Sustentação oral assíncrona: ameaça ao exercício da advocacia e ao devido processo legal

A questão levantada sobre a Resolução nº 581/2024 do CNJ, que faculta aos tribunais a adoção de sustentações orais de forma assíncrona, demanda uma crucial análise das práticas processuais por meio eletrônico e seus impactos na violação legal processual, na defesa dos jurisdicionados e nas prerrogativas dos advogados.

Pedro França/STJ

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Como profissional dedicado ao estudo das práticas processuais por meio eletrônico, que participou representando o Conselho Federal da OAB durante todo o trâmite do PL que foi convertido na Lei nº 11.419/2006, e, atuou no comitê de regulamentação do processo judicial eletrônico no CNJ, logo após a vigência da lei em março de 2007, apresento a seguinte análise crítica sobre a referida resolução.

Concentração excessiva de poder no Judiciário

O Poder Judiciário mantém domínio integral sobre os sistemas de processo eletrônico, desde sua infraestrutura até sua gestão. Esta centralização permite modificações em procedimentos sistêmicos sem a devida análise jurídica, frequentemente negligenciando potenciais conflitos com a legislação vigente e desrespeitando prerrogativas fundamentais da advocacia e dos demais protagonistas processuais. A prática revela uma preocupante priorização do conforto operacional do Judiciário em detrimento do devido processo legal.

Em 2001, tive a honra de ser aluno do professor Lawrence Lessig na Faculdade de Direito de Harvard (EUA). Durante suas aulas, Lessig apresentava com brilhantismo os fundamentos de sua tese, consolidada em sua obra Code and Other Laws of Cyberspace, publicada em 1999. Naquele período, suas ideias pareciam visionárias, mas hoje percebo, com clareza, como elas dialogam diretamente com questões que enfrentamos no Brasil, como a sanção da Resolução nº 591 do CNJ, que faculta a sustentação oral assíncrona nos tribunais.

Lessig defende, há 25 anos que, no mundo digital, o código — ou seja, a programação, as rotinas operacionais sistêmicas que regulam os sistemas e as plataformas — funciona como uma forma, às vezes mais preponderante do que a efetividade de uma lei preexistente. Essa ideia se manifesta de maneira concreta quando o CNJ, que detém controle pleno e isolado da infraestrutura tecnológica do sistema de justiça brasileiro, utiliza esse poder para modificar práticas processuais consolidadas, como a sustentação oral síncrona, garantida pela legislação brasileira. Este poder será potencializado no ano de 2025, após o lançamento da plataforma Codex, ocorrido no início do mês de dezembro de 2024, que será a plataforma única de práticas processuais por meio eletrônico, envolvendo todos os noventa e três tribunais brasileiros, à exceção apenas dos tribunais militares.

Ao facultar a sustentação oral assíncrona, o CNJ cria, na prática, uma nova modalidade de prática processual, em contradição a vários dispositivos legais preexistentes que asseguram a realização da sustentação oral presencial ou síncrona por videoconferência. Tal medida interfere diretamente na legislação vigente, nos direitos de defesa dos jurisdicionados e nas prerrogativas da advocacia e dos demais atores processuais.

O tema desta resolução do CNJ, por ser de caráter essencialmente processual e regulamentado por lei, não passou pelo crivo do processo legislativo, mas resulta de decisões administrativas e técnicas. Como se vê, revela o que Lessig preconizava: quem controla o código, controla o comportamento, e, neste caso, as formas possíveis das práticas processuais por meio eletrônico.

Essa concentração de poder evidencia um problema grave: o código e as rotinas sistêmicas que operacionalizam a prática processual eletrônica, torna-se uma norma autônoma, que desconsidera princípios constitucionais e processuais, como a necessidade da prática de sustentação síncrona, o contraditório e a ampla defesa.

Como advogado e defensor das garantias processuais, vejo nesta situação o exato dilema que meu mestre apontava: a necessidade de garantir que o código seja projetado pelo Judiciário, mas com governança, com transparência, ética e participação efetiva de todos os atores processuais nos debates prévios à vigência da resolução, a exemplo do que ocorreu recentemente com a audiência pública convocada pelo CNJ para discutir a regulamentação da inteligência artificial no Judiciário.

A solução para este impasse, à luz da visão de Lessig, está em exigir:

  • Governança colaborativa permanente no desenvolvimento de sistemas judiciais, para que todos os atores processuais, sobretudo a advocacia, participem das discussões das decisões tecnológicas e não apenas sejam comunicados pelo Judiciário, das medidas que afetam as suas prerrogativas pelo Diário Oficial.
  • Submissão do código e das mudanças das práticas processuais definidas em lei ao controle prévio de legalidade, evitando que normas operacionais sobreponham-se ao ordenamento jurídico.
  • Defesa enfática das prerrogativas advocatícias dos protagonistas processuais, com a atuação da OAB e de outras entidades no combate a medidas que desrespeitem o direito de defesa.

Como ex-aluno de Lawrence Lessig, enxergo na tese de The Code is Law um alerta poderoso para o que enfrentamos no Brasil neste momento de vigência da Resolução nº 591/2024 do CNJ. Não podemos permitir que as “leis das práticas processuais por meio eletrônico” do CNJ, transformem-se em um instrumento de exclusão, afetando direitos fundamentais em nome da conveniência técnica. O código, como dizia meu mestre, precisa servir à lei, e não substituí-la.

Devemos nos manter submissos apenas a Constituição e aos Códigos Processuais, mas não ao CPST – Código de Processo do Sistema dos Tribunais.

Delegação desmedida de poder normativo hierárquico inferior aos tribunais

A Lei nº 11.419/2006, em seu artigo 18, conferiu aos tribunais o poder de regulamentar o processo judicial eletrônico, ou seja: “Art. 18. Os órgãos do Poder Judiciário regulamentarão esta Lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências”. Logo após a vigência da lei em março de 2007, a OAB Federal questionou a constitucionalidade deste dispositivo (ADI nº 3.880) e foi rejeitada, resultando em um “cheque em branco” ao Judiciário para criar, seguidamente, normas regulatórias sobre práticas processuais sistêmicas recorrentes, que extrapolam os limites legais e conflitam regras processuais por meio de regulamentações internas, sem respeitar a hierarquia legislativa.

Perpetuação de práticas prejudiciais sistêmicas

A implementação de Resoluções como a nº 591/2024, possibilita a vigência imediata de procedimentos processuais que impactam diretamente o exercício da advocacia. A ausência de análise prévia criteriosa, somada à morosidade de um julgamento de ADI, favorece a consolidação de práticas nocivas aos advogados, promotores, procuradores, defensores públicos e jurisdicionados, estabelecendo novos hábitos administrativos em desconformidade com a legislação.

Comprometimento das prerrogativas profissionais

Estas regulamentações, frequentemente editadas sem a devida participação da classe advocatícia, resultam em violações a direitos essenciais dos advogados. As restrições à sustentação oral não apenas afetam nossas prerrogativas, mas também prejudicam os jurisdicionados e comprometem a paridade de armas no processo.

Principais violações e prejuízos identificados na resolução

Violação ao contraditório e ampla defesa (Art. 5º, LV da CF/88)

– A sustentação oral presencial permite interação direta com os julgadores
– O formato assíncrono elimina a possibilidade de perceber reações e adaptar argumentos
– Perde-se a capacidade de responder questionamentos em tempo real

Violação ao CPC/2015

– Art. 937 estabelece expressamente o direito à sustentação oral presencial
– Art. 7º garante paridade de tratamento entre as partes
– Art. 9º assegura o contraditório participativo
– Art. 10 veda decisões surpresa sem prévia oportunidade de manifestação

5.3. Prejuízos às Prerrogativas da Advocacia (Lei 8.906/94):

– Art. 7º, IX – direito de sustentação oral presencial
– Art. 7º, X – direito de usar a palavra pela ordem
– Compromete a essência da advocacia como função essencial à justiça
– A Lei nº 8.625, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, preceitua no artigo 41, inciso III, que é prerrogativa dos membros do Ministério Público, no exercício de suas funções, “ter vista dos autos após distribuição às Turmas ou Câmaras e intervir nas sessões de julgamento, para sustentação oral ou esclarecimento de matéria de fato”.

Impactos práticos

– Redução da qualidade da defesa técnica
– Impossibilidade de rastreamento se o magistrado assistiu a sustentação oral assíncrona do advogado
– Impossibilidade de adequar argumentos conforme a dinâmica do julgamento
– Prejuízo à construção dialética do convencimento dos julgadores
– Risco de decisões sem completa compreensão das questões debatidas

Violação à Resolução CNJ nº 314/2020

– Art. 3º estabelece que atos processuais que exijam presença física devem ser realizados por videoconferência
– A sustentação oral, mesmo que remota, deve preservar interação em tempo real

Aspectos constitucionais

– Ofensa ao devido processo legal (Art. 5º, LIV, CF/88)
– Violação ao princípio da publicidade dos atos processuais (Art. 93, IX, CF/88)
– Comprometimento da garantia de acesso à justiça (Art. 5º, XXXV, CF/88)

Jurisprudência relevante

O STF já se manifestou sobre a importância da sustentação oral como instrumento de defesa, destacando sua natureza essencialmente presencial e interativa (HC 84.193/RS)

Sugestões para solução do impasse

Consulta e participação

O CNJ deve ser instado pelos atores processuais, a garantir que qualquer regulamentação de práticas processuais por meio eletrônico passe por ampla consulta pública, para pleno exercício transparente da governança digital no Poder Judiciário. É inegável que se a tecnologia for bem utilizada teremos como finalidade o conforto operacional, porém é importante o CNJ estar atento que o foco das inovações tecnológicas deverá ser a Justiça e não apenas o conforto do Judiciário em detrimento das prerrogativas de outros protagonistas processuais.

Controle de legalidade

O STF deve ser sempre acionado como guardião da Constituição para revisar atos normativos que violem os limites legais.

Reforço institucional

A OAB e outras entidades de classe, devem intensificar o diálogo com o CNJ e os Tribunais para impedir a edição de normas que prejudiquem a advocacia, utilizando a via administrativa e judicial quando necessário.

Propostas para preservação das garantias processuais

– Manutenção da sustentação oral síncrona (presencial ou por videoconferência)
– Evitar que magistrados adotem despachos judiciais com advogados por telefone.
– Garantia de infraestrutura adequada para realização remota quando necessário.
– Preservação da interação em tempo real entre advogados, demais atores processuais e julgadores.
– Respeito às prerrogativas profissionais estabelecidas em lei.

A título de conclusão, defendo veementemente as inovações tecnológicas, porém com o exercício da governança. Este papel a ser exercido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é essencial para regulamentar práticas processuais realizadas por meio eletrônico, especialmente diante do avanço tecnológico que transforma o funcionamento do sistema judiciário. Essa regulação busca harmonizar as inovações digitais com a legislação vigente, prevenindo conflitos que possam comprometer a segurança jurídica e a previsibilidade dos processos.

Além disso, é fundamental garantir a defesa dos jurisdicionados, assegurando o pleno acesso à justiça e a observância dos direitos fundamentais. Nesse contexto, o CNJ também tem o papel de resguardar as prerrogativas da advocacia e dos protagonistas processuais, que são indispensáveis para o equilíbrio da relação processual, promovendo uma justiça eficiente, inclusiva e pautada pela legalidade.

Por estes motivos, é necessária a reavaliação da Resolução nº 581/2024 e acate o pedido de de suspensão da norma proposto pela OAB Federal, assegurando que a modernização tecnológica do Judiciário não se sobreponha às garantias processuais fundamentais e às prerrogativas de todos atores processuais.

A sustentação oral assíncrona representa um retrocesso inadmissível no exercício do direito de defesa e na própria essência da advocacia como função essencial à Justiça, sendo necessária alteração legislativa prévia, não podendo tal mudança ocorrer por mero ato administrativo do CNJ.

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Eficácia imediata da reforma trabalhista

A Lei 13.467/2017 alterou a Consolidação das Leis do Trabalho e as Leis 6.019/1974, 8.036/1990 e 8.212/1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho.

Propõe-se examinar a eficácia no tempo das normas de natureza material previstas naquele diploma legal.

A Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, tem início de vigência depois de 120 dias de sua publicação oficial (artigo 6º), ocorrida em 14/7/2017. Desse modo, entende-se que entrou em vigor em 11 de novembro de 2017.

Conforme o princípio da irretroatividade das leis, estas dispõem para o futuro, não atingindo fatos passados. O referido princípio tem como objetivo a garantia da segurança jurídica, em consonância com o artigo 5º, caput, da Constituição da República.

Nesse contexto, a Constituição de 1988, no artigo 5º, inciso XXXVI, estabelece que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, ficam resguardados: os atos consumados à época da lei anterior; os direitos já integrados definitivamente ao patrimônio jurídico do titular antes da vigência da nova disposição; as questões definitivamente decididas pelos tribunais.

