A percepção segundo a qual o Estado brasileiro tem pouco apreço pelo planejamento e afeição pela atuação improvisada é comum, muito embora seja visível o avanço na criação jurídico-institucional de instrumentos e processos de programação e organização de ações e atividades variadas.
A dimensão orçamentária é a face mais visível e organizada do planejamento estatal: as leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA) são objeto de extensa disciplina constitucional e também foco de leis esparsas, como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101/00).
Entretanto, as leis orçamentárias possuem enfoque específico voltado aos reflexos fiscais — em sentido amplo — e dimensão temporal de curto prazo. A plena realização dos compromissos estatais que embasam a fundação e os objetivos da República, por outro lado, demanda encarar o planejamento como função estatal essencial e estratégica para legitimar e condicionar a ação do Estado e ainda orientar a ação dos particulares.
A questão assume feições ainda mais relevantes quando se trata de direito fundamental de competência comum de todos os entes da Federação, como a educação. Com efeito, a competência comum agrega à diretriz de planejamento um componente organizacional essencial para saber quem deve fazer o quê, e de que forma, para imprimir colaboração, assegurar racionalidade e buscar efetividade, evitando sobreposição desnecessária de esforços e desperdício de recursos.
A despeito do planejamento, é também interessante invocar a conhecida figura do ciclo da política pública para relembrar a importância do monitoramento e da avaliação para buscar a maior efetividade e eficácia possíveis.
O PNE (Plano Nacional de Educação) é o instrumento constitucional essencial ao cumprimento dos deveres estatais ligados à educação. Trata-se de lei nacional, de duração decenal, que deve “articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas que conduzam a”:
I – erradicação do analfabetismo; II – universalização do atendimento escolar; III – melhoria da qualidade do ensino; IV – formação para o trabalho; V – promoção humanística, científica e tecnológica do País, VI – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto” (art.214 CF).
Existe um plano aprovado por lei, constitucionalmente prevista, com diretrizes, objetivos metas e estratégias de implementação. As metas estabelecidas no PNE são debatidas na Conferência Nacional de Educação-Conae e suas etapas subnacionais, sendo elaboradas com esteio em processo cuja densidade democrática decorre da participação social, cooperação federativa e também participação de órgãos de fiscalização e controle, como o Ministério Público Brasileiro e os Tribunais de Contas. As conferências de educação, vale o parêntese, são expressão especial de democracia, singular em todo mundo. Existe um plano, e cumpri-lo não pode ser apenas um detalhe.
Efeitos negativos
Incrivelmente, o final da vigência decenal do atual Plano Nacional de Educação-PNE, aprovado pela Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, traz consigo um cenário de desrespeito sistêmico às suas metas, sendo 86% em descumprimento e 45% em retrocesso[1] [2], e de desatenção dos poderes na elaboração e aprovação de um novo plano no prazo esperado [3]. A inconstitucionalidade e os efeitos negativos de eventual prorrogação do PNE atual já tem sido destacadas [4].
Dentre esses efeitos negativos, a sobrevida de um plano normativamente falho e atécnico, que não conseguiu trazer instrumentos para sua eficácia, é um problema que renova a expectativa de continuidade do descumprimento de metas.
O teor das metas do PNE não é o objeto desse questionamento. O problema reside não na elaboração das metas, mas no passo seguinte: a transformação do documento final da Conae em um Projeto de Lei, elaborado pelo Ministério da Educação e enviado, pelo presidente da República, ao Congresso.
Um instrumento de planejamento cogente não é feito só de metas; assim é com o PNE. Superada a fase de debate das metas, no processo de elaboração da lei que aprovará o plano devem ser criados instrumentos para que o plano seja cumprido, após sua aprovação e publicação. Trata-se de instrumentos moldados por técnicas normativas indispensáveis para que o plano tenha eficácia.
Em outros dizeres, sem previsão de consequências pelo seu descumprimento, a norma se autocondena à inefetividade e ineficácia, pois retira dos órgãos constitucionais responsáveis pela defesa do direito fundamental à educação os instrumentos técnicos de correção das omissões e contrariedades porventura verificáveis.
A questão é agravada sobremaneira pela persistência de omissão legislativa que afronta diretamente a Constituição, passível de ADO (ação direta de inconstitucionalidade por omissão): após mais de 35 anos de promulgação da Constituição Cidadã, até a presente data não foi regulamentado o mandamento constitucional de responsabilização educacional previsto no § 2º do artigo 208 [5]. Trata-se de omissão que bem caracteriza a total falta de prioridade na concretização do direito fundamental à educação (não sem razão, previsto no primeiro inciso do artigo 6º da CF), pois todos os demais mandamentos constitucionais de responsabilização/penalização ligados aos direitos fundamentais foram regulamentados.
Desta forma, a elaboração do novo Plano Nacional de Educação deve ser pautada por cuidado técnico-normativo cujos pressupostos principais, além dos regramentos legislativos básicos, são: a) respeito ao princípio do não retrocesso (não pode ser opção o definhamento de metas, mesmo diante do descumprimento generalizado do PNE 14/24); b) previsão de normas claras de acompanhamento e fiscalização, com mecanismos de análise periódica dos percentuais de adimplemento em ciclos menores de tempo, como verdadeiras metas parciais (lembremos que as gestões públicas não são decenais); e, c) criação de normas de responsabilização pelo descumprimento parcial e final de metas, especialmente diante da ausência de regulamentação em lei própria do artigo 208, § 2º da CF. Esse posicionamento foi externado pelo Ministério Público Brasileiro no verbete do Enunciado Copeduc nº 02/23 [6].
Não é o objetivo do presente artigo o aprofundamento nas modalidades de responsabilização penal, cível e/ou administrativa ideais, ainda que se possa reforçar que a responsabilização deve ser subjetiva. Na ausência de regramento especial, sabe-se que a Lei da Ação Civil Pública tem sido utilizada cotidianamente pelo Ministério Público na busca de obrigações de fazer ou não fazer para cumprimento do PNE e/ou regulação do exercício da discricionariedade que desconsidera prioridades constitucionalmente determinadas [7] — é o caso da contratação, por entes específicos, de shows por milhões de reais a despeito de metas pujantemente descumpridas do PNE.
Além disso, o novo Fundeb também abriu portas para uma espécie de responsabilização específica, isso pois passou a possibilitar a quantificação dos prejuízos gerados pela má-gestão diante das consequências da falta de repasses de verbas diante do descumprimento de obrigações educacionais traduzidas nas condicionalidades Vaat e Vaar (Lei 14.113/20, artigos 13 e 14). Ainda assim, falta no ordenamento regulação normativa clara para responsabilização educacional, além do estabelecimento de consequências (jurídicas, administrativas, fiscais) pelo descumprimento das metas do PNE, embaraçando sua eficácia e, também, a própria segurança jurídica.
Distribuição de responsabilidades
A despeito da necessidade de normas para responsabilização pessoal, é preciso aprimorar a distribuição de responsabilidades entre os entes e o acompanhamento do exercício das competências de cada qual, notadamente diante da inexistência, até o momento, do sistema nacional de educação. A questão não passou despercebida do TCU que, em auditoria para acompanhamento do PNE, recomendou ao Ministério da Educação:
9.1.2. no processo de definição das metas do Novo Plano Nacional de Educação:
9.1.2.1. especifique a responsabilidade de cada ente no cumprimento de metas cuja responsabilidade pela execução possa ser atribuída a mais de um ente ou que possam suscitar dúvida quanto a tal ônus, de forma a respeitar as atribuições descritas na Constituição Federal/1988 e na Lei 9.394/1996 (LDB);
9.1.2.2. identifique os problemas a serem enfrentados por cada meta e evite a inserção de metas que tenham finalidades semelhantes; […]
9.1.4. no que se refere às fases de monitoramento e avaliação dos planos subnacionais:
9.1.4.1. estabeleça diretrizes mínimas para as competências das instâncias de monitoramento e avaliação dos planos subnacionais de educação no âmbito dos estados e municípios.
9.1.4.2. estabeleça uma padronização de conteúdo mínimo dos relatórios de monitoramento e de avaliação, com objetivos claros e distintos para ambas as fases, bem como um detalhamento dos procedimentos a serem seguidos [8];
Por fim, é importante relembrar que a Constituição determina que “os órgãos e entidades da administração pública, individual ou conjuntamente, devem realizar avaliação das políticas públicas, inclusive com divulgação do objeto a ser avaliado e dos resultados alcançados” (artigo 37, §16) e também que as leis orçamentárias observem o resultado das avaliações (artigo 165, § 6º).
O reconhecimento da avaliação como uma atividade permanente realizada em todas as fases da política pública reforça sua vocação como instrumento de identificação de dificuldades e mudança de rumos, inclusive para efeito de eventual responsabilização.
Os planos de educação são instrumentos normativos essenciais para a eficácia do direito fundamental e materializam-se em um conjunto de metas e estratégias que devem ser cumpridos. O cenário de grave descumprimento de metas reforça a importância da previsão de instrumentos de responsabilização e, por isso, da inconveniência de prorrogar um plano com diversas deficiências normativas, despido de instrumentos de efetividade.
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[1] https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2023/02/plano-nacional-de-educacao-entra-na-reta-final-sem-cumprir-maioria-das-metas#:~:text=De%20acordo%20com%20a%20Campanha,possibilitar%20seu%20alcance%20at%C3%A9%202024
[2] https://media.campanha.org.br/acervo/documentos/PPT_Balanco2023PNE_2023_06_20_AudienciaPublica_Senado_AndressaPellanda_FINAL_revisado.pdf
[3] Há no Congresso Nacional, inclusive e diante da incerteza de um novo PNE, uma coordenação para a aprovação da prorrogação do Plano Nacional em curso:
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/05/28/prorrogacao-do-plano-nacional-de-educacao-passa-na-ce-e-segue-a-camara
[4] https://www.conjur.com.br/2024-fev-08/tentativa-de-extincao-da-vigencia-decenal-do-pne-cria-preocupacoes/
[5] Art.208. […]§ 2º O não-oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.
[6] https://cnpg.org.br/images/arquivos/gndh/documentos/enunciados/2023/Enunciado_02_COPEDUC.pdf
[7] A inversão de prioridades tem sido reiteradamente denunciada por Élida Graziane Pinto: “que as metas e estratégias do PNE perfazem obrigações legais de fazer que devem orientar substantivamente o conteúdo do dever de gasto mínimo em educação e a aplicação dos recursos do Fundeb (artigo 10 da Lei 13.005/2014). Como tal, não deveriam ser preteridas por despesas discricionárias alheias ao planejamento educacional.Tal dever de motivação é necessário, para que seja possível evidenciar o custo de oportunidade da execução orçamentária educacional quando são realizados, por exemplo, gastos em subfunções alheias à atribuição municipal, como ensino médio e superior; aquisição de material apostilado, a despeito da gratuidade do Programa Nacional do Livro Didático; contratação de servidores comissionados e temporários computados na folha da educação, mas cedidos a outros entes políticos etc.”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-28/atual-pne-tende-a-ser-prorrogado-porque-foi-quase-totalmente-descumprido/
[8] Acórdão TCU nº 969/2024 Plenário, Rel. Min. Vital do Rego
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O post Novo PNE sem responsabilidade educacional: vamos cometer o mesmo erro? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.