Projeto proíbe comercialização de dados biométricos sensíveis, como íris e DNA

O Projeto de Lei 36/25 proíbe a comercialização de dados biométricos sensíveis, como impressão digital, reconhecimento facial, íris, voz ou material genético (DNA). O texto altera a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Conforme a proposta, a regra valerá para pessoas físicas e jurídicas com atuação no Brasil. Em caso de infração, empresas, organizações ou entidades poderão ser multadas em até R$ 50 milhões. A multa poderá dobrar em caso de reincidência.

O tratamento de dados biométricos sensíveis somente será permitido quando for estritamente necessário para a finalidade pretendida, com justificação específica e consentimento explícito do titular.

Exceto nas hipóteses necessárias para o cumprimento de obrigação legal ou regulatória, uma pessoa poderá, a qualquer momento, solicitar o cancelamento e a exclusão de dados biométricos sensíveis, devendo ser atendida em até 15 dias.

O autor do projeto, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), lembra que o pagamento em troca do escaneamento da íris tem ocupado o noticiário. “Essa e outras práticas expõem os cidadãos à violação de privacidade e ao uso indevido de dados”, alerta.

Próximos passos
O projeto tramita em caráter conclusivo e será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Para virar lei, terá de ser aprovado pela Câmara e pelo Senado.

Fonte: Câmara dos Deputados

Desembargador critica governo e anula quarentena para transação tributária

O artigo 18 da Portaria da PGFN 6.757/2022, que veta nova transação tributária de contribuintes que já tiveram parcelamento cancelado por inadimplência, configura restrição de direitos e viola o princípio da legalidade.

Esse foi o entendimento do desembargador Francisco Alves dos Santos Júnior, da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, para declarar a ilegalidade da quarentena de dois anos para a celebração de nova transação tributária por empresas que rescindiram acordos com a Fazenda Pública.

A decisão liminar determinou a suspensão de todos os débitos tributários de uma empresa inadimplente, bem como o fornecimento de certidão positiva com efeito de negativa (CPEN), se necessário, até que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) celebrasse com ela nova transação tributária.

A empresa autora da ação oferece cursos preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio. A companhia, que já tinha celebrado outra transação tributária em 2021 com a Fazenda, optou por não pagar o débito, o que resultou em inscrição do valor em dívida ativa.

Na decisão, o magistrado afirmou que o dispositivo que veda nova transação restringe direitos e não pode ser objeto de ato infralegal da Fazenda, mas de lei complementar, por criar obrigação tributária.

Críticas ao governo

Santos Júnior também criticou a edição de novas portarias pelo governo federal que restringem direitos dos contribuintes. Segundo ele, a portaria “prejudica a todos, principalmente a economia do país”.

“O governo federal está desesperado para aumentar a arrecadação, porque a sua coluna de despesas está bem maior que a coluna de receitas, por isso anda criando todo tipo de parcelamento, como o consignado no invocado Edital PGDAU 6/2024, publicado em 05 de novembro de 2024, para, além de aumentar as receitas, facilitar a vida do combalido contribuinte, que está querendo aderir, para poder funcionar legalmente, e vem uma autoridade de terceiro escalação criando o mencionado irrazoável e desproporcional tipo de empecilho”, afirmou.

“O precedente ora analisado, inobstante não ter efeito erga omnes, isto é, validade jurídica para todos, é de extrema relevância aos contribuintes que se encontram em situação semelhante, com transações rescindidas por inadimplementos com menos de dois anos, e que desejam manter a regularidade de suas obrigações tributárias mediante a celebração de nova transação”, analisa a advogada Larissa Lauri Destro, do escritório Maia & Anjos Advogados, que atuou na causa.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0801350-37.2025.4.05.0000

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Retroatividade de ANPP: os impactos da decisão do STF e os milhares de processos em risco

Após o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluir, em 18 de setembro de 2024, o julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF, destaquei, em artigo redigido e publicado nas semanas seguintes — “Decisão do STF sobre ANPP impacta milhares de processos em tramitação (ConJur, 3.out.2024) [1] — que a decisão recém-proferida teria um impacto significativo sobre milhares de processos em andamento no Poder Judiciário brasileiro.

Naquela ocasião, mesmo sem a publicação do inteiro teor do acórdão pelo STF — o que só ocorreria posteriormente, em 19 de novembro de 2024 —, apoiei minha análise nas informações já disponíveis: além de recorrer às teses do julgamento divulgadas pelo STF, realizei uma análise de casos julgados pelos tribunais brasileiros, nos quais se discutiam os limites da retroatividade do acordo de não persecução penal (ANPP), instituído pela Lei nº 13.964/2019.