Ao se analisar a eficácia no tempo da norma de Direito do Trabalho, deve-se destacar que a relação de emprego tem duração continuada, ou seja, o contrato de trabalho é negócio jurídico de trato sucessivo.

A teoria do efeito imediato da norma jurídica é a que apresenta maior adequação, inclusive no Direito do Trabalho [1].

Entende-se que a nova disposição normativa tem aplicação imediata, de modo que incide sobre a relação de emprego em curso, regulando apenas os fatos ocorridos daí para frente, sem atingir eventos anteriores já consumados. Se a norma de Direito do Trabalho fosse aplicada aos fatos anteriores à sua vigência, o seu efeito seria retroativo, e não imediato.

Obviamente, o contrato de trabalho já extinto não é alcançado pela norma jurídica posterior à cessação do vínculo, mas a relação de emprego iniciada após a nova disposição normativa é por esta regulada.

Foto: Portal Brasil/Divulgação

O artigo 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro estabelece que a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

Trata-se do mesmo critério seguido pelo artigo 912 da CLT, ao prever que os dispositivos de caráter imperativo terão aplicação imediata às relações iniciadas, mas não consumadas, antes da vigência da Consolidação das Leis do Trabalho.

O direito adquirido é aquele que integra o patrimônio jurídico da pessoa. O direito é considerado adquirido no momento em que o titular preenche os seus requisitos, podendo, assim, exercê-lo quando quiser. Logo, não se exige o seu efetivo exercício. Antes do cumprimento dos requisitos para a sua aquisição, tem-se a mera expectativa de direito.

Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não há direito adquirido a regime jurídico, ou seja, de permanecer em certo regime jurídico (formado por normas jurídicas, em regra genéricas e abstratas, que compõem o ordenamento jurídico ou o Direito objetivo), mesmo depois da sua modificação legal [2].

Frise-se que as modificações decorrentes da Lei 13.467/2017 não tratam de alteração contratual imposta pelo empregador ou oriunda da vontade das partes, pois decorrem de nova determinação legislativa, o que, a rigor, afasta a incidência dos requisitos do artigo 468 da CLT quanto ao tema em estudo.

Irretroatividade

Mesmo que a nova lei seja de ordem pública, incide o princípio da irretroatividade. Desse modo, a garantia da segurança jurídica, por meio do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, deve ser observada inclusive em relação à nova disposição jurídica de ordem pública [3].

Se a Lei 13.467/2017 fosse aplicada aos fatos anteriores à sua vigência, o seu efeito seria retroativo, o que é vedado pelo artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição de 1988. Portanto, a nova disposição normativa deve incidir de forma imediata, mas não retroativa.

No caso da relação jurídica de emprego, como a sua execução se prolonga no tempo, a nova lei deve incidir de forma imediata, ou seja, quanto aos contratos em curso, aplicando-se aos fatos ocorridos posteriormente à modificação normativa, mas sem prejudicar as situações já consumadas.

A posição defendida também é confirmada pelo artigo 2.035, caput, do Código Civil de 2002, ao prever que a validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor desse Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no artigo 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência desse Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

O artigo 2º da Medida Provisória 808/2017 estabelecia que o disposto na Lei 13.467/2017 aplicava-se, na integralidade, aos contratos de trabalho vigentes. Entretanto, a Medida Provisória 808/2017 perdeu eficácia em 24 de abril de 2018, desde a edição, por não ter sido convertida em lei (artigo 62, § 3º, da Constituição da República).

Com isso, chegou a ganhar força o entendimento de que as previsões decorrentes da Lei 13.467/2017, que estabeleçam condições de trabalho menos benéficas ao empregado, ou seja, em patamar inferior ao anteriormente estabelecido, apenas seriam aplicáveis aos contratos de trabalho pactuados a partir da vigência do referido diploma legal, em respeito ao ato jurídico perfeito e ao direito adquirido (artigos. 5º, inciso XXXV, 7º, caput, da Constituição da República).

Ainda assim, no âmbito administrativo, notadamente para fins de fiscalização trabalhista, de acordo com o Parecer 00248/2018/CONJUR-MTB/CGU/AGU, de 14 de maio de 2018, aprovado pelo Ministro do Trabalho (Diário Oficial da União de 15.05.2018), “entende-se que mesmo a perda de eficácia do artigo 2º da MP 808/2017, a qual estabelecia de forma explícita, apenas a título de esclarecimento, a aplicabilidade imediata da Lei 13.467/2017 a todos os contratos de trabalho vigentes, não modifica o fato de que esta referida lei é aplicável de forma geral, abrangente e imediata a todos os contratos de trabalho regidos pela CLT (Decreto-lei nº 5.542, de 1º de maio de 1943), inclusive, portanto, àqueles iniciados antes da vigência da referida lei e que continuaram em vigor após 11/11/2017, quando passou a ser aplicável a Lei 13.467/2017”.

Apesar do exposto, a eficácia imediata da Lei 13.467/2017 deveria respeitar a norma constitucional que proíbe a redução salarial. Efetivamente, conforme o artigo 7º, inciso VI, da Constituição da República, os trabalhadores urbanos e rurais têm direito à irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo. Nesse contexto, cabe lembrar a atual previsão da Súmula 191 do TST, notadamente em seu item III [4].

A respeito do tema, o Tribunal Superior do Trabalho fixou a seguinte tese para o Incidente de Recursos Repetitivos 23: “A Lei nº 13.467/2017 possui aplicação imediata aos contratos de trabalho em curso, passando a regular os direitos decorrentes de lei cujos fatos geradores tenham se efetivado a partir de sua vigência” (TST, Pleno, IncJulgRREmbRep-528-80.2018.5.14.0004, rel. min. Aloysio Corrêa da Veiga, j. 25/11/2024).

Com isso, decidiu-se no sentido da limitação da condenação ao pagamento de horas in itinere [5] e do intervalo do artigo 384 da CLT [6] a 10/11/2017, antes da vigência da Lei 13.467/2017 (TST, Pleno, E-RR-528-80.2018.5.14.0004 e RR-20817-51.2021.5.04.0022, rel. min. Aloysio Corrêa da Veiga, j. 25/11/2024).

Cabe, assim, acompanhar os desdobramentos do referido entendimento, notadamente no âmbito do Supremo Tribunal Federal.


[1] GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 39-40.

[2] STF, Pleno, RE 575.089/RS, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 24.10.2008.

[3] STF, Pleno, ADI 493/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 04.09.1992.

[4] “Adicional de periculosidade. Incidência. Base de cálculo. […] III – A alteração da base de cálculo do adicional de periculosidade do eletricitário promovida pela Lei nº 12.740/2012 atinge somente contrato de trabalho firmado a partir de sua vigência, de modo que, nesse caso, o cálculo será realizado exclusivamente sobre o salário básico, conforme determina o § 1º do art. 193 da CLT”.

[5] O art. 58, § 2º, da CLT, com redação dada pela Lei 13.467/2017, passou a prever que o tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.

[6] O Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese de repercussão geral (Tema 528): “O art. 384 da CLT, em relação ao período anterior à edição da Lei nº 13.467/2017, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, aplicando-se a todas as mulheres trabalhadoras” (STF, Pleno, RE 658.312/SC, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 06.12.2021).

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Sobre a crise da legalidade penal e das ciências penalísticas

Uma justiça penal sem verdade e sem igualdade

Quero fazer uma reflexão de fundo sobre o estado do nosso direito penal e processual, assim como sobre nossos estudos penalísticos e processualísticos. Não sou penalista. Por isso, meu ponto de vista será externo ao nosso sistema penal e terá por objeto duas graves involuções: a crise da legalidade penal e o crescimento da desigualdade perante a lei.

A primeira involução consiste no colapso da legalidade penal e, consequentemente, da verdade processual. Trata-se de uma crise gerada pela inflação legislativa, no plano quantitativo, e pela disfunção da linguagem legal, no plano qualitativo. Estima-se que, em nosso ordenamento, existam 35 mil tipos penais e milhares de leis penais, a ponto da Corte Constitucional ter sido constrangida, na célebre decisão n.º 364 de 1988, a admitir a escusabilidade por ignorância da lei quando esta, como frequentemente ocorre, for inevitável.

A violação da linguagem penal manifesta-se, por sua vez, em uma anti-linguagem burocrática, presente, sobretudo, nos decretos legislativos, elaborados nos gabinetes administrativos, e geralmente compostos por artigos e parágrafos longos, com palavras obscuras e ambíguas e, principalmente, com inúmeras remissões a artigos e parágrafos de outras leis, criando labirintos normativos indissolúveis e incompreensíveis.

É evidente que esse colapso da legalidade penal equivale ao fracasso dos próprios pressupostos da verdade processual e, com isso, da legitimação política do Poder Judiciário: equivale ao colapso da verificabilidade e falsificabilidade em abstrato, ou seja, dos pressupostos da verdade jurídica, bem como da verificação e falsificação em concreto, ou seja, dos fundamentos da verdade factual. O resultado desse caos é o crescimento do arbítrio judicial e a perda da legitimação da jurisdição.

A segunda involução refere-se à crescente desigualdade dos cidadãos perante a lei penal. Há mais de 30 anos, vem-se desenvolvendo um direito penal da desigualdade: um direito penal mínimo e brando para os poderosos, destinado a garantir sua impunidade; e um direito penal máximo e inflexível para os pobres, acompanhado, por vezes, de uma ostentação de desumanidade, com o objetivo de obter consenso.

Recordemos as inúmeras leis em benefício de Silvio Berlusconi, um verdadeiro corpus iuris ad personam, que o governo atual, aliás, complementou com diversas normas promulgadas ou prometidas: a Lei nº 199 de 30/12/2022, que excluiu do regime de prisão rígida previsto pelo artigo 4-bis apenas os condenados por peculato, concussão e corrupção; a abolição do crime de abuso de autoridade; a limitação das interceptações; e os recorrentes esforços para limitar a independência dos juízes e, sobretudo, do Ministério Público.

Simultaneamente, deu-se vida a um direito penal desigual e desumano, informado pela lógica do inimigo, invariavelmente identificado com os sujeitos mais vulneráveis: em primeiro lugar, os migrantes, que personificam os inimigos ideais, apontados pela demagogia populista e racista como pessoas inferiores e/ou perigosas; em segundo lugar, os detentos, grande parte dos quais submetidos a dois regimes de prisão rígida, ambos, a meu ver, ilegítimos; e, em terceiro lugar, os indivíduos perigosos ou suspeitos, punidos não pelo que fizeram, mas pelo que são — migrantes, mendigos, prostitutas, dependentes químicos, pessoas em situação de rua — por meio de um crescente arsenal de medidas pessoais de prevenção.

Crise da legalidade e ciência penalística italiana

Como a cultura penalística e processualística respondeu à primeira dessas duas involuções, ou seja, à destruição da legalidade? Tenho a impressão de que, diante do “direito penal que muda”, como sugere o título de uma coleção de estudos penalísticos, e do “direito penal em transformação”, como aponta o título de uma conhecida monografia, grande parte da cultura penalística — obviamente com algumas louváveis exceções — em vez de criticar esse desvio e propor as garantias necessárias para impedi-lo, adaptou-se a ela, e por vezes, abandonou os princípios, promovendo uma espécie de regressão ao direito penal pré-iluminista.

A resposta à crise de uma cultura garantista deveria ter consistido na proposta de uma refundação da legalidade penal. Assim como, há quatro séculos, Thomas Hobbes, diante da incerteza e do arbítrio do direito premoderno, provocados pela jurisprudência caótica e desordenada dos juízes, opôs a autoridade da lei, isto é, a reserva de lei em matéria penal, hoje, diante da total incerteza e arbítrio provocados por uma legislação ainda mais caótica e desordenada, o único remédio é a refundação e o fortalecimento da legalidade.

Esse reforço, a meu ver, só pode ocorrer por meio da transformação da reserva de lei em uma reserva de código, estabelecida em nível constitucional — todas as normas e, temas de crimes, processos e penas devem estar nos códigos; nenhuma fora deles — vinculando o legislador à sistematicidade, coerência e capacidade de conhecimento do direito penal.

Somente assim é possível restaurar a sujeição dos juízes à lei e o caráter cognitivo do juízo, baseado justamente no acertamento da verdade processual. Obviamente, essa verdade não é uma verdade absoluta ou objetiva, já que apenas as teses da lógica e da matemática podem sê-lo. Trata-se, antes, de uma verdade relativa.

Precisamente, trata-se de uma verdade opinável em direito, dada a discricionariedade interpretativa que sempre acompanha o acertamento da verdade jurídica, e probabilística em fato, já que a verdade factual não pode ser demonstrada, mas apenas sustentada por uma pluralidade de confirmações e, portanto, exige, como um frágil, mas necessário substituto de uma impossível certeza objetiva, ao menos, a certeza subjetiva, ou seja, o livre convencimento do juiz.

