Instrumentalização do processo como forma de retaliação em casos de crimes sexuais

Com o início do processo de civilização das sociedades, as disputas entre indivíduos deixaram de ser resolvidas no campo de batalha para darem lugar aos tribunais, a partir da incorporação de leis que regem o cotidiano e buscam solucionar, dentro dos limites legais, os conflitos existentes entre os particulares.

Ocorre que, com a mudança na forma de resolução de litígios, observou-se a instrumentalização do Direito como uma espécie de arma, a fim de adequá-lo às necessidades de quem se encontrava no poder (Silva e Macedo, 2021).

A judicialização de demandas como forma de coação moral caracteriza o conceito de lawfare. Em uma tradução literal o conceito em apreço significa “guerra pela lei” ou “guerra jurídica”, de modo que é utilizado como “uma estratégia de usar — ou abusar — da lei como um substituto aos meios militares tradicionais para alcançar um objetivo operacional” (Dunlap Jr, 2008 apud Zanin, 2019).

Os primeiros estudiosos a utilizarem esse conceito de modo formal para explicar tal fenômeno foram John Carlson e Neville Yeomans. No entanto, no Brasil, o termo recebeu popularidade em meio às disputas judiciais da operação “lava jato”, quando os advogados de Lula denunciaram as condutas dos responsáveis pela operação, a partir de um possível viés político externalizado por meio de uma aparente perseguição aos partidos de esquerda, fato este que subsidiou as medidas tomadas ao longo do processo.

Em suma, o termo mencionado consiste no esvaziamento da finalidade do Direito, transformando-o em uma arma para ser utilizada como mecanismo de destruição, seja política ou moral (Costa, 2023).

Direito instrumentalizado para retaliar

Para o presente artigo, a forma de aplicação do Direito como arma possuirá o enfoque na descredibilização das vítimas de crimes sexuais que, pelas razões a serem citadas, possuem grande dificuldade em produzir provas contra seus agressores e se veem, por diversas vezes, na posição de investigada por um crime contra honra, como modo de retaliação pela denúncia.


Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Além disso, as mulheres, por muitos anos, foram excluídas do debate público, não obtendo seus direitos protegidos por muitos diplomas legais vigentes, bem como por não serem devidamente representadas pelos ocupantes dos três Poderes.

A história do patriarcado e da submissão feminina pode ensejar inúmeras discussões a respeito de sua origem, porém, independentemente do marco inicial, fato é que esses fenômenos possuem diferentes formas de se externalizar no dia a dia feminino, seja por meio da insegurança ao se utilizar transportes públicos, seja na desigualdade salarial ou até na falta de representatividade feminina política, além da dupla jornada exercida ou, por sua vez, frente aos órgãos públicos quando buscam amparo e meios efetivos para efetuar denúncias.

Considerando que o Poder Judiciário brasileiro é composto por uma maioria de homens, os quais ocupam 59,6% dos cargos magistrais (CNJ, 2023), atrelada à baixa capacitação que os funcionários do poder público possuem para lidar com crimes envolvendo questões de gênero  sejam homens ou mulheres  valendo-se de um viés de confirmação para externalizar premissas patriarcais, muitos casos de vitimização secundária podem ocorrer, tornando-se, inclusive, a instrumentalização do Direito para coagir ou retaliar a vítima, um dos métodos utilizados pelos réus.

Para fins de conceituação, o viés acima destacado é um campo de estudo da psicologia analisada e ocorre quando um sujeito possui uma ideia pré-concebida e, para sustentar sua tese, busca elementos que a reforcem, ao tempo que ignora os fatos que possam refutá-la (CATALOGUE OF BIAS, 2018).

Culpabilização da vítima e estereótipos

Nesse sentido, diante das raízes patriarcais que alicerçam nossa sociedade, não é preciso um grande entendimento acerca da disparidade de gênero para perceber que “o estupro é o único crime no mundo em que a vítima é acusada e considerada culpada da violência praticada contra ela” (PIMENTEL, SCHRITZMEYER, PANDJIARJIAN, 1998, p. 57). Além das bases misóginas que explicitam tal constatação, entende-se que as razões por trás da culpabilização da vítima também encontram fundamentos em virtude de uma estereotipização do corpo feminino.

Segundo Rebecca Cook e Simone Cusack (2010, p. 37-39), é possível dividir os estereótipos em  três classes: (1) individual, sendo basicamente aqueles intrínsecos ao nosso inconsciente; (2) coletivo, o qual se refere àqueles socialmente enraizados e sustentados pelas relações cotidianas (3) mais geral, consistindo em fatores históricos, culturais, religiosos, legais e econômicos.

