Plano não pode reajustar mensalidade acima do previsto pela ANS

Os planos de saúde devem seguir o limite de reajuste de 6,06%, conforme estipulou a Diretoria de Normas e Habilitação dos Produtos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em junho deste ano.

O entendimento é da juíza auxiliar Simone Rodrigues Valle, da 1ª Vara Cível de Bragança Paulista (SP), que acatou pedido de tutela de urgência para afastar um reajuste de 39,9% no plano de saúde de uma criança. A ação foi movida por sua mãe.

“O alto percentual de reajuste praticado pela operadora de saúde, além de aparentar possível abusividade, também poder tornar insustentável a continuidade dos pagamentos por parte da beneficiária, sendo recomendável a concessão da tutela de urgência pretendida para evitar eventual rescisão contratual por inadimplência, durante o trâmite da presente ação”, afirmou a juíza.

A juíza ainda determinou que a empresa que oferece o plano de saúde deve manter o valor da mensalidade inalterado até que o mérito da causa seja julgado, sob pena de multa diária de R$ 200.

“Não haverá qualquer prejuízo para a ré, pois se trata de medida reversível, podendo ela cobrar a diferença se o caso”, disse a juíza.

Atuou na defesa da autora o advogado Cléber Stevens Gerage.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1006001-07.2025.8.26.0099

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Divulgados os resultados da consulta pública sobre uso do fracking para exploração de óleo e gás

Divulgados os resultados da consulta pública sobre uso do fracking para exploração de óleo e gás

Metade das pessoas e entidades que participaram de uma consulta pública do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manifestaram opinião contrária à exploração de recursos energéticos de fontes não convencionais (óleo e gás de xisto ou folhelho) por meio da técnica conhecida como fraturamento hidráulico (fracking).

Realizada de 20 de maio a 20 de junho, a consulta vai servir de subsídio para uma audiência pública sobre o assunto, ainda sem data marcada. A controvérsia em torno do fracking é o tema de um incidente de assunção de competência (IAC 21) que será julgado pela Primeira Seção do STJ, sob a relatoria do ministro Afrânio Vilela.

A consulta pública, realizada por determinação do relator, recebeu 56 manifestações, sendo 48 de pessoas físicas e oito de entidades. Do total de manifestantes, 34% foram a favor do uso do fracking, enquanto 16% se mostraram favoráveis com restrições.

Risco ambiental ou segurança energética

O perfil dos respondentes incluiu técnicos da indústria de óleo e gás, profissionais da área jurídica e ambiental, acadêmicos e pesquisadores, cidadãos e representantes da sociedade civil, além de pessoas sem experiência declarada no assunto. Das entidades, a maior parte atua na área de energia, e as demais em ativismo ambiental.

O grupo contrário ao fracking alegou que a técnica é inaceitável devido aos seus impactos ambientais e sociais severos e irreversíveis. O principal temor é a contaminação de aquíferos e lençóis freáticos por produtos químicos tóxicos e radioativos, além do consumo excessivo de água.

Já os que defenderam a técnica sustentaram, entre outros pontos, que ela é uma ferramenta estratégica para garantir a segurança energética e o desenvolvimento econômico do país. Eles afirmaram também que uma regulação robusta, um licenciamento ambiental rigoroso e boas práticas de engenharia seriam medidas necessárias para mitigar os riscos.

Os resultados da consulta podem ser verificados aqui. O relatório integral será juntado aos autos, em apenso, e disponibilizado para as partes, excluídos apenas os dados pessoais (CPF, email e telefone) dos respondentes. 

Fonte: STJ

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Exclusão do polo passivo em exceção de pré-executividade autoriza honorários por equidade na execução fiscal

Em recurso repetitivo, a Primeira Seção entendeu que a fixação dos honorários de sucumbência por equidade se justifica porque não há como estimar o proveito econômico obtido com a decisão judicial.

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.265), fixou a seguinte tese: “Nos casos em que, da exceção de pré-executividade, resultar tão somente a exclusão do excipiente do polo passivo da execução fiscal, os honorários advocatícios deverão ser fixados por apreciação equitativa, nos moldes do artigo 85, parágrafo 8º, do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, porquanto não há como se estimar o proveito econômico obtido com o provimento jurisdicional”.

Com a definição da tese – adotada por maioria –, podem voltar a tramitar os recursos especiais e agravos em recurso especial que estavam suspensos à espera da fixação do precedente qualificado. O entendimento deverá ser observado pelos tribunais de todo o país na análise de casos semelhantes.