A nossa cultura jurídica, no entanto, aceitou o caos normativo em que se transformou nosso direito penal como se fosse um fenômeno natural. Assim, renunciou, tanto à crítica de seu distanciamento dos princípios, quanto ao planejamento de garantias adequadas para tornar possível um grau aceitável de sujeição dos juízes à lei e um grau plausível de verdade processual. Respondeu a ambas as crises — a da verdade jurídica e a da verdade factual — com uma regressão epistemológica ao direito pré-moderno.

No plano da verdade jurídica e do direito penal substancial, abandonou-se a concepção cognoscitivista da jurisdição, substituída por uma concepção criacionista. O princípio auctoritas non veritas facit legem — que, se a lei é clara e inequívoca, tem como corolário o princípio veritas non auctoritas facit iudicium — foi transformado, graças também às teses cada vez mais difundidas da conexão objetiva entre direito e moral, nos princípios opostos: veritas facit legem auctoritas facit iudicium, ou seja, na ideia de que é a autoridade do juiz que cria o direito, ontologicamente fundado em sua justiça pelo menos tolerável.

Por trás dessa operação está a ideia arcaica e ilusória de uma verdade empírica objetiva, como aquela expressa na imagem do juiz “boca da lei”. Karl Popper distingue entre “verificacionistas iludidos” e “verificacionistas desiludidos”: os primeiros acreditam na possibilidade de alcançar uma verdade empírica objetiva ou absoluta; os segundos, diante da impossibilidade de alcançar essa verdade, acabam por cair no irracionalismo e no ceticismo, ou seja, na ideia de que nenhuma tese empírica é verdadeiramente sustentável.

A mesma distinção pode ser aplicada à verdade processual: os verificacionistas ou iluministas iludidos são aqueles que, tendo, como os iluministas iludidos, uma ideia da verdade processual como verdade absoluta ou objetiva e reconhecendo que tal verdade não é alcançável, caem no criacionismo, ou seja, na concepção da interpretação como a criação de um novo direito. A “interpretação criativa” é uma contradição em termos: onde há interpretação não há criação, onde há criação não há interpretação.

Por outro lado, na esfera da verdade factual e do direito processual penal, vem-se consolidando, entre alguns estudiosos, uma estranha epistemologia baseada em standards probatóriosStandard probatório é, em minha opinião, uma noção inconsistente: quer se entenda tais padrões como padrões objetivos, ou seja, retirados da livre apreciação do juiz, ou como padrões em abstrato, ou seja, independentes da singularidade do caso.

Em todos os casos, são padrões dotados de um valor probatório vinculante, cuja adoção equivale a uma regressão ao sistema de provas legais. Por mais insensata e até então minoritária, essa orientação corre o risco de ser hoje creditada à atração exercida pela aplicação da inteligência artificial à jurisdição, que, por trás da ideia de maior objetividade, imparcialidade e igualdade, ou seja, de uma justiça exata ao invés de uma justiça justa, está inevitavelmente destinada a produzir a homologação de decisões, o rebaixamento das garantias da prova e a estabilização das conotações desiguais e classistas da justiça derivadas dos precedentes judiciais.

Acrescente-se a isso a quebra do processo penal provocada pelas verdades alegadas nos chamados ritos alternativos. Esses ritos equivalem, na realidade, à negação da prova, substituída por uma troca desigual e inquisitorial entre a confissão e a redução da pena, em que a acusação tem a vantagem e, enquanto os poderosos, graças às suas defesas caras, só aceitam a pena negociada se forem culpados, os pobres são forçados a aceitá-la, embora inocentes, como um mal menor, em comparação com a pena maior que sofreriam na ausência de um advogado de defesa, durante a instrução e o julgamento.

De acordo com a bela reportagem de hoje de Malena Pastor, nos Estados Unidos, 98% das condenações resultam de acordos judiciais e apenas 2% resultam de julgamentos. Em Buenos Aires, a porcentagem de condenações resultantes de acordos judiciais é de 83%. Na Itália, graças à obrigatoriedade da ação penal, que não permite a negociação de acusações – e, não surpreendentemente, contestada pelos defensores dos privilégios – essa porcentagem é de apenas 30%.

Direito penal da desigualdade e ciência penalística italiana. Sobre o papel da cultura jurídica

Não menos grave é a involução desigual do nosso sistema punitivo, que se manifesta na legislação contra os migrantes, no aumento desumano das condições carcerárias e no desenvolvimento de um direito penal preventivo, que penaliza não o que se fez, mas o que se é. Essas involuções são acompanhadas pela adoção de um novo método legislativo: o desenvolvimento, a partir de uma lei-base, de uma série ininterrupta de normas — geralmente decretos-lei — que, gradualmente, tem agravado e tornado mais arbitrárias e desumanas as restrições aos direitos dos migrantes, as condições de vida das pessoas privadas de liberdade e os abusos na adoção de medidas preventivas.

No âmbito da imigração, a lei-base foi a lei Turco-Napolitano de 1998, que introduziu uma primeira e limitada “detenção administrativa” dos migrantes, posteriormente agravada pela lei Bossi-Fini de 2002 e atribuída à competência de juízes de paz, em vez de magistrados profissionais, por um decreto-lei de 2004.

Seguiram-se a Lei nº 94 de 2009, que introduziu o crime de entrada clandestina, conferindo ao imigrante irregular o status de “pessoa ilegal”; o Decreto-Lei Minniti de 2017, que ampliou as hipóteses de detenção administrativa e reduziu, ainda mais, as garantias no âmbito do asilo; os Decretos-Lei Salvini, que estenderam a duração da detenção administrativa para 18 meses, suprimiram a permissão de residência por motivos humanitários e ordenaram o fechamento de portos às embarcações de ONGs que resgatam migrantes naufragados no mar; e, finalmente, os Decretos Meloni-Piantedosi de 2023, destinados a impedir ou dificultar os resgates no mar.

No âmbito carcerário, o desenvolvimento de um direito punitivo desumano foi confiado ao agravamento progressivo de dois regimes de prisão rígida: o previsto no artigo 4-bis da Lei Penitenciária de 1991, reiteradamente endurecido, conhecido como “ostativo” (hostil) porque impede a concessão de permissões e benefícios de pena sem a “colaboração com a justiça”; e o regime previsto no artigo 41-bis, introduzido como medida de gestão prisional pela Lei Gozzini de 1986, mas transformado, por meio de uma longa série de leis e decretos-lei subsequentes, em uma “pena dentro da pena”, inacreditavelmente ordenada pelo ministro da Justiça, em flagrante violação à separação dos poderes e aos artigos 13 e 25 da Constituição.

O direito penal da desigualdade — como o direito penal não do fato, conforme exige o artigo 25 da Constituição, mas do autor — finalmente triunfou com o desenvolvimento de medidas preventivas: um conjunto de medidas chamadas administrativas (como a “detenção administrativa” de migrantes), para ocultar seu conflito com os princípios básicos do Direito Penal, como a legalidade e a retributividade.

Essas medidas incluem a vigilância especial, o afastamento obrigatório e o confinamento, aplicados a pessoas consideradas “perigosas” ou “suspeitas”, sem maiores especificações: os “ociosos, vagabundos, mendigos e outras pessoas suspeitas”, de acordo com a lei piemontesa de 1839, que os introduziu pela primeira vez; “as classes perigosas da sociedade”, de acordo com a Lei de Consolidação Zanardelli de 1889; os “inaptos para o trabalho sem meios de subsistência” e as pessoas “suspeitas” ou “perigosas para a ordem pública”, ou aquelas que realizam atividades contra os poderes do Estado, ou seja, antifascistas, de acordo com o texto de segurança pública Rocco de 1931; novamente, os “ociosos, vagabundos, aqueles envolvidos em tráfico ilícito” e aqueles que “habitualmente realizam atividades contrárias à moral pública e aos bons costumes”, de acordo com a lei republicana de dezembro de 1956, ampliada repetidamente nos anos seguintes, legitimada com a inclusão, entre seus destinatários, daqueles suspeitos de atividades mafiosas, e reformulada com a emissão, em 2011, de um verdadeiro código de medidas de prevenção.

A doutrina jurídica ignorou ou, quando muito, ocupou-se apenas marginalmente desse direito penal da desigualdade, que é, em sua maior parte, contrário à letra ou, pelo menos, ao espírito da Constituição. O debate público, por outro lado, voltou a sua atenção, exclusivamente, aos processos contra os poderosos, para os quais o respeito às garantias é legitimamente reivindicado. Todavia, considero um insulto à razão chamar de “garantismo” este garantismo da desigualdade e do privilégio, que ignora os horrores da prisão rigorosa, a vergonha das leis contra os migrantes e a incivilidade das medidas de prevenção.

E considero uma abdicação científica e cívica da razão a teorização do papel criativo da jurisdição e, por outro lado, a renúncia à crítica das violações dos princípios de igualdade, legalidade e retributividade, que formam a alma do garantismo e do constitucionalismo penal.

Concluo, portanto, levantando uma questão fundamental, que diz respeito ao papel e ao estatuto da ciência penalística: se ela deve apenas interpretar o direito vigente, ou, também, criticar sua ilegitimidade jurídica ou política por violação dos princípios teóricos — em grande parte constitucionalizados — do garantismo penal e processual.

Se ela deve ser um saber puramente técnico, ou deve também se questionar sobre os fundamentos de legitimação da justiça penal, com o auxílio da filosofia política, e sobre as razões da distância entre princípios e práticas punitivas, com o auxílio da sociologia do direito. A reflexão sobre os fundamentos foi a base da penalística inaugurada na Itália por Cesare Beccaria e continuada por Gaetano Filangieri, Mario Pagano, Gian Domenico Romagnosi e Francesco Carrara.

No entanto, no início do século passado, houve uma guinada, promovida pelo método técnico-jurídico de Arturo Rocco e Vincenzo Manzini, que defendia a autonomia da ciência penal em relação à filosofia e à sociologia. Mais tarde, nas décadas de 1970 e 1980, redescobriu-se a Constituição, e o garantismo foi retomado como um projeto civilizatório de refundação democrática da justiça penal.

Hoje, tenho a impressão de que se está reafirmando o antigo método técnico-jurídico. A questão que devemos voltar a debater é aquela que sempre dividiu a cultura penalística: se esta deve consistir na mera descrição técnica do direito penal vigente, ou se, a essa descrição, deve acrescentar-se, graças à clara separação entre justiça e direito gerada pelo positivismo jurídico, aquilo que chamarei de “espaço Beccaria” da teoria do garantismo, ou seja, a elaboração de princípios racionais de legitimação do direito penal como guias à crítica do direito existente e à projeção do direito futuro.

*tradução de Ana Cláudia Pinho, doutora em Direito. Professora da UFPA (Universidade Federal do Pará). Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Garantismo em Movimento”. Promotora de Justiça do MP-PA.

**texto correspondente à intervenção de Luigi Ferrajoli em uma mesa redonda sobre Justiça Penal, no congresso internacional La verità nel processo penale (Roma-Bologna, 18 a 22 de janeiro de 2024).

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Jogos de azar: a aposta na regulação das promessas sem futuro e o paradoxo da transparência

As reflexões aqui presentes visam desmistificar a pseudoidentidade e a consequente propriedade de igual prevenção e tratamento entre o fenômeno das bets e os contratos do consumidor. Embora seja certo que de fato geram consequências similares às do fenômeno social do superendividamento.

A Teoria Contratual, graças à plasticidade, atravessou séculos se mantendo íntegra quanto aos seus pressupostos, apesar das concessões feitas aos conflitos sociais [1]. No campo do Direito do Consumidor, essa dimensão de plasticidade ganha amplitude na perspectiva de enfrentar os desafios dos conflitos plurais, difusos e imprevisíveis. Em consonância com a força do microssistema [2], incide sobre novas relações contratuais.

As bets são as casas de apostas esportivas online de quota fixa, que estão em processo de regulamentação no país. A oferta de sites de apostas esportivas é liberada no Brasil desde 2018, no Governo Temer, segundo a Lei Federal nº 13.756, que autorizou as apostas esportivas de quota fixa [3], criando um marco legal que as diferencia das atividades de jogo de azar não regulamentadas, que são, de fato, contravenções penais de acordo com o artigo 50 da Lei de Contravenções Penais.

Em verdade, o que temos é um veículo de transferência direta de valores que assume, por força da relação imediata com a necessidade de contorno jurídico, uma roupagem contratual. Noutra dimensão de análise, a essa roupagem contratual adiciona-se a presunção de vulnerabilidade de um dos polos da relação imediata, que situa o “apostador” mais próximo à condição de consumidor, em razão da iniquidade.