Não apenas utilizei uma terminologia que pode ser considerada exagerada (milhares), como também citei dois exemplos concretos — aplicáveis a uma infinidade de situações semelhantes — em que as teses fixadas pelo STF no julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF poderiam ser empregadas de forma eficaz.

Com a publicação do inteiro teor do acórdão, em 19 de novembro de 2004, e após se debruçar na análise dos argumentos apresentados nos votos dos ministros, distribuídos ao longo de 256 páginas, é possível concluir que as considerações feitas anteriormente estavam corretas.

Não é só.

Desafios para aplicação de ANPP

A aplicação do ANPP, apesar de estar claramente definida na decisão do STF, ainda enfrenta desafios de compreensão por parte de seus aplicadores, especialmente em alguns tribunais e juízos.

Embora a tese do julgamento relacionada ao Habeas Corpus nº 185.913/DF tenha sido definida na sessão realizada no dia 18 de setembro de 2024, o STF, anteriormente, em 8 de agosto de 2024, por maioria, já havia concedido a ordem para reconhecer a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal (ANPP).

O período de suspensão do processo se mostrou imprescindível, pois faltavam informações essenciais para a correta fixação das teses do julgamento.

O próprio ministro presidente do STF, Luís Roberto Barroso, sugeriu que a redação das teses fosse adiada para outra sessão, ao perceber que questões fundamentais ainda careciam de esclarecimento. Entre elas, destacavam-se: quem deveria suscitar a aplicação retroativa do ANPP e qual seria o prazo para isso.

Inicialmente, o ministro presidente indagou se seria necessário peticionar na primeira manifestação no processo logo após a publicação ata. [2]

Na sequência, o ministro Alexandre de Moraes defendeu que apenas o Ministério Público deveria se manifestar sobre o oferecimento do ANPP no prazo de 120 dias. [3]

Diante dessa sugestão, o ministro Flávio Dino, em tom descontraído, propôs uma média aritmética entre os diferentes prazos debatidos: 120, 60 e 90 dias. [4]

Durante o debate, o ministro presidente fez um alerta: “Estamos trabalhando no escuro, sem saber o número de processos com que estamos lidando” e, se “(…) a gente pudesse suspender e chegar aqui com um número de processos, porque se forem 500 é diferente de serem 50 mil”[5]

Diante dessa incerteza, o ministro presidente decidiu suspender o julgamento e solicitou um levantamento junto ao Conselho Nacional da Justiça (CNJ) para obter uma avaliação quantitativa precisa. [6]

Antes, porém, do encerramento da sessão de 8 de agosto de 2024, o ministro André Mendonça antecipou seu posicionamento: se o Ministério Público não se manifestar sobre a aplicação do ANPP, caberá ao juiz solicitar formalmente a sua manifestação. [7]

Quantidade de processos

No início da sessão do dia 18 de setembro de 2024, o ministro presidente revelou os números do levantamento realizado pelo CNJ: “no primeiro grau de jurisdição, encontram-se 1.573.923 processos; no segundo grau, 101 mil; e nos tribunais superiores, 20 mil. Um total de 1.695.455″[8]

Neste momento, retomo uma reflexão feita na redação do artigo anterior. Naquela ocasião, mesmo sem acesso ao teor completo do Acórdão e aos fundamentos que o embasaram, já era possível, contudo, antever o impacto da decisão: “As referidas teses possuem, seguramente, potencial para alterar a história de inúmeros processos em tramitação nas diversas instâncias do Poder Judiciário brasileiro.”

Após refletir sobre a quantidade de processos, o ministro presidente manifestou seu posicionamento: “acho que esses números, de certa forma, confirmam o Ministro Gilmar, Relator. Eu penso e, com a vênia de quem pensa diferente, o acerto da decisão.”

Em seguida, apresentou as teses propostas pelo relator, que, ao final, foram as teses fixadas pelo STF:

  1. Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno;
  2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado;
  3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo;
  4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso. [9]

Aplicação retroativa do ANPP

As incertezas que ainda persistiam na sessão de 8 de agosto de 2024 foram definitivamente esclarecidas na sessão de 18 de setembro de 2024, como demonstram as teses fixadas pelo STF.

O STF foi categórico ao estabelecer que o Ministério Público, seja de ofício, a pedido da defesa ou por provocação do magistrado, deverá suscitar a aplicação retroativa do ANPP na primeira oportunidade em que se manifestar nos autos, logo após a publicação da ata. [10]

Além disso, a tese fixada não deixou margem para interpretações divergentes: embora a defesa e o magistrado possam instar o Ministério Público a se manifestar, este não poderá se omitir na oferta do ANPP em processos ainda não transitados em julgado, desde que preenchidos os requisitos necessários para a negociação e celebração do acordo.