Para fins do presente artigo, será utilizado o estereótipo da mulher vingativa para exemplificar a aplicação do lawfare nos crimes sexuais praticados em desfavor do corpo feminino, o qual, inclusive, pode ser englobado nas três categorias supramencionadas, a depender do contexto em que está inserido.

Inserir a etiqueta de mulher vingativa ou mulher fatal em vítimas de crimes sexuais remonta aos tempos do faraó com a história da mulher de Potifar. A mencionada narrativa pode ser encontrada no Livro de Gênesis, Capítulo 37, Versículo 3º, no Antigo Testamento da Bíblia, que relata a história de um oficial do Faraó do Egito que adquiriu José, um homem vendido por seus irmãos por causa de seu favoritismo paterno.

Potifar reconheceu que Deus estava com José, abençoando todas as suas empreitadas, e confiou-lhe a administração de seus bens. Contudo, a esposa de Potifar se interessou por José e, após ser rejeitada, acusou-o falsamente de tentativa de estupro, valendo-se como evidência da capa que este utilizava e havia esquecido, levando à prisão injusta do jovem (Júnior  e Xavier, 2020, p. 77).

Estereótipos misóginos no Judiciário

Ora, se por um lado os estereótipos suportados pelas vítimas de crimes figuram justamente o motivo que as afasta do acesso à justiça, as mulheres que optam pela coragem de denunciar não escapam de serem inseridas nos mesmos rótulos machistas por aqueles que deveriam garantir a isonomia e imparcialidade no processo.

A partir disso, Deborah Round (1998) observa uma tendência da sociedade em considerar o viés de gênero como fundamento para formação de convicções sobre determinados assuntos, determinando que a concepção social sobre um tema varia se o sujeito em análise é homem ou mulher.

Além disso, um dos grandes fatores que inibem as denúncias por crimes sexuais, além do desconhecimento sobre o tema e a vergonha, é o medo da retaliação. Leia-se uma entrevista coletada em uma pesquisa empírica com uma vítima de estupro:

“Uma vez, fiz o boletim de ocorrência no dia seguinte que fui estuprada, mas só marcaram o exame de corpo de delito cinco dias depois, então as marcas já estavam sumindo.

(…)

Passado um tempo, o fórum me ligou falando que ele tinha aberto uma queixa de calúnia contra mim… ele propôs um acordo falando para eu retirar a queixa que eu fiz de estupro que ele tirava a que ele tinha feito. Eu me recusei a fazer isso, eu tinha as fotos do meu corpo, tinha print dele me mandando mensagem pedindo desculpas porque sabia que tinha feito coisa errada. Já se passaram 02 (dois) anos e eu nunca mais tive qualquer notícia do andamento desses processos. (sic)” (Fernandes, 2022, p.71)

Nesse sentido, importa destacar que embora o corpo social muitas vezes visualize o Poder Judiciário como uma entidade subjetiva  quase como um ente onipotente e onisciente , é fundamental evidenciar que esse órgão é formado por indivíduos que vivem e se sustentam na sociedade entranhada pelo viés de gênero, o que resulta no seguinte cenário: a propagação dos estereótipos misóginos dentro do sistema de Justiça.

Sendo assim, faz-se imprescindível que o Estado capacite seus funcionários, a fim de inibir tentativas de subversão do Direito para vinganças particulares, especialmente no que tange os crimes envolvendo violência de gênero. Nesse sentido:

“A qualificação e capacitação dos profissionais da área auxilia para que a violência contra a mulher seja cada vez mais rápida identificada prevenida, atuante de acordo com a Lei Maria da Penha, a qual possui o intuito de prevenir ou fazer cessar violências praticadas contras mulheres em todo e qualquer âmbito (Costa, 2021)”

Cita-se, como exemplo, a edição da Resolução nº 492 do CNJ (Protocolo para Julgamento sob a Perspectiva de Gênero), obrigando que os magistrados, ao se depararem com casos que envolvam particularidades de crimes de gênero, deverão interpretar a lei e o caso concreto sob tais diretrizes que serão ensinadas em cursos de capacitação, mitigando o cenário de revitimização (Costa, 2021).

Diante disso, é indubitável que já foram percorridos árduos caminhos em direção à igualdade de gênero, todavia não há como negar que ainda há um longo trajeto a se enfrentar. Por esse motivo, é fundamental refletirmos acerca da efetividade dos projetos que visam erradicar a violência contra a mulher para além de meros remendos. Embora o Brasil conte com uma das mais completas leis no tocante aos crimes sexuais, é inegável que a aplicação da norma não esteja surtindo o efeito planejado, escarrando o fato de que não há como progredir para qualquer mudança significativa sem transformar as estruturas sociais.


Referências bibliográficas

ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRI, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, nº 2, 2018 p.825-853.

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Resultados parciais do censo do Poder Judiciário 2023 : relatório / Conselho Nacional de Justiça. – Brasília: CNJ, 2023

COSTA, Amanda Moura da. LAWFARE E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 79–98, 2023. DOI: 10.9771/rds.v4i2.54373. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revdirsex/article/view/54373. Acesso em: 23 mar. 2024.

COOK, Rebecca; CUSACK, Simone. Estereotipos de género: perspectivas legales transnacionales. Bogotá: Profamilia, 2010. p. 37-39

FERNANDES, Clara Duarte. O valor probatório das declarações da vítima no crime de estupro: reflexões a respeito do procedimento penal sob a ótica da cultura do estupro e um cenário de violência institucional. 2022. 118 f. TCC (Graduação) – Curso de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2022.

HENEGHAN, Carl; SPENCER, Elizabeth. Confirmation Bias. In: Catalogue of Bias 2018. University of Oxford, 2018. Disponível em: https://catalogofbias.org/biases/confirmation-bias/. Acesso em: 05 março 2023.

PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou “cortesia”?: abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Fabris, 1998.

ROUND, Deborah Ruble. Gender bias in the judicial system. Southern California Law Review, v. 61, n. 6, p. 2193–2220, 1998. p. 2193

SILVA, Simone Augusta da; MACEDO, Semíramis Regina Moreira de Carvalho. LAWFARE: aliado ou inimigo do estado democrático de direito?. Intr@Ciencia, Guarujá, n. 22, p. 1-18, 2021.

Fonte: Conjur

Comissão faz esforço concentrado no Senado para votar Código Civil

A comissão de juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil promove no Senado, na próxima semana, entre 1º e 5 de abril, esforço concentrado para votar o relatório final com propostas de alteração em mais de mil artigos e sobre temas de difícil consenso, como direito da família, dos animais e de propriedade. 

Um dos pontos que levanta polêmica no campo conservador, por exemplo, diz respeito ao direito do nascituro – o feto em gestação. O texto de um dos relatórios apresentados em fevereiro, com um anteprojeto de proposta final, diz que os direitos antes do nascimento são protegidos “para efeitos deste Código Civil”. 

A expressão, que aparenta limitar o alcance dos direitos do nascituro, foi usada para alimentar notícias falsas, sobretudo em círculos católicos e de direita, de que a comissão de juristas estaria tentando facilitar o aborto, aponta o professor e jurista Flávio Tartuce, um dos relatores da reforma do Código Civil. 

“Não tratamos de aborto no projeto”, enfatizou Tartuce à Agência Brasil. Ele nega motivações ideológicas na comissão de juristas e assegura que o trabalho é técnico. O professor destaca que ainda não há relatório final aprovado e que muitas emendas e destaques já foram feitos ao anteprojeto apresentado em fevereiro.  

Ele acrescenta que “o Código Civil sempre motiva debates, você lida ali com a vida do cidadão desde antes do nascimento até depois da morte, é normal haver discordâncias. Mas há também as polêmicas promocionais, de pessoas que querem se promover, e entre essas a grande maioria não leu nada”. 

Organizações como a União de Juristas Católicos chegaram a publicar manifestações contrárias a toda iniciativa de revisão do Código Civil. “A proposta não é uma mera ‘atualização’ – que pressuporia apenas ajustes pontuais em um código relativamente novo, com pouco mais de 20 anos de vigência – , mas a refundação da própria visão de sociedade, de pessoa e de família que normatiza a nossa nação”, disse a entidade, em nota. 

Em resposta, Tartuce nega que proponha um “Novo Código Civil”, tratando-se de uma “atualização”. Ele afirma que a comissão de juristas “está muito longe de querer criar polêmicas ou trazer uma revolução de costumes. Nossa prioridade é destravar a vida das pessoas, ajudar a resolver os problemas”. 

O primeiro Código Civil brasileiro, com essa denominação, data de 1916. Ele foi substituído pelo código atual, que entrou em vigor em 2002, após quatro décadas de discussões. Alguns críticos pontuam que o código atual tem somente 22 anos, motivo pelo qual seria cedo para promover uma revisão. 

A esse argumento, Tartuce lembra que a velocidade das mudanças na sociedade cresce de modo exponencial, com transformações especialmente intensas ao longo das últimas décadas. Quando o Código Civil atual foi aprovado, por exemplo, sequer havia smartphones no país. “O código atual é analógico, é preciso trazê-lo para o mundo digital”, acentua o professor.  

A criação de uma Comissão de Juristas para revisar o Código Civil partiu do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Após ser questionado por senadores conservadores, ele defendeu a iniciativa no plenário da Casa, afirmando que o objetivo não é elaborar um “novo Código Civil”, mas preencher lacunas no código atual. “É um trabalho totalmente independente. A decisão final é do Parlamento”, disse. 

A Comissão de Juristas é presidida pelo ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e composta por 36 juristas especializados no assunto. Os relatores são o professor Flávio Tartuce, e a desembargadora Rosa Maria de Andrade Nery. O grupo recebeu 180 dias de prazo para apresentar a Pacheco um projeto de lei com as novas propostas para o Código Civil. Esse prazo vence em 12 de abril. 

Com mais de 2 mil artigos, o Código Civil regula todos os direitos relativos à personalidade do indivíduo e às relações em sociedade, incluindo temas como casamentos, contratos, heranças e direitos das empresas, entre muitos outros. Em artigo célebre, o jurista Miguel Reale descreveu a lei como “a Constituição do homem comum”.  

Mudanças

– Logo no artigo 1º, um dos relatórios parciais já apresentados propõe um novo parágrafo para inserir no Código Civil os direitos e deveres previstos em tratados internacionais aderidos pelo Brasil, a chamada “personalidade jurídica internacional”.

– No artigo 2º, o texto da relatoria-geral propõe inserir a previsão de que a personalidade civil “termina com a morte encefálica”, o que é visto como uma tentativa de facilitar a doação de órgãos, por exemplo. 

– Outra proposta prevê que os animais passem a ser considerados “objetos de direitos” de natureza especial, na condição de “seres vivos dotados de sensibilidade e passíveis de proteção jurídica”. O ponto traz para o Código Civil interpretações que já tem sido feitas no dia a dia do Judiciário, que precisa lidar, por exemplo, com a tutela de bichos de estimação no caso de separação de casais. 

– No livro de direito de família foi proposta a mudança de nome para “das famílias”, no plural. Foi proposta também a criação de uma nova figura jurídica, chamada de “convivente”, além do “cônjuge”, para descrever as uniões estáveis. 

– Relatório parcial prevê a exclusão do cônjuge ou convivente como herdeiro necessário. Isso significa que o companheiro ou companheira pode ser excluído da herança, sendo obrigatório somente descendentes e ascendentes entre os herdeiros. Segundo justificativas de membros da comissão, a intenção é atualizar o Código Civil em relação aos relacionamentos muito mais fluidos na atualidade. 

– Uma das propostas é a inserção de um livro novo no Código Civil, para tratar de direito digital. Alguns dos artigos, por exemplo, preveem a validade das locações por meio de aplicativo, como de carros, quartos ou casas. Outro ponto é a regulação das assinaturas eletrônicas. 

– O Código Civil atual prevê que todos que possuem alguma propriedade têm o direito de manter a posse sobre ela em caso de turbação ou esbulho, e de ter essa posse protegida. Uma das propostas apresentadas prevê que esses direitos poderão ser exercidos também coletivamente, “em caso de imóvel de extensa área que for possuído por considerável número de pessoas”. 

Fonte:

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STF julga os limites da atuação e subordinação das Forças Armadas

O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar, na última sexta-feira (29), os limites da atuação das Forças Armadas e sua hierarquia em relação aos Três Poderes da República. Neste domingo (31), o ministro Flávio Dino depositou seu voto no plenário virtual da Corte e afirmou que “a função militar é subalterna” e que não existe, no regime constitucional brasileiro, um “poder militar”.

“O poder é apenas civil, constituído por três ramos [Executivo, Legislativo e Judiciário] ungidos pela soberania popular, direta ou indiretamente”, escreveu Dino, lembrando que o dia de hoje marca os 60 anos do golpe militar no Brasil, “um período abominável da nossa História Constitucional”, ocorrido em 31 de março de 1964.

“Há 60 anos, à revelia das normas consagradas pela Constituição de 1946, o Estado de Direito foi destroçado pelo uso ilegítimo da força”, afirmou o ministro.

O julgamento trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6457, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) em junho de 2020, sobre a Lei Complementar 97 de 1999, que regulamentou o Artigo 142 da Constituição, relacionado à atuação das Forças Armadas. A lei também foi alterada em 2004 e 2010.