O ministro Gurgel de Faria, cujo voto prevaleceu no julgamento, explicou que a controvérsia analisada difere daquela tratada no Tema 1.076 do STJ e no Tema 1.255 do Supremo Tribunal Federal (STF). Nos temas anteriores, a preocupação era sobre como fixar honorários em causas de elevado valor econômico. Já no caso atual, a fixação de honorários por equidade se justifica por circunstância diversa: o provimento judicial alcançado tem valor econômico inestimável e não mensurável.

Tempo ganho com a exclusão da execução fiscal é inestimável

O ministro apontou que, em tese, seria possível adotar duas formas objetivas para estimar o proveito econômico obtido com a exclusão do coexecutado, o que permitiria aplicar os parágrafos 2º e 3º do artigo 85 do CPC/2015: a primeira seria a fixação dos honorários com base em percentual sobre o valor total da execução fiscal; a segunda consistiria na divisão proporcional do valor total da execução pelo número de coexecutados.

Ambas as soluções, no entanto, foram afastadas. Gurgel de Faria destacou que, mesmo com a exclusão do coexecutado, o crédito tributário permanece exigível dos demais devedores, o que inviabiliza a utilização do valor total da execução como parâmetro. Essa interpretação – acrescentou – poderia gerar um efeito multiplicador indevido, forçando a Fazenda Pública a arcar repetidamente com honorários sobre o valor integral da execução, sempre que houvesse exclusão de algum executado, o que elevaria excessivamente os custos da cobrança e caracterizaria bis in idem.

Quanto à proposta de cálculo proporcional por número de coexecutados, o ministro observou que essa metodologia também é inadequada, pois desconsidera a dinâmica própria da execução fiscal, em que podem ocorrer redirecionamentos posteriores a outras pessoas físicas ou jurídicas. Nessas situações – explicou –, o número de executados ao final da demanda dificilmente corresponderia ao número original, tornando impossível a mensuração precisa do benefício auferido.

Diante dessas dificuldades, o relator apontou que a Primeira Seção do STJ, ao julgar os EREsp 1.880.560, firmou o entendimento de que, quando a decisão apenas exclui o excipiente do polo passivo, sem extinguir o crédito tributário, os honorários devem ser fixados por equidade.

Ao reforçar essa conclusão, Gurgel de Faria enfatizou que, nessa hipótese, não há um proveito econômico imediato e mensurável, mas sim uma postergação do pagamento da dívida ativa. Para o relator, o tempo ganho com a exclusão da execução fiscal é, de fato, inestimável, já que o crédito remanescente permanece atualizado nos moldes legais e pode ser cobrado dos demais devedores – como já afirmado no AREsp 1.423.290.

Fonte: STJ

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Câmara aprova projeto que reforça medida protetiva em caso de aproximação do agressor

A Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que tipifica como descumprimento de medida judicial a aproximação do agressor de áreas delimitadas pelo juiz para proteção de vítima de violência contra a mulher mesmo com o seu consentimento. O texto será enviado ao Senado.

De autoria da deputada Dra. Alessandra Haber (MDB-PA), o Projeto de Lei 6020/23 foi aprovado nesta terça-feira (8) na forma do substitutivo da relatora, deputada Rogéria Santos (Republicanos-BA). Ela acrescentou ao projeto original os casos de aproximação do agressor da residência ou do local de trabalho da vítima.

Atualmente, a Lei Maria da Penha estabelece pena de reclusão de 2 a 5 anos e multa para aquele que descumprir decisão judicial sobre medidas protetivas de urgência previstas na lei.

Com as mudanças propostas, o descumprimento da determinação judicial de não se aproximar desses locais será considerado, para fins de enquadramento penal, mesmo que ocorra com o consentimento expresso da vítima, mas valerá apenas no caso de aproximação voluntária do agressor.

Debate em Plenário
Durante o debate em Plenário, a deputada Erika Kokay (PT-DF) disse que as medidas de proteção concedidas pelo Estado são essenciais para proteger a vida. “Flexibilizar as medidas de proteção significa colocar as vidas das mulheres em risco”, afirmou a parlamentar.

Erika Kokay ressaltou que a medida protetiva é a constatação de que houve situação de violência, muitas vezes sem ser física, mas real.

Segundo a deputada Fernanda Melchionna (Psol-RS), o ciclo da violência é perverso e muitas mulheres não acreditam que vão ser assassinadas por seus maridos e ex-maridos. “A moça em Canoas (RS), assassinada neste final de semana, estava em um abrigo protegida por dez dias, voltou para casa. Foi morta a marteladas”, relatou.

Melchionna destacou que o fato de ter uma medida protetiva é porque há risco de vida.

Deputados da oposição, porém, criticaram a medida como desrespeito à autonomia das mulheres. “A ausência de dolo desqualifica o delito. O homem não queria descumprir a medida protetiva, ele queria meramente ir à festa de aniversário do filho. Ele se comportou de maneira exemplar, nada aconteceu”, afirmou o deputado Delegado Paulo Bilynsky (PL-SP).

Ele lembrou que o Tribunal de Justiça de São Paulo criou jurisprudência considerando que não há crime quando, em caso de medida protetiva, a mulher convida o homem para sua convivência.

A deputada Maria Arraes (Solidariedade-PE) afirmou, no entanto, que a mulher deixa de ter autonomia quando consegue uma medida protetiva na Justiça. “A partir do momento que ela tem medo de sair na rua, com medo de encontrar seu agressor, não existe autonomia”, explicou.

Para a deputada Bia Kicis (PL-DF), a medida poderá impactar uma mulher que pedir ajuda ao ex-companheiro para levar um filho ao hospital. “Se essa mulher chamar o ex-companheiro e ele for acudir a criança, ele cometerá crime e poderá ser preso. Não faz sentido”, declarou.

Na opinião da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), o projeto premia a má-fé. “O que precisava ser combatido? A coação. A mulher quando é coagida, isso sim precisa encontrar combate e penalização. Agora, premiar a má-fé, isso não pode encontrar apoio”, disse.

Contudo, para a deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP), a violência é o extremo oposto de autonomia. “Uma mulher sob violência não tem autonomia. Porque ela tem sua individualidade, sua vida, sua segurança, todos seus direitos violados. Para resgatar a autonomia dessa mulher, ela precisa superar a condição de violência”, afirmou.

Fonte: Câmara dos Deputados

Prazo para reparo de defeito não afeta direito ao ressarcimento de danos materiais

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o prazo de 30 dias do artigo 18, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) não limita a obrigação do fornecedor de indenizar o consumidor, o qual deve ser ressarcido integralmente por todo o período em que sofreu danos materiais.

Na ação de danos materiais e morais ajuizada contra uma montadora e uma concessionária, o autor afirmou que comprou um carro com cinco anos de garantia e que, em menos de 12 meses, ele apresentou problemas mecânicos e ficou 54 dias parado nas dependências da segunda empresa ré, devido à falta de peças para reposição.

O caso chegou ao STJ após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso decidir que, além da indenização por dano moral, o consumidor tinha o direito de ser indenizado pelos danos materiais apenas em relação ao período que excedeu os primeiros 30 dias em que o carro permaneceu à espera de reparo. A corte local se baseou no parágrafo 1º do artigo 18 do CDC.

CDC não afasta responsabilidade do fornecedor

O relator na 4ª Turma, ministro Antonio Carlos Ferreira, disse que o CDC não exclui a responsabilidade do fornecedor durante o período de 30 dias mencionado no dispositivo, mas apenas dá esse prazo para que ele solucione o defeito antes que o consumidor possa escolher a alternativa legal que melhor lhe atenda: substituição do produto, restituição do valor ou abatimento do preço.

O ministro destacou que o prazo legal “não representa uma franquia ou tolerância para que o fornecedor cause prejuízos ao consumidor nesse período sem responsabilidade alguma”.

De acordo com o relator, uma interpretação sistemática do CDC, especialmente em relação ao artigo 6º, inciso VI – que trata do princípio da reparação integral –, impõe que o consumidor seja ressarcido por todos os prejuízos materiais decorrentes do vício do produto, sem limitação temporal.

“Se o consumidor sofreu prejuízos em razão do vício do produto, fato reconhecido por decisão judicial, deve ser integralmente ressarcido, independentemente de estar dentro ou fora do prazo”, completou.

Consumidor não pode assumir risco em lugar da empresa

Antonio Carlos Ferreira comentou que uma interpretação diversa transferiria os riscos da atividade empresarial para o comprador, contrariando a lógica do sistema de proteção ao consumidor.

Conforme apontou, o CDC busca evitar que a parte mais fraca arque com os prejuízos decorrente de defeitos dos produtos.

O ministro ressaltou, por fim, que “este entendimento não deve ser interpretado como uma obrigação genérica dos fornecedores de disponibilizarem produto substituto durante o período de reparo na garantia.

O que se estabelece é que, uma vez judicialmente reconhecida a existência do vício do produto, a indenização deverá abranger todos os prejuízos comprovadamente sofridos pelo consumidor, inclusive aqueles ocorridos durante o prazo do artigo 18, parágrafo 1º, do CDC”. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ver o acórdão
REsp 1.935.157

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STJ confirma condenação de seguradora com base em Teoria do Desvio Produtivo

O ministro João Otávio Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, confirmou a decisão que aplicou a Teoria do Desvio Produtivo para condenar uma seguradora a indenizar consumidores por danos morais. 

O autor da teoria é o advogado Marcos Dessaune. Segundo ela, cabe indenização nos casos em que o cliente tem de gastar seu tempo para solucionar problemas causados pela empresa fornecedora.

A decisão foi provocada por agravo impetrado pelo banco. No recurso, a instituição financeira alegou que o tribunal de origem deixou de analisar previsões contratuais referentes ao caso e violou o artigo 1.026 do CPC ao multá-lo sem fundamentação adequada. 

Também questionou a aplicação da Súmula 609 do STJ — que estabelece que a seguradora não pode recusar a cobertura se não exigiu exames médicos prévios à contratação ou se não comprovou a má-fé do segurado. 

Ao analisar o caso, o ministro apontou que a tese da exclusão da cobertura contratual, tendo em vista doença preexistente proposta pela seguradora, foi negada pelo tribunal de origem adequadamente. 

“Ademais, a decisão da corte de origem está de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça de que a seguradora, ao não exigir exames prévios, responde pelo risco assumido”, registrou. 

Por fim, o magistrado também confirmou a existência de dano moral indenizável, conforme a Teoria do Desvio Produtivo. “Fundamentou-se, para tanto, na privação sofrida pelos beneficiários quanto ao recebimento da quantia devida a título de seguro em razão do falecimento do segurado, circunstância que excede os meros dissabores cotidianos, configurando afronta à boa-fé objetiva e aos direitos da personalidade dos consumidores, o que enseja a devida compensação por danos morais.”

Clique aqui para ler a decisão
AREsp 2.897.551

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Comissão aprova classificação de crimes de violência doméstica como hediondos

A Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 2568/24, do deputado Cobalchini (MDB-SC), que insere os crimes cometidos com violência doméstica e familiar contra a mulher no rol dos delitos hediondos. 

Quem comete crime hediondo não pode, por exemplo, se beneficiar de anistia ou fiança, e deve ter a pena inicialmente cumprida em regime fechado. 

O texto foi aprovado pela comissão após recomendação da relatora, deputada Delegada Ione (Avante-MG). “Estamos buscando ampliar a proteção jurídica para preservar a vida da mulher”, disse.

“Também estamos afirmando diante dos homens agressivos que a violência contra a mulher será punida com um rigor maior por parte da nossa sociedade”, acrescentou Delegada Ione. 

O projeto altera a Lei de Crimes Hediondos, que hoje já considera o feminicídio e o estupro como crimes hediondos, entre outros. 

Próximos passosA proposta será analisada ainda pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania; e pelo Plenário. Para virar lei, precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado.

https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/crimes-hediondos/index.html

Fonte: Câmara dos Deputados

Negacionismo judicial: a hipótese do reconhecimento fotográfico

Parece não haver mais dúvidas que o reconhecimento a partir da exibição de fotografias é uma das principais fontes de injustiça nos julgamentos criminais. A ausência de cuidado e a violação de limites jurídicos, éticos e epistemológicos potencializa o que Daniel L. Shacter chamou de “pecados da memória”. [1]

Reprodução

A questão torna-se mais grave pelo desconhecimento demonstrado por juízes sobre o funcionamento da memória. Para entender a dinâmica do reconhecimento, é preciso compreender fenômenos como a transitoriedade, a distração, a distorção óptica, o bloqueio da memória, a sugestionabilidade da testemunha e, por fim, a atribuição equivocada da autoria.

Não é mais admissível que juízes ignorem avanços da ciência relativos à memória. Como haver um inegável enfraquecimento da memória com o tempo. A transitoriedade e a fragmentariedade dos dados são características que vão repercutir em falhas no processo de recordar. Informações juridicamente relevantes à cognição não chegam a ser registradas e, muitas vezes, isso ocorre em razão da distração, ruptura na interface entre a atenção para um determinado dado e a memória que se exige da testemunha.

Os juízes também não podem ignorar que é frequente a ocorrência de bloqueio, especialmente em situações traumáticas. Outro fenômeno bastante comum é a atribuição errada: confusão entre uma fantasia ou imaginação e o evento, por exemplo, quando a testemunha se lembra de determinada conduta, mas a atribui a uma pessoa que ela até já viu, mas que não foi a autora.

Pecados da memória

No campo do reconhecimento, os principais pecados da memória são a sugestionabilidade e a distorção. Lembranças são fabricadas a partir de comentários, imagens ou perguntas tendenciosas. Como explica Daniel L. Schacter, a “sugestionabilidade na memória pode ser descrita como uma tendência do indivíduo a incorporar informações enganadoras de fontes externas (…) a recordações pessoais” [2], que não raro transformam sugestões em lembranças e daí em uma atribuição errada. A sugestão é sempre fruto de uma ação de terceiros, mas quando é um agente estatal (policial, promotor ou juiz), a conduta se torna ainda mais danosa, porque tende a ativar o viés de confirmação.

A distorção é fenômeno que traduz a existência de fortes influências das informações que a vítima ou testemunha adquiriram após o fato sobre a maneira como elas se lembram e descrevem o evento. Se a vítima é informada que a pessoa que acabou de identificar, com hesitação, como o autor de um crime é conhecido por ser suspeito de crimes similares, tende à dúvida em certeza.

A memória não reproduz os fatos como ocorreram; os reconstrói a partir de elementos que não guardam relação necessária com a facticidade. As informações captadas pelos órgãos sensoriais ao longo da vida são transformadas e armazenadas como traços de memória. Nesse procedimento de criação e recriação, com frequência, recorre-se a elementos que não ocorreram no contexto do fato como forma de preencher lacunas ou dar coerência a um relato. A memória, para ser ativada, exige três fases: a codificação (entrada de um traço da memória), o armazenamento (manutenção de alguns traços da memória, enquanto outros são descartados) e a evocação (tentativa de reconstrução do fato e produção de memória apta a ser descrita pela linguagem). Distorções podem ser produzidas em cada uma dessas fases -a codificação pode se dar a partir de uma distorção óptica, ser fruto de uma distração ou mesmo de um preconceito do observador.

Se a prova testemunhal é oportunidade para produção desses vícios, no procedimento de tentativa de reconhecimento fotográfico, conduzido sem cuidados mínimos, os riscos aumentam exponencialmente. Com frequência, a testemunha é submetida à sugestão, até de forma involuntária.  Sempre que essa pessoa é informada que os suspeitos retratados em álbum de reconhecimento são conhecidos por crimes similares, ela tende a acreditar que o criminoso se encontra no álbum e acaba por reconhecer uma das pessoas que lhe foram mostradas. A técnica da exibição do álbum de suspeitos, por si só, já tem o poder de influenciar em falsas atribuições.

Problema dos erros de reconhecimento: tradição autoritária e racionalidade neoliberal

Outros fenômenos são também decisivos para o grande número de erros de reconhecimento.

Em primeiro lugar, a tradição autoritária que condiciona a atuação tanto de quem vai efetuar o reconhecimento, como de quem vai cuidar de operacionalizá-lo e, ainda, do juiz responsável por avaliar a legitimidade e a qualidade da prova.

Por tradição autoritária entende-se o conjunto de sistemas simbólicos ligados à ideia de força e desconfiança do conhecimento: valores que se tornam hegemônicos, percepções da realidade, pré-compreensões, preconceitos e práticas sedimentadas que apostam no uso da força e, ao mesmo tempo, desconfiam do saber.

É possível identificar na sociedade brasileira todos os sintomas da personalidade autoritária descritos por Theodor Adorno na pesquisa [3] que conduziu nos EUA, no pós-guerra, para verificar tendências antidemocráticas -convicções políticas, econômicas e sociais que formam a mentalidade autoritária. Dentre esses sintomas, destacam-se o convencionalismo (aderência rígida aos valores da classe média), a submissão autoritária (postura submissa e acrítica diante da autoridade), o pensamento estereotipado (forma de pensar por categorias rígidas, recorrendo a preconceitos como premissas), a simplificação excessiva da realidade (tendência a recorrer a explicações primitivas) e a dureza (preocupação de agir no sentido de reforçar as ideias de força e dureza, do domínio e submissão).

É inegável que considerável parcela da classe média brasileira é conservadora, classista, racista, sexista, punitivista e percebe os direitos fundamentais como obstáculos à eficiência repressiva do Estado. As pessoas envolvidas no reconhecimento tendem a reproduzir: práticas que levam à eliminação da diferença; diversas violências: intersubjetivas, sistêmicas e simbólicas e incapacidade de reflexão. Se a classe média violenta naturaliza a tortura e os linchamentos, os envolvidos no ato de reconhecimento também tendem a violar os limites éticos, jurídicos e epistemológicos no ato de indicar uma outra pessoa, não raro percebida como um inimigo a ser neutralizado.

O sintoma social da submissão autoritária faz com que as pessoas que devam fazer o reconhecimento tendam a confirmar as hipóteses defendidas por figuras de autoridade numa manifestação do viés de confirmação. Mais, percebe-se uma tendência a ser intolerante, repudiar e castigar as pessoas apontadas como suspeitas.

A dureza faz com que as pessoas apostem em respostas de força e não aceitem deixar escapar criminosos em potencial. Para eles, suspeitos devem ser tratados de forma exemplar, sem hesitações ou empatia. Há uma espécie de deslocamento imaginário e semântico que faz o suspeito ser tratado como inimigo.

A simplificação excessiva da realidade e o pensamento estereotipado fazem com que o cuidado com procedimento de reconhecimento acabe desconsiderado, já que se pode chegar ao resultado sem tantas formalidades. Com características do pensamento autoritário, os preconceitos atuam mais decisivamente na produção do resultado. Assim, o reconhecimento positivo se constrói a partir de preconceitos transformados em premissas, tais como “se a pessoa está ali entre os suspeitos, deve ser culpada de algo”, “negros são violentos”, “mulheres não prestam”.

Tradição autoritária

A tradição autoritária também faz com que direitos fundamentais sejam percebidos como obstáculos à eficiência punitiva. Bom lembrar que a sociedade brasileira nunca foi capaz de elaborar adequadamente fenômenos como a escravidão e a ditadura. Por isso, ainda hoje, no Brasil, naturaliza-se uma espécie de hierarquização: pessoas matáveis e pessoas que não devem ser mortas, pessoas dignas de proteção do Estado e pessoas que não merecem ser tratadas com dignidade. E, incapazes de elaborar o que ocorreu durante a ditadura instaurada em 1964, amplos setores acreditam que os anos de chumbo foram marcados por paz, tranquilidade e ausência de corrupção. Ocorre no Brasil o fenômeno da retrotopia, [4] identificado por Bauman: o desejo de voltar a um passado idealizado, que nunca se fez presente. Como demonstram diversas pesquisas conduzidas por historiadores que revelam inúmeros casos de arbítrio, opressão, violações dos direitos mais básicos e, ainda, muita corrupção durante o regime militar.

Também a hegemonia da racionalidade neoliberal ajuda a compreender a naturalização das injustiças no reconhecimento. Por racionalidade neoliberal, entende-se um certo modo de ver e atuar que trata tudo e todos como objetos negociáveis. [5] Esse modo de pensar (e julgar) por cálculos na busca por vantagens tornou-se a regra. [6] No Estado condicionado pela racionalidade neoliberal dá-se uma reaproximação pornográfica entre poder político e poder econômico. [7] O Judiciário, por exemplo, passa a atuar preponderantemente como mero homologador das expectativas dos detentores do poder econômico, como agência de controle das populações indesejáveis.

A partir da hegemonia dessa racionalidade, juízes passaram a decidir, não mais com base em regras e princípios que miram na concretização do projeto constitucional, mas a partir de cálculos entre os interesses em jogo. Em matéria penal, muitas vezes, julgamentos são construídos para agradar maiorias forjadas na desinformação e transformam a ideia de punição em paixão nacional. [8] Fenômenos como o punitivismo e o populismo penal, que crescem a partir da manipulação do medo e da sensação de insegurança da população, passaram a influenciar a aplicação da lei penal, até mesmo o processo de reconhecimento.

Uma das manifestações destes cálculos de interesse ocorre na retórica da proteção da sociedade. Juízes recorrem a uma ponderação entre direitos fundamentais concretos e o direito abstrato à segurança. Ignoram, assim, a advertência de Dworkin de que só é possível e juridicamente legítimo ponderar direitos e interesses de igual densidade [9]. Um direito concreto individual não pode ser ponderado com um direito abstrato coletivo, sob pena de relativização e negação de todos os direitos individuais.

Antídotos ao negacionismo judicial em matéria de reconhecimento fotográfico

Diante dos avanços científicos na compreensão das falhas da memória, como explicar que tantos juízes continuem a relativizar os cuidados exigidos no artigo 226 do CPP? Como explicar que sigam a considerar que o reconhecimento por fotografia possa ser efetivo sem que outras fotos de pessoas semelhantes figurem ao lado do suspeito? Como admitir tantos reconhecimentos em descompasso com os procedimentos que foram desenvolvidos como garantias do valor verdade? Trata-se de puro negacionismo (científico, histórico e cultural), com pitadas de punitivismo.

Romper com o negacionismo é apostar no conhecimento que contribui para a justiça das decisões e, portanto, para evitar que inocentes acabam condenados. A resposta passa por reconhecer a importância de constrangimentos epistemológicos e jurídicos que funcionem como obstáculos a reconhecimentos indevidos. É preciso apostar em limites legais, éticos e epistemológicos ao reconhecimento por fotografia.

A admissão pelo STF da repercussão geral (Tema 1.380) parece ser uma boa oportunidade para reafirmar a ciência e evitar condenações injustas. O caminho para a incorporação jurisprudencial dos avanços científicos e o abandono das mistificações foi aberto pelo Superior Tribunal de Justiça e encontram-se, com destaque, nas teses firmadas no Tema 1.258 e ainda na Resolução 484/2022 (CNJ):

  1. só é possível o reconhecimento de suspeito por fotografia se não for possível o reconhecimento pessoal;
  2. o procedimento de reconhecimento por fotografia deve reproduzir os cuidados exigidos pelo artigo 226 do CPP, com destaque para a formalização prévia da descrição do autor do delito e a exibição de fotos do suspeito ao lado de fotos de pessoas que se pareçam com a descrição fornecida pela vítima;
  3. o reconhecimento (pessoal ou fotográfico) deve ser tido como irrepetível; o vício do primeiro procedimento de reconhecimento contamina os seguintes;
  4. a única exceção feita à vedação da produção de novos reconhecimentos é a possibilidade da realização de um novo ato a pedido da defesa;
  5. por ocasião do reconhecimento por fotografia, não podem ser adotadas as técnicas da exibição de álbum de fotografia ou a do show-up (exibição de uma única foto), mas a técnica do alinhamento, a exibição simultânea da foto de várias pessoas alinhadas;
  6. nas fotos exibidas por alinhamento devem constar exclusivamente retratos de pessoas de tipo físico semelhante, com as fotografias obedecendo o mesmo padrão;
  7. qualquer foto (em redes sociais, aparelhos celulares etc.), imagem ou vídeo da pessoa a ser identificada que for exibida antes do reconhecimento contamina o resultado;
  8. qualquer informação sobre as pessoas exibidas à testemunha ou vítima também contamina o reconhecimento;
  9. é preciso que sejam dadas instruções adequadas para que a testemunha ou vítima compreenda que o autor do delito pode não se encontrar retratado nas fotos;
  10. o responsável pelo procedimento de reconhecimento não pode dar qualquer informação relativa à confirmação do reconhecimento de um suspeito;
  11. o reconhecimento positivo não exclui o dever do Estado de trazer aos autos todas as provas possíveis à confirmação da hipótese acusatória, tais como gravações do local do crime, imagens das câmeras corporais de agentes policiais. A perda de qualquer chance probatória fragiliza o reconhecimento da autoria delitiva.

Espera-se que o STF apresente parâmetros adequados à normatividade, afastando-se das mistificações e negacionismo típicos do populismo penal.


[1] SCHACTER, Daniel L. Os setes pecados da memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

[2] Ob. cit., p. 143.

[3] ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

[5] Sobre a racionalidade neoliberal: DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016; CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

[6] SUPIOT, Alain. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayard, 2015.

[7] Sobre a mutação neoliberal do Estado: CASARA, Rubens. Estado pós-democrático. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

[8] FASSIN, Didier. Punir: une passion contemporaine. Paris: Le Seuil, 2017.

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Fonte: Conjur

CCJ aprova regra sobre dissolução do casamento no caso de morte presumida de um dos cônjuges

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que esclarece, no Código Civil, a situação de dissolução do casamento nos casos de morte presumida. Conforme a proposta, a simples presunção da morte em caso de ausência de um dos cônjuges não será causa para a dissolução do matrimônio. No entanto, a união poderá se dissolver se a morte presumida for oficialmente declarada.

O projeto foi aprovado em caráter conclusivo e poderá seguir para o Senado, caso não haja recurso para que seja votado no Plenário da Câmara.

Por recomendação do relator, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), o texto aprovado foi o substitutivo da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família para o Projeto de Lei 7058/17, da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ). 

Veja os textos aprovados na íntegra

Pelo disposto, atualmente, no Código Civil, o cônjuge do ausente pode optar entre pedir o divórcio para se casar novamente ou esperar pelo necessário provimento judicial quanto à ausência. “Apesar de o divórcio ser obtido mais rapidamente, o novo estado jurídico do cônjuge após a dissolução do vínculo matrimonial traz consequências, como perder o direito à sucessão e deixar de ser o legítimo curador dos bens da pessoa ausente”, explicou o relator, ao votar favoravelmente ao projeto.

“O substitutivo dispõe que o casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges, pelo divórcio ou em caso de declarada a morte presumida, o que, em nosso entendimento, torna mais adequada a situação do cônjuge, que já é bastante gravosa”, acrescentou Ricardo Ayres.

Fonte: Câmara dos Deputados

Turbinamos as incoerências da tributação indireta?

A tributação indireta, no Brasil, convive com incoerências antigas. Uma das principais — e mais persistentes — é a dúvida sobre quem seria o “verdadeiro contribuinte”. Às vezes é o consumidor final. Às vezes, o comerciante que vende a mercadoria. Depende do interesse envolvido.

Abordei esse tema de forma mais detida no livro Repetição do Tributo Indireto: Incoerências e Contradições (Malheiros, 2011). Mais tarde, num estágio de pós-doutorado, pude comparar a jurisprudência brasileira com a europeia. E lá, embora também haja dificuldades, notei maior preocupação com a coerência e com a efetividade do sistema. Já que se importou tanta coisa na construção dos anteprojetos, bem que poderíamos ter trazido junto a orientação do Tribunal de Justiça da União Europeia, segundo a qual o fornecedor não precisa provar que não repassou o tributo ao consumidor se quiser reavê-lo (clique aqui).

Esse é o problema de copiar e colar textos legais alienígenas. A jurisprudência formada lá fora em torno deles nem sempre vem junto.

A propósito, quanto ao tema, no Brasil as coisas funcionam assim: se o fornecedor pede restituição do tributo, dizem que ele não é o “verdadeiro contribuinte”, porque teria repassado o encargo ao consumidor. Se, por sua vez, é o consumidor quem pede a restituição, dizem que ele não é contribuinte, mas mero destinatário econômico da carga tributária, sem legitimidade para reclamar nada.

Algo semelhante acontece com as isenções e imunidades subjetivas, e com os efeitos do inadimplemento. Quando o contribuinte “de direito” recebe o preço mas não paga o tributo, é acusado de apropriação indébita, pois teria apenas o dever de repassar valores que lhe foram entregues pelo consumidor. Mas se o consumidor não paga, e o fornecedor fica sem receber, o discurso muda: o tributo deve ser recolhido de todo modo, já que a obrigação é do fornecedor — o “verdadeiro contribuinte”, nesse caso.

Simplificando: como costumo dizer aos meus alunos, o verdadeiro contribuinte, no Brasil, é sempre quem não estiver reclamando. Apareceu alguém pedindo algum direito? Pronto: já não é o verdadeiro contribuinte.

Roupa nova

Cheguei a escrever, há algum tempo, aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico, que a reforma tributária poderia ser a chance de corrigir essas distorções (clique aqui, e aqui e aqui). Infelizmente, com pouca participação de quem paga a conta e forte influência de quem a cobra, os projetos não apenas mantiveram os problemas — deram a eles uma nova roupagem e mais força normativa.

Um bom exemplo é o artigo 38 da LC 214/2025, que piora — e muito — as exigências do já problemático artigo 166 do CTN. Antes era difícil obter a restituição do tributo indireto. Agora, parece impossível. Mas o problema não para aí.

Surge também uma dúvida nova: quem é o “verdadeiro credor” do IBS? Será o estado (e o município) de destino? Os de origem? O Comitê Gestor? Ou, como na lógica anterior, será sempre aquele contra quem não se estiver reclamando? O tempo dirá. Mas há duas contradições relevantes já visíveis na nova legislação, que merecem atenção.

A primeira decorre do próprio artigo 38. Ele condiciona a restituição do tributo ao não aproveitamento do crédito pelo adquirente. A lógica é a de que, se houve creditamento, o valor pago a mais não gerou prejuízo, visto que abatido pelo elo seguinte da cadeia — então, não cabe devolução. Mas essa lógica, se for levada a sério, precisaria valer também no outro sentido: se um fornecedor recolheu a menos e, por isso, seu cliente aproveitou crédito menor, esse prejuízo já foi compensado no elo seguinte. O Fisco, nesse caso, não teria prejuízo — então também não deveria autuar o fornecedor.

Será que observaremos essa coerência?

A segunda contradição está no artigo 47 da mesma lei complementar, que exige o efetivo pagamento do tributo como condição para o direito ao crédito, mesmo fora das hipóteses excepcionais previstas pela Constituição. Isso transfere ao adquirente o risco do inadimplemento do fornecedor — rompendo com a tradição do IVA (e também do ICMS e do IPI), segundo a qual o crédito nasce da incidência, e não da arrecadação.

O resultado é um sistema que permite cobrança em duplicidade: nega-se o crédito ao adquirente (que assim paga o seu tributo e o devido pelo elo anterior) mas, ao mesmo tempo, mantém-se a exigência contra o fornecedor inadimplente, que, quando a pagar, fará com que o Fisco receba duas vezes. Se o crédito depende do pagamento, o não creditamento deveria gerar a remissão da dívida anterior. Do contrário, como dito, a Fazenda ganha duas vezes — o que não parece compatível com os princípios da não cumulatividade, da neutralidade e da coerência.

É como se o sistema tivesse montado uma gangorra tributária com um só lado, o da Fazenda, sempre em cima, sorridente. Enquanto isso, os contribuintes oscilam entre ser e não ser o “verdadeiro” titular de direitos, conforme a conveniência da cobrança. Se há crédito, não há restituição; se não há crédito, há autuação. Se o tributo foi pago, ótimo — e se não foi, melhor ainda, porque alguém acabará pagando mesmo assim. O que se perde, com esse jogo de pesos e contrapesos falsamente equilibrado, não é apenas dinheiro, mas o próprio eixo da justiça fiscal. A própria juridicidade do Direito. Ao invés de um sistema de engrenagens bem ajustadas, temos um carrossel viciado, em que o contribuinte gira, gira… e termina sempre no mesmo lugar: pagando a conta.

Fonte: Conjur