As controvérsias em torno da aplicação retroativa do ANPP começaram a surgir ainda em 2024.

Identificaram-se processos em andamento que preenchiam integralmente os requisitos estabelecidos pelo STF, mas, ainda assim, o Ministério Público permaneceu inerte, sem se manifestar sobre seu cabimento. Além disso, o juiz não determinou qualquer diligência para oportunizar a propositura do acordo.

Decisões incoerentes em relação ao STF

Em consequência, há sentenças e acórdãos em que o trânsito em julgado ocorreu após a publicação da ata do julgamento do HC 185.913/DF, [11] mesmo quando os requisitos fixados pelo STF estavam presentes.

Qual o problema? A ausência de manifestação do Ministério Público sobre a viabilidade ou não do ANPP impediu sua aplicação, o que resultou em decisões incoerentes com o entendimento consolidado pelo Supremo.

Diante desse cenário de omissão e de crescente insegurança jurídica, qual será o caminho para corrigir essa distorção?

O ministro Gilmar Mendes, ao proferir uma nova decisão no Habeas Corpus nº 185.913/DF, reafirmou a eficácia vinculante das teses fixadas no julgamento:

“A decisão proferida nestes autos projeta efeitos em relação a todos os juízos e tribunais, na forma do art. 927, V, do CPC. Em caso de afronta, cabe habeas corpus perante o Juízo competente e, caso ele seja indeferido, a defesa pode alçar o assunto ao Tribunal mediante o recurso cabível.”

Não há dúvida, portanto, que as teses fixadas pelo STF possuem eficácia vinculante e devem ser rigorosamente observadas por tribunais e juízos.

Impetração de habeas corpus

Caso o trânsito em julgado tenha sido reconhecido por omissão do Ministério Público, ainda que os requisitos estabelecidos na tese do STF estivessem preenchidos, o interessado poderá questionar essa falha por duas vias distintas, a fim de corrigir o grave vício identificado.

Primeiro, nada impede a impetração do habeas corpus diretamente no tribunal onde o processo tramita, pois o STF determinou que a análise sobre a celebração do acordo deve ser feita pelo órgão ministerial competente “na instância e no estágio em que estiver o processo“.

O impetrante deverá demonstrar a existência de constrangimento ilegal, evidenciado pelo reconhecimento do trânsito em julgado da sentença penal ou do acórdão sem que o feito tenha sido convertido em diligência para viabilizar a oferta do ANPP, conforme expressamente determinado pelo STF no julgamento referido.

A concessão da ordem resultará, por conseguinte, na anulação da sentença ou do acórdão para a conversão do julgamento em diligência. A ação penal será desarquivada e o juízo ou membro do tribunal provocará o Ministério Público para que avalie a possibilidade de oferecer o ANPP ou apresente justificativa idônea para a sua recusa. [12]

Além disso, o vício também poderá ser questionado na fase de execução penal, consoante autorizado pelo artigo 66, I, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84):

Art. 66. Compete ao Juiz da execução:

I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;”

Há, portanto, a possibilidade de desconstituição da sentença condenatória transitada em julgado, já que se trata da aplicação de uma norma penal mais benéfica, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição. [13]

O próprio STF reconheceu essa tese ao fixar suas diretrizes no julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF. Da mesma forma, como realmente deveria ser, o próprio STF passou a aplicar os entendimentos vinculantes aos processos em andamento.

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. APLICAÇÃO RETROATIVA. OFERTA. ANÁLISE DE POSSIBILIDADE. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. ATENDIMENTO. NECESSIDADE. HC 185913. BALIZAS DECISÓRIAS. CONFORMIDADE. ADEQUAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão agravada.

2. Cabível a retroatividade do art. 28-A do CPP, para determinar que o Tribunal de origem, suspendendo a certificação do trânsito em julgado da ação penal em questão, abra vista ao Ministério Público, a fim de oportunizar a propositura do Acordo de Não Persecução Penal ao paciente, desde que preenchidos os requisitos e em conformidade com as teses fixadas, pelo colegiado maior desta Suprema Corte, no julgamento do HC 185913.

3. Agravo regimental não provido. [14]

Suspensão da execução da pena

Dessa forma, a execução da pena deverá ser suspensa até que o Ministério Público analise a viabilidade de ofertar o ANPP ou apresente justificativa para sua não aplicação. Os efeitos da condenação só serão restabelecidos caso o acordo não seja celebrado.