O dispositivo afirma que as Forças Armadas são “instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

O PDT questionou a atuação das Forças Armadas como um poder moderador e a “autoridade suprema” do Presidente da República para utilizar as forças militares e pediu ao STF a interpretação sobre o dispositivo constitucional. Na ocasião, em junho de 2020, o relator da ação, ministro Luiz Fux, concedeu liminar esclarecendo que o Artigo 142 da Constituição Federal não autoriza a intervenção das Forças Armadas sobre o Legislativo, o Judiciário ou o Executivo.

Voto do relator

Em seu voto no plenário virtual, na última sexta-feira, Fux manteve o entendimento e afirmou que as Forças Armadas são instituições de Estado, e não de governo, “indiferentes às disputas que normalmente se desenvolvem no processo político”. Para ele, a missão institucional das Forças Armadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e na garantia da lei e da ordem não prevê “qualquer espaço à tese de intervenção militar, tampouco de atuação moderadora das Forças Armadas” entre os Três Poderes.

“O emprego das Forças Armadas para a ‘garantia da lei e da ordem’, embora não se limite às hipóteses de intervenção federal, de estados de defesa e de estado sítio, presta-se ao excepcional enfrentamento de grave e concreta violação à segurança pública interna, em caráter subsidiário, após o esgotamento dos mecanismos ordinários e preferenciais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, mediante a atuação colaborativa das instituições estatais e sujeita ao controle permanente dos demais poderes, na forma da Constituição e da lei”, escreveu.

O ministro explicou que a “garantia dos poderes constitucionais”, prevista no artigo 142 da Constituição, se refere à proteção de todos os poderes “contra ameaças alheias”. Portante, é uma forma de defesa das instituições democráticas contra “ameaças de golpe, sublevação armada ou movimentos desse tipo”.

Para Fux, a chefia do Presidente da República sobre as Forças Armadas é “poder limitado” e não é possível qualquer interpretação que permita o uso militar para “indevidas intromissões” no funcionamento dos outros poderes. “A prerrogativa do presidente da República de autorizar o emprego das Forças Armadas […] não pode ser exercida contra os próprios poderes entre si”, escreveu, explicando que o líder do Executivo exerce o poder de supervisão administrativo-orçamentária dos organismos militares.

Segundo ele, a autoridade do presidente sobre as Forças Armadas está relacionada à hierarquia e à disciplina da conduta militar, como o regramento sobre sua organização e nomeação de comandantes.

Pela modalidade virtual, os ministros inserem os votos no sistema eletrônico e não há deliberação presencial. O julgamento é aberto com o voto do relator e, em seguida, os demais ministros passam a votar até o horário limite estabelecido pelo sistema. Essa sessão de julgamento ocorre até o próximo dia 8.

Além de Luiz Fux, relator da matéria, e Flávio Dino, o ministro Luís Roberto Barroso se manifestou acompanhando o voto do relator, atendendo de forma parcial aos pedidos do partido.

Limitações

Entre outras solicitações, o PDT pediu que o STF limite o uso das Forças Armadas nas destinações previstas no artigo 142 da Constituição aos casos de intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio. O relator, entretanto, não viu razão para essa limitação.

“Caso assim agisse, estaria o Supremo Tribunal Federal a realizar recorte interpretativo que a própria Constituição não pretendeu efetuar. Por outro lado, a semântica dos artigos 1º e 15 da Lei Complementar 97/99 pode ser melhor aclarada em conformidade com a Constituição, no afã de eliminar eventuais interpretações que não possuem guarida na sistematicidade de suas normas”, escreveu, sugerindo uma atualização da lei que regulamentou o Artigo 142 da Constituição.

Para o ministro, também aplicar restrição do alcance da atuação de “defesa da pátria” “esvaziaria a previsão constitucional do artigo 142 e reduziria a eficácia dos dispositivos constitucionais que tratam da atuação internacional do país”, como as possibilidades de uso das Forças Armadas para proteção das faixas de fronteiras e dos espaços aéreos e marítimos. “Exemplificativamente, cito as missões de controle do fluxo migratório na fronteira com a Venezuela”, diz Fux.

Ao acompanhar o voto do relator, o ministro Flávio Dino acrescentou que a decisão seja enviada ao ministro da Defesa para que seja difundida para todas as organizações militares, inclusive escolas de formação, aperfeiçoamento e similares. “A notificação visa expungir desinformações que alcançaram alguns membros das Forças Armadas – com efeitos práticos escassos, mas merecedores de máxima atenção pelo elevado potencial deletério à Pátria”, escreveu Dino em seu voto.

Fonte: EBC Notícias