No que tange às construções normativas sobre a matéria, registramos: em 29 de dezembro de 2023, foi editada a Lei Federal nº 14.790. Apesar de ficar conhecida como a “Lei das Bets”, a legislação ampliou a possibilidade de jogos de apostas para além das esportivas e estabeleceu critérios de tributação, requisitos para exploração do serviço e destinação das receitas arrecadadas, determinando também as sanções em caso de descumprimentos e definindo as competências do Ministério da Fazenda na regulamentação, na autorização, no monitoramento e na fiscalização das atividades relacionadas ao mercado de apostas de quota fixa.

Posteriormente, a Portaria nº 1.330/23 do Ministério da Fazenda “dispõe sobre as condições gerais para exploração comercial da modalidade lotérica de aposta de quota fixa no território nacional” e estabelece critérios técnicos para jogos de apostas online, nos quais os resultados são aleatórios, criados a partir de um gerador randômico de números, de símbolos, de figuras ou de objetos definido no sistema de regras, como o “Jackpot”.

A referida regulamentação ficou conhecida como “Portaria do Jogo Responsável” e define medidas como: limites de tempo e de perda por apostador e elaboração de um cadastro para proteger os jogadores, incluindo períodos de pausa e autoexclusão. Em relação às ações de comunicação, de publicidade e de marketing, a portaria estabelece regras como, por exemplo, a transferência para as próprias empresas do setor a responsabilidade de “conscientizar” os apostadores sobre a importância do “jogo responsável”.

Em linha de continuidade com a “Portaria do Jogo Responsável”, cumpre destacar duas subsequentes portarias do Ministério da Fazenda: Em agosto, a Portaria nº 1.231/24, que estabelece “regras e diretrizes para o jogo responsável e para as ações de comunicação, de publicidade e propaganda e de marketing”, além de regulamentar “os direitos e deveres de apostadores e de agentes operadores”. Em setembro, a Portaria nº 1.475/24, que dispõe sobre as condições e os prazos de adequação para as pessoas jurídicas (“operadoras”) que exploram a modalidade lotérica de apostas de quota. E regula a permissão para operação legal das plataformas no Brasil, as “bets autorizadas”. As que não se adequarem às novas exigências da regulamentação e as que não solicitarem permissão ao Ministério da Fazenda até 17 de setembro de 2024 serão proibidas de operar no Brasil (artigo 2º, §1º) e terão o prazo até o dia 10 de outubro para permitir o resgate dos valores depositados pelos apostadores (artigo 2º, §2º).

Para as autorizadas, então, cumpre a observância do disposto na primeira Portaria, de nº 1.231/24, que considera jogo responsável (artigo 2º, I) o que está sujeito ao conjunto de regras – no contexto da modalidade lotérica de aposta de quota fixa – que visa garantir duas linhas principiológicas aparentemente paradoxais: a) exploração econômica, promoção e publicidade saudável e socialmente responsável dessa modalidade (artigo 2º, I, a); e b) prevenção e mitigação de malefícios individuais ou coletivos decorrentes da atividade (artigo 2º, I, b), cujas consequências afetam negativamente a saúde física e mental do apostador em virtude de dependência, compulsão, mania ou qualquer transtorno associado ao jogo ou apostas e violam direitos do consumidor, especialmente os associados a problemas financeiros, de endividamento e de superendividamento.

A primeira portaria estabelece deveres do “Agente Operador de Apostas para Garantia do Jogo Responsável”; destaca-se, mormente, o dever de informação (artigo 4º), isto é, a transparência a todo momento quanto aos riscos de dependência, de transtornos do jogo patológico e de perda dos valores das apostas (artigo 4º, I). Além disso, destaca-se o dever de fornecer alguma medida do risco em que o apostador incorre, proporcionando-lhe recursos para optar ou não por determinado jogo, ao informar o “retorno teórico ao jogador” de cada jogo online disponibilizado no sistema de apostas (artigo 4º, II).

Importante atentar ao que a portaria apresenta como este “retorno teórico ao jogador” (RTP, como em theoretical return to player), que deveria ser informado. RTP seria o

“percentual de ganho programado pelo agente operador de apostas para o sistema de apostas, em relação ao valor total de apostas feitas em certa quantidade de eventos ou período, e que serve de medida de retorno agregado e teórico do sistema de apostas, não podendo ser interpretado como expectativa de ganho individual do apostador por aposta.” (Artigo 2º, XX)

A regulação, então, aposta na transparência e na informação como meios de prevenção e mitigação dos malefícios individuais ou coletivos já causados pela própria atividade cuja exploração econômica deseja seguir promovendo e publicizando de maneira “saudável e socialmente responsável”. O paralelismo acaba por descortinar o paradoxo em que mira a produção legislativa: da impossibilidade de coexistência de uma “informação clara e precisa” e oposição de deveres da boa-fé com o modelo dos jogos de azar/Bets.

É preciso garantir que o consumidor compreenda o que está sendo informado

O caso é que esse paradoxo abre outra discussão, qual seja, a da natureza jurídica dessa relação. É certo que o “ganho” e a “promessa de ganho” configuram algo de natureza distinta do crédito, tal como a vantagem auferida pelas plataformas é diversa de juros, o que complexifica a discussão sobre a responsabilidade. Isto é, o conceito de crédito pode ser concebido próximo ao de responsabilidade, seja para credor ou devedor (contrato). É o caso do crédito tomado para produção de outros produtos e serviços que, adiante, cobra os juros. É diverso, também, dos serviços que envolvem álea como seguros e planos de saúde, em que há um bem “segurança/tranquilidade” sendo preservado, serviços cuja viabilidade estaria na diluição da álea em um modelo de mútuo.

O fenômeno das bets gerou malefícios individuais e coletivos tão logo se instaurou, criando alarmante quadro crítico. Em recente decisão, o ministro Luiz Fux ressalta a urgência:

“o atual cenário de evidente proteção insuficiente, com efeitos imediatos deletérios, sobretudo em crianças, adolescentes e nos orçamentos familiares de beneficiários de programas assistenciais, configura manifesto periculum in mora, que deve ser afastado de imediato, sob pena de a inaplicação de normas já editadas, até janeiro de 2025, agravar o já crítico quadro atual” (STF, ADI 7.721 MC / DF, ministro Luiz Fux, j. 12/11/2024).

Em referida cautelar, o ministro determinou a aplicação imediata de duas medidas previstas na Portaria 1.231/2024 do Ministério da Fazenda: medidas de fiscalização e controle voltadas para crianças e adolescentes e medidas imediatas de proteção especial que impeçam a participação nas apostas de quota fixa com recursos provenientes de programas sociais e assistenciais. A despeito da limitação à aplicação imediata de parte da portaria, reconheceu “os efeitos imediatos deletérios” que vêm ocorrendo por conta da proteção insuficiente.

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O caso é que, na melhor das hipóteses, a portaria tornaria as apostas menos obscuras, fornecendo outra resposta insuficiente para uma atividade que tem apresentado consequências fisiológicas no corpo social de magnitude semelhante às de saúde pública – a exemplo das políticas públicas relativas ao cigarro e ao álcool. Estudos apontam para o desenvolvimento de condições complementares como a ludopatia e, inclusive, o neurodano [4].

Ludopatia, condição médica caracterizada pelo desejo incontrolável de continuar jogando, reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. No Brasil, CID 10-Z72.6 (mania de jogo e apostas) e CID 10-F63.0 (jogo patológico). E o neurodano, em absoluta complementaridade, consiste na lesão à capacidade de manter a atividade mental protegida hígida, gerando alto grau de dependência do apostador. Assim, paulatinamente, retira do apostador a possibilidade de tomada de decisões racionais capazes de controlar sua integridade mental e identidade digital [5].

O paradoxo da transparência está justamente na tentativa de dar “informação clara e precisa” a um apostador que tem a visão turva por “efeitos imediatos deletérios”. E, ainda que estivesse plenamente livre desses efeitos e capaz, “o fornecedor somente se desincumbe de forma satisfatória do dever de informar quando os dados necessários à tomada de decisão pelo consumidor são por ele cognoscíveis” (TJ-RS, ACív nº 70044971505, des. Túlio de Oliveira Martins, j. 5/10/2011).

Isto é, não basta simplesmente disponibilizar a informação, mas garantir que o consumidor efetivamente compreenda o que está sendo informado [7]. Logo, as medidas como as de obrigatoriedade de informação pelas operadoras sobre o “retorno teórico ao jogador” (RTP) não são suficientes para que um apostador possa compreender o grau de risco que aquele jogo pode impingir-lhe.

O RTP representa, em média – na medida em que é reforçado com o tempo e o número de jogadas (fatores que também podem ser modulados pelas casas de aposta) –, a fração/parte da aposta que “retorna” ao apostador, considerando uma perspectiva de retorno a longo prazo para cada tipo de jogo específico. O RTP é calculado pela razão entre o valor total ganho por jogadores e o valor total apostado por eles após várias jogadas, refletindo, portanto, uma perspectiva de longo prazo.

Suponhamos que o percentual de RTP de um jogo seja 100%. Então, a cada vez que um jogador aposta R$ 30, é esperado que receba de volta esses R$ 30 Nesse exemplo hipotético, a operadora de apostas de um jogo cujo RTP for igual a 100% tornará o jogo infinito; se for superior a 100%, a longo prazo, perderá dinheiro.

Como não se pode esperar que uma operadora que explora uma atividade com fins econômicos perca dinheiro, o RTP dos jogos que administra será necessariamente inferior a 100%. Caso contrário, não obteria margem de lucro necessária para viabilizar a exploração da atividade, e nosso problema com “efeitos imediatos deletérios” tomaria ares caritativos e de ludicidade. Em um exemplo mais “realista”, um jogo com RTP = 80% significa que a operadora reserva para si uma margem de lucro, a longo prazo, equivalente a 20% de todo o dinheiro apostado.

Retorno agregado não significa ganho por aposta, sequer qualquer retorno. Como diz o nome, jogos de azar lidam com infortúnios. “Retorno teórico ao jogador”, portanto, não mantém qualquer identidade com o princípio da boa-fé objetiva. Como a própria portaria estabelece, o RTP “serve de medida de retorno agregado e teórico do sistema de apostas, não podendo ser interpretado como expectativa de ganho individual do apostador por aposta” (artigo 2º, XX).

Logo, afora o problema de a taxa RTP não demonstrar o grau de retorno ou oferecer medida do risco inteligível e suficiente para que o apostador possa optar, a determinação de seu valor percentual deveria competir aos órgãos de proteção ao consumidor, por sua forma e linguagem protetiva. Dada a magnitude das consequências desses “efeitos imediatos deletérios”, o problema das bets adentra a esfera da saúde pública.

A aposta na regulação dos jogos de azar por meio de um “jogo responsável” e informado capaz de prevenir e mitigar os malefícios individuais e coletivos já causados pela própria atividade é uma aposta sem retorno. Criar uma atmosfera de jogo menos “desinformado” não o torna responsável, uma vez que não dá conta daqueles “efeitos imediatos deletérios” que vêm acometendo os apostadores há tempos.

É difícil dizer se o lobby e o poder econômico das casas de aposta superam os das partes prejudicadas (fornecedores). Espera-se que dessa luta de gigantes o “vencedor” não permaneça na posição de abuso contra os vulneráveis.

Por Bernardo Mercante Marques, Daniela Suarez Pombo, Ivan Cavallazzi da Silva, Rosângela Lunardelli Cavallazzi e Vivian Alves de Assis, pesquisadores do Laboratório de Direito e Urbanismo (Ladu) do Prourb/UFRJ e PPGD/PUC-Rio.


[1] Ver CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. O Plano da Plasticidade da Teoria Contratual. Rio de Janeiro, 1993. Tese (Doutoramento) – UFRJ, Rio de Janeiro, 1993.

[2] Ver CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de. A força do microssistema do CDC: tempos de superendividamento e de compartilhar responsabilidades. In: MARQUES, Cláudia Lima. CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli. LIMA, Clarissa Costa de (Org.). Direitos do Consumidor Endividado II: vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 15-43.

[3] São jogos de quotas fixas aqueles cujo prêmio é predeterminado pelo empreendedor ao apostador em caso de acerto.

[4] MARTINS, Fernando Rodrigues. MARTINS, Guilherme Magalhães. MARQUES, Claudia Lima. Economia da atenção, gamificação e esfera lúdica: hipótese de nulidade e neurodano das apostas online. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-out-03/economia-da-atencao-gamificacao-e-esfera-ludica-hipotese-de-nulidade-e-neurodano-decorrentes-dos-abusos-em-apostas-e-jogos-on-line/?action=genpdf&id=818422>. Acesso em: 19 nov. 2024.

[5] Ibid.

[6] Ver MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor: o novo regime das relações contratuais. 9. ed. São Paulo: RT, 2019.

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Honorários de sucumbência e contratuais na arbitragem

A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1608/24, que garante à mulher em situação de violência doméstica o direito de dispor dos valores depositados em conta corrente conjunta para se reacomodar em local seguro. 