Se sentenças ou acórdãos transitaram em julgado após a publicação da ata do julgamento do HC 185.913/DF, sem que o Ministério Público sequer se manifestasse sobre o cabimento do ANPP — mesmo quando preenchidos todos os requisitos fixados pelo STF —, essa omissão não pode ser ignorada. Nesta hipótese, há um vício insanável que deve ser reconhecido para que a legalidade seja plenamente restabelecida.

Dessa forma, ao reconhecer a aplicação retroativa do ANPP, o STF não apenas garantiu um direito, mas reafirmou um princípio essencial: no processo penal, a justiça deve prevalecer sobre a inércia e a desigualdade.

Os números são avassaladores. Como destacou o ministro presidente, 1.695.455 processos estão em tramitação nas diversas instâncias do Judiciário, todos diretamente impactados pelas teses fixadas pelo STF. O destino de milhares de pessoas está em jogo.

Permitir que a omissão do Ministério Público negue o direito à aplicação do ANPP significa perpetuar um sistema desigual, em que alguns terão acesso à Justiça e outros carregarão o peso de uma condenação que poderia ser evitada. Para uns, o acordo será oferecido e celebrado, garantindo a correção de rumos e a efetividade do direito; para outros, restará apenas o fardo de uma sentença penal condenatória.


[1] ROCHA, Renato Lopes. Decisão do STF sobre ANPP impacta milhares de processos em tramitação. Disponível: <https://www.conjur.com.br/2024-out-03/decisao-do-stf-sobre-anpp-impacta-milhares-de-processos-em-tramitacao>. Acesso em: 27 jan. 2025.

[2] Pág. 201 do inteiro teor do acórdão.

[3] Pág. 208 do inteiro teor do acórdão.

[4] Pág. 210 do inteiro teor do acórdão.

[5] Págs. 209 e 210 do inteiro teor do acórdão.

[6] Pág. 211 do inteiro teor do acórdão.

[7] Pág. 212 do inteiro teor do acórdão.

[8] Pág. 236 do inteiro teor do acórdão.

[9] Pág. 237 do inteiro teor do acórdão.

[10] Logo após a proclamação do resultado do julgamento em 18/09/2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a aplicar aos processos em andamento os entendimentos vinculantes fixados pelo STF: HC n. 845.533/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 8/10/2024; REsp n. 1.890.343/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 23/10/2024; AgRg no AREsp n. 2.295.371/SC, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 4/11/2024; PET no AREsp n. 2.601.262/BA, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 5/11/2024.

[11] Ata de Julgamento foi divulgada no DJE 19/09/2024, publicada em 20/09/2024.

[12] Parece haver um consenso de que a proposta de acordo não deve considerar informações contidas na sentença ou no acórdão, sob risco de comprometer a imparcialidade de um procedimento que, por sua própria essência, deve se restringir à fase pré-processual.

[13] XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

[14] HC 230092 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 16/12/2024, publicado em 08/01/2025.

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Projeto de Estatuto da Vítima reforça direito a indenização, mas tem pouco efeito prático

Em dezembro do último ano, a Câmara aprovou o projeto de lei que cria o Estatuto da Vítima. Uma das regras previstas é que a vítima de um crime tem direito a receber indenização do autor do delito por “prejuízos materiais, morais e psicológicos”. O texto, que ainda precisa passar pelo Senado, também propõe que o infrator restitua valores gastos pela vítima ou pela família com tratamento médico e psicológico e com funeral.

Mulher sendo assaltada

 

 

 

Segundo o projeto, o direito de indenização por danos materiais, morais e psicológicos valeria tanto dentro do processo judicial quanto fora dele, ou seja, em acordos entre as partes. Já a restituição dos gastos médicos e funerários ocorreria somente em caso de condenação com sentença transitada em julgado.

Criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico explicam que o PL não inova quanto a esse tema. “A legislação processual já assegura os direitos da vítima nesse sentido”, indica Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Essa possibilidade de indenização já existe desde a Lei 11.719/2008, segundo a qual o juiz, ao estabelecer uma condenação criminal, deve fixar um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, “considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Mas Paula Moreira Indalecio, sócia do escritório Mattos Filho, explica que, na prática, essa norma “tem uma efetividade limitada”. Muitas vezes, o Ministério Público não solicita tal reparação quando oferece a denúncia.

E, mesmo quando o pedido existe, é comum que ele seja negado pelos juízes. Geralmente, a justificativa é que seria mais adequado analisar eventual indenização em uma ação cível.

