Câmara aprova projeto que eleva pena por homicídio de profissional de saúde

Câmara dos Deputados aprovou proposta que aumenta a pena de homicídio praticado contra profissional de saúde no exercício de sua profissão ou em decorrência dela. A pena padrão de homicídio, de reclusão de seis a 20 anos, passa a ser de 12 a 30 anos. O texto segue agora para o Senado.

O Projeto de Lei 6749/16, de autoria do ex-deputado Goulart, foi aprovado nesta terça-feira (27/5) com mudanças feitas pelo relator, deputado Bruno Farias (Avante-MG). Ele incluiu esse crime na lista dos hediondos, assim como os de lesão corporal de natureza gravíssima e lesão seguida de morte.

Será considerado hediondo ainda esse crime de lesão se atingir cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até o terceiro grau em razão do vínculo.

Quanto aos crimes de lesão, as penas de reclusão de dois a cinco anos são aumentadas de um terço a dois terços se forem de natureza grave, gravíssima ou seguidos de morte. Nesse caso, o aumento valerá também se o crime for contra profissionais de educação no exercício de sua função ou em decorrência dela.

Para o crime de constranger alguém por meio de violência ou grave ameaça, com pena de detenção de três meses a um ano, e para o de incitação pública ao crime (detenção de três a seis meses), o projeto prevê aumento de pena em dobro caso praticados contra profissionais de saúde no exercício de suas funções ou em decorrência dela.

Injúria e desacato

Tanto se for contra profissionais de saúde ou contra profissionais de educação no exercício de suas funções, ou em decorrência dela, o texto aumenta as penas para os seguintes crimes:

— Aumento de um terço nas penas de detenção por injúria, calúnia ou difamação;

— Aumento em dobro na pena de detenção de um a seis meses para o crime de ameaça; e

— Aumento em dobro na pena de detenção de seis meses a dois anos por desacato a funcionário público.

O relator afirmou que é preciso assegurar a integridade física e mental dos profissionais de saúde. “Um trabalhador inseguro, desrespeitado ou emocionalmente abalado terá mais dificuldade em exercer suas funções com a atenção, o cuidado e a empatia necessários”, disse ele. “Valorizar quem cuida é um passo necessário para a construção de uma sociedade mais saudável e solidária.”

Farias afirmou que a mesma lógica deve ser aplicada aos profissionais de educação. “Garantir a integridade física e mental, valorizar a profissão e fortalecer a qualidade do ensino fazem parte de princípios essenciais para a efetivação do direito à educação segura e proteção dos educadores.”

Com informações da Agência Câmara.

Prazo de 30 dias para reparo de produto defeituoso não afeta direito ao ressarcimento integral de danos materiais

O carro do autor da ação ficou 54 dias parado na oficina à espera de peças, e a Quarta Turma decidiu que ele tem o direito de ser indenizado pelos danos comprovadamente sofridos desde o primeiro dia.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o prazo de 30 dias do artigo 18, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) não limita a obrigação do fornecedor de indenizar o consumidor, o qual deve ser ressarcido integralmente por todo o período em que sofreu danos materiais.

Na ação de danos materiais e morais ajuizada contra uma montadora e uma concessionária, o autor afirmou que comprou um carro com cinco anos de garantia e que, em menos de 12 meses, ele apresentou problemas mecânicos e ficou 54 dias parado nas dependências da segunda empresa ré, devido à falta de peças para reposição.

O caso chegou ao STJ após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) decidir que, além da indenização por dano moral, o consumidor tinha o direito de ser indenizado pelos danos materiais apenas em relação ao período que excedeu os primeiros 30 dias em que o carro permaneceu à espera de reparo. A corte local se baseou no parágrafo 1º do artigo 18 do CDC.

CDC não afasta responsabilidade integral do fornecedor

O relator na Quarta Turma, ministro Antonio Carlos Ferreira, disse que o CDC não exclui a responsabilidade do fornecedor durante o período de 30 dias mencionado no dispositivo, mas apenas dá esse prazo para que ele solucione o defeito antes que o consumidor possa escolher a alternativa legal que melhor lhe atenda: substituição do produto, restituição do valor ou abatimento do preço.

O ministro destacou que o prazo legal “não representa uma franquia ou tolerância para que o fornecedor cause prejuízos ao consumidor nesse período sem responsabilidade alguma”.

De acordo com o relator, uma interpretação sistemática do CDC, especialmente em relação ao artigo 6º, inciso VI – que trata do princípio da reparação integral –, impõe que o consumidor seja ressarcido por todos os prejuízos materiais decorrentes do vício do produto, sem limitação temporal.

“Se o consumidor sofreu prejuízos em razão do vício do produto, fato reconhecido por decisão judicial, deve ser integralmente ressarcido, independentemente de estar dentro ou fora do prazo”, completou.

Consumidor não pode assumir risco em lugar da empresa

Antonio Carlos Ferreira comentou que uma interpretação diversa transferiria os riscos da atividade empresarial para o comprador, contrariando a lógica do sistema de proteção ao consumidor. Conforme apontou, o CDC busca evitar que a parte mais fraca arque com os prejuízos decorrente de defeitos dos produtos.

O ministro ressaltou, por fim, que “este entendimento não deve ser interpretado como uma obrigação genérica dos fornecedores de disponibilizarem produto substituto durante o período de reparo na garantia. O que se estabelece é que, uma vez judicialmente reconhecida a existência do vício do produto, a indenização deverá abranger todos os prejuízos comprovadamente sofridos pelo consumidor, inclusive aqueles ocorridos durante o prazo do artigo 18, parágrafo 1º, do CDC”.

Leia o acórdão no REsp 1.935.157.

Fonte: STJ

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Esquerda punitiva e intimação por edital de decisão de medida protetiva

Durante muito tempo, prevaleceu a percepção de que a pauta do punitivismo advinha, predominantemente, de discursos de políticas criminais da direita, especialmente dos movimentos de “lei e ordem” (law and order).

Mas coube à professora Maria Lúcia Karam, em meados de 1996, publicar um precioso ensaio, intitulado “A esquerda punitiva” [1]. Ali, Karam nos provoca a refletir que também há punitivismo em certas políticas criminais da esquerda. É dizer, a ideologia repressora possui vida própria para além de posições à direita ou à esquerda.

Pois bem, posteriormente, Karam revigora o texto em um livro [2], atualizando as pautas punitivistas da esquerda dos últimos anos. E ali se inclui a questão do mau tratamento à violência doméstica pelo sistema penal brasileiro.

Noutra perspectiva, é possível complementar a crítica com a abordagem que Zaffaroni [3] fez ao tratar, no seu indispensável “O inimigo no Direito Penal”, do “autoritarismo cool”, aquele autoritarismo “legal”, “maneiro”, que, por ser assim, se apresenta acima de todas as críticas, “além do bem e do mal”. Então, Zaffaroni nos ensina que este “autoritarismo cool” é popularesco, desmerece a técnica e se vale de um discurso fácil para, rechaçando as garantias constitucionais, nos convencer que: neste campo aqui, tudo pode!

Mas não! A Constituição não permite pretensões jurídicas absolutas, nem mesmo a favor dos mais vulneráveis. Em toda pretensão, há de haver um limite, orientado pelas garantias constitucionais!

Intimação via edital

Neste contexto, visando a suprir a necessidade de intimação de decisões de medidas protetivas para sujeitos não encontrados, o enunciado nº 43 do Fonavid (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica) regulamentou a modalidade via edital, com a seguinte redação: “ENUNCIADO 43: Esgotadas todas as possibilidades de intimação pessoal, será cabível a intimação por edital das decisões de medidas protetivas de urgência.”

Aqui merece ressalva a banalização da utilização de modalidade de intimação por edital na seara criminal, na medida em que se trata, em essência, de uma intimação ficta, que geraria uma presunção de ciência. A rigor, presunção não é nada além de uma mera ficção. E a ficção, quando produz efeitos jurídicos drásticos — como a presunção de ciência da medida protetiva — no campo penal, o faz, via de regra, com feições autoritárias.

Pois bem, para além da incerteza da ciência através da intimação ficta, faz-se necessária a análise das possíveis repercussões cautelares e dogmático-penais.

No tocante às repercussões cautelares, eventual “descumprimento” da medida protetiva não pode servir, exclusivamente com base na cientificação via edital, de base para o agravamento cautelar, sobretudo quando se trata de fundamento à prisão preventiva. Este entendimento foi seguido no julgamento do habeas corpus pelo Tribunal de Justiça do Paraná: 0002588-22.2024.8.16.0000 Curitiba, Relator: Mauro Bley Pereira Junior, Data de Julgamento: 24/02/2024, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 26/02/2024.

Descumprimento de medida protetiva

Já no que diz respeito às repercussões penais, aqui a situação se apresenta de maneira igualmente sensível, na medida em que o artigo 24-A, da Lei 11.340/06 tipifica o descumprimento de medida protetiva, contando com um substancial agravamento do preceito secundário do tipo a partir da Lei nº 14.994/24 (de detenção de três meses a dois anos, para reclusão de dois a cinco anos, e multa).

Neste contexto, imputações de prática do crime do artigo 24-A, calcadas na mera intimação por edital, carecem de materialidade, na medida em que a modalidade editalícia não é medida minimamente segura para atestar a ciência da obrigatoriedade do cumprimento de medida protetiva, notadamente por ser exigido, no aludido tipo penal, o dolo como elemento subjetivo. Entendendo por este caminho, destaca-se o julgamento da Apelação Criminal, pelo TJ-SP, de nº 1503617-91.2022.8.26.0269 Itapetininga, relator: Marcelo Gordo, Data de Julgamento: 26/05/2023, 13ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 26/05/2023.

Desde a perspectiva aqui abordada, a respeito do populismo penal como resposta à violência doméstica, é importante ressaltar que acontece de as partes envolvidas, não raro, voltarem, consensualmente, a se relacionar, mesmo após as medidas protetivas. Não obstante, com certa frequência, as agências penais têm ignorado essa nova conjuntura e seguido, cegamente, o caminho da criminalização (artigo 24-A da Lei 11.340/06).

Contato consensual

Com efeito, ainda que se trate de intimação regular acerca da decisão de medida protetiva, o fato de o contato ser consensual não parece permitir a tipicidade, na medida em que, à luz da função conglobante [4] da tipicidade, carece de antinormatividade o fato de a beneficiária da medida protetiva “abrir mão” da ordem judicial. Afinal de contas, o que embasou a decisão foi exatamente o medo/receio do contato, ou seja, não há lesividade na conduta!

Ainda que entendesse típico, estamos diante de pelo menos duas causas evidentes de exclusão de crime. Temos o consentimento da ofendida (como causa supralegal de exclusão da ilicitude), bem como o erro de proibição (artigo 21, CP).

Seguramente, não dá pra se exigir, de um leigo, que perceba que continua prevalecendo a medida protetiva se a beneficiária busca — ou ao menos consente com — o contato.

Do contrário, que sistema penal é este, que age numa situação que nem a separação de corpos do direito de família é confirmada?

A pauta da esquerda punitiva para a violência doméstica possui como pano de fundo a ideologia da repressão, de tal sorte a, embalada pelo “autoritarismo cool”, colocar o poder punitivo como prima ratio!


[1] KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Revista Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, nº 1, ano 1, 1º semestre de 1996, p. 79-92.

[2] KARAM, Maria Lucia. A ‘Esquerda Punitiva’: vinte e cinco anos depois. São Paulo: Tirant Lo Blanch Brasil, 2021, p. 102ss.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3ª Ed. 5ª reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2017.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Volume II. Tomo I. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016.Fonte: Conjur

Fonte: Conjur

Comissão aprova permissão para estados e DF legislarem sobre questões de direito agrário

A Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei Complementar (PLP) 2/25, que autoriza os estados e o Distrito Federal a legislar sobre cinco questões de direito agrário: cooperativismo; uso e manejo do solo; contratos agrários; regularização fundiária; e modelos inovadores de regulamentação para o setor agropecuário. O texto é do deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP).

Hoje, por determinação da Constituição, esses pontos são definidos por lei federal.

Segundo o relator, deputado Ronaldo Nogueira (Republicanos-RS), ao permitir que os estados e o Distrito Federal legislem sobre questões específicas do direito agrário, o projeto promove políticas públicas mais eficazes e alinhadas às necessidades regionais.

Nogueira disse que é promissora a possibilidade de os estados instituírem ambientes regulatórios experimentais para inovações no campo, como no uso de drones, insumos biológicos e rastreabilidade ao longo de toda a cadeia produtiva. “A norma pode permitir que empresas e cooperativas testem tecnologias com menor carga regulatória, sob supervisão da secretaria estadual de agricultura ou meio ambiente, com regras especiais por 12 meses”, afirmou o relator.

Próximos passos
O projeto ainda será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois seguirá para o Plenário. Para virar lei, a proposta precisa ser aprovada pela Câmara e pelo Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados

Lei que regulamenta direitos de trabalhadores domésticos completa dez anos

 

Passados dez anos da aprovação da lei que regulamentou os direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras domésticas (LC 150/15), deputados e representantes da categoria lutam para garantir esses direitos, melhorar o ambiente de trabalho e alcançar novas conquistas, como o abono salarial do PIS e o acesso a creches públicas.

A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) chamou atenção para os vários os casos de trabalhadores sendo resgatados em situação semelhante à escravidão. “Nós temos tido avanços, mas ainda não concluímos a tarefa de ter as trabalhadoras domésticas com seus direitos conquistados cumpridos pelos seus empregadores”, afirma.

Benedita da Silva atuou tanto pela aprovação da Emenda Constitucional 72, de 2013 – que equiparou os direitos dos trabalhadores domésticos aos dos demais – quanto pela lei que regulamentou os direitos.

Para a secretária da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Maria Isabel Castro, é necessária a implementação da Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Ela garante a essa categoria trabalho decente, trabalho digno, que é a nossa luta hoje, foi essa a luta das mulheres que nos antecederam. Foi pela valorização, pela visibilidade da categoria”, disse.

A representante dos trabalhadores ressaltou a reivindicação pelo abono salarial, pago aos demais trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.

Direitos
Em 2015, a lei garantiu aos domésticos o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e o seguro-desemprego; e regulamentou vários outros benefícios, como auxílio-creche, salário-família, adicional noturno, indenização por demissão sem justa causa e pagamento de horas extras.

A empregada doméstica Maria Eliane Silva, de 58 anos, lembrou que o cenário sem direitos trabalhistas era muito diferente. “Se a gente não estudava, ficava na casa, trabalhava até a hora que fosse necessário. Tipo, depois das sete, você servia jantar, você fazia uma coisa, você fazia outra. E a gente acaba que vai mexendo em algo e quando dá fé, o tempo já passou.” E tudo sem receber nada além do salário combinado, disse ela.

Segundo o Ministério do Trabalho, o país tem 6 milhões de empregados domésticos, sendo que mais de 90% são mulheres. Apenas um terço tem carteira assinada.

Fonte: Câmara dos Deputados

Respeito aos precedentes, um ponto de convergência no debate sobre o futuro do habeas corpus

Especialistas de diferentes esferas do Sistema de Justiça concordam em que a inobservância dos precedentes do STJ e do STF é uma das causas do aumento explosivo de habeas corpus nos tribunais.



Esta terceira e última parte da série de reportagens HC 1 milhão: mais ou menos justiça? propõe uma reflexão sobre como enfrentar o uso excessivo do habeas corpus sem prejudicar seu papel de garantia constitucional na proteção da liberdade. O desafio é complexo e sensível. Trata-se de equilibrar o peso das garantias fundamentais com a necessidade de racionalidade e eficiência no Sistema de Justiça penal.

No centro do debate, o que está em discussão é se é possível – e até que ponto – limitar o uso do habeas corpus em processos criminais. Várias propostas de mudanças jurisprudenciais e legislativas – como a criação de filtros de admissibilidade – estão na mesa, em um esforço para prestigiar o uso dos recursos e a própria função constitucional do HC.

Apesar de atuarem em diferentes esferas do Sistema de Justiça, os especialistas ouvidos convergem em um ponto fundamental: os operadores do direito devem seguir os precedentes fixados tanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Para muitos, a inobservância das balizas estabelecidas pelas cortes superiores – especialmente por parte de magistrados de primeiro grau, tribunais estaduais ou regionais federais, além de integrantes do Ministério Público (MP) – é um dos principais fatores que alimentam o excesso de habeas corpus.

Precedentes criam unidade nacional na interpretação de questões jurídicas

O ministro Rogerio Schietti Cruz, integrante da Sexta Turma do STJ, diz que o julgamento pelo rito dos recursos repetitivos e a afetação de casos de direito penal para a Terceira Seção ou para a Corte Especial, bem como a edição de súmulas, são alguns mecanismos do tribunal para lidar com o congestionamento de processos: “Com isso, tentamos mostrar, não só à sociedade, mas a todos os tribunais, como pensa o STJ e como deve ser a interpretação das leis federais”.

Segundo o ministro, é importante sensibilizar toda a magistratura e o MP quanto à importância de seguir os precedentes.

Imagem de capa do card

Na medida em que fixamos determinadas teses em julgamentos qualificados, com a composição ampla, em temas já pacificados, elas deveriam ser observadas por todos, de modo a criar uma unidade nacional na interpretação de questões jurídicas, evitando uma série de impetrações de habeas corpus que só ocorrem porque não há a observância dessas decisões.

Ministro Rogerio Schietti Cruz

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Guilherme de Souza Nucci também acredita que, se fossem seguidos os entendimentos consolidados pelos tribunais superiores – especialmente os que são favoráveis ao réu –, muitos processos seriam resolvidos logo no primeiro grau de jurisdição, não havendo necessidade de habeas corpus ou recursos às demais instâncias por parte da defesa.


Um olhar específico sobre a real utilidade do habeas corpus

A promotora Fabiana Costa, chefe da Coordenação de Recursos Constitucionais do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), pondera que um olhar específico sobre a real utilidade do HC para a sua admissão pode ser uma medida eficaz no combate ao uso indiscriminado do instrumento, fora de suas finalidades constitucionais.

Fabiana observa que, diferentemente dos recursos no processo penal, que devem cumprir uma série de requisitos legais e formais para serem admitidos, o habeas corpus chega mais rápido para a análise do ministro relator, mesmo quando não guarda relação direta com a liberdade do paciente, nem com nulidades graves ou afrontas à jurisprudência consolidada. “Não é à toa que a maioria dos habeas corpus nem sequer são conhecidos”, enfatiza.

Outro ponto sensível destacado pela promotora refere-se à limitação da atuação do Ministério Público durante o processamento do habeas corpus: “O MP é ouvido como custos legis, mas o membro que conhece todas as peças do processo, conhece todas as cautelares, toda a tramitação daquele feito – que às vezes é extremamente complexo –, nem sequer é ouvido no momento em que o HC está sendo processado”.

Um exemplo de racionalização criado pela jurisprudência 

Em 2020, a Terceira Seção do STJ fixou um marco importante para conter a utilização excessiva do habeas corpus em situações já cobertas por recursos processuais próprios. No julgamento do HC 482.549, o colegiado entendeu que, uma vez interposto recurso cabível contra a mesma decisão judicial, o habeas corpus só poderá ser examinado se visar diretamente à tutela da liberdade de locomoção, ou se apresentar pedido distinto do recurso que reflita no direito de ir e vir.

O relator, ministro Rogerio Schietti, ressaltou que “é preciso respeitar a racionalidade do sistema recursal e evitar que o emprego concomitante de dois meios de impugnação com a mesma pretensão comprometa a capacidade da Justiça criminal de julgar de modo organizado, acurado e correto – o que traz prejuízos para a sociedade e os jurisdicionados em geral”.

Para o advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, no entanto, o habeas corpus é o instrumento mais eficaz para corrigir prisões ilegais e outros constrangimentos, e não pode sofrer restrições. “Um ponto crucial é a excessiva formalidade dos recursos. Se houvesse alguma alteração legislativa ou jurisprudencial para flexibilizar essas exigências nos recursos especial e extraordinário, isso poderia reduzir significativamente o número de habeas corpus impetrados”, opina.

Alteração do Código de Processo Penal divide opiniões

Uma oportunidade para a adoção dos aperfeiçoamentos em debate poderia ser a reforma do Código de Processo Penal (CPP), decretado por Getúlio Vargas em 1941. Diversas propostas já foram apresentadas ao Congresso Nacional nesse sentido, sendo uma delas o Projeto de Lei do Senado 156/2009, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010). A proposta original, elaborada por uma comissão presidida pelo ministro do STJ Hamilton Carvalhido (falecido), buscava evitar a utilização do HC como substituto recursal, restringindo as hipóteses de seu cabimento.

De acordo com o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma, essa proposta poderia melhorar a estrutura recursal do processo penal e direcionar muitas questões para serem resolvidas por outros meios processuais mais adequados. Na avaliação do ministro, essa é uma discussão relevante, que deve envolver não apenas os operadores do Sistema de Justiça, mas também administradores públicos e representantes políticos.

Contudo, Ribeiro Dantas alerta que qualquer eventual modificação legislativa deve ser feita com extremo cuidado, já que o habeas corpus vai além de uma mera peça processual: trata-se de uma garantia constitucional fundamental. “Essa garantia é algo que muitos países não possuem, mas que no Brasil está expressamente consagrada na Constituição. Portanto, é necessário ter cautela ao tratar desse tema”, afirma.

Por sua vez, o defensor público Marcos Paulo Dutra sustenta que o CPP em vigor já contém mecanismos adequados para coibir o uso abusivo do habeas corpus. Para ele, o problema não está na ausência de regras, mas na forma como elas são aplicadas. Segundo Dutra, é preciso adotar uma análise mais rigorosa dos critérios legais existentes e, sobretudo, respeitar as balizas interpretativas consolidadas pelos tribunais superiores ao longo dos anos.

Dutra explica que, quando uma nova lei surge, há todo um processo de criação de jurisprudências, doutrinas e interpretações, que gera inseguranças e “coloca em xeque” tudo o que já foi construído sobre o assunto.

“Acredito que é adequado o caminho trilhado pelo STJ e pelo STF de construir balizas, via interpretação do próprio CPP, que permitam uma racionalização do emprego do habeas corpus. Ainda mais diante de um ordenamento jurídico que, nos últimos anos, tem se preocupado tanto em prestigiar os precedentes judiciais. Se isso for prestigiado, não tenho dúvidas de que o próprio número de habeas corpus será reduzido”, expõe o defensor.

Tutela de urgência requerida na petição do recurso especial

O advogado Caio César Domingues de Almeida, que também defende a preservação do habeas corpus nos moldes atuais, propõe uma alternativa voltada à estrutura recursal: a criação, no próprio recurso especial, de um espaço específico para que a defesa possa formular pedidos de tutela de urgência.

“Isso daria mais segurança aos advogados, que hoje temem interpor apenas o recurso e ver a matéria de direito simplesmente não ser apreciada. Atualmente, não há um mecanismo que permita à defesa fazer esse pedido diretamente na peça recursal. Instituir essa possibilidade de forma clara e regulamentada poderia reduzir a quantidade de habeas corpus e tornar o sistema mais eficiente”, argumenta.

Para o advogado, se houver uma mitigação das formalidades processuais nos recursos às cortes superiores, haverá uma redução significativa do número de habeas corpus impetrados: “O que precisa ser repensado é o funcionamento do sistema recursal, especialmente no que diz respeito aos recursos especial e extraordinário”.

Nessa mesma perspectiva, o ministro Ribeiro Dantas defende um sistema de agravos no processo penal, os quais seriam interpostos diretamente nos tribunais, com a possibilidade de concessão de tutelas penais de urgência.


Atualização da Lei de Drogas poderia reduzir o número de impetrações

Na opinião do desembargador Guilherme Nucci, outra medida que pode levar à redução do número de habeas corpus é a reforma de leis já defasadas ou carentes de regulamentação mais precisa – a exemplo da Lei de Drogas, que, segundo ele, responde pelo maior número de habeas corpus analisados atualmente nos tribunais. Para o magistrado, mais do que criar restrições, é necessário corrigir uma grande falha: a ausência de parâmetros objetivos que orientem os juízes de todo o país na aplicação da norma penal.

“Está na hora do legislador entrar em campo e definir definitivamente o que é natureza de drogas, quais são as drogas mais perigosas à saúde, quais não são ou são menos perigosas e qual é a quantidade ideal para se presumir quem é usuário e traficante – como o Supremo fez com a maconha”, avalia o desembargador.

A falta dessas definições, conclui, reflete-se inclusive no aumento de prisões, o que gera mais pedidos de habeas corpus e o aumento desnecessário da população carcerária.

Salvo-conduto para Cannabis medicinal garante direito à saúde e à liberdade

Em meio a toda essa discussão, o habeas corpus segue desempenhando um papel essencial na defesa de direitos fundamentais, até para tutelar, de forma indireta, o direito à saúde. É o que tem acontecido com pessoas que recorrem ao Poder Judiciário em busca da garantia de não serem presas nem submetidas a quaisquer medidas repressivas em razão do uso medicinal da Cannabis sativa.

Em várias decisões, o STJ já deu habeas corpus preventivos para pacientes ou familiares de pacientes que se valem do óleo de canabidiol (CBD), um composto químico da Cannabis sativa que não tem efeitos psicotrópicos, para o tratamento de diversas doenças.

O vídeo abaixo mostra um desses casos em que o salvo-conduto do tribunal permitiu que o cidadão não fosse alvo de sanções penais por cultivar a planta para fins terapêuticos: uma história sobre como os direitos à saúde, à dignidade e à liberdade foram preservados pelo instituto do habeas corpus. 

Fonte: STJ

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Comissão aprova pena maior para crime de perseguição contra pessoa com deficiência

A Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 819/25, que aumenta a pena do crime de perseguição (também conhecido como stalking) quando a vítima for pessoa com deficiência. O texto altera o Código Penal.

A relatora, deputada Dayany Bittencourt (União-CE), recomendou a aprovação do texto. “A proposta representa avanço relevante na proteção das pessoas com deficiência, grupo historicamente vulnerável e alvo de diversas formas de violência”, disse.

Como é hoje
Atualmente, pelo Código Penal, o crime de perseguição é punido com reclusão de seis meses a dois anos e multa.

Essa pena poderá ser aumentada da metade caso a vítima seja criança, adolescente ou pessoa idosa. Agora, o projeto inclui pessoas com deficiência nessa lista.

“Apesar de a Lei Brasileira de Inclusão [antigo Estatuto da Pessoa com Deficiência] tratar da violência contra as pessoas com deficiência, o crime de stalking não aparece hoje nas hipóteses de majoração da pena”, disse o autor da proposta, deputado Alex Manente (Cidadania-SP).

Próximos passos
O projeto agora será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, e depois seguirá para o Plenário. Para virar lei, terá de ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

 

Fonte: Câmara dos Deputados

CJF libera o pagamento de RPVs a mais de 94 mil beneficiárias(os)

Caberá aos TRFs, segundo cronogramas próprios, efetuar depósito dos recursos financeiros

O Conselho da Justiça Federal (CJF) liberou aos Tribunais Regionais Federais (TRFs) os limites para o pagamento de Requisições de Pequeno Valor (RPVs), autuadas em abril de 2025, para 77.724 processos, com 94.737 beneficiárias(os). A soma atinge o valor de R$ 1.147.709.454,55. 

Do total geral, R$ 960.366.519,54 correspondem a matérias previdenciárias e assistenciais, a exemplo de revisões de aposentadorias, auxílio-doença, pensões e outros benefícios, que somam 46.358 processos, com 58.860 beneficiárias(os). 

O Conselho esclarece que cabe aos TRFs, segundo cronogramas próprios, o depósito dos recursos financeiros liberados. Com relação ao dia em que as contas serão efetivamente liberadas para saque, esta informação deve ser buscada na consulta de RPVs disponível no portal do Tribunal Regional Federal responsável. 

RPVs em cada região da Justiça Federal: 

TRF da 1ª Região (sede no DF, com jurisdição no DF, GO, TO, MT, BA, PI, MA, PA, AM, AC, RR, RO e AP)  
Geral: R$ 274.110.763,12  

TRF da 2ª Região (sede no RJ, com jurisdição no RJ e ES)  
Geral: R$ 155.198.515,35  
Previdenciárias/Assistenciais: R$ 111.279.602,00 (4.906 processos, com 6.798 beneficiárias(os) 

TRF da 3ª Região (sede em SP, com jurisdição em SP e MS)  
Geral: R$ 84.534.010,56  
Previdenciárias/Assistenciais: R$ 67.671.591,99 (2.291 processos, com 2.960 beneficiárias(os) 

TRF da 4ª Região (sede no RS, com jurisdição no RS, PR e SC)  
Geral: R$ 403.310.069,13  
Previdenciárias/Assistenciais: R$ 336.046.607,84 (17.553 processos, com 23.955 beneficiárias(os) 

TRF da 5ª Região (sede em PE, com jurisdição em PE, CE, AL, SE, RN e PB)  
Geral: R$ 10.205.102,46  
Previdenciárias/Assistenciais: R$ 5.356.564,46 (324 processos, com 607 beneficiárias(os) 

TRF da 6ª Região (sede em MG, com jurisdição em MG)  
Geral: R$ 220.350.993,93  
Previdenciárias/Assistenciais: R$ 200.571.148,58 (10.217 processos, com 12.081 beneficiárias(os) 

Fonte: CJF

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Projeto aumenta pena para feminicídio cometido contra a própria mãe

O Projeto de Lei 908/25 aumenta em 1/3 a pena para o crime de feminicídio ser for praticado contra a mãe, com dolo (intenção) ou dolo eventual – ou seja, quando o agente assume o risco de produzir o resultado e não age de modo a evitá-lo. 

Em análise na Câmara dos Deputados, o texto inclui a medida no Código Penal, que prevê pena de reclusão de 20 a 40 anos para o crime de feminicídio. 

“O homicídio de ascendente direto, especialmente da própria mãe, caracteriza-se como uma das condutas de maior reprovação social, por violar não apenas o direito à vida, mas também os valores morais e afetivos que estruturam o núcleo familar”, justifica o deputado Messias Donato (Republicanos-ES), autor da proposta.

O texto também inclui o homicídio doloso contra a mãe, por sua condição materna, na Lei dos Crimes Hediondos

“O ordenamento jurídico já prevê qualificadoras para o crime de homicídio que o tornam hediondo, contudo, a proposta visa assegurar a aplicação da penalidade máxima nos casos em que a vítima for a mãe do agente, independentemente de outras circunstâncias qualificadoras”, afirma Messias Donato. 

“A inclusão expressa dessa conduta como crime hediondo resulta em maior rigor no cumprimento da pena, vedando a concessão de benefícios penais como anistia, graça, indulto e progressão de regime nos termos da legislação vigente”, acrescenta. 

Próximos passos
A proposta será analisada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania; e pelo Plenário. Para virar lei, a proposta precisa ser aprovada por deputados e senadores.

Fonte: Câmara dos Deputados

Ideias fora do lugar e realismo mágico: relações de trabalho sob a ótica do STF

“… Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.
Ou doido sou eu que escuto vozes. Não há gente tão insana, nem caravana, nem caravana, nem caravana do Arará. Não há!”
Chico Buarque

O Brasil é um país de eternas contradições socioeconômicas, sendo o contexto trabalhista atual um bom exemplo. Se, por um lado, o debate público se aquece em torno de pautas sociais — como a proposta de redução da jornada de trabalho sem corte de salário e o eventual abandono do regime 6×1 —, o Poder Executivo divulga recordes de desemprego e geração de postos formais, além da expansão da massa salarial e, simultaneamente, lança um robusto programa de crédito consignado destinado aos empregados regidos pela CLT. Por outro lado, na contracorrente, o Supremo Tribunal Federal se prepara para julgar o Tema 1.389, cujo desfecho pode consolidar a “pejotização” (neologismo criado para designar uma espécie de simulação contratual fraudulenta de natureza trabalhista, tributária e previdenciária) como modalidade contratual ordinária, facultando ao empregador o uso de modalidades contratuais que escapam do arcabouço protetivo constitucionalmente assegurado ao trabalho humano subordinado.

Assim, o país celebra avanços na formalização e na renda, mas, contraditoriamente, ensaia permitir que a própria formalidade se torne opcional — quadro que revela a complexa tensão entre políticas públicas e programas de inclusão socioeconômica de quem vive da oferta de sua mão de obra no mercado econômico (o que é o caso da esmagadora maioria da população) e tendências de desregulação do mercado de trabalho.

Ao admitir que o labor pessoal — ainda que caracterizado por inequívoca subordinação — seja juridicamente enquadrado como prestação de serviços entre pessoas jurídicas, de natureza civil ou comercial, bastando a existência de um simples contrato formal escrito ou até mesmo verbal nesse sentido, o Estado transfere a definição do regime jurídico nas relações de trabalho às forças do mercado e pavimenta o caminho para a consolidação da “pejotização” como padrão hegemônico de contratação e gestão de mão de obra.

Não há dúvidas de que a lógica da competição por custos fará da “pejotização” o caminho dominante, seja pelos benefícios tributários e previdenciários da pessoa jurídica, seja pela supressão de encargos trabalhistas, a exemplo da desconsideração do salário-mínimo e da jornada máxima legal, bem como da possibilidade de ruptura contratual sem ônus, o que reduz o preço do serviço e pressiona empresas concorrentes a adotar o mesmo modelo para preservar margens de ganhos.

O fenômeno tende, portanto, a generalizar-se não porque seja mais eficiente em termos de produtividade — como alegam alguns analistas, ao defenderem o argumento exclusivo da livre iniciativa —, mas sim porque explora distorções fiscais, como a exoneração do FGTS e da cota patronal ao INSS, e transfere riscos econômicos ao trabalhador — inclusive aqueles relacionados à saúde, higiene e segurança no trabalho, que são questões de ordem pública, com forte impacto na saúde da população e no sistema de saúde pública financiado por toda a coletividade.

Os efeitos e as contradições, portanto, transcendem o domínio juslaboral e invadem as esferas tributária, previdenciária, de saúde pública etc.

Um importante ponto a se destacar é que, enquanto o debate fiscal vem dominando a pauta da política econômica do Estado brasileiro nos últimos anos, com a implementação de sucessivas medidas voltadas à busca do equilíbrio fiscal, se prevalecer, no âmbito do STF, o entendimento que torna a contratação empregatícia algo opcional para o empregador — a despeito da presença concreta da subordinação jurídica na relação de trabalho subjacente —, haverá um significativo impacto sobre a arrecadação tributária [1].

Sem liberdade de escolha

Imperioso registrar que não se trata de negar legitimidade ao trabalho autônomo genuíno, historicamente reconhecido pelo ordenamento (artigo 593 do CC e seguintes, entre outros), nem mesmo deixar de se valorizar e fomentar a livre iniciativa e o empreendedorismo criativo, inovador e gerador de riquezas, vantajoso para o contexto socioeconômico como um todo e alçado à condição de fundamento da República, ao lado dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, IV, da CF/88).

Formas autônomas de contratação são e sempre foram — legítimas, por meio de pessoa física ou jurídica (a exemplo do MEI, da sociedade unipessoal, da participação societária e das cooperativas). O que não se admite é a fraude, a simulação, pois não é dado às partes escolher, de forma fictícia, a modalidade contratual quando esta não corresponde à realidade dos fatos. Ou seja, as coisas são o que são. Um contrato — sobretudo de adesão —, ainda que pretenda, não tem força para se sobrepor à realidade e transmutar a natureza da relação fático-jurídica pela simples vontade das partes, sobretudo em contextos de assimetria. Por exemplo, se a relação é consumerista no plano fático, não se transmuta em relação civil comum apenas pela nomenclatura formal atribuída no contrato de adesão. É o óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues!

O alvo da crítica, portanto, é a simulação de autonomia quando estão presentes os elementos típicos do emprego — pessoalidade, habitualidade, onerosidade e, sobretudo, subordinação jurídica (artigos 2º e 3º da CLT). Tal disfarce infringe toda lógica jurídica construída no Ocidente desde a eclosão da revolução industrial e das revoluções liberais, voltada à proteção e promoção dos valores sociais do trabalho e à garantia de condições dignas labor. Ainda, contraria os comandos da Resolução n. 198 da OIT, de 2006, que preceitua que os países-membros devem formular políticas públicas nacionais para combater fraudes contratuais nas relações de trabalho, capazes de ocultar o verdadeiro status legal do empregado e privá-lo de devida proteção (item 4, alínea ‘b’).

No curso dos dois últimos séculos, as razões filosófica, política e jurídica do Ocidente, pressionadas por conflitos sociais e reivindicações populares, tiveram como um de seus principais desafios a pauta relativa à construção e ao aprimoramento de instituições políticas e de arranjos jurídico-normativos capazes de proteger a pessoa humana e sua dignidade, sobretudo no mundo do trabalho, por meio da garantia de condições de trabalho dignas, justas e humanas. Isso porque, para a grande maioria das pessoas, a inserção socioeconômica e o acesso aos recursos materiais que possibilitam sua subsistência, capacitação para o exercício das liberdades fundamentais, desenvolvimento de suas potencialidades e realização de seus projetos de vida somente são viabilizados por meio da oferta de sua mão de obra no mercado econômico para o exercício de um trabalho juridicamente subordinado/economicamente dependente (artigos 2º e 3º da CLT).

Assim, a dignidade da pessoa humana impõe, como consequência lógica, a tutela jurídica do trabalhado, voltada à preservação da higidez física e psíquica do trabalhador e à harmonização de suas esferas de vida pessoal e profissional.

Nada obstante, como demonstram os marcos históricos, essa arquitetura protetiva não se ergueu exclusivamente para melhorar as condições de vida e de trabalho dos assalariados. O complexo normativo laboral também foi concebido como instrumento de contenção de greves, de neutralização de radicalismos políticos e de prevenção de perdas produtivas — objetivos voltados à pacificação social e à criação de um ambiente econômico favorável à livre-iniciativa, à segurança jurídica e aos investimentos de longo prazo.

As normas trabalhistas, portanto, geram externalidades positivas para o desenvolvimento sustentável da economia. Regras de saúde, higiene e segurança, por exemplo, internalizam riscos que, se lançados sobre a coletividade, resultariam em custos elevados de absenteísmo, rotatividade e pressão sobre o sistema de saúde. De igual modo, a remuneração mínima e o tempo livre assegurados por limites de jornada, intervalos, férias e licenças alimentam a demanda agregada e fortalecem o mercado interno – situação atualmente vivenciada no país, a propósito.

Paradoxo

Nesse contexto, é valioso destacar que o entendimento adotado pelo STF no julgamento de determinadas reclamações constitucionais, ao buscar legitimar práticas fraudulentas e promover a generalização da “pejotização” no mercado de trabalho, caso venha a ser efetivamente consolidado com força vinculante, teria o condão de reavivar, no Brasil do século 21, a teoria contratual vigente nos países centrais do capitalismo nos primórdios da Revolução Industrial — séculos 18 e 19. Nessa lógica, não há dúvidas de que o maior prejudicado seria o trabalhador mais vulnerável, pois, quanto maior a vulnerabilidade de uma pessoa humana, menores são seu poder de barganha e suas condições de pactuação no mercado de trabalho.

Ao adotar a ficção de que trabalhador e empregador se encontram em igualdade de condições para pactuar o regime jurídico aplicável, o STF corre o risco de instituir a figura paradoxal do trabalhador “subordinado, porém autônomo” — um oxímoro que ignora as desigualdades materiais inerentes ao mercado de trabalho brasileiro. Sob essa premissa formalista, bastaria um “contrato de adesão” para conferir ao empregado suposta liberdade de optar, junto com o tomador de serviços, entre o estatuto protetivo do emprego (artigos 2º e 3º da CLT) e o direito civil‑comercial.

Na prática, porém, a subordinação continuaria presente e, com ela, a assimetria de poder de barganha, de modo que a escolha declarada seria apenas retórica. Tal construção esvazia o princípio da primazia da realidade (artigo 9º da CLT), viola a indisponibilidade de direitos trabalhistas (artigo 7º, caput, CF/88) e subverte a lógica do valor social do trabalho (artigo 1º, IV), pois transfere ao indivíduo o ônus de renunciar — sob pressão econômica — às garantias mínimas que a própria Constituição consagra como fundamentais e de ordem pública.

Cabe, aqui, um parêntese para registrar que, no Direito do Trabalho, a premissa jurídica de igualdade de condições entre as partes para negociação contratual manifesta-se no âmbito do direito coletivo, no qual se presume a existência de equilíbrio de poder de barganha entre empresas e sindicatos. Nem mesmo nesse contexto o STF admitiu liberdade contratual irrestrita, tendo resguardado os direitos absolutamente indisponíveis do trabalhador das negociações, conforme tese firmada no Tema 1.046. E mais, a supressão da premissa da hipossuficiência nas relações desiguais abriria, também, as portas para a subversão do Direito do Consumidor, em nome da modernização – ou tal flexibilização ficaria restrita apenas ao ramo juslaboral?

Proteção x informalidade

Retomando o raciocínio, cumpre esclarecer que, nas principais democracias capitalistas, a regra hegemônica de organização do mercado de trabalho continua sendo a proteção jurídica do emprego subordinado — seja por meio de legislação estatal, seja por convenções coletivas negociadas com sindicatos robustos. As economias avançadas demonstram que é possível conciliar, com eficiência, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa. Alemanha, França, países nórdicos e mesmo os Estados Unidos, por exemplo, sustentam alta competitividade em meio à revolução digital, sem abrir mão de pisos salariais, limites de jornada, normas de proteção à saúde e direitos coletivos.

Nesses países, o emprego protegido constitui a principal política pública de inclusão socioeconômica, funcionando como eixo de distribuição de renda, financiamento da seguridade social e ancoragem democrática das relações produtivas. Assim, longe de ser obstáculo à modernidade, o estatuto protetivo do trabalho revela‑se a forma mais abrangente de valorização do trabalho humano e mitigação das desigualdades que fragilizam tanto a dinâmica do mercado quanto a estabilidade das instituições [2].

Dados da OCDE confirmam que, quanto maior o grau de desenvolvimento econômico, social e institucional, menor tende a ser a parcela de trabalhadores que atuam por conta própria, sem cobertura trabalhista ou previdenciária. Nos países‑membro mais avançados, o emprego subordinado — regulado por lei ou por convenções coletivas — predomina amplamente: a participação de autônomos na força de trabalho gira em torno de 6 % a 9 % em economias como Estados Unidos (≈ 6,1 %), Canadá (≈ 6,8 %), Dinamarca (≈ 8,4 %), Alemanha (≈ 8,6 %) e Austrália (≈ 8,7 %). Na outra ponta do espectro, países com menor renda per capita e alta informalidade apresentam taxas substancialmente mais elevadas: Colômbia (≈ 46,6 %), México (≈ 31,4 %), Grécia (≈ 31 %) e Turquia (≈ 28,6 %).[3]

O Brasil situa‑se mais próximo desse segundo grupo. Estimativas recentes indicam que cerca de 33 % da população economicamente ativa trabalha na condição de autônomo, com limitada – ou nenhuma – proteção social.

Esse contraste sugere que economias modernas, democráticas e competitivas não se sustentam sobre trabalho desprotegido. Ao contrário, elas combinam alta produtividade com redes sólidas de seguridade, favorecendo a estabilidade macroeconômica, uma arrecadação tributária robusta e a redução das desigualdades. Onde a autogestão da própria força de trabalho se torna a regra — seja por necessidade, seja por incentivos fiscais distorcivos —, ampliam‑se a volatilidade de renda, o subfinanciamento previdenciário e as barreiras à inclusão social. No Brasil, por exemplo, é nítida a diferença remuneratória e de acesso a benefícios entre o emprego formal e o informal.

Não se trata, aqui, de esmiuçar as múltiplas causas desses indicadores, mas de realçar um ponto: a simples expansão do trabalho autônomo não se traduz, por si só, em ganhos de produtividade, tampouco em melhores indicadores socioeconômicos. Modernizar as relações laborais — se o propósito for genuinamente promover progresso econômico e inclusão social — não equivale a desmontar o arcabouço protetivo forjado, ao longo de séculos, em favor do trabalho subordinado.

Ao contrário, as nações mais desenvolvidas demonstram que competitividade e inovação convivem com redes robustas de proteção ao emprego. Nesses países, a busca do pleno emprego permanece a pedra angular das políticas públicas de trabalho, exatamente como preconiza o artigo 170 da Constituição. Desproteger o vínculo de emprego, portanto, não é sinônimo de modernidade, mas um atalho perigoso que pode aprofundar desigualdades e discriminações, fragilizar a própria base econômica e radicalizar a política, com viés antidemocrático.

Assim, ao flertar com esse caminho, o Brasil se desgarra de toda lógica jurídico-normativa que rege as democracias constitucionais ao redor do mundo — sobretudo nos principais centros capitalistas do Ocidente. Não bastasse o fato de o Brasil ter sido recordista no tráfico de escravizados africanos e o último país das Américas a abolir a escravidão, além de figurar entre os mais desiguais do planeta, agora estamos prestes a ser também os primeiros a inaugurar uma nova ordem trabalhista que, a despeito do discurso da modernização, irá tão somente reavivar a lógica jurídica de séculos passados.

Sob o rótulo de modernização, o Brasil insiste em perpetuar — para lembrar Roberto Schwarz — ideias fora do lugar. O resultado é um futuro que ostenta verniz emancipador, mas repete velhos padrões. Nesse universo invertido, reformas de dantesco impacto social deixam de ser papel do Legislativo e passam a ser ditadas pelo Judiciário; teses de repercussão geral afastam‑se dos fatos e da “ratio” do precedente; reclamações constitucionais, antes circunscritas à defesa da autoridade da corte, tornam‑se atalhos para reexaminar provas, em afronta ao princípio da aderência estrita; e a simulação contratual e a fraude passam a ser fontes de um “realismo mágico”, em que as coisas já não são o que elas são, o fantasioso se naturaliza no ordinário.

Entre o forte e o fraco, a lei converte‑se em instrumento de opressão do fraco, enquanto a suposta liberdade contratual se apresenta como redentora; “pejotização” confunde-se com terceirização lícita; e, após 80 anos, à Justiça do Trabalho já não cabe sequer averiguar a presença dos elementos fáticos‑jurídicos da relação de emprego, pois a sua competência se esvai. Assim, o passado ressurge travestido de vanguarda.

Nessa toada, se a prerrogativa constitucional de proteger e valorizar o trabalho — sobretudo o trabalho subordinado – ceder diante da “pejotização” legitimada, operar-se-á uma inversão digna da crítica de Ferdinand Lassalle. Em sua lição, a Constituição só possui eficácia e força normativa quando exprime os “fatores reais de poder”. Aqui, porém, esses fatores deslocam o centro normativo das relações de trabalho para o mercado, reduzindo a Carta de 1988 a mera “folha de papel”. Simultaneamente, aquilo que antes era justamente “papel” — o contrato individual, submisso à primazia da realidade — ganha estatura quase soberana: a letra contratual passa a definir, por si, o estatuto jurídico do trabalhador, tornando a própria realidade fática “inócua” ou, pior, juridicamente irrelevante. Assim, o Direito do Trabalho deixa de ser contrapeso para se conformar aos novos poderes econômicos, enquanto a Constituição social, através de uma decisão de seu órgão guardião, perde a função de limitar o poder e garantir igualdade material.


[1] Para se ter uma ideia, em nota técnica, pesquisadores da FGV apresentaram dados para concluir que “se supusermos que, dado o avanço da pejotização e com o passar dos anos, 50% da força de trabalho com carteira assinada passe a atuar como conta própria formal, isso é, seja pejotizada, a perda arrecadatória seria da ordem de 384 bilhões de reais por ano. Esta redução corresponde a 16,6% da arrecadação federal de 2023, a valores do ano passado”. Estudo disponível no seguinte endereço eletrônico https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/impactos_da_pejotizacao_sobre_a_arrecadacao_de_tributos_-_final.pdf , acessado em 28 de abril de 2025, às 15hs. Nesse sentido, ver também o estudo do IPEA, disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8327/1/cc_38_nt_desequilibrio_financeiro_MEI.pdf , acessado em 14 de maio, às 16hs.

[2] Para aprofundamento no tema, ver GODINHO DELGADO, M. .; GUSTAVO DE SOUZA ALVES, L. .; PINHEIRO VILAR LIMA, M. . O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O OBJETIVO CONSTITUCIONAL DA BUSCA DO PLENO EMPREGO. Res Severa Verum Gaudium, Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2022. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/resseveraverumgaudium/article/view/128972. Acesso em: 14 maio. 2025.

[3] Dados disponíveis no seguinte endereço eletrônico https://www.oecd.org/en/data/indicators/self-employment-rate.html?oecdcontrol-d7f68dbeee-var3=2023 .

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