Ainda que brevemente, é importante distinguir a figura dos honorários de sucumbência e os honorários contratuais. Os honorários de sucumbência encontram-se previstos no artigo 85 do Código de Processo Civil e no artigo 22 [1] e artigo 23 [2] da Lei nº 8.906/94, que dispõe sobre o Estatuto da  Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil. Representam os valores devidos pela parte perdedora do processo ao advogado da parte vencedora, como um modo de remunerá-lo pelo serviço prestado.

 

Os honorários contratuais, por sua vez, são previstos no artigo 22 da Lei nº 8.906/94, e também no artigo 389 [3], 395 [4] e 404 [5] do Código Civil. Definidos em contrato, constituem os valores pagos pelo constituinte ao advogado constituído pelos serviços de advocacia prestados.

Um primeiro ponto sobre condenação em honorários em sede arbitral que não gera, ou não deveria gerar, controvérsia na doutrina é quando as partes ajustam em contrato — seja na convenção de arbitragem, no termo de arbitragem, ou em outro instrumento contratual — que a parte perdedora irá arcar com a condenação em honorários de sucumbência e contratuais.

Nessa hipótese, se as partes assim convencionam, é dever do tribunal arbitral, quando da prolação da sentença, condenar o vencido a arcar com tais valores. Caso não se pronuncie sobre o tema, a sentença será omissa, cabendo a parte interessada apresentar pedido de esclarecimentos, na forma do artigo 30, II, da Lei de Arbitragem.

É que o ajuste entabulado entre as partes em relação à condenação em honorários é negócio jurídico celebrado com fundamento no princípio da autonomia privada. Constitui acordo de vontades com a finalidade de produzir efeitos jurídicos, o qual deve — se existente, válido e eficaz —  ser respeitado pelo tribunal arbitral. Tal registro não é feito aqui à toa, pois há sentenças arbitrais que, infelizmente, ignoram o negócio jurídico celebrado e decidem sobre honorários em sentido diferente ao acordado entre as partes.

De todo modo, tratando agora de tema mais controverso, a discussão quanto ao cabimento da condenação em honorários na arbitragem passa necessariamente pelo único dispositivo legal que trata do assunto na Lei de Arbitragem, o seu artigo 27.

Nos termos do artigo 27, “a sentença arbitral decidirá sobre a responsabilidade das partes acerca das custas e despesas com a arbitragem, bem como sobre verba decorrente de litigância de má-fé, se for o caso, respeitadas as disposições da convenção de arbitragem, se houver”.

A redação do dispositivo legal não é precisa e abre margem a diversos debates, que poderiam ter sido evitados, se de outra forma tivesse sido redigido o artigo 27.

Numa interpretação literal do dispositivo, nota-se que o legislador cria um dever do tribunal arbitral de decidir sobre a responsabilidade acerca de custas e despesas das partes com a arbitragem; por outro lado, não obriga necessariamente o tribunal a responsabilizar o vencido a arcar com tais custas e despesas.

Quer dizer, em um cenário hipotético, se nada for estipulado pelas partes contratualmente, ou previsto no regulamento da câmara arbitral que administra o procedimento, o tribunal arbitral pode, em princípio, decidir que não responsabilizará o derrotado em custas e despesas da arbitragem, de modo que a parte vencedora não será reembolsada pelos valores que desembolsou ao longo do procedimento.

Essa é a primeira impressão que o dispositivo legal passa, portanto, quando é interpretado em seu sentido literal.

A título exemplificativo, por outro lado, o Código de Processo Civil é mais assertivo e estabelece (i) no artigo 82, § 2º, que “a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou”; (ii) no artigo 85, que “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”; (iii) no artigo 86, que “se cada litigante for, em parte, vencedor e vencido, serão proporcionalmente distribuídas entre eles as despesas”; (iv) no artigo 87, que “concorrendo diversos autores ou diversos réus, os vencidos respondem proporcionalmente pelas despesas e pelos honorários”; e assim por diante.

Há quem entenda que a omissão do artigo 27 da Lei de Arbitragem em matéria de honorários seria positiva, tendo sido a intenção do legislador conceder amplos poderes ao tribunal arbitral para livremente dispor sobre o que constituem custas e despesas na arbitragem, bem como a forma como estas devem ser distribuídas entre as partes ao final da disputa.

A meu ver, contudo, quando o artigo 27 não define se o vencido terá de arcar com as despesas e custas da arbitragem, assim como não estabelece se os honorários estariam incluídos entre tais despesas e custas, ele acaba por gerar desuniformidade entre as sentenças arbitrais. Por consequência, causa-se um cenário de insegurança jurídica e imprevisibilidade às partes, que, até o momento da prolação da sentença, não conseguem contingenciar se e o quanto irão despender ou receber (a depender de sua posição de vencedor ou vencido), a título de custas e despesas.

O melhor cenário, evidentemente, seria o ajuste prévio entre as partes já na convenção de arbitragem ou no início do procedimento em relação à matéria, bem como os critérios para sua fixação, mas isso nem sempre ocorre.

De toda forma, partindo-se do pressuposto que haverá a responsabilização em custas e despesas a uma das partes ao final do procedimento, cabe aferir se o tribunal arbitral, quando da condenação, deve incluir no conceito de “custas e despesas” os honorários contratuais e de sucumbência.

Custas e despesas

Neste texto, defende-se que apenas os honorários contratuais estão incluídos no termo “custas e despesas” a que a parte deverá arcar se condenada pela sentença arbitral.

Por custas e despesas, na verdade, devem-se contemplar os gastos despendidos com a câmara arbitral responsável pela administração do procedimento, se contratada; os honorários dos árbitros; os honorários do perito e assistentes técnicos para a realização da perícia; os pareceristas eventualmente contratados; e os honorários contratuais dos advogados. Eventuais despesas com locomoção e hospedagem de árbitros, testemunhas, partes e advogados também devem ser incluídas no somatório.

Não há justificativa legal para se excluir do termo “custas e despesas” qualquer um dos gastos mencionados acima. A interpretação do dispositivo legal deve ser abrangente, não restritiva. As custas e despesas representam tudo que fora despendido pela parte ao longo do procedimento para assegurar sua defesa técnica.

É preciso seguir, aqui, a lógica de que o processo não deve ser fonte de prejuízo a quem tem razão. Se vencedora, a parte deve ser ressarcida pelos danos injustos que lhe foram causados.  Nesse sentido, cabe ao tribunal arbitral na sentença garantir ao vencedor da disputa a mesma situação econômica que deteria se o vencido tivesse cumprido com suas obrigações de forma espontânea, antes de deflagrado o conflito.

Os artigos 389, 395 e 404 do Código Civil também reforçam a necessidade de pagamento das despesas incorridas com honorários contratuais de advogado, quando em mora ou não cumprida a obrigação pelo devedor.

No que diz respeito aos honorários sucumbenciais, estes não representam custas e despesas incorridas pela parte vencedora ao longo do procedimento, de modo que não há que falar em reembolso. Em essência, os honorários de sucumbência representam um direito autônomo do advogado da parte vencedora, que são pagos pelo vencido ao final da disputa.

Salvo estipulação em contrário pelas partes, os honorários de sucumbência não se aplicam à arbitragem. Além de não estarem previstos na Lei de Arbitragem, tais honorários são próprios da jurisdição estatal e encontram-se regulamentados no Código de Processo Civil, que não se aplica de forma automática à arbitragem.

No que diz respeito ao artigo 22 e artigo 23 do Estatuto da Advocacia [6] [7], tais previsões por si só não obrigam a condenação em honorários de sucumbência em sede arbitral. Isso porque a necessidade de imposição dos honorários de sucumbência não decorre do Estatuto da Advocacia, mas, sim, do Código de Processo Civil, diploma legal que contém o complemento normativo que o tema exige.

O Estatuto da Advocacia, ademais, foi editado antes da Lei de Arbitragem, tendo sua parte relativa à sucumbência sido pensada e elaborada, à época, apenas para os processos judiciais, e não ao processo arbitral.

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[1] Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.

[…]

[2] Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

[3] Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

[4] Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.

Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos.

[5] Art. 404. As perdas e danos, nas obrigações de pagamento em dinheiro, serão pagas com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, abrangendo juros, custas e honorários de advogado, sem prejuízo da pena convencional.

Parágrafo único. Provado que os juros da mora não cobrem o prejuízo, e não havendo pena convencional, pode o juiz conceder ao credor indenização suplementar.

[6] Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência. […]

[7] Art. 23. Os honorários incluídos na condenação, por arbitramento ou sucumbência, pertencem ao advogado, tendo este direito autônomo para executar a sentença nesta parte, podendo requerer que o precatório, quando necessário, seja expedido em seu favor.

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Banco digital não é instituição de pagamento e analista é bancário, decide juíza

Por constatar que o réu atua como instituição financeira, embora formalmente se constitua como instituição de pagamento, a 69ª Vara do Trabalho de São Paulo enquadrou um trabalhador na categoria de bancário e condenou um banco digital e suas filiais a pagar verbas trabalhistas como auxílio-refeição, auxílio-alimentação e participação nos lucros e resultados (PLR).

Homem fazendo pagamento pelo celular.
Autor atendia correntistas do banco digital, que se apresentava como instituição de pagamento – freepik

O autor da ação trabalhou como analista de relacionamento. Ele atendia correntistas, para tratar de temas como atraso nos pagamentos. À Justiça, ele alegou que desempenhava funções típicas de instituições financeiras e pediu seu enquadramento como bancário — categoria que tem vantagens próprias.

A juíza Franciane Aparecida Rosa notou que o réu não é registrado como instituição financeira ou bancária. Mesmo assim, se apresenta como banco digital e oferece contas, empréstimos e cartões de crédito.

A magistrada ainda destacou que o autor foi transferido entre empresas do mesmo grupo com “objetos sociais bastante distintos”, mas continuou desempenhando as mesmas atividades. Isso foi considerado um indicativo da fraude.

Atuaram no caso os advogados Rodrigo Figueira e Hudhson Andrade, do escritório Santos e Andrade Sociedade de Advogados.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1001192-19.2024.5.02.0069

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Paper Excellence tem, sim, fome de terras no Brasil

O foro originário por prerrogativa de função (foro originário ou foro privilegiado) é um critério jurídico concebido a fim de definir competências específicas na condução de processos judiciais contra determinadas autoridades.

Sob a justificativa de proteção do exercício de funções públicas, a prerrogativa em questão garante que autoridades tenham suas causas processadas e julgadas por tribunais de hierarquia superior; isto é, com melhor aptidão para assegurar imparcialidade e estabilidade institucional contra eventuais pressões políticas em instâncias inferiores. Soma-se a isso o objetivo de preservação da autonomia do Poder Judiciário ao lidar com questões de grande relevância social e política, elevando o nível de responsabilidade e transparência.

Abordado na Constituição, principalmente no artigo 102, inciso I, alíneas b e [1][2], e no artigo 105, inciso I, alínea [3], referentes ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, o foro privilegiado estabelece a atribuição originária para julgar ações penais contra ocupantes de cargos de alta relevância, e.g. presidente da República, ministros de Estado, membros do Congresso Nacional, governadores e desembargadores dos estados e do Distrito Federal, entre outros.

Desmembramento de processos: análise jurisprudencial

Ao longo dos anos, muitos foram os debates travados sobre a extensão e a pertinência desse critério, especialmente quanto à possibilidade de desmembramento com relação à investigados/acusados que, originalmente, não se enquadrariam no requisito objetivo de “qualidade da parte”[4]. Dessa maneira, a discussão resvala nos efeitos da força atrativa do foro por prerrogativa de função nas instâncias superiores [5].

A partir da análise de casos concretos, é possível compreender de que forma a jurisprudência dos tribunais superiores tem se posicionado sobre o tema.

O primeiro exemplo extrai-se do julgamento realizado em 2012 pelo STF na Ação Penal nº 470 (AP 470/MG), movida pelo Ministério Público Federal contra políticos e empresários envolvidos no escândalo de compra de parlamentares, popularmente conhecido como “Mensalão” [6].

Primeira sessão destinada ao julgamento do “Mensalão” Gervásio Baptista/SCO/STF

 

Naquele caso, a defesa de um dos réus requereu que os 35 acusados sem foro por prerrogativa de função fossem julgados na primeira instância, sob o argumento de violação ao princípio do juiz natural e o direito ao duplo grau de jurisdição. À época, a maioria dos ministros do STF decidiu pela manutenção do julgamento de todos os réus do “Mensalão” naquela corte, ao invés de desmembrá-lo para que apenas aqueles com foro fossem processados e julgados naquele tribunal.

Nos termos do voto vencedor, considerou-se que os processos conexos deveriam ser julgados em conjunto, a fim de evitar decisões conflitantes e tentativas protelatórias. Nesse sentido, o ministro Gilmar Mendes chegou a argumentar que manter todos os réus no STF garantiria uma maior coesão processual, de maneira a evitar que “se o processo estivesse espalhado por aí, o seu destino seria a prescrição com todo o tipo de manobra e artifício que pudesse ser feito”[7].