Quando uma indenização é fixada na ação penal, a sentença pode ser usada em uma vara de execução cível para garantir o recebimento dos valores. Mas, segundo Paula, a condenação “dificilmente se materializa em ganhos para a vítima”, pois a maioria delas não tem advogados constituídos para executar a sentença.

Além disso, muitos réus têm recursos financeiros limitados. Para ela, isso, somado à frequente demora para execução de uma indenização penal, levaria a um cenário semelhante ao das penas de multa. Como já mostrou a ConJur, a imensa maioria dessas sanções não é paga em São Paulo, muitas vezes devido à incapacidade financeira dos condenados.

Confusão conceitual

Aury Lopes Jr., professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), acredita que a vítima tem todo o direito de pedir um ressarcimento pelos danos sofridos. Mas, na sua visão, já existe uma via adequada para isso: a cível.

“É uma deturpação do processo penal querer misturar um interesse patrimonial, indenizatório, privado, neste espaço de punição. É um grande erro, que pode levar inclusive ao uso indevido do processo penal, que é muito mais coator e punitivo que o processo civil, para satisfação de interesses privados, de natureza patrimonial”, opina.

De acordo com o criminalista, ainda que a preocupação com a reparação da vítima seja legítima, essa mistura de conceitos é perigosa e tecnicamente inadequada: “É uma degeneração fazer isso pela via do processo penal”.

Ajuda à vítima

A ideia do PL é detalhar direitos das vítimas de crimes, outras infrações, desastres e calamidades públicas. A proposta também contém regras para a chamada Justiça restaurativa, que busca encorajar o infrator a reparar os danos causados.

Na visão de Alberto Zacharias Toron, a regra de indenização à vítima é positiva, pois garante o ressarcimento pelos “gastos decorrentes do delito que se abateu sobre ela”. Mas ele não acredita que a medida tenha “um caráter de combater a criminalidade”.

Antonio Melchior concorda que as regras previstas no projeto “não previnem, tampouco se dirigem a evitar crimes, mas a assegurar assistência mais efetiva e abrangente à vítima”.

Embora reconheça que a proposta deve enfrentar desafios na prática, Paula Indalecio vê bons pontos no texto. “Historicamente, o processo penal sempre foi muito centrado na figura do Ministério Público como o titular da ação penal e a vítima permaneceu com um papel secundário no processo”, indica.

“Dessa forma, um dos aspectos positivos da proposta é que ela traz mais centralidade à vítima no processo penal, reconhecendo seus direitos de forma mais clara.”

Outro ponto positivo, segundo ela, é que a previsão de um direito à indenização facilita o acesso à Justiça. Isso porque, uma vez que a indenização é estabelecida no processo penal, sua execução na esfera cível pode ser mais rápida e eficaz.

A advogada considera que a obrigação “aparentemente reforça a responsabilidade individual e pode ter um efeito dissuasório, desencorajando a prática de novos crimes”. Mas ressalta que a prevenção de crimes envolve uma série de fatores, como políticas públicas, educação e medidas de segurança. Assim, ela não crê que a indenização tenha “impacto direto” sobre a repressão de delitos.

“Além disso, o foco da proposta é mais reparatório do que punitivo, buscando mais proporcionar algum alívio (muitas vezes tardio) às vítimas do que efetivamente prevenir a ocorrência de delitos”, completa.

Prerrogativas

O presidente do IBCCRIM afirma que a redação do PL “parece admitir a decretação de medidas cautelares patrimoniais que incluam o valor relativo ao dano moral e psicológico”. Segundo ele, isso é controverso, principalmente devido à “tensão envolvida com a presunção de inocência enquanto regra de tratamento”.

Para o advogado, a preocupação com a proteção integral da vítima “não deve conduzir a uma ampliação excessiva do objeto do processo penal, uma vez que isto afeta os limites do contraditório e da ampla defesa no âmbito do processo criminal”.

Ele defende que a indenização à vítima deve ser garantida, “com maiores restrições em sede cautelar” e “maior abrangência na sentença condenatória”. Em qualquer caso, deve-se exigir pedido expresso da autora e garantir o contraditório e a ampla defesa do acusado.

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Tendência à ‘plataformização’ não afasta relação de emprego, diz procurador-geral do Trabalho

José de Lima Ramos Pereira considera que a relação de subordinação continua existindo; não da forma tradicional, mas algorítmica

Mesmo com a crescente “plataformização” das relações de trabalho, impulsionada pelo uso de aplicativos digitais em diversas áreas, o procurador-geral do Trabalho, José de Lima Ramos Pereira, afirmou, em entrevista exclusiva ao JOTA, que esses novos modelos mantêm características essenciais do vínculo empregatício.

