aqui.

MARTINS, Ives Gandra da Silva; SOUZA, Hamilton Dias de; ÁVILA, Humberto & CARRAZZA, Roque Antônio. Relatório sobre as propostas da Câmara para a reforma tributária – Partes I e II. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui e aqui

SOUZA, Hamilton Dias de. A falsa dualidade da PEC 45/2019. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui

[2] PAULA, Caio Costa e. Encruzilhada federativa: municípios superendividados e a ameaça da reforma tributária. Revisa Consultor Jurídico. Disponível aqui

[3] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Comitê gestor do IBS, harmonização e Federação – parte 1. JOTA. 14 de março de 2024. Aqui

[4] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI. Reforma Tributária e federação, um diálogo com Fernando Scaff. Portal Consultor Jurídico. Disponível aqui

[5] Processo n.º 0714569-22.2025.8.07.0000.

[6] SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo indiano. São Paulo: JOTA, 2 de fevereiro de 2025. Disponível aqui​.

SOUZA, Hamilton Dias de; SZELBRACIKOWSKI, Daniel Corrêa. Reforma, harmonização e federação: o não adotado modelo canadense. JOTA. 12 de março de 2025. Aqui

[7] SCAFF, Fernando Facury. A Federação da União e suas autarquias: diálogo com Hamilton Dias de Souza. Aqui

O post Conselho Superior do CG-IBS sem municípios e erosão federativa apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

A ditadura militar foi uma triste realidade

O governador de Minas Gerais, Romeu Zema, afirmou, em entrevista à Folha de S.Paulo, que a existência de regime ditatorial no Brasil é uma questão de interpretação que cabe a historiadores debater.

Autoproclamado candidato a presidente da República em 2026, Zema foi buscar em El Salvador exemplo de solução linha dura para a violência no Brasil. A reportagem apontou incoerência entre a viagem com recursos públicos e o racionamento de combustíveis para viaturas policiais vigente em Minas Gerais, mas ele fugiu da questão.

É da ditadura essa “divisão de funções”: estudante estuda, trabalhador trabalha, e os profissionais fazem a política.

Essa distinção foi usada pela ditadura brasileira (1964-1985) para reprimir duramente os movimentos sociais e o movimento estudantil, criando arrocho salarial, o Decreto Lei 477, Leis de Segurança Nacional, fim da UNE e dos partidos políticos, milhares de cassações de direitos, cassação de juízes e parlamentares, censura à imprensa, centenas de sindicatos e grêmios estudantis sob intervenção e suas lideranças presas, exiladas ou mortas.

Basta consultar o sítio eletrônico Arquivo Nacional – Memórias Reveladas, e ir a “A ditadura, os estudantes e os trabalhadores”. E, é claro, em 1968 foi editado o Ato Institucional nº 5 (AI 5), que tudo vedava, tudo proibia, decretando o fim do Habeas Corpus, vedando inclusive o acesso à Justiça para confrontar as violações cometidas. Muita dor foi causada aos brasileiros em geral, pelo medo, pela insegurança física, pelo autoritarismo desenfreado.

Triste verdade

Se algum historiador estivesse disponível, qual se imagina seria a resposta para esta simples pergunta: qual o nome dado de um regime instalado pela força militar contra a autoridade constituída, que se valeu de todas as violações sistemáticas e massivas possíveis e que chegou a inúmeros assassinatos de opositores e desaparecimento de líderes, tortura indiscriminada, tortura de indígenas?

Regime que se manteve durante 21 anos em função da adoção da doutrina de segurança nacional (e seus dogmas “inimigo interno” e “guerra psicológica adversa”), que julgava civis pela Justiça Militar, e também graças a leis excepcionais que previam pena de morte, impossibilidade de eleição direta para presidente, um Congresso apequenado pelas centenas de cassações políticas, dócil ao regime, tudo acobertado pelo AI 5, sem possibilidade de recurso ao Judiciário e sem a garantia do Habeas Corpus?

A resposta está no título. E a mesma verdade é proclamada pelos sítios eletrônicos oficiais, pelos tribunais superiores, inclusive o STJ e o STF, em inúmeros julgamentos. Incontáveis livros e artigos foram escritos a respeito. A Comissão Nacional da Verdade, e inúmeras comissões estaduais sem qualquer resistência judicial, proclamaram a existência da ditadura e suas consequências. Há reconhecimento internacional dessa verdade.

Espanta tomar conhecimento de que essa verdade, explícita com tantas evidências, não chegou a um determinado gabinete em Belo Horizonte. Outra pergunta se impõe, esta, para os eleitores: quem renega, e mesmo desconhece, a história brasileira pode pensar em governar o Brasil?

Em tempo para todos e especialmente para os que ignoram a recente história brasileira: o filme Ainda Estou Aqui, premiado internacionalmente sobre a morte e o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, durante a ditadura militar, ainda está em cartaz!

Fonte: Conjur

O século 19 e um manual de Direito Civil

Os acontecimentos da história e da política, ao lado dos traços culturais e linguísticos, serviram de combustão para o intercâmbio do ensino jurídico entre Brasil e Portugal. Um deles, o golpe que implantou o Estado Novo entre nós, do qual resultou a Lei Constitucional de 1937, permitindo aos portugueses a acolhida, pelo regime de Oliveira Salazar [1], dos professores brasileiros da Universidade de São Paulo exilados [2].

Posteriormente, após a Revolução dos Cravos Vermelhos (25 de abril de 1974), foi a vez da reciprocidade brasileira. Aqui tiveram acolhida Marcelo Caetano (Uerj), Manuel Antunes Varela (UFBA), José de Oliveira Ascensão (FDR-UFPE) e Alberto Xavier (PUC-SP).

Pouco conhecido é que, mesmo antes da independência, tal acolhimento chegou a se manifestar, muito embora numa experiência singular da qual foi protagonista Lourenço Trigo de Loureiro. Nascido em Viseu (Portugal) em 1793, matriculou-se no Curso de Direito da Universidade de Coimbra, quando ocorreram as invasões francesas ao território lusitano, forçando a fuga de vários estudantes, dentre as quais a sua, cujo desembarque no Rio de Janeiro teve lugar em março de 1810.

Daí a oportunidade aproveitada para integrar a primeira turma de bacharéis do Curso Jurídico de Olinda em 1832, vindo a tornar-se lente substituto em 1833, sendo designado como catedrático em 1852, inicialmente da disciplina “Economia Política” e, posteriormente, em 1855, da cadeira de “Direito Civil” do 4º ano.

A sua excepcional tenacidade organizatória — ressaltada por Gláucio Veiga [3] — permitiu-lhe que desse à estampa vários livros [4], sendo o de maior realce o “Instituições de direito civil”, em dois volumes [5], publicados em 1851, sobrevindo vários reedições, sendo a quinta e última pela Editora Garnier do Rio de Janeiro em 1884 [6].

A obra, adotada nos dois cursos jurídicos em funcionamento, no dizer de Bevilaqua, restou amplamente popularizada, legando bons préstimos “a estudantes, advogados e juízes, porque era a única exposição sistemática do direito civil em português, ao lado de Coelho da Rocha, a quem muito se achegou LOUREIRO” [7].

É preciso advertir que o compêndio foi escrito à época na qual a disciplina da matéria civilística entre nós, representada pelo Livro IV das Ordenações Filipinas de 1603 e leis posteriores esparsas, era anterior à nossa primeira codificação civil (1916) e até mesmo à Consolidação das Leis Civis de Teixeira de Freitas (1857). Nem mesmo Portugal tinha um Código Civil, o que somente veio acontecer em 1867.

A circunstância, ainda atual, do direito civil ser considerado o direito privado comum ou geral [8], sem contar a centralidade das codificações civis nos sistemas jurídicos do direito europeu continental do século 19, superando em prestígio as constituições [9], fez com que o autor se ocupasse inicialmente das noções gerais sobre o direito e suas fontes [10].

Lançou-se o autor a uma definição de direito, consubstanciada como sendo tudo que está em conformidade com uma regra geral e obrigatória, que pode ser física ou moral, consoante se lastreie em uma necessidade física, moral, ou da razão, frisando que a ciência do direito somente se ocupa das regras ou leis morais. Não lhe passou despercebido a pluralidade significativa em torno da expressão “direito” (direito objetivo, subjetivo e positivo), bem como das classificações que então ensejava o seu conteúdo, não somente a bipartição entre direito público e direito privado [11], mas também a classificação geral dos direitos civis (direitos relativos à capacidade civil, direitos das relações de família e direitos que se referem aos bens, subdivididos entre reais e pessoais) e das obrigações (geral negativa e particular positiva).

Especialmente quanto às fontes do direito civil pátrio observou:

“Como a legislação civil, por que o Brasil ainda se rege, além de desordenada, sem sistema, e sem nexo, e omissa, ou defeituosa em uma infinidade de assuntos da ciência legislativa, convém indicar as fontes a que devemos recorrer, enquanto não tivermos um Código Civil, que nos dispense da necessidade de recorrermos a fontes estranhas. Essas fontes podem ser reduzidas a duas classes, compreendendo-se na primeira as que têm força de lei, e na segunda, as subsidiárias.” [12]

Uma curiosidade é a de que, mesmo situando os assentos da Casa de Suplicação no rol das fontes subsidiárias, o autor permite a compreensão da precedência da jurisprudência vinculativa na civil law, uma vez as ordenações atribuírem força de lei aos Assentos da Casa de Suplicação, contanto que confirmados pelo rei [13].

Versou com maestria sobre hermenêutica [14], avivando regras gerais e especiais de interpretação, em mais de duas dezenas, o que fez merecer a consideração de Carlos Maximiliano [15].

Discorreu sobre o direito das pessoas [16], seja quanto ao estado de liberdade — a revelar, na disciplina jurídica, o infame retrato da nossa sociedade da época — seja quanto à condição política, extremando os cidadãos dos estrangeiros.

A obra contém uma ordenada exposição sobre as relações familiares [17], na qual se destaca o enfoque do poder paterno e marital, nota característica do patriarcalismo predominante. Abordou-se, com a antecedência dos esponsais, o matrimônio, cuja natureza é bipartida, pois ora “encerra entre nós um contrato e um sacramento; e por isso se regula pelas leis civis, e conjuntamente pelas leis eclesiásticas” [18].  Tratava-se de reflexo do catolicismo como religião oficial do Império.

Não olvidou o autor o tratamento das relações patrimoniais resultantes do casamento, abordando-se com detença, talvez pelo traço agrário da economia brasileira, o regime dotal. Da mesma forma, versou sobre a tutoria e a curadoria.

Alguns aspectos aguçam a curiosidade

Um deles é referência ao instituto da restituição in integrum [19]. Revogado com o Código Civil de 1916 (artigo 8º [20]), cuidava-se de benefício conferido por lei aos menores e pessoas que lhes eram equiparadas (interditos e ausentes), de poderem reclamar contra quaisquer atos judiciais, ou extrajudiciais, válidos, mas injustos, que lhes tenha causado prejuízo ou dano, durante a menoridade, a interdição ou ausência, em consideração de cada uma destas circunstâncias.

Tinha lugar, em regra, em todos os atos, ou omissões, judiciais ou não, de que tenha emanado lesão ao menor ou a quem lhe fosse equiparado, quer decorresse ou não de dolo e ainda que o ato fosse praticado pelo tutor ou pelo menor ou a este equiparado, com o consentimento do tutor ou curador. A não aplicação do remédio extraordinário aos atos nulos não privava o menor, o interdito ou ausente, de proteção, a qual deveria ser manifestada em ação de nulidade ou em embargos de nulidade opostos à execução.

Há pelo autor uma exposição detalhada sobre as coisas [21], com uma classificação minudente, nas quais não constante o reconhecimento, na categoria das incorpóreas, das derivadas da produção intelectual (direitos autorais). E, diversamente dos tempos que correm, há a classe das coisas em relação ao seu destino, a qual inclui as coisas sagradas, santas e religiosas.

Não restou esquecido o tratamento do domínio e da posse, e, em seguida, das sucessões, com ênfase aos testamentos, prosseguiu, numa sistemática não rigorosa, ao exame das servidões, dos direitos reais de garantia, incluindo-se o concurso de credores, consagrado numa feição bem mais restrita que a sua configuração atual, da enfiteuse e da prescrição aquisitiva e extintiva [22].

Finalizando, o autor aborda o direito obrigacional [23], e neste, as obrigações, os pactos, as convenções, os quase-contratos, discorrendo sobre as espécies contratuais, das condições que lhes são acrescentadas, e, por fim, quanto aos modos da correspondente extinção.

A leitura, de fácil apreensão, sem a perda do conteúdo essencial dos institutos enfocados, é confirmado na justiça que lhe fez Paulo Távora:

“O mestre de Olinda e Recife realizou trabalho desbravador de nosso Direito Civil, e sua contribuição serviu de compêndio de ensino nas primeiras academias do Império, bem como de referência a jurisconsultos, advogados e juízes. A presença de Trigo de Loureiro no rol dos livros pioneiros da memória jurídica nacional faz justiça ao emérito civilista.” [24]

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

_________________________________________________

[1] Não sei se por ironia, ou por falta de imaginação, copiamos de Portugal a nomenclatura para o regime político iniciado em 10 de novembro de 1937.

[2] Marcelo Caetano, por ocasião de palestra que ministrou na Faculdade de Direito da USP, em 20 de junho de 1966, recordou a atitude de Abel de Andrade, então Diretor da Faculdade de Direito de Lisboa, em acolher os mestres paulistas que se encontravam no exílio, disponibilizando a escola para a usarem e utilizarem, o que foi aproveitado por Waldemar Ferreira (CAETANO, Marcelo. Tendências do direito administrativo europeu, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXI, p. 92, 1967).

[3] VEIGA, José Gláucio. História das ideias da Faculdade de Direito do Recife. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1984. Vol. IV, p. 275.

[4] De autoria de Trigo de Loureiro são os títulos “Gramática razoável da língua portuguesa” (1828), “Os elementos de prática do processo” (1850), “Elementos de economia política” (1854) e “Fedra, Andrômaca e Ester” (1851), este último na área teatral.

[5] Recife: Tipografia Comercial de Meira Henriques.

[6] Em janeiro de 2004, a Coleção História do Direito Brasileiro, editada em colaboração pelo Senado Federal e o Superior Tribunal de Justiça, republicou no seu nº 5 as “Instituições de Direito Civil”.

[7] BEVILÁQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 3ª ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012, p. 453.

[8] Para Menezes Cordeiro, o direito civil não é apenas o direito comum do privatismo, mas de toda a ordem jurídica (CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. 2ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2000. Tomo I, p. 33).

[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. A constituição na vida dos povos – Da Idade Média a o século XXI. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 108-109.

[10] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 10-31. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[11] As leis que o estado civil e político das pessoas pertencem necessariamente ao direito público, por influírem, as do estado político, diretamente no governo do Estado e no bem-geral da sociedade, enquanto as do estado civil interessam eminentemente à ordem pública (LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 19. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004).

[12] Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 23. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[13] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 27. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004. Observando os arts. 163 e 164 da Constituição Imperial, os quais, mesmo silentes em atribuir força obrigatória aos julgados do Supremo Tribunal de Justiça, Pimenta Bueno destaca a sua relevantíssima função para a uniformidade interpretativa do direito positivo pátrio, explicitando: “480. Do que expusemos no parágrafo antecedente já se infere quanto é a importância do Supremo Tribunal em relação à ordem civil ou judiciária; a Justiça é uma religião social, e o Supremo Tribunal é o grande sacerdote dela, é o guarda de sua pureza, de sua igualdade protetora, o espírito conservador dos seus decretos. Ele regulariza a ação dos tribunais, retifica as suas decisões irregulares, fixa os verdadeiros princípios dessa religião civil” (BUENO, José Antônio Pimenta. InDireito público brasileiro e a análise da Constituição do Império. Coleção Formadores do Brasil. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 423. A edição original recua a 1857).

[14] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 228-35. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[15] SANTOS, Carlos Maximiliano Pereira dos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 4, 87, 123, 128, 135, 137, 149, 162, 175, 262 e 263.

[16] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 37-56. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[17] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 37-205. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[18] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 76. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[19] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 196-200. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[20] “Art. 8. Na proteção que o Código Civil confere aos incapazes não se compreende o benefício de restituição” (Disponível em: www.planalto.gov.br).

[21] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 207-222. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[22] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p.  223-324; Tomo II, p. 5-201. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

[23] LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. 203-298. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004. Conforme o autor, não há uma diferença substancial entre contrato e pacto (p. 230), sendo de observar que os quase-contratos (p. 271-272) se referem a obrigações que nascem de um consentimento ficto, presumido, tal como sucede na gestão de negócios.

[24] TÁVORA, Paulo. Prefácio. In: LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de direito civil brasileiro. 4ª edição mais correta e aumentada. Rio de Janeiro: Garnier, 1871. Tomo I, p. XIV. Ed. Fac-sim. Brasília: Senado Federal, 2004.

O post O século 19 e um manual de Direito Civil apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso

Tramitam no Supremo Tribunal Federal 12 ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs) pendentes de julgamento, nas quais se alega omissão do Congresso na criação de leis para fazer valer normas constitucionais. Esse cenário em que os comandos não são detalhados na legislação traz prejuízos para a efetivação de políticas públicas e contribui para a instabilidade política e jurídica do país, dizem especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

As ações discutem temas que são frequentes na Justiça e nos debates entre o governo federal e parlamento, como o imposto sobre grandes fortunas (artigo 153, inciso VII, da Constituição) e o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor (artigo 5º, inciso XLII).

Fachada do Congresso

 

Em toda a sua história, o STF recebeu um total de 93 ADOs. Entre aquelas ainda não julgadas no mérito, há também algumas com alegações de omissão dos Legislativos estaduais, do Executivo nacional e até da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Mas o maior volume histórico sempre foi direcionado ao Congresso, responsável direto pelo texto da Constituição e cuja atuação impacta o país inteiro.

Omissões enfraquecem regras

“A Constituição de 1988 foi construída com uma série de mandamentos que deveriam ser posteriormente regulamentados por meio de leis complementares e ordinárias. Isso já estava previsto desde o início e essa, de fato, foi a intenção do constituinte, para diversos temas”, explica o procurador federal André Rufino do Vale, professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

Mas, segundo ele, a “inação legislativa”, quase 37 anos depois, “deve ser encarada como omissão institucional, para a maioria dos temas carentes de regulamentação”.

Na visão de Vale, “uma Constituição que carece de regulamentação forma um ordenamento jurídico lacunoso e que dificulta a concretização de direitos e de políticas públicas importantes”.

Para o advogado Georges Abboud, também professor de Direito Constitucional do IDP, as omissões do Congresso mostram “indubitavelmente déficits de normatividade da Constituição e da execução de seu programa político”. Ou seja, “se os projetos da Constituição não são implementados por lei, há, em algum grau, defasagem na vinculação do próprio texto constitucional”.

Ele afirma que os parlamentares não podem adotar a ideia de que alguns dispositivos constitucionais são “mais obrigatórios do que outros”, pois essa mentalidade “favorece o clientelismo e a permanência de formas oligárquicas de pensar o país”.

Desde o momento em que entram em vigor, todos os trechos constitucionais têm “alguma eficácia imediata” — ainda que seja apenas “destinada a mandar que algo seja feito”. Assim, os congressistas não podem “decidir quais pontos da Constituição devem ou não ser realizados”, porque tais escolhas já foram feitas quando esses pontos foram aprovados.

Enquanto não há “sanção efetiva” das promessas constitucionais, de acordo com Abboud, “as questões omissas acabam ficando ao sabor dos ventos políticos ou até mesmo regulamentadas pelo STF, que posteriormente recebe, inevitavelmente, críticas muitas vezes injustas”.

A advogada constitucionalista Vera Chemim concorda que as lacunas mantidas “são responsáveis pela não efetivação dos direitos constitucionais, principalmente os direitos fundamentais individuais e coletivos”. A falta da legislação exigida pela Constituição também “prejudica a sua efetividade e enfraquece a sua força normativa”.

A situação ainda “embaraça a gestão pública, provocando a sua ineficácia, ineficiência e inefetividade no alcance dos seus objetivos e resultados”. Outro efeito, segundo a  advogada, é “o agravamento da instabilidade política e jurídica já reinante na conjuntura brasileira”

Confira a lista das 12 ADOs sobre possível omissão do Congresso ainda pendentes de julgamento:

Número da açãoDispositivo constitucional não regulamentadoTema
ADO 40Artigo 98, inciso IICriação da Justiça de paz*
ADO 47Artigo 32, § 4ºRegras sobre uso das polícias e do Corpo de Bombeiros Militar pelo governo do DF
ADO 55Artigo 153, inciso VIIInstituição do Imposto sobre Grandes Fortunas
ADO 62Artigo 245Assistência do poder público a herdeiros e dependentes carentes de vítimas de crimes dolosos
ADO 69Artigo 5º, inciso XLIIFalta de previsão de pena de prisão para o crime de negar ou impedir emprego em empresa privada em razão da raça ou cor
ADO 70Artigo 18, § 4ºPeríodo em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios
ADO 73Artigo 7°, inciso XXVIIDireito dos trabalhadores à proteção em face da automação
ADO 77Artigo 243Expropriação de propriedades com exploração de trabalho escravo para destinação à reforma agrária e a programas de habitação popular, além de confisco de bens apreendidos
ADO 81Artigo 7º, inciso IDireito dos trabalhadores à proteção do emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa
ADO 83Artigo 7º, inciso XXDireito à proteção do mercado de trabalho da mulher
ADO 84Artigo 5º, incisos X e XIIUso de ferramentas e programas de monitoramento secreto de aparelhos de comunicação pessoal por órgãos e agentes públicos
ADO 86Artigo 231, § 6ºFalta de definição sobre o que configura “relevante interesse público da União” nos processos de reconhecimento, demarcação, uso e gestão de terras indígenas
*A alegação é de omissão tanto do Congresso quanto das Assembleias Legislativas estaduais e dos Tribunais de Justiça

À mercê do Congresso

A falta de regulamentação de trechos da Constituição passa pelo jogo de interesses da política. Chemim aponta que o Legislativo vive diversos conflitos internos e externos com o Executivo.

O grande número de partidos políticos contribui para a falta de consenso e dificulta a formação de maioria para aprovação de leis, diz. Cada partido pressiona para que temas de seu interesse particular ou demandas populares de determinadas regiões sejam pautadas. Muitas vezes, isso atropela “outras necessidades nacionais que demandam uma legislação não priorizada por falta de interesse político”.

Outro fator, na visão da advogada, é a falta de conhecimento dos próprios parlamentares sobre a importância da regulamentação de “dispositivos constitucionais que são determinantes para o desenvolvimento social, político, cultural e econômico do país”.

Ela cita ainda a falta de recursos e de tempo, que afeta o funcionamento ideal da Câmara e do Senado. Atualmente, as omissões também são perpetuadas devido ao “cenário de instabilidade política e econômica decorrente da polarização político-ideológica e do recrudescimento do conflito entre o Poder Legislativo e o STF”.

Os motivos para a falta de regulamentação podem variar conforme o tema. No caso da ADO 73, que questiona a omissão do Legislativo com relação à proteção dos trabalhadores diante da automação (direito previsto no inciso XXVII do artigo 7º da Constituição), Georges Abboud entende que a resistência remete “a posturas que nossas classes altas guardam como heranças de comportamentos senhoris de épocas em que o trabalho pouco qualificado era abundante e largamente utilizado”.

Algumas lacunas se relacionam, segundo ele, com “posturas corporativistas”. É o caso da ADO 40, que trata da criação da Justiça de paz — voltada a promover conciliações e, por exemplo, celebrar casamentos. Embora ela esteja prevista no inciso II do artigo 98, nunca foi implementada.

Outras omissões “carregam as marcas do nosso passado (e presente) oligárquico”. O constitucionalista cita como exemplo a ADO 86, na qual se discute o que seria interesse público para fins de demarcação e uso de terras indígenas; e a ADO 55, que contesta a falta de criação do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).

“Em muitos momentos da nossa história, como é de sabença, projetos nacionais foram preteridos em favor de projetos de elites regionais”, completa.

ADO 70 discute o período em que os estados podem criar, incorporar, fundir e desmembrar municípios. Abboud indica que ela “tem contornos eleitorais, tributários e orçamentários”, além de gerar disputas entre entes federativos — afinal, “um município é sempre uma peça nova no tabuleiro político”.

Problema histórico

Há ainda questões com “antecedentes históricos nas desigualdades sociais que atravessam o Brasil desde sempre”, que “prestam homenagem ao nosso passado escravista, excludente, patrimonialista e sempre autoritário em potência”.

É o caso da ação sobre o IGF; da ADO 69, que contesta a falta de pena de prisão para quem nega emprego em razão da raça ou cor; e da ADO 83, que busca incentivos específicos direcionados à proteção do mercado de trabalho da mulher, prevista no inciso XX do artigo 7º da Constituição.

“Apesar de todas as omissões serem lamentáveis, aquelas referentes a questões de gênero e cor, bem como as questões indígenas, são particularmente problemáticas porque se referem a mazelas sociais antigas do nosso país e impedem que, por aqui, as promessas da modernidade se cumpram efetivamente”, diz o advogado.

Chemim entende que o Congresso deixou alguns temas “para serem regulamentados em momentos oportunos do ponto de vista político e social”.

Para a constitucionalista, a depender do assunto, o Legislativo “deverá sentir a temperatura junto à sociedade, verificando se aquela legislação encontrará eco suficiente, no que se refere ao grau de maturidade do ponto de vista social e a consequente acolhida favorável àquela regulamentação”. Isso é o que acontece, segundo ela, com o IGF.

Por outro lado, na sua visão, a proteção do trabalhador em face da automação é “um tema atual e de grande repercussão social, por se destinar a uma minoria que precisa desse tipo de proteção que deveria ser urgentemente disciplinada em lei, por razões óbvias”.

André do Vale acredita que o artigo 5º da Constituição já deveria ter sido regulamentado por inteiro (todos os seus incisos). “Da mesma forma, os direitos sociais dos trabalhadores (dos setores público e privado), assim como dos indígenas, há muito deveriam ter regulamentação completa”, conclui.

Correndo atrás

O saldo de 12 ADOs sobre omissão do Congresso pendentes de julgamento só não é maior porque o Supremo intensificou a análise de ações do tipo nos últimos anos. Só neste ano, duas foram julgadas. Desde 2023, foram sete no total.

Na decisão mais recente, do último mês de maio, o Plenário do STF reconheceu a omissão do Congresso por não classificar como crime em lei a conduta de retenção dolosa de salário do trabalhador. Os ministros também estipularam um prazo de 180 dias para que os parlamentares preencham a lacuna.

Já em fevereiro, a corte mandou os congressistas regulamentarem em até dois anos o direito dos trabalhadores à participação, de forma excepcional, na gestão das suas respectivas empresas.

No último ano, os magistrados estipularam um prazo de 18 meses para o Legislativo federal aprovar uma lei que garanta a proteção do meio ambiente na exploração de recursos do Pantanal mato-grossense. Também em 2024, foi determinado o mesmo prazo para a regulamentação do adicional de penosidade (benefício para quem atua com trabalhos extremamente árduos e desgastantes, seja física ou psicologicamente) para os trabalhadores.

Em 2023, o Supremo ordenou aos parlamentares a regulamentação da licença-paternidade em até 18 meses; a criação do Fundo de Garantia das Execuções Trabalhistas (Funget), formado por multas decorrentes de condenações trabalhistas e da fiscalização do trabalho, no prazo de dois anos; e o reajuste da proporção do número de vagas na Câmara em relação à população de cada estado, até o final deste mês de junho de 2025.

O post De grandes fortunas a racismo, STF acumula ações que discutem omissão do Congresso apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos

Ocorreu nos dias 21 e 22 de maio de 2025 o 3º Congresso Iberoamericano de Direito Penal Tributário, em Bogotá, Colômbia, coordenado por Juan Manuel Álvares Echague, professor de Direito Tributário da Universidade de Buenos Aires, e por José Manuel Almudi Cid, professor de Direito Tributário e atual Diretor da Universidade Complutense de Madrid. A anfitriã foi a Universidade Javeriana da Colômbia, representada pelo professor de Direito Penal José Carlos Prias, que nos recepcionou em conjunto com outros professores, dos quais destaco o tributarista Maurício Plazas.

Estiveram presentes profissionais de direito penal e de direito tributário de 11 países, sendo, do Brasil, eu e Marcelo Campos. Foi um exercício de interdisciplinariedade e reconhecimento dos diferentes estágios das duas disciplinas acerca desse objeto conjunto, no amplo panorama das Américas. Um livro com cerca de 1.400 páginas foi lançado, incluindo textos de autores brasileiros, sendo Marcelo Campos um dos cocoordenadores da obra. [1]

A parte que me coube naquele latifúndio de conhecimentos foi analisar a diferença entre infrações fiscais delitos com referência ao direito brasileiro. Adaptei o texto que lá expus para ser divulgado nesta ConJur em três textos quinzenais nesta coluna Justiça Tributária.

Sendo publicada em partes, fica parecendo uma série de streaming, com três episódios. Aqui vai o primeiro.

As decisões de política governamental

Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, publicou em 1882 um conto denominado O Alienista no qual relata o regresso do médico Simão Bacamarte à pequena cidade de Itaguaí, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, tendo estudado em Coimbra e em Pádua. Sua especialidade era a psiquiatria e logo passou a observar o comportamento dos habitantes da cidade. Pouco a pouco, foi identificando sinais de loucura em cada um deles, recolhendo-os ao hospício que havia criado, denominado Casa Verde.

“De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.”

O número de pessoas consideradas loucas crescia a cada dia, o que ocasionou diversas rebeliões na cidade, todas em vão. Bacamarte recolheu ao hospício até mesmo sua esposa, por ele considerada louca, além de vários políticos. Em determinado momento 80% dos habitantes da cidade estavam recolhidos à Casa Verde.

Após algum tempo de exame dos pacientes, o psiquiatra declarou que diante dessa quantidade de pessoas recolhidas ao hospício, ele assumira a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela que estava professando, mas a oposta, e, portanto, se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades mentais e como loucos todos os casos em que houvesse um equilíbrio dessas faculdades.

Com isso, Bacamarte libertou todos os que estavam recolhidos ao manicômio e, observando-se, “achou em si as características do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades, enfim, que podem formar um acabado mentecapto”.

Considerou-se, portanto, como sendo o único habitante da cidade com essas características, e decidiu se encarcerar no hospício para estudar a si mesmo e se curar. Faleceu ao final de dezessete meses de autoisolamento.

Este conto de Machado de Assis nos diz muito sobre a diferença entre infrações e crimes. Se toda infração for considerada um crime, as prisões passarão a estar repletas e as ruas vazias. Deve ser adotada com muita cautela a decisão de política governamental que estabeleça a distinção entre o que a sociedade deve considerar como uma infração e como um crime que acarrete o cerceamento da liberdade do indivíduo, e, em alguns casos, até sua vida.

Aqui se identifica um primeiro ponto do problema, que se refere à política governamental: deve-se criminalizar amplamente todas as condutas que violam as normas jurídicas?

Estacionar em local proibido ou não pagar uma conta de energia elétrica são infracções, apenadas com multas ou algum cerceamento de direitos, como se vê na possibilidade de suspensão da carteira de habilitação de motorista ou no cancelamento do fornecimento de energia elétrica. Todavia, se até mesmo essas infrações forem capituladas como delitos e os infratores considerados criminosos e encarcerados, estaremos defronte ao mesmo problema enfrentado pelo psiquiatra do conto O Alienista.

Filosoficamente pode-se afirmar que, se tudo é, nada é. Por outras palavras, se tudo for considerado como crime, sem distinção entre as condutas que atingem de forma mais ou menos intensa alguns direitos, ao final de certo tempo haverá a banalização da prisão, e a ameaça de encarceramento por condutas menos danosas acarretará a necessidade da escalada de maiores penalidades para as condutas mais complexas, fazendo com que o direito penal perca sua função primordial de proteção dos bens jurídicos verdadeiramente essenciais a uma sociedade. [2]

Nesse sentido, um Estado que alarga demais o punitivismo para infrações menores, se constituirá em um Estado policialesco, vigilante ao extremo acerca da conduta de seus cidadãos, sob pena de encarceramento. Em sentido oposto, caso as infrações maiores não sejam devidamente apenadas, haverá um Estado leniente, pois nem mesmo as infrações mais sérias a bens jurídicos sensíveis será considerada como crime.

É necessário fazer distinções de grau infracional, separando as lesões menores das maiores, acarretando que algumas venham a ser punidas com penas mais leves, tão somente pecuniárias (como nas infrações de trânsito), e outras com penas mais severas, como ocorre nos crimes contra a vida, cujo encarceramento é a regra geral em muitos sistemas jurídicos, havendo alguns que atribuem a pena de morte.

Para tanto, existe um limite aplicável aos países que se constituem em verdadeiros Estados Democráticos de Direito, que é o Princípio da Intervenção Penal Mínima, de modo que a atuação do Estado por meio do Direito Penal seja restrita ao mínimo necessário, sendo utilizada apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para proteger os bens jurídicos relevantes. Esse princípio é também conhecido como última ratio e se fundamenta na ideia de que o Direito Penal é a forma mais gravosa de intervenção estatal, evitando o excesso punitivo.

O direito tributário, que regula as relações entre o Fisco e os contribuintes, serve para arrecadar recursos das pessoas privadas, físicas e jurídicas, para os cofres públicos. Sua delimitação encontra-se nos direitos fundamentais dos contribuintes, que podem ser classificados como relativos: (1) à proteção dos contribuintes; (2) ao tratamento isonômico na tributação; (3) à boa administração fiscal, e (4) às garantias para o exercício dos direitos fundamentais.

O principal desses direitos fundamentais de proteção dos contribuintes é a Legalidade, pois a análise de todos os demais parte dele. Fiscalmente é importante o Princípio da Reserva Legal Tributária, que determina que só é possível instituir ou aumentar tributo se lei específica assim o estabelecer. E criminalmente é importante considerar o secular Princípio da Reserva Legal Penal, de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este conjunto de princípios, que se configuram em direitos fundamentais, é imprescindível para a delimitação do que seja uma infração fiscal e do que seja um delito.

Logo, uma primeira distinção entre infrações e crimes deve ser visualizada na política governamental acerca do direito sancionatório em geral, distinguindo o que deve ser protegido sob o manto do direito penal, o mais rigoroso em uma sociedade, pois, no limite, acarreta a perda da liberdade dos indivíduos. E isso deve ocorrer por meio de lei em sentido estrito, a Reserva Legal Penal, observado o Princípio da Intervenção Penal Mínima, cerne do Estado Democrático de Direito.

Normas brasileiras sobre direito penal tributário

Estabelecida a delimitação político-normativa, deve-se analisar as normas introduzidas no direito positivo de cada país.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece no artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Isso aponta para o fato de que são necessárias normas que tipifiquem condutas como crimes, mesmo nos casos de não pagamento de tributos, que se constituem tão somente como dívidas civis, embora tendo como credor o Estado.

No Brasil foram criadas normas específicas para o direito penal tributário, instituídas pela Lei 8.137/1990, que estabelece como delitos as seguintes condutas, obedecendo a Reserva Legal Penal.

O artigo 1º estabelece que “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas …”. Desse comando normativo são tipificadas diversas condutas que exigem dolo específico de reduzir ou suprimir tributo, em cinco incisos:

(I) “Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”; que se constitui em um crime formal, pois independe da obtenção do resultado pretendido.
(II) “Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal”. Trata-se de crime material, pois depende do resultado, isto é, precisa ter ocorrido a efetiva redução ou supressão de tributo.
(III) “Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável”; que pode ser crime formal ou material, a depender do caso concreto.

(IV) “Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, que se constitui em um crime material.
(V) “Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”, que se constitui em um crime formal.

Todos esses tipos criminais previstos do artigo 1º da Lei 8.137/90 são apenados com reclusão de dois a cinco anos, e multa.

Existe ainda o artigo 2º da mesma Lei, prevendo crimes tributários culposos ou omissivos impróprios, embora ainda se exija dolo específico para alguns. O artigo 2º é centrado nas obstruções à fiscalização e descumprimento de obrigações acessórias que viabilizam a correta arrecadação tributária. Os diversos incisos dessa norma tipificam condutas específicas que frustram a ação fiscalizatória da Fazenda Pública, com ou sem a intenção de suprimir tributos, sendo considerados crimes formais ou omissivos próprios, com penas mais leves, entre 06 meses e dois anos de detenção.

É previsto no artigo 2°: “Constitui crime da mesma natureza”, daí surgindo os seguintes incisos:

(I) “Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
(II) Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Adiante se analisará a decisão do STF — Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334-SC, que estabeleceu o que se deve entender por “tributo descontado ou cobrado” referente ao crime de apropriação indébita fiscal.
(III) “Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal.”
(IV) “Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.
(V) Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.”

Como se verifica, os tipos penais estabelecidos pela legislação brasileira são próprios para condutas fiscais, regulando propriamente o direito penal tributário, sem a utilização direta do Código Penal, o que é diverso do que se verifica em outras jurisdições latino-americanas.

*Tal como uma série de streaming, aguardem a 2ª parte (ou episódio), que circulará em 15 dias neste mesmo espaço da coluna Justiça Tributária.

_______________________________

[1] ÁLVAREZ ECHAGÜE, Juan Manuel et al. (dir.). Derecho Penal Tributario Latinoamericano: Estudio y análisis comparado de los principales regímenes penales que regulan el delito fiscal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2025.

[2] Nesse sentido, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

O post Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos (parte 1) apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Não cabe ao juiz limitar benefício firmado em colaboração premiada, decide STJ

O juiz está vinculado ao mínimo pactuado no acordo de colaboração premiada homologado, podendo aplicar prêmio maior, mas nunca menor.

Réu firmou acordo de colaboração premiada e ajudou a identificar responsáveis pela Chacina de Unaí

Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus para determinar a diminuição de pena de um homem condenado por homicídio.

Trata-se de um dos responsáveis pela chacina de Unaí, em que fiscais do trabalho foram assassinados durante fiscalização em fazendas da cidade mineira, em 2004.

Ele firmou acordo de colaboração premiada, que foi homologado pelo juízo com a previsão de diminuição de pena em 2/3. Após a condenação, o juízo resolveu ser menos benevolente, aplicando 1/2.

A menor diminuição da pena foi feita porque a delação, por si só, não foi responsável pela identificação dos demais participantes. Isso apesar de o Ministério Público e o Conselho de Sentença reconhecerem que ele cumpriu sua parte do acordo.

Por maioria de votos, a 5ª Turma do STJ decidiu que o tema poderia ser analisado em Habeas Corpus e concedeu a ordem para que o acordo firmado e homologado seja honrado.

Colaboração nem tão efetiva

Ficou vencido o relator do HC, ministro Ribeiro Dantas. Ele destacou que o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que referendou a dosimetria da pena feita pelo juiz de primeiro grau já foi atacado em recurso especial.

Trata-se do caso em que a 5ª Turma do STJ, atendendo a determinação do Supremo Tribunal Federal, admitiu o cumprimento antecipado da pena, apesar de a ação penal ainda não ter transitado em julgado.

“Nos termos da jurisprudência desta Corte, a interposição concomitante de dois recursos ou, ainda, de recurso e de writ pela mesma parte e contra a mesma decisão, importa o não conhecimento do segundo, em razão do princípio da unirrecorribilidade e da ocorrência da preclusão consumativa”, sustentou o relator.

Combinado não é caro

Abriu a divergência vencedora a ministra Daniela Teixeira, que foi acompanhada por Joel Ilan Paciornik, Messod Azulay Neto e Reynaldo Soares da Fonseca.

Para ela, o tema do HC pode ser conhecido e a ilegalidade deve ser corrigida. Isso porque o TRF-1 extrapolou os limites do Poder Judiciário na atuação do acordo de colaboração premiada.

“Uma vez constatado, pelo Ministério Público, o cumprimento do acordo homologado por parte do colaborador, seus termos vinculam o Juiz, que não tem espaço para dosar o quantum de diminuição de pena ou mesmo o grau do prêmio que será concedido”, afirmou a ministra.

Essa vedação inclui inclusive uma nova avaliação sobre o grau de importância das provas trazidas pelo colaborador. “Ao contrário, o Juiz deve, no mínimo, aplicar o pactuado entre as partes, podendo aplicar grau superior do prêmio”, acrescentou.

Em voto-vista, o ministro Joel Ilan Paciornik explicou que a cláusula que estipula fração de redução da pena integra o núcleo essencial do acordo de colaboração premiada e que sua aplicação se impõe como decorrência da vinculação jurídica instaurada.

“A atuação judicial deve se limitar à aferição da conformidade entre o cumprimento do acordo e o benefício prometido, sendo inviável modificar unilateralmente o conteúdo da cláusula pactuada, salvo se presente causa superveniente que macule a validade do ajuste”, disse.

HC 897.411

O post Não cabe ao juiz limitar benefício firmado em colaboração premiada apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Inadequação técnica do termo ‘educação sexual’ na infância e na pré-adolescência

No campo das políticas públicas voltadas à infância, especialmente durante o “maio laranja” — campanha que, em tese, busca conscientizar sobre o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes — tem-se promovido com insistência a “educação sexual” nas escolas como estratégia de prevenção.

Mas é necessário, do ponto de vista jurídico e lógico, questionar com rigor essa terminologia. Seu uso indiscriminado, sobretudo quando dirigido a crianças e pré-adolescentes, representa uma ruptura frontal com a doutrina da proteção integral, basilar em nosso ordenamento jurídico.

O primeiro ponto que precisa ser evidenciado é a contradição jurídica entre a concepção da criança como sujeito em peculiar condição de desenvolvimento — consagrada pelo artigo 227 da Constituição, pelo artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo artigo 19 da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) — e a ideia de que seria admissível implementar políticas públicas voltadas à “educação sexual” para menores de 14 anos.

O Código Penal, em seu artigo 217-A, estabelece com clareza que qualquer relação sexual com pessoa menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, independentemente de consentimento. A presunção de incapacidade, nesse ponto, é absoluta — não se discute, não se relativiza.

Já a Lei 13.431/2017, em seu artigo 4º, inciso III, amplia o conceito de violência sexual para abarcar condutas que envolvam até mesmo a exposição da criança a atos libidinosos ou imagens com conotação sexual. Ou seja: não se pode admitir, sob qualquer pretexto, que essa faixa etária seja submetida a conteúdos que naturalizem ou antecipem experiências sexuais.

Por isso, quando se fala em “educação sexual” para menores de 14 anos [1] — especialmente na forma em que vem sendo implementada, com instruções sobre métodos contraceptivos, zonas erógenas, orientação sexual, expressão de gênero e práticas seguras — o que temos não é uma política de prevenção, mas uma pedagogia do consentimento precoce travestida de instrução cidadã.

Essa aberração jurídica revela não apenas um descompasso entre discurso e norma, mas uma deliberada desconsideração da doutrina da proteção integral, consagrada na Constituição e replicada no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A criança e o adolescente, ali, são reconhecidos como sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. Não é um adulto em miniatura, tampouco um corpo disponível para ser moldado conforme as cartilhas ideológicas do momento.

Aliás, ensinar sobre o exercício da sexualidade àquele que não possui sequer capacidade jurídica e biopsicológica para consentir não é educação: é incentivo. É, para usar a linguagem do próprio ECA, uma violação do direito ao respeito e à dignidade (artigo 17), que assegura à criança a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral.

Isso porque a educação é um processo que, ainda que não prescritivo, é formativo: educar implica direcionar, orientar, preparar. E preparar alguém para o exercício de algo que ele não pode legitimamente exercer é, no mínimo, uma forma simbólica de legitimação indireta de uma conduta que o direito se propõe a combater com rigor.

Violação frontal a princípio

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 99.710/1990, é categórica ao afirmar, em seu artigo 14, que os Estados-parte devem respeitar os direitos e os deveres dos pais de orientar seus filhos conforme a evolução de sua capacidade. Tal princípio é reforçado e assegurado pelo artigo 229 da Constituição, que reconhece que é dever dos pais assistir, criar e educar os filhos menores.

No mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ao afirmar a dignidade da pessoa e a universalidade dos direitos fundamentais, reconhece expressamente, em seu artigo 26, que “os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos”.

Portanto, o Estado, nesse contexto, não substitui a família, mas a auxilia, jamais a usurpa.

Mais ainda: o artigo 53, § único, do ECA é categórico quando dispõe que “é direito dos pais ou responsáveis ser informados sobre o processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais”.

Assim, qualquer política pública educacional que incida diretamente sobre a formação moral e sexual da criança sem consulta, ciência ou concordância dos pais, é ilegítima e inconstitucional. Trata-se de violação frontal ao princípio da proteção integral em sua dimensão familiar, pedra angular do Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda, de conduta que pode ser caracterizada como ato de alienação parental, haja vista a ingerência indevida sobre a formação psicológica e emocional do menor, mediante afastamento arbitrário do papel parental legítimo.

Não se trata aqui de ignorar a importância de medidas preventivas contra a exploração sexual, mas de apontar que a forma e a linguagem com que isso tem sido conduzido, em especial por meio do termo “educação sexual”, é tecnicamente inadequada e juridicamente perigosa.

A terminologia em si carrega uma ambiguidade que compromete o princípio da legalidade e permite que conteúdos impróprios para a idade infantil sejam introduzidos no ambiente escolar com aparência finalidade pública. Sob o manto da educação, institucionaliza-se a possibilidade de um tipo de exposição precoce à sexualidade que viola os princípios básicos da hermenêutica garantista. O Estado — que deveria tutelar a infância com zelo redobrado — assume postura permissiva e até promotora de uma transgressão ontológica: a da inocência infantil.

É aqui que reside o perigo: o termo “educação sexual” opera como uma armadilha semântica. Por fora, proteção; por dentro, doutrina. A expressão é ambígua, escorregadia, e abre margem para que conteúdos inapropriados sejam inseridos no ambiente escolar com aparência de política pública legítima. Nas entrelinhas, legitima-se a quebra da barreira entre a infância e a sexualidade. E o que deveria ser escudo se converte em lança.

Não estamos mais falando de lapsos pedagógicos, mas de um projeto de engenharia social com linguagem higienizada.

Porta aberta

A substituição da abstinência pela “instrução sexual” — ridicularizada pela academia [2] — revela a real intenção por trás desse projeto. Não se trata de impedir a sexualização precoce, mas de aceitá-la, desde que regulamentada, estéril, profilática. A pedagogia dominante grita: ‘Transar, pode. Engravidar, não’. A preocupação não é com o ato sexual precoce em si, mas com suas consequências físicas dele. Um raciocínio tão torpe quanto aquele que defenderia o ensino de mixologia nas escolas como política pública contra o alcoolismo juvenil.

E os arautos dessa mentalidade, com ares de ciência, ainda declaram: “A decisão de começar a vida sexual é uma questão de foro íntimo. As famílias já falam ‘não tenha, não faça [sexo agora]’, as religiões já dizem. O que cabe como política pública é oferecer todos os caminhos para os adolescentes.” Todos os caminhos — menos o da inocência. Menos o da proteção integral.

Ora, se a legislação brasileira proíbe o consentimento sexual antes dos 14 anos, é logicamente inadmissível permitir qualquer instrução pedagógica que normalize, estimule ou antecipe esse comportamento. Existe uma diferença clara e intransponível entre orientar crianças e pré-adolescentes sobre autoproteção contra abusos, o que é absolutamente legítimo e necessário – quando concretizado com participação ativa das famílias – e prepará-los para o exercício da sexualidade, o que é perverso e criminoso.

O uso persistente e institucionalizado do termo “educação sexual”, sem delimitações claras, sem balizas legais claras, sem fiscalização pedagógica, sem a participação das famílias, não é apenas um erro técnico — é uma autorização tácita para a desconstrução da vulnerabilidade. E, sim, estamos falando de uma porta aberta à pedofilia, ainda que disfarçada de política pública. Porque qualquer política que insinue à criança e o pré-adolescente a ideia de que ela é um ser sexual em potencial, passível de “educação” nesse sentido, antes mesmo do despertar natural e biológico da puberdade, está abrindo a margem para que a infância seja sexualizada em nome da prevenção.

Por isso, é preciso afirmar com clareza: o uso da expressão “educação sexual” para políticas públicas voltadas a crianças e pré-adolescentes é tecnicamente impreciso, juridicamente incabível e, na prática, um permissivo para a erosão silenciosa da proteção integral à infância.

É hora de rever, com seriedade e responsabilidade, não apenas as práticas pedagógicas, mas os próprios conceitos que as sustentam. Porque o primeiro passo para proteger a infância é não permitir que se legitime, sob o manto da prevenção, aquilo que a lei repudia como violação.


Bibliografia:

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível aqui.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível aqui.

BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 1990.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Marco Legal da Primeira Infância. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 mar. 2016.

BUENO, Rita Cássia Pereira; RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da educação sexual no Brasil: apontamentos para reflexão. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, [S. l.], v. 29, n. 1, p. 49–56, 2018.

JORNAL DA USP. Abstinência sexual em adolescentes já foi testada e não trouxe resultados. Disponível aqui.

REGINA, P. Corpos, gêneros e sexualidades: questões possíveis para o currículo escolar. Furg.br, 2013.

SUWWAN, Leila. ‘Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal’. Folha de São Paulo, 16 mar. 2005. Disponível aqui.

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível aqui.

[1] SUWWAN, Leila. ‘Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal’. Folha de São Paulo, 16 mar. 2005. Disponível  aqui.

[2] JORNAL DA USP. Abstinência sexual em adolescentes já foi testada e não trouxe resultados. Disponível aqui.

O post Inadequação técnica do termo ‘educação sexual’ na infância e na pré-adolescência apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Pela segunda vez, STF derruba vínculos empregatícios reconhecidos pelo TRT-4

Os ministros do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin e Luiz Fux precisaram anular novamente vínculos empregatícios reconhecidos entre uma imobiliária gaúcha e duas corretoras de imóveis após o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) ignorar decisões anteriores.

 

Os magistrados decidiram ao analisar reclamações (Rcls) ajuizadas pela defesa da empresa. Como acontece em outros processos sobre reconhecimento de vínculo de trabalho, as peças apontavam violação da jurisprudência firmada pelo STF nos julgamentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 48, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.625 e do Tema 725.

Além disso, porém, sustentaram que decisões anteriores de Zanin e Fux, que já haviam afastado a existência de vínculo entre as partes no mesmo processo, foram desrespeitadas pela 8ª e pela 2ª Turmas do TRF-4, respectivamente.

Ao cassar os acórdãos pela primeira vez, os ministros do STF determinaram o reenvio do processo ao tribunal de origem para a realização de novos julgamentos que respeitassem a jurisprudência do Supremo.

Os colegiados da corte regional, então, voltaram a analisar os recursos pelos quais a imobiliária contestava os vínculos reconhecidos em primeira instância e chegaram ao mesmo entendimento dos primeiros julgamentos.

De volta ao Supremo

“Constato que o TRT-4, ao reanalisar o feito, descumpriu a decisão expressa proferida por esta Suprema Corte na Rcl 65.991, que havia afastado o vínculo de emprego entre as partes, e, sob os mesmos fundamentos antes utilizados, insistiu em manter o vínculo empregatício entre a beneficiária, corretora de imóveis, e a reclamante”, escreveu Cristiano Zanin em sua nova decisão, proferida em 30 de abril.

“Posto isso, com fundamento no artigo 992 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) e no artigo 161, parágrafo único, do Regimento Interno do STF, julgo procedente o pedido para cassar a decisão reclamada e, desde logo, julgar improcedente a reclamação trabalhista de origem”, concluiu o magistrado.

O ministro Luiz Fux, na decisão proferida em 2 de maio, também voltou a validar a argumentação da imobiliária.

“Diante do cotejo analítico entre o paradigma invocado e a decisão reclamada, proferida pelo TRT-4, constata-se claro descompasso entre o que restou decidido na origem e o quanto afirmado na Rcl 65.647, na medida em que o acórdão ora impugnado reconheceu novamente a existência de vínculo empregatício entre as partes”, escreveu.

Ex positis, julgo procedente a presente reclamação, para cassar o acórdão proferido pelo TRT-4, julgando improcedente a reclamação trabalhista de origem”.

“Desserviço”

O escritório Corrêa da Veigas advogados representou a imobiliária. O sócio Luciano Andrade Pinheiro falou sobre a importância das decisões à revista eletrônica Consultor Jurídico:

“Algumas turmas isoladas dos TRTs insistem em descumprir a decisão do Supremo que já está mais que sedimentada. É um desserviço. O sistema de precedentes veio para evitar decisões conflitantes para que haja estabilidade e segurança. Esse tipo de decisão do TRT-4 mostra de um lado a incompreensão do regime de precedentes e de outro um inaceitável desafio à autoridade do STF.”

Clique aqui para ler a decisão de Cristiano Zanin
Clique aqui para ler a decisão de Luiz Fux
Reclamação 78.523
Reclamação 72.552

O post Pela segunda vez, STF derruba vínculos empregatícios reconhecidos pelo TRT-4 apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Criminalistas contestam visão do STF sobre ocultação de cadáver como crime permanente

O Plenário do Supremo Tribunal Federal se prepara para decidir se a Lei de Anistia também alcança os delitos de ocultação de cadáver cometidos por agentes da ditadura militar — muitos dos quais permanecem sem solução. A ideia é estabelecer se a anistia se aplica a um crime entendido pelos ministros como permanente, mas uma corrente de advogados criminalistas considera que a corte parte de um pressuposto equivocado: segundo esse grupo, a ocultação de cadáver é, na verdade, um crime instantâneo.

Em fevereiro, o STF reconheceu que a discussão tem repercussão geral, ou seja, a tese estabelecida servirá para situações semelhantes nas demais instâncias da Justiça. O julgamento, que ainda não tem data marcada, trata da “possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência”.

A Lei de Anistia, de 1979, perdoou delitos cometidos por militares durante o regime de exceção. Ela abrange crimes políticos e a eles conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Crimes permanentes, no entanto, iriam além do período acobertado pela norma, uma vez que eles continuam sendo cometidos.

“No crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei de Anistia”, disse o ministro Flávio Dino na sessão em que o Supremo reconheceu a repercussão geral do caso.

Escondeu, acabou

Porém, na visão de Fernanda Tórtima, mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha, a ocultação de cadáver, embora tenha efeitos permanentes, é um crime instantâneo — ou seja, é praticado em um único instante e não se prolonga no tempo.

Ela explica que o Código Penal descreve a conduta de ocultar o cadáver, e não de mantê-lo oculto. Assim, uma vez que o corpo é escondido, o autor do crime não está mais praticando a conduta.

Helena Regina Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), tem a mesma interpretação: “O crime é instantâneo de efeitos permanentes. Ocultar é a conduta proibida, ou seja, esconder. Não é manter oculto”.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já entendeu dessa forma em 2020. Na ocasião, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do caso analisado, afirmou que a intenção da ocultação é esconder o corpo de forma temporária. Assim, considerá-la um crime permanente iria de encontro à finalidade da lei.

“Afirmar que a ação de ocultar cadáver é permanente somente seria possível quando se depreendesse que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o objeto jurídico venha a ser encontrado”, afirmou o magistrado.

A ocultação está prevista no artigo 211 do Código Penal, junto aos delitos de destruição e subtração de cadáver. Segundo Paciornik, não há dúvida de que essas outras duas condutas são crimes instantâneos.

Fernanda Tórtima destaca que quem oculta um cadáver pode, ao menos em determinados casos, indicar onde está o corpo. Pela lógica adotada pelo Supremo, a permanência do crime está relacionada à vontade do autor de não indicar onde está o cadáver.

No entanto, de acordo com a advogada, por essa interpretação, os crimes patrimoniais — como roubo, furto e estelionato — também deveriam ser considerados permanentes, pois o patrimônio permanece subtraído enquanto o autor do delito não o devolve.

Nesses casos, o criminoso pode, mas não quer devolver o que tomou de outra pessoa. Mas isso não torna permanente o crime de furto, por exemplo. Os delitos patrimoniais, em regra, são considerados instantâneos.

Ao reconhecer a repercussão geral do julgamento, os ministros do STF também se basearam em documentos e normas de Direito Internacional que tratam o desaparecimento forçado como crime permanente. Mas Fernanda Tórtima ressalta que essa conduta é diferente da ocultação de cadáver e sequer é criminalizada no Brasil.

O problema da anistia

Em entrevista recente à revista eletrônica Consultor Jurídico, o criminalista Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), também defendeu que “não é possível tratar o crime de ocultação de cadáver como um crime de natureza permanente, como aponta a importante doutrina do professor Juarez Tavares”. Segundo ele, “é, na verdade, um crime instantâneo”.

Melchior ressaltou que isso não significa concordância com a anistia: “O fato de essa anistia ter sido aprovada é uma das causas pelas quais o povo brasileiro não superou, como deveria, o seu passado autoritário. Nunca deveria ter sido feita”.

Mas “não é torturando a dogmática que vamos alcançar nossos objetivos”, completou ele. Na visão do advogado, o fato de uma anistia equivocada existir “não deveria ser enfrentado com teses jurídicas de consistência questionável”.

O caso concreto levado ao STF diz respeito a uma denúncia feita em 2015 pelo Ministério Público Federal contra dois tenentes-coronéis do Exército por homicídios qualificados e ocultação de cadáveres durante a Guerrilha do Araguaia — movimento armado organizado por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) nas proximidades do Rio Araguaia na década de 1970. Um dos militares já morreu.

A primeira instância da Justiça Federal do Pará rejeitou a denúncia com base na Lei de Anistia. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região manteve a decisão, e o MPF recorreu.

Do cadáver ao dinheiro

A principal preocupação de Fernanda Tórtima é com a possível “transposição” do entendimento do Supremo sobre a ocultação de cadáver para a lavagem de dinheiro, um crime que também envolve o ato de ocultar.

Lei de Lavagem de Dinheiro criminaliza a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Segundo a criminalista, vários tribunais já tratam a lavagem de dinheiro como um crime permanente, o que, na sua visão, é equivocado. Ela vê perigo no precedente a ser estabelecido pelo STF, pois teme que qualquer pessoa possa ser presa em flagrante se estiver “na posse do bem ‘lavado’”.

Assim, alguém poderia ser preso em flagrante ao ser acusado, por exemplo, de comprar um apartamento com dinheiro “lavado”. Isso dificultaria a defesa.

Em precedente de 2017, a 1ª Turma do Supremo já reconheceu a lavagem de dinheiro como um crime permanente. No caso em questão, houve movimentações do dinheiro de origem ilegal em contas no exterior durante o período da ocultação.

Por outro lado, Helena Lobo da Costa acredita que não há como “transmutar” esse raciocínio para a ocultação de cadáver, pois, nesse crime, o autor não segue checando se o corpo continua escondido.

“Não tem nada que a gente possa equiparar por analogia a uma movimentação de conta bancária”, diz a professora. “São situações que têm as suas particularidades.”

Premissa insuperável?

Embora o STF já tenha tratado a ocultação de cadáver como um crime permanente ao reconhecer a repercussão geral da discussão, o constitucionalista Ademar Borges, professor da pós-graduação em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), explica que isso pode ser revisto no julgamento de mérito.

“Os ministros têm ampla liberdade, seja para revisar a premissa adotada no reconhecimento da repercussão geral, como também para eventualmente fixar uma tese geral ampla (de que os crimes permanentes estão fora do alcance da Lei da Anistia), mas deixar de aplicá-la ao caso concreto (por entender que o crime específico não é permanente)”, esclarece.

Apesar disso, Borges entende que a revisão da premissa já adotada pelos ministros “parece pouco provável nesse contexto específico”.

Diferentes visões

A premissa do STF encontra respaldo em outra corrente de interpretação. Guilherme de Souza Nucci, desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defende que o verbo “ocultar” diz respeito a condutas permanentes.

Para ele, enquanto o agente estiver escondendo algo, é possível “perpetuar a consumação” do delito.

A ocultação de cadáver significa esconder o corpo e ferir o “sentimento de respeito aos mortos”, pois a sociedade tem interesse em garantir a conduta ética de enterrar ou “dar um fim digno” aos mortos, segundo Nucci. Enquanto o corpo estiver oculto, não há enterro digno.

O ministro aposentado Celso de Mello, ex-presidente do Supremo, também já defendeu à ConJur que, “enquanto não se descobrir o local do sepultamento”, o crime continua “projetando-se no tempo, precisamente ante o seu caráter de permanência”.

ARE 1.501.674

O post Criminalistas contestam visão do STF sobre ocultação de cadáver como crime permanente apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Imóvel não deve ser alienado sem que haja intimação do devedor

A alienação de um bem imóvel só pode ocorrer se a intimação do devedor for feita pessoalmente. Com esse entendimento, o juiz Thiago Rangel Vinhas, da Vara Federal Cível e Criminal de Formosa (GO), anulou a execução de um imóvel por um banco.

No caso, uma mulher financiou um imóvel e deixou de pagar algumas parcelas por causa de dificuldades financeiras. O banco credor, então, iniciou o processo de execução do bem e o colocou em leilão. Em seguida, a devedora buscou a Justiça, alegando que não foi devidamente intimada sobre a penhora.

Questionado, o banco se defendeu dizendo que todo o procedimento foi feito de forma legal. O juiz destacou que a inadimplência do devedor autoriza a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, mas disse que devem ser observados os requisitos legais, como a intimação pessoal. E o ônus de provar que o procedimento foi feito devidamente, disse o magistrado, é da instituição financeira.

Como, no caso, o credor não anexou provas da intimação, o juiz classificou como verdadeiros os fatos narrados pela autora e anulou a execução extrajudicial.

“Após a consolidação da propriedade, o credor fiduciário deve promover a alienação do bem em leilão extrajudicial, no prazo de 30 dias, observado o disposto no § 2º-A do artigo 27 da Lei 9.514/1997, que exige comunicação prévia ao devedor sobre as datas, horários e locais dos leilões, inclusive por endereço eletrônico, com o intuito de garantir o exercício do direito de preferência”, escreveu o juiz.

“A inércia do banco, nesse ponto, atrai a incidência do artigo 373, II, do CPC, impondo-lhe o ônus da prova quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da parte autora. Assim, reputam-se verdadeiros os fatos narrados na exordial. A ausência de prova inequívoca da intimação pessoal invalida o procedimento de consolidação da propriedade fiduciária e, por conseguinte, todos os atos posteriores, inclusive os leilões eventualmente realizados.”

O advogado Daniel Pimenta Queiroz defendeu a autora da ação.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1002560-45.2024.4.01.3506

O post Imóvel não deve ser alienado sem que haja intimação do devedor apareceu primeiro em Consultor Jurídico.