Sob o viés do Poder Judiciário especializado, a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar os crimes eleitorais e conexos (artigos 289 e seguintes da Lei 4.737/65) [8] também foi objeto de longos debates, a exemplo do Inq. 4.435/DF. Referido inquérito foi instaurado para investigar, entre outros crimes, a suposta utilização de “caixa 2” no financiamento de campanha de deputado federal para sua reeleição na Câmara dos Deputados [9], sendo argumentado pela defesa que, na época dos fatos (2010 e 2012), o acusado gozava de foro privilegiado.

Naquela ocasião, o Plenário da Corte Suprema, por maioria, acolheu o declínio da competência do STF para a Justiça Eleitoral do Estado Rio de Janeiro, haja vista que esta, por ser especializada, sobrepõe-se ao aspecto residual da Justiça Comum (federal ou estadual). De forma que, por força da conexão probatória ou instrumental, ela também atrairia a competência para processar e julgar os crimes conexos aos crimes eleitorais ocorridos no mesmo contexto fático (artigo 76, III do Código de Processo Penal) [10].

Em momento antecedente (2009), no Inq. 2.471/SP, instaurado com o escopo de investigar suposta lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, o Plenário do STF havia decidido pela manutenção do desmembramento da investigação. Na ocasião, deu-se parcial procedência ao pedido da Procuradoria Geral da República (PGR), cuja pretensão era o desmembramento total do caso com o intuito de que permanecesse no STF as questões estritamente relacionadas ao detentor da prerrogativa de foro, diante do risco da ocorrência de prescrição relativamente a este investigado, que contava com mais de 70 anos e teria direito à redução dos prazos penais à metade [11] [12].

Como argumento contrário ao desmembramento total do Inquérito 2.471/SP, o relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski, alertou sobre os perigos que poderiam resultar de uma divisão total, especialmente no tocante a decisões conflitantes, à coleta de provas e ao julgamento final. Na visão do ministro relator, seria difícil separar completamente as ações dos investigados por força da complexidade dos fatos e da quantidade de condutas [13].

De modo adjacente, convém mencionar a recente retomada do julgamento do Inquérito 4.787/DF e do HC 232.627/DF [14], relacionados à extensão do foro privilegiado após a saída de cargo que confere essa prerrogativa. Nesse caso, o Plenário já formou maioria [15] pela manutenção do foro especial nos crimes cometidos no cargo e em razão dele, mesmo que, posteriormente, haja o afastamento do cargo (e.g., por renúncia, cassação, não reeleição etc.). Como justificativa, sustentou-se a necessidade de promover maior coesão processual em detrimento de frequentes deslocamentos das ações entre as instâncias – cenário que aumentaria a insegurança jurídica.

Conveniência e oportunidade

A partir dessa análise jurisprudencial, merece destaque o raciocínio desenvolvido pelo STJ durante o julgamento do HC 347.944/AP: “o desmembramento do processo penal em relação aos acusados que não possuem prerrogativa de foro deve ser pautado por critérios de conveniência e oportunidade, estabelecidos pelo Juízo da causa, no caso, o de maior graduação” [16].

Nesse julgamento, o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca indicou a conexão e a continência como a regra estabelecida na legislação processual (artigo 79 do Código de Processo Penal) e como ferramentas aptas a assegurar um julgamento conjunto não apenas de fatos, como também de corréus que respondiam pelo mesmo crime. Esse cenário propiciaria uma visão completa do quadro probatório ao magistrado, o que resultaria em uma prestação jurisdicional uniforme, evitando decisões contraditórias e otimizando a administração da Justiça: “Em suma, a separação dos processos constitui faculdade do juízo processante e tem em vista a conveniência da instrução criminal” [17].

A especial atenção aos critérios de conveniência e de oportunidade tem sido verificada nas decisões recentes do STJ, sobretudo no que se refere ao risco da dispersão indevida do andamento processual às instâncias inferiores, cujos efeitos se verificaram, por exemplo, no desnecessário emprego de múltiplas diligências e de atos processuais [18]. Inclusive, o verbete sumular nº 704 do Supremo Tribunal Federal (“não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados” [19]) tem recebido protagonismo na jurisprudência da Corte Superior, obviamente que observadas as particularidades de cada caso concreto.

Conclusão

A par dessas considerações, mesmo que o desmembramento de processos possa ser visto sob a ótica da celeridade e da otimização da tramitação processual, não se pode descartar as severas críticas tecidas pela jurisprudência quanto aos possíveis prejuízos à coesão da investigação e à uniformidade das decisões judiciais, além do malefício de gerar desigualdade de tratamento entre réus de um mesmo caso, bem como instalar insegurança jurídica.

Nada obstante a necessidade de se realizar o cotejo entre o juízo de oportunidade e o de conveniência pelo juízo competente, exige-se cautela quanto à decisão de desmembramento, haja vista a possibilidade de que eventual fragmentação infundada do processo tenda a prejudicar a aplicação da lei integralmente e a propiciar julgamentos contraditórios entre instâncias.


[1] BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente.

[2] BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Artigo 86. Ao Supremo Tribunal Federal competirá, privativamente, processar e julgar: I – os seus ministros, nos crimes comuns; II – os ministros de Estado, salvo nos crimes conexos com os do Presidente da República; III – o procurador-geral da República, os desembargadores dos Tribunais de Apelação, os ministros do Tribunal de Contas e os embaixadores e ministros diplomáticos, nos crimes comuns e de responsabilidade.

[3] BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 258.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). O foro por prerrogativa de função e as restrições à sua aplicação no STJ. STJ, 7 jun. 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/ Comunicacao/Noticias/O-foro-por-prerrogativa-de-funcao-e-as-restricoes-a-sua-aplicacao-no-STJ.aspx. Acesso em: 07 nov. 2024.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 470 (AP 470/MG). Min. Rel. Joaquim Barbosa, julgado em 03 de agosto de 2012.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ap/ap470-parte5.pdf. Acesso em: 08 nov. 2024.

[7] CONJUR. Ministros do Supremo decidem julgar mensalão na íntegra. Conjur, 2 ago. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-ago-02/ministros-supremo-decidem-julgar-mensalao-integra/. Acesso em: 07 nov. 2024.

[8] BRASIL. Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965). Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 jul. 1965. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l4737.htm. Acesso em: 31 out. 2024.

[9] FISCHER, Douglas. Crimes eleitorais e os eventualmente conexos diante do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal. Revista do TRE-RS, Porto Alegre, ano 24, n. 46, p. 95-130, jan./jun. 2019. Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/5872. Acesso em: 11 nov. 2024.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Quarto Agravo Regimental no Inquérito 4.435 (Quarto Ag. Reg. Inq. 4.435/DF) Min. Rel. Marco Aurélio. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2021/08/inq-4435-stf-acordao.pdf. Acesso em: 11 nov. 2024.

[11] BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Artigo 115. São reduzidos de metade os prazos da prescrição, quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de vinte e um ou maior de setenta anos.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Quarto Agravo Regimental no Inquérito 2.471.470 (AgReg. Inq. 2.471/SP). Min. Rel. Ricardo Lewandowski, julgado em 17 de dezembro de 2009. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=609609. Acesso em: 08 nov. 2024.

[13] CONJUR. Supremo desmembra inquérito que investiga família de Paulo Maluf. Conjur, 17 dez. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-dez-17/supremo-desmembra-inquerito-investiga-familia-paulo-maluf/. Acesso em: 08 nov. 2024.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Habeas Corpus nº 232.627 (HC 232.627/DF). Min. Rel. Gilmar Mendes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/03/voto-Gilmar-foro-especial-apos-saida-do-cargo.pdf. Acesso em: 11 nov. 2024.

[15] No momento da publicação, a votação encontra-se com 6 votos favoráveis contra 1, em que o Ministro André Mendonça foi o único a votar no sentido de que o foro por prerrogativa de função acaba imediatamente com o fim do exercício do cargo, sob necessidade de envio da competência à primeira instância. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Voto-vista no Habeas Corpus nº 232.627 (HC 232.627/DF). Min. André Mendonça. Julgado em: 20.09.2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/ wp-content/uploads/2024/09/voto-Mendonca-foro-especial-apos-saida-do-cargo.pdf. Acesso em: 11 nov. 2024.

[16] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Habeas Corpus nº 347.944 (HC 347.944/AP). Min. Rel. Reynaldo Soares da Fonseca. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/doc umento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1513118&num_registro=201600220509&data=20160524&formato=PDF. Acesso em: 08 nov. 2024.

[17] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). O foro por prerrogativa de função e as restrições à sua aplicação no STJ. STJ, 7 jun. 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/ Paginas/Comunicacao/Noticias/O-foro-por-prerrogativa-de-funcao-e-as-restricoes-a-sua-aplicacao-no-STJ.aspx. Acesso em: 07 nov. 2024.

[18] A se citar os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: Inquérito nº 1.655/DF (Julgado em 06.09.2024); Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 857.920/AP (Julgado em 23.02.2024); Agravo Regimental nos Embargos Declaratórios no Habeas Corpus nº 649.147/ES (Julgado em 23.09.2021); Habeas Corpus nº 347.944/AP (Julgado em 17.05.2016).

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Súmula 704. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/juris prudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2645. Acesso em: 08 nov. 2024.

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Há abalo à honra quando se chama alguém de ‘gordo’ ou ‘feio’?

Não é incomum que adolescentes façam listas a respeito de quem são os mais bonitos da sala de aula, o que significa que os excluídos serão considerados mais feios; isso se não há uma lista completa e alguém terá o desprazer de se encontrar em último. Não é incomum também que pessoas façam comentários a respeito do corpo de outrem, tachando a pessoa de gorda ou dizendo que ela está fora de forma.

Foi a partir dessas situações comezinhas, muitas delas discutidas em sala de aula, que ocorreu nos ocorreu de escrevermos neste artigo.

A ideia é tratar de direitos da personalidade, com ênfase no direito à honra.

Sobre os direitos da personalidade

Existem vários direitos da personalidade, tais como imagem, privacidade, sobre o próprio corpo e outros. Não há discussão a respeito da existência de alguns deles, eis que previstos de modo expresso no Código Civil, entre seus artigos 11 e 21; outros são implícitos, extraídos do sistema jurídico, segundo a corrente monista, a partir do que é considerado direito geral da personalidade.

A doutrina majoritária entende que esse direito geral da personalidade corresponde à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento da República Federativa do Brasil insculpido no artigo 1º, III, da CF/1988. (1) Um direito da personalidade implicitamente previsto no sistema jurídico pátrio é o da identidade, a respeito do qual foi publicado artigo em data relativamente recente (2).

No mais das vezes, as situações que se apresentam adequam-se a um ou outro direito da personalidade com precisão. Por exemplo, se uma pessoa adentra em nossa casa sem consentimento viola a nossa vida privada, pois o domicílio é o centro de exercício típico desse direito. Se outra pessoa faz publicar a nossa fotografia em uma revista sem que tivesse prévia concordância específica, por certo, ofenderia o nosso direito à imagem, no caso, sempre, pelo ponto de vista restrito da imagem-retrato.

Há outras situações fáticas, entretanto, que são mais difíceis, quer porque colocam-se praticamente no limiar entre dois direitos distintos, quer porque fazem com que o intérprete do direito se questione se, de acordo com as peculiaridades apresentadas, ainda assim há ofensa ao direito de que se trata.

Se alguém verifica nosso extrato bancário haveria ofensa à nossa vida privada, segundo o c. STF, que tem vários julgamentos nesse sentido, malgrado algo antigos (3). Mas isso também poderia ser entendido como uma ofensa ao direito de proteção dos próprios dados, direito esse que ganhou ou vem ganhando autonomia em relação àquele (4) e que diz respeito à autodeterminação informativa, ou seja, à liberdade de definir se, como e até quando seus dados pessoais podem ser de conhecimento alheio. A LGPD, certamente, contribuiu para esse ganho de autonomia do direito aos dados pessoais.

Para resolver essas dúvidas o intérprete do Direito deve ter em mente o conteúdo adequado dos direitos da personalidade de que se trata, diferenciando-os dos demais que lhes são correlatos. Isso é especialmente importante quando se trata do direito à honra na atualidade, pois ele se aproxima bastante, dentre outros direitos, do direito à identidade.

Sobre a honra

Qualquer um de nós tem uma boa noção a respeito do que se entende por honra, mas se tivéssemos que defini-la, provavelmente, encontraríamos dificuldade, como lembra Jean Carbonnier, autor francês de renome internacional quando se trata de direito civil. Segundo ele, a honra diz respeito à dignidade da pessoa: quer a noção que cada pessoa tem da própria dignidade, quer a noção que os outros têm dela. (4) Sem dúvida, essa definição, por mais abrangente que seja, está conectada à noção kantiana de que a dignidade corresponde àquilo que não tem preço.

Essa divisão entre a ótica que os outros têm da minha dignidade e que eu tenho da minha própria dignidade, consoante exposto acima, é o que dá ensejo à classificação encontrada na doutrina sobre a honra objetiva e a subjetiva.

Tomando como base justamente essa noção de dignidade como cerne da honra, Carlos Alberto Bittar diz que a honra subjetiva é a consciência da própria dignidade, ao passo que a honra objetiva corresponde à reputação, que abrange o bom nome e a fama (5).

Cláudio Luiz Bueno de Godoy, por sua vez, diz que a honra é emanação direta da personalidade do homem, que supõe não apenas um elemento corpóreo, mas também um componente espiritual, revelado pela dignidade que se lhe reconhece. A honra, no seu entender, compreende a autoestima, o amor próprio, o sentimento da própria dignidade, de um lado (honra subjetiva), e o apreço, o respeito, a fama, a reputação, de outro lado (honra objetiva) (6).

Essa dicotomia é encontrada também no direito penal. Damásio E. de Jesus diz que a honra subjetiva é o sentimento de cada um a respeito de seus atributos físicos, intelectuais, morais e demais dotes da pessoa humana, ou seja, aquilo que cada um pensa de si mesmo em relação a tais atributos, ao passo que a honra objetiva é a reputação, aquilo que os outros pensam a respeito da pessoa no tocante a esses mesmos atributos (7).

O que mais importa notar a partir dessas definições é que a honra carrega consigo um juízo de valor que lhe é peculiar. São bons os atributos que a sociedade assim considera como tais, por isso as pessoas se orgulham de ostentá-los (honra subjetiva) ou essa mesma sociedade prestigia as pessoas que os ostentam (honra objetiva).

Como subsistema social que é, portanto, o Direito colhe essa informação da sociedade. É a sociedade que diz que ser honesto é bom e desonesto ruim por exemplo. Isso é relevante porque se não há esse juízo de valor não está se tratando de honra; se a ideia é apenas distinguir duas atribuições distintas, mas sem juízo de valor quanto a qualquer delas, de honra não se trata, como é o caso do já citado exemplo de ser gay.

Fixada a premissa de que a honra envolve sempre um juízo de valor, a questão que se coloca é se esse tipo de crítica, chamar alguém de “gordo” ou “feio” pode ser considerado como ofensivo à honra ou aceitar isso seria, por via reflexa, reforçar um preconceito estético.

A resposta, como é comum no âmbito jurídico, depende das circunstâncias.

Por exemplo, em um concurso de miss a beleza é critério de julgamento, por isso entender que alguém é bonito ou feio faz parte do processo e, a rigor, não pode ser considerado ofensivo, havendo inclusive concursos plus size. Anunciar isso, com o devido cuidado, sem exageros, configuraria exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião.

Ainda, ser chamado de gordo em um reality show de emagrecimento que tem por objetivo acompanhar o processo de perda de peso dos participantes, provavelmente, não é ofensivo à honra (8).

Claro que esses são exemplos mais simples, marcantes mesmo, a fim de explicar a ideia. É sabido que na sociedade as coisas se apresentam de modo mais complexo e a análise do intérprete se torna mais difícil, como é o caso da moça que diz à amiga que não quer namorar determinado garoto porque o acha feio. Será que haveria ofensa à honra dele apenas por conta disso ou seria uma conduta lícita, natural, representando excesso de sensibilidade do garoto exigir indenização por danos morais ao tomar ciência disso?

Para ajudar a responder essa questão é importante dar um passo atrás e verificar um processo julgado na Itália em 1979, o qual ajudou a definir o direito à identidade, diferenciando-o do direito à honra.

Nesse ano, o tribunal de Turim julgou o caso do político Marco Pannela. Conhecido por ser do Partido Radical Italiano, teve o seu nome mencionado em panfletos distribuídos na cidade como se fizesse parte do Partido Comunista Italiano. Em suma, era de uma vertente política, mas teria sido retratado como se fosse da vertente oposta. Na conclusão do caso, o tribunal afirmou que ser de uma vertente política ou outra não diz respeito à honra, ou seja, houve o reconhecimento de que ninguém é melhor ou pior do que outrem apenas porque adota determinada visão de mundo. Sendo assim, existiu ofensa a um direito da personalidade desse político, mas não a honra, e sim a identidade (9).

Esse caso é relevante porque define que ninguém é melhor ou pior por ser de direita ou esquerda, no ambiente político, já que se trata de exercício da liberdade decorrente da visão de mundo de cada um.

Em outras palavras, não há propriamente um juízo de valor social que permita justificar o pensamento de que alguém é melhor ou pior por seguir uma ou outra corrente política, o critério acaba por ser individual aos olhos de cada um. Sendo assim, não é ofensivo à honra, mas sim à identidade política, se o caso, atribuir a alguém visão de mundo de caráter político que divirja da realidade fática.

Mas por que essa conclusão não se aplica à situação de chamar alguém de “gordo” ou “feio”? Porque é uma realidade que a estética impõe à sociedade que é melhor ser “magro” e “bonito”. Ainda que isso, inevitavelmente, seja algo subjetivo, e que a sociedade esteja mudando para aceitar melhor a diversidade corporal, esses padrões de estética ainda têm um peso muito grande no julgamento das pessoas a respeito de si mesmas e das outras.

Como explicam Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos e Paola Uliana de Oliveira, os padrões de beleza são mutáveis. Na Grécia a aparência física e estética importava tanto quanto o conhecimento intelectual. Na Idade Média as formas arredondadas do corpo feminino, com circunferências e curvas avantajadas, eram prestigiadas, como é possível observar em telas de diversos artistas. Atualmente, segundo eles, a indústria da moda e a mídia ditam as regras e exigem um corpo “perfeito”, supervalorizando a imagem corporal, gerando, em contrapartida, a intensificação de doenças como a anorexia e a bulimia (9).

O Direito é ciência social prática. Ele deve se voltar para a sociedade para observá-la e entendê-la, com vistas à melhor interpretação – e, se o caso, aplicação – da lei. E se o padrão estético atual diz que ser “feio” ou “gordo” é pior do que ser “bonito” ou “magro”, natural compreender-se que há um juízo de valor ínsito neste julgamento.

Mas é importante compreender a questão da forma correta para que não se retire disso um reforço ao preconceito. Não estamos defendendo, de maneira alguma, que uma pessoa considerada por outros como “feia” ou “gorda” valha menos do que outra. Isso seria inconcebível e absolutamente contrário à dignidade da pessoa humana.

O que estamos reconhecido é que, em termos objetivos, faticamente, há uma “ditadura da estética”, a impor padrões. Praticamente todos sofrem com isso, por isso não é algo a ser estimulado. Contudo, também não há como simplesmente olvidar desse fato e deixar de admitirmos que ela existe e causa impacto psicológico em todos nós.

Desta maneira, ao utilizarmos esses termos para se referir a outrem, sem que as circunstâncias ajudem a explicar que se trata de uma crítica feita no exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião, a pessoa pode praticar ofensa à honra alheia. Mas de que honra se trata, da objetiva ou da subjetiva? A nosso ver, das duas.

Isso porque ao proceder desse modo a pessoa que se manifesta a respeito da outra a coloca numa escala inferior da sociedade, no que diz respeito à estética; na classificação que se faz a partir desse critério de julgamento, a pessoa considerada “feia” ou “gorda” é rebaixada em relação às demais. E a pessoa que toma ciência dessa manifestação também pode passar a se sentir menosprezada, com a sua autoestima abalada.

Breve conclusão

Os direitos da personalidade estão em constante evolução, pois representam a extensão da dignidade da pessoa humana. Em tempos de modernidade líquida, consoante explicado por Zygmunt Bauman, tudo muda o tempo todo, por isso as pessoas também mudam sempre. Natural, destarte, esperar que os direitos da personalidade acompanhem essa mudança.

O direito à honra, um dos direitos da personalidade mais conhecidos e que já foi utilizado como argumento para práticas mais do que conservadoras, verdadeiramente retrógradas e abusivas, como é o caso do feminicídio e das agressões contra mulheres, é outro que acompanha essa mudança na sociedade.

Ele contempla um juízo de valor social que parte do princípio da presença de um atributo positivo ou negativo, pessoal a cada grupo ou individuo . Se a pessoa é chamada por outras de criminosa, recebe um rótulo ruim e, por conta disso, é rebaixada socialmente. Por outro lado, se ela é rotulada como honesta, recebe um rótulo positivo e, por conseguinte, sobe um degrau na escala social.

A conclusão é mais fácil quando se trata de alguns atributos, como os vistos acima, mas a situação é mais complexa quando se trata de outros. É o caso dos atributos de beleza, tais como ser “bonito”, “feio”, “magro” ou “gordo”.

O objetivo deste breve artigo foi mostrar que os termos considerados negativos podem ensejar ofensas à honra porque existe um padrão estético na sociedade e ele não pode ser simplesmente desprezado. Os rótulos sociais são importantes na maneira como as pessoas pensam, em geral, inclusive sobre o que pensam sobre si e sobre os outros.

Não havendo razão jurídica que justifique a utilização desses termos por parte de quem emite opinião, pode haver, sim, ofensa à honra, quer objetiva, quer subjetiva.


(1) BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 125; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 30.

(2) https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/417379/o-direito-a-identidade-direito-a-espera-de-alguem-que-chame-pelo-nome

(3) RE 612.687 AgR, 1ª T., rel. Min. Roberto Barroso, j. 27.10.2017, DJ 14.11.2017; ADI 7276, Pleno, rel. Min. Cármem Lúcia, j. 09.09.2024, DJ 20.09.2024.

(4) A propósito desse movimento: SCHEDELOSKI, Mariana Almirão Sousa. Comércio de dados pessoais.

(4) CARBONNIER, Jean. Droit civil. Les personnes:personnalité, incapacites, personnes Morales. 19. ed. Paris: PUF, 1994, p. 129.

(5) BITTAR, Carlos Alberto. Direitos da personalidade. 6. ed., rev. e ampl. por Eduardo C.B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 133

(6) GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo : Editora Atlas, 2001, p. 38-39.

(7) JESUS, Damásio E. de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 2, p. 177

(8) É o caso, por exemplo, do programa da NBC chamado The biggest loser, que estreou em 2004 e fez muito sucesso.

(9) SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidade personal cit., p. 65; ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Onore, reputazione e identità personale cit., p. 28-29.

(10) SILVA, Katia Moraes da. Estética e sociedade. Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos, Paola Uliana de Oliveira. 2. ed. – São Paulo: Érica, 2014, p. 118-120.

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Cobrança extrajudicial de dívidas prescritas: o impacto do Tema 1.264 no STJ

A inclusão de dívidas prescritas em plataformas de negociação, como o “Serasa Limpa Nome”, tem acendido um debate acirrado no Brasil, tanto no âmbito jurídico quanto econômico. A questão central é: até que ponto é legítimo cobrar extrajudicialmente dívidas prescritas sem ferir os direitos do consumidor e o alcance da prescrição?

Em análise no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tema Repetitivo 1264 promete lançar luz sobre essa controvérsia, estabelecendo um entendimento vinculante que afetará credores e devedores, especialmente em setores que dependem da recuperação de crédito, como o mercado de securitização.

Para entender o cerne da discussão, é crucial compreender o efeito jurídico da prescrição no direito brasileiro. Consumidores argumentam que, após o prazo prescricional de cinco anos para ação judicial, a dívida não deveria ser cobrada, nem mesmo extrajudicialmente, e muito menos constar em plataformas como o “Serasa Limpa Nome”.

Apoiam-se no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que limita a permanência de informações negativas em cadastros de crédito a cinco anos, sugerindo que a prescrição extinguiria qualquer possibilidade de cobrança.

Os credores, por sua vez, reconhecem que a prescrição extingue a pretensão judicial, ou seja, o direito de exigir coercitivamente o cumprimento da obrigação por meio do Judiciário. No entanto, eles argumentam que a dívida em si não é extinta pela prescrição. Essa distinção é fundamentada no Código Civil brasileiro, que separa a existência da dívida da possibilidade de sua exigência judicial.

O artigo 189 do Código Civil estabelece que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição”. Isso significa que a pretensão  o poder de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação  se extingue com a prescrição, mas não o direito material em si. Já o artigo 882 dispõe que “não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”. Ou seja, se o devedor voluntariamente paga uma dívida prescrita, não pode exigir a devolução do valor pago, o que reforça a ideia de que a obrigação subsiste.

Defendem que essa separação entre a dívida e a pretensão coercitiva permite que os credores busquem a satisfação de seus créditos por meios extrajudiciais, mesmo após o prazo prescricional, desde que não utilizem coação ou práticas abusivas.

Violação do Código do Consumidor

Outro ponto crítico é a alegação de que a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas violaria o CDC, especialmente o artigo 43, que protege o consumidor contra informações desatualizadas em cadastros de crédito. Este artigo estabelece os direitos do consumidor em relação aos cadastros de crédito, incluindo o prazo máximo de cinco anos para a manutenção de informações negativas e a exigência de que os dados sejam exatos e atualizados.

Sobre este ponto, as securitizadoras defendem que plataformas restritas de negociação, como o “Serasa Limpa Nome”, funcionam como ambientes seguros onde apenas o devedor tem acesso. Nessas plataformas, o devedor pode visualizar suas dívidas e negociar diretamente com os credores, sem exposição pública. Elas diferem dos registros públicos de inadimplência porque não tornam a dívida visível a terceiros. Argumentam que, por facilitarem a negociação e evitarem a exposição, essas ferramentas não infringem o CDC e não podem ser consideradas mecanismos de cobrança indevida.

Com relação ao ônus da prova, os devedores alegam que a cobrança de dívidas prescritas é, por si só, abusiva, argumentando que a simples tentativa de cobrança já viola seus direitos.

Do lado dos tribunais, muitos precedentes têm entendido que a tentativa de negociação extrajudicial não configura abuso, desde que não haja pressão indevida ou práticas coercitivas. Além disso, conforme o artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, que estabelece que o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito, cabe ao devedor provar eventuais abusos ou coação na cobrança.

Suspensão de processos

Com a afetação do Tema 1.264 ao regime dos repetitivos, o STJ reconheceu a pertinência do tema e determinou a suspensão de todos os processos relacionados, em todas as instâncias, até o julgamento final. A decisão que será proferida terá efeito vinculante, promovendo uniformidade jurisprudencial e evitando decisões conflitantes que poderiam gerar insegurança jurídica.

É importante ter em mente o impacto do julgamento do Tema 1.264 pelo STJ, que tem implicações diretas no mercado de crédito, especialmente para empresas de securitização e recuperadoras de crédito que adquirem carteiras de dívidas prescritas visando à negociação extrajudicial. A prescrição limita a cobrança judicial, tornando a via extrajudicial essencial para a recuperação desses créditos.

Do ponto de vista econômico, a possibilidade de cobrança extrajudicial de dívidas prescritas é uma prática legítima e necessária para a gestão de riscos e manutenção de custos de crédito acessíveis. Restringir ou proibir essa prática pode gerar efeitos adversos, como o aumento da inadimplência e a redução da liquidez em carteiras de crédito, impactando negativamente o acesso a crédito novo pela população. Poderia, ainda, resultar na elevação das taxas de juros, refletindo o maior risco percebido pelos credores.

Nos últimos anos, tanto o STJ quanto o Supremo Tribunal Federal têm adotado cada vez mais fatores econômicos nas fundamentações de suas decisões. Como destaca Guilherme Mendes Resende, assessor especial da Presidência do STF para assuntos econômicos, em artigo publicado no Valor Econômico em novembro de 2023, essa prática busca aprimorar a transparência e a eficiência das decisões judiciais ao considerar os impactos econômicos no sistema como um todo.

Viabilização de negociação de dívidas

A futura decisão do STJ no Tema 1264 vai muito além de resolver uma controvérsia jurídica específica. Ela representa uma oportunidade de equilibrar a proteção dos direitos dos consumidores com a eficiência econômica indispensável. A interpretação de que a prescrição limita apenas a exigibilidade judicial da dívida, sem extingui-la, permite que credores e devedores busquem soluções extrajudiciais respeitosas, sem recorrer a práticas abusivas ou constrangedoras.

Ao viabilizar a negociação de dívidas prescritas em plataformas de acesso restrito, evitam-se barreiras ao crédito e aos investimentos, protegendo a economia de efeitos adversos como o aumento da inadimplência e a elevação das taxas de juros. Nesse contexto, é essencial que o Judiciário considere não apenas os aspectos legais, mas também os impactos econômicos de suas decisões.

Ao incorporar essa perspectiva, o STJ tem a chance de proferir uma decisão que não apenas pacifica entendimentos jurídicos divergentes, mas também promove um ambiente econômico mais estável. Equilibrar os direitos individuais com a eficiência econômica não é apenas desejável, mas necessário para uma sociedade que busca justiça e prosperidade.

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Importância da priorização das práticas restaurativas promovida pelo CNJ

Ainda no Réveillon de 1988, sob intermitente chuva fina e mar agitado, a proa do Bateau Mouche IV foi avistada adernando nas proximidades da Ilha de Cotunduba, próxima ao morro do Leme. Cinquenta e cinco vidas perdidas e o sofrimento de sobreviventes e familiares na tragédia da Baía de Guanabara povoam nosso imaginário até hoje. Se foi a irregularidade por excesso de passageiros, ou se uma reforma no convés superior (instalação de piso de cimento e a colocação de duas caixas-d’água, que pode haver comprometido a estabilidade do barco) [1], o que importa mesmo é o trauma que perpassa gerações e a sensação perene de “justiça não distribuída” [2].

Movidos pela comoção popular, vários atores e instituições se mobilizaram para defesa das famílias das vítimas e intensivo acompanhamento dos processos no Judiciário. O tempo “lento” dos meios convencionais de justiça acaba se convertendo, ele próprio, em mais um fator indireto de vitimização (“vitimização secundária”). Foragidos para a Europa desde 1994, nunca mais se teve notícia dos sócios do Bateau Mouche. As carências que a perda sem reparação traz na vida dos sobreviventes e familiares se prolonga os efeitos traumáticos no tempo, causando múltiplos níveis de vitimização (PTSD — post traumatic stress disorders).

Lamentavelmente, acumulam-se ao longo dos anos casos sem solução. Porém, as evidências científicas apontam que, na maioria das vezes, vítimas ou familiares (vitimização terciária) não querem vingança ou punição. O que lhes move é apenas o reconhecimento de que houve um crime, de que seus direitos foram violados, de que merecem atenção e cuidado.

A ausência de reconhecimento da vítima tem provocado questionamentos de fundo ao conhecimento convencional sobre sentidos e finalidades da pena. Não apenas porque as teorias preventivas não resistem à verificação empírica sobre o real efeito dissuasório, mas porque elas têm sentido prático quase nenhum.

Bastaria com o exemplo primeiranista da Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente” seria a retribuição na sua expressão mais básica, ao mesmo em que simplesmente se preenche todo o sentido da prevenção ao reafirmar que vigora uma lei taliônica universalmente válida. Pior ainda é que se fia pela dimensão alienante da juridificação (Verrechtlichung) ou do procedimento voltado à “difusão da insatisfação gerada pelo conflito” [3], reduzida à mera descrição da “verdade” dos fatos  com todas as limitações dos meios de prova , sendo incapaz de capturar a dimensão narrativa dos conflitos que introjeta os dramas das vítimas na solução do conflito. Na fina leitura de Lawrence Sherman, as narrativas preenchem a composição do conflito com a dimensão emocional das vítimas, promovendo o “giro emocional” (emotional turn[4] no endereçamento da justiça.

Práticas restaurativas na solução de conflitos

É em função deste contexto que o Ato Normativo do CNJ recomendou a priorização das práticas restaurativas na solução de conflitos [5], buscando reposicionar as alternativas de solução do conflito por meio de medidas de composição juntos às vítimas. Com este ato, o CNJ renova as expectativas em torno da autocomposição dialogada e, em grande medida, atualiza a normativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  as Resoluções nº 125/2010 e 225/2016 [6].

Além de reparação condizente com a natureza dos fatos e alinhada à orientação jurisprudencial, a solução por meio da autocomposição é menos aflitiva e mais ágil do que o tempo lento do processo tradicional, permitindo oferecer acolhimento multiprofissional (desde a possibilidade de melhor tratamento clínico possível até o indispensável cuidado psicológico) e uma combinação inteligente com a postura colaborativa por parte dos ofensores [7].

É bem verdade que as evidências científicas sobre a efetividade das práticas restaurativas na redução da criminalidade são adstritas a comportamentos não-violentos. No entanto, é igualmente verdadeiro que viabiliza soluções mais dinâmicas  e em tempo hábil  diante de processos de múltipla vitimização, especialmente diante da escassez de recursos públicos para levar adiante as investigações mais complexas, exigindo meios de prova pouco usuais, perícias sofisticadas ou mesmo teste de novas tecnologias.

Segundo a Coordenadora do Grupo USP Restaura, Cristina Rego de Oliveira, vale mesmo é como poderoso instrumento de desformalização, reconhecimento, inclusão e participação mais efetiva dos “esquecidos” do Sistema de Justiça Criminal [8].

O desafio para as práticas restaurativas é ainda maior quando se pensa na responsabilidade empresarial. Apesar da profusão de teses sobre os modelos de imputação às empresas, não há quase nenhuma construção positiva em torno dos modelos de sanção [9]. No campo empresarial, a prática restaurativa deveria atender a alguns passos essenciais:

1) reconhecimento da responsabilidade. É a principal manifestação de humildade por parte do ofensor de que a colaboração tem o real propósito[10] de restauração. Consequência disso, como mecanismo de imediata gestão de crise, os envolvidos devem ser afastados da posição que os levou à prática do ato e providenciadas todas as mudanças necessárias para que não mais se repita o comportamento indesejável, em quaisquer hipóteses ou circunstâncias.

2) delimitação do dano e mapeamento do conflito [11]: apreendida a responsabilidade, adquire-se melhor compreensão sobre processos de produção de dano e vitimização. Deve-se delimitar o dano em todas as suas dimensões (vitimização tangível e também intangível, de mais difícil mensuração). Com base nesta medida objetiva do dano, aos stakeholders afetados garante-se a oportunidade de discutir o impacto do dano em suas vidas e o que deve ser realizado para superá-lo [12].

3) arrependimento sincero e pedido de desculpas: apoiada nesta medida objetiva do dano, discutem-se as medidas de reparação e inicia-se o processo restaurativo com as desculpas do ofensor, a partir da oportunidade que é franqueada às vítimas para que possam exercer o seu direito a perdoar, reforçando a centralidade da vítima em toda a prática restaurativa.

Com a promoção das práticas restaurativas pelo CNJ, conferindo-lhes às vítimas voz e lugar na solução dos conflitos,  mesmo com toda a cautela para não reduzir o sistema de autocomposição a uma mera negociação de acordos e escusa de responsabilidade aos ofensores [13], é bem possível avançar muito na experimentação de soluções menos traumáticas às vítimas e a seus familiares.

Estamos diante de estratégia promissora para a evolução dos modelos de sanção, permitindo que o sistema de justiça possa de fato priorizar seus recursos em relação a comportamentos efetivamente mais danosos e para os quais a solução dialogada é inviável.


[1] SANT´ANNA, Ivan. “Bateau Mouche, uma tragédia brasileira”.

[2] TYLER, Tom. Procedural Justice, Legitimacy, and the Effective Rule of Law. Crime and Justice, 30/2003.

[3] FERRAZ JR., Tercio. Revisão e apresentação do livro Legitimação do Procedimento. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Editora UnB, 1980.

[4] SHERMAN, Lawrence. Reasons for emotions: reinventing justice with theories, innovation and research. Criminology, 41/2006.

[5] O Ato Normativo 0006689-50.2024.2.00.0000, aprovado pelo Plenário do CNJ durante a 13.ª Sessão Ordinária (22.10.2024).

[6] O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – Resoluções n. 118/2014, 40/2016 e 243/2021 – atua em sentido semelhante: as quais orientam a autocomposição das partes, a reparação dos danos e a reconciliação com as vítimas.

[7] SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e compliance. RT: 2019; SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. Tirant: 2019.

[8] OLIVEIRA, Cristina Rego. Justiça Restaurativa Aplicada. Blimunda, 2021. Mais detalhes, OLIVEIRA, Cristina Rego; SAAD-DINIZ, Eduardo (org) Justiça Restaurativa em ação: diálogos do Projeto USP-Restaura. LiberArs, 2022.

[9] LAUFER, William. “The missing account of progressive corporate criminal law”. New York University Journal of Law & Business, 2017.

[10] BRAITHWAITE, John. “Restorative Justice: theories and worries”. In: Visiting Experts’ Papers, 123rd International Senior Seminar, Resource Material Series No. 63. Tokyo: 2005.

[11] NIETO MARTIN, Adán; CALVO, Raul (org) Justicia restaurativa empresarial: un modelo para armar. Madrid: Reus, 2023.

[12] STRANG, Heather, “Is restorative justice imposing its agenda on victims?”. In: ZEHR, Howard et al., (org.), Critical issues in Restorative Justice. New York: Monsey, 2004, ps. 95-106.

[13] LAUFER, William. “Corporate crime and making amends”. American Criminal Law Review, 2007.

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