Segundo ele, apesar da modernização, a subordinação continua existindo — não da forma tradicional, mas de maneira algorítmica. Isso significa que existe um controle dos trabalhadores, que podem ser beneficiados por maior produtividade, enquanto aqueles que recusam demandas podem sofrer punições.

Para Lima, os modelos de negócios dessas plataformas são bastante similares. “O algoritmo é utilizado por empresas como Uber99 e iFood. Hoje temos empresas de transporte sem frota própria, empresas de alimentos sem restaurantes e plataformas de aluguel sem escritórios físicos. Essas mudanças são parte da modernidade”, afirma. No entanto, ele reforça que as empresas devem ser responsabilizadas e garantir direitos aos trabalhadores.

Nesta frente, diz que o MPT deve levar adiante as oito ações civis públicas movidas contra aplicativos, que pedem o reconhecimento de vínculo de emprego e indenizações por danos morais coletivos.

As decisões judiciais, até o momento, têm sido divergentes. O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2), em São Paulo, condenou Rappi e iFood a registrar os trabalhadores e pagar indenizações, enquanto, no caso da 99, o vínculo foi negado. Já a ação contra a Uber foi extinta pelo TRT2, que considerou que o MPT não teria legitimidade para atuar no tema, revertendo uma condenação bilionária da empresa. Os processos agora seguem para o Tribunal Superior do Trabalho (TST) e podem chegar ao Supremo Tribunal Federal (STF). Para o procurador, essas divergências são naturais e, quando houver decisões definitivas, elas serão cumpridas.

O procurador-geral do Trabalho também destacou a necessidade de melhor regulamentação do trabalho remoto e híbrido, especialmente no que diz respeito à responsabilidade das empresas pelo ambiente de trabalho em home office. Ele apontou que a fiscalização é um desafio, pois, diferentemente do ambiente corporativo, onde auditores podem verificar condições de ergonomia, a inspeção domiciliar é limitada e fragmentada.

Lima também ressaltou a importância do combate ao trabalho escravo no Brasil —com mais de 65 mil trabalhadores resgatados nos últimos 30 anos — e a responsabilidade das companhias em verificar toda sua cadeia produtiva. O procurador-geral, por fim, também tratou da necessidade de se coibir o assédio eleitoral.

José de Lima Ramos Pereira, procurador-geral do Trabalho nos biênios 2021/2023 e 2023/2025, ingressou na carreira do Ministério Público do Trabalho em 1993. Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com especializações em Direito Processual Civil. Em 2017, concluiu mestrado em Direito pela Universidade Católica de Brasília, e, em dezembro de 2024, doutorado em Direito pela Uninove.

Confira os principais pontos da entrevista

O Ministério Público do Trabalho (MPT) moveu oito ações civis públicas contra aplicativos, como Uber, 99 e Rappi, em 2021, pedindo o reconhecimento de vínculo empregatício e indenização por danos morais coletivos. Qual é a principal argumentação nesses processos e como o senhor vê a atuação dessas empresas?

José de Lima Ramos Pereira: O mundo hoje está totalmente plataformizado e praticamente todas as atividades estão passíveis de serem feitas por plataformas digitais. A relação trabalhista exige principalmente uma subordinação jurídica, ou seja, você dá ordem a alguém que obedece. Isso transforma uma relação de trabalho em uma relação de emprego. No caso dessas plataformas, elas não podem ser consideradas plataformas de tecnologia, mas de transporte, porque o objetivo é transportar as pessoas de um lugar ao outro. Inclusive nas suas inscrições de registro da marca, no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) fica claro que são empresas de transporte. Neste caso, está muito claro que existe uma subordinação moderna, que é a subordinação algorítmica.

Como seria essa subordinação algorítmica?

Existem situações em que essas empresas conseguem direcionar escolhas do motorista, interferindo na produtividade e na facilidade ou dificuldade de localizar passageiros. Um exemplo, se o motorista rejeitar, muitas vezes, ele tem penalidades. Em função disso, passa a não ser escolhido nas melhores áreas. Fica como se fosse um game, um jogo. Se eu conseguir atender mais as regras, eu sou beneficiado com maior ponto. Eu tenho uma pontuação maior, eu tenho facilidades que os outros não vão ter. Agora, não é possível dizer que esse empregado é autônomo, e empreendedor. Muitos desses motoristas alugam carro. Nem carro tem. Aí tem que trabalhar mais, porque vai ter que pagar o aluguel do carro, vai ter que pagar gasolina, pneu. Eu não estou ainda entrando na mais complicada situação desses aplicativos. A segurança. Se você somar tudo isso, vai verificar que a atividade deles tem subordinação, tem um patrão, só que é realmente uma atividade moderna, diferente.

O senhor acredita que precisa haver uma melhor regulamentação dessa atividade?

Precisa regulamentar sim, independentemente do reconhecimento do vínculo, temos que tratar da seguridade social, da previdência social, da saúde do trabalhador ou trabalhadora nesses aplicativos. Isso é urgente. Quando eu falei da segurança, é porque é corriqueiro, ocorrer a morte de motorista de aplicativo. Como fica a família? Então, previdência social tem que ser analisada, segurança social, tudo tem que ser analisado. E vamos lá, quanto ganha no mundo uma empresa dessa? Aí vem me dizer que ela não pode ser responsável por quem opera? Mas vamos tratar a realidade nossa brasileira. Tirando esses motoristas não tem transporte. Evidentemente que existem situações onde motoristas usam a atividade como complemento de renda. Mas isso não afasta a responsabilidade da empresa, porque a legislação permite que se tenha mais de um vínculo. Na área de saúde, por exemplo, isso já acontece. Então, o fato do motorista trabalhar para vários aplicativos é uma moderna relação de trabalho, mas não afasta a responsabilização da empresa.

O TRT de São Paulo já começou a julgar recursos nessas ações civis públicas movidas pelo MPT contra esses aplicativos. Por enquanto, o TRT está bem dividido. O que o senhor acha dessas decisões divergentes? Só o TST ou o STF é que vão pacificar o tema?

Nós sabemos que a instrução é feita no primeiro grau, onde se analisam as provas. É importante o início da decisão judicial, podendo ser formada ou mantida pelo regional ou indo até o TST. E hoje, costumeiramente, até o Supremo. Não há nenhuma surpresa ou nenhuma insatisfação porque existem decisões divergentes. Ao contrário, existe um motivo para ter, pela liberdade que o juiz tem de julgar. E na hora que tiver uma decisão transitada em julgado, ela tem que ser cumprida. Não há aqui nenhuma ideia de desobediência às decisões. O que a gente quer é ajudar, colaborar nessa construção, mostrando a nossa posição. E, para isso, a gente precisa dar a nossa manifestação, as nossas justificativas, os nossos dados. Nós trabalhamos muito com dados.

E o que esses dados obtidos nas investigações do MPT apontam?

Os dados são alarmantes. O que nós precisamos é preservar a dignidade desses trabalhadores, seja no reconhecimento do vínculo ou, não reconhecendo o vínculo, que seja preservado, no mínimo, a seguridade e previdência desses trabalhadores, porque é até uma proteção para a sociedade, na hora que você começa a fazer esse tipo de responsabilização dessas empresas. E, evidentemente, deve chegar o Supremo Tribunal Federal, o TST, e são decisões que vão ter que ser obedecidas.

O modelo de negócio dessas empresas é muito parecido? Ou essas diferenças é que podem ter gerado alguma divergência nas decisões?

Não, os modelos de negócio são muito parecidos. Você vê que o algoritmo é usado, seja pela Uber, 99, iFood. Hoje você tem várias plataformas, tem empresa de transporte sem carro, empresa de alimentos sem restaurante, empresa de aluguéis de imóveis, sem ter nem escritório. Então, essas plataformas são uma modernidade. Agora, a Constituição Federal, muito sabidamente, prevê automação. Isso tudo é uma questão da automação. Isso é um efeito da modernização. Apenas o que a gente tem que se preocupar é como é feita essa transição para que as pessoas que estão trabalhando não percam também todos os seus trabalhos e atividades remuneradas. Por isso que o grau da informalidade aumentou muito. E precisamos proteger a todos, os trabalhos formais e informais.

E sobre o trabalho remoto, como tem sido a fiscalização do Ministério Público do Trabalho? O que o órgão tem observado com relação a isso? Jornada de trabalho, questões ergonômicas? O que tem despertado mais atenção?

O trabalho remoto teve uma forte demanda na pandemia, quando quase todas as pessoas tiveram que trabalhar de casa. O principal problema do trabalho remoto é a perda, por exemplo, da proximidade social. Você se afasta do seu vínculo de trabalho. Você dificulta, fragmenta a atuação dos sindicatos e o trabalhador começa também a ter problemas psicológicos, em função dessa atuação, só em casa. Acredito que o melhor hoje é fazer um híbrido. Mas as empresas, inclusive as privadas, estão voltando 100%. Então, tudo isso é uma questão de fases e adaptações. Tem atividades que funcionam bem no híbrido, tem atividades que funcionam bem no remoto. E existem outras que não funcionam de jeito nenhum nesse modelo, como, por exemplo, segurança patrimonial, medicina.

Ainda existem alguns pontos do trabalho remoto, do trabalho híbrido, que precisam ser melhor regulamentados?

Sim, um dos pontos, é a responsabilidade das empresas pelo ambiente de trabalho em home office. O MPT, a fiscalização do Ministério do Trabalho, age principalmente por meio de denúncias. Na empresa, um auditor fiscal do Ministério do Trabalho e Emprego, consegue fiscalizar, pode verificar a ergonomia. Já em casa é complicado, existe toda uma restrição para entrar nas casas. Então, tudo é muito mais difícil e fragmentado. Você tem 800 empregados numa empresa e todos trabalham em casa, não dá para fiscalizar 800 casas. Então, até nisso, você tem que se preocupar. Já no híbrido, você consegue identificar como essa empresa está tratando os funcionários.

Existem outros pontos que precisam ser melhorados na legislação com relação ao trabalho remoto?

Precisamos tratar do Direito à Desconexão. No remoto, as pessoas tendem a trabalhar muito, de repente até de madrugada. Em geral, no remoto, as pessoas trabalham 20% a mais. Então, você começa a se preocupar sobre o pagamento de horas extras. Entendemos que esses funcionários têm direito a hora extra, a conexão é fácil de ser provada. Todo mundo tem um login para entrar. Então, ali começa a contar o seu tempo de trabalho. Mas aí tem a desconexão importante para a pessoa respirar e poder trabalhar tranquilamente. Por outro lado, esse trabalho remoto não pode ser confundido com uma folga, que a pessoa não precisa produzir.

Ao mesmo tempo que existem todas essas novas modalidades de trabalho, aqui no Brasil ainda existem muitas denúncias de trabalho escravo ou trabalho análogo à escravidão. Como se caracteriza esse trabalho escravo moderno e como tem sido a atuação do MPT com relação a isso?

No Brasil já são mais de 65 mil trabalhadores resgatados nos últimos 30 anos. Primeiro ponto, existe trabalho escravo ou trabalho em condição análoga à escrava. Então nós temos várias formas contemporâneas de escravidão e nós temos também vários órgãos atuando. O Ministério Público do Trabalho, Ministério do Trabalho e Emprego, Polícia Federal, Rodoviária Federal, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União e a Justiça do Trabalho, que recebe todas as nossas ações. Essa série histórica de recordes de resgates não é boa. Demonstra que tem fiscalização, é claro, mas demonstra também que nós estamos atuando muito de forma repressiva. A gente tem que atuar também de forma promocional, convencendo os empregadores que aquilo que ele faz está prejudicando todo o segmento.

E o que tem sido feito neste sentido?

O Ministério do Trabalho e Emprego, o ministro Luiz Marinho tem feito esse esforço para fazer pactos nacionais com os setores de café, vinho, frutas e verduras. Está havendo uma movimentação, inclusive, para garantir o Bolsa Família para essas pessoas que vão ter registro na carteira, porque tem muita informalidade também. Tudo isso ajuda no combate. As próprias empresas estão também fazendo esse pacto das confederações patronais. Isso é importante. Toda a sociedade envolvida contra o trabalho escravo. E tem o tráfico de pessoas também, porque o trabalho escravo não vem sozinho, ele vem com outros crimes. Então, a gente tem que ter muito cuidado em detectar, combater, e o principal, fazer com que o trabalho escravo seja extinto do Brasil. Não é fácil porque o Brasil tem uma geografia imensa. Mas temos uma atuação muito forte, centenas de ações, milhares de Termos de Ajustamento de Condutas (TACs). E temos que buscar e responsabilizar toda a cadeia produtiva, porque quem se beneficia do cultivo do café, da uva, da laranja, da indústria têxtil? Lá na ponta, tem uma grande empresa, multinacional, que se beneficia desse trabalho.

O que essas grandes companhias precisam fazer para não serem vinculadas a essas denúncias? Elas precisam fiscalizar essas empresas que elas terceirizam serviços?

Você falou a palavra perfeita. Fiscalizar. Primeiro, escolher bem. E segundo, fiscalizar bem. Quando você não escolhe bem ou não fiscaliza bem, acontece o que acontece. Aí a pessoa diz assim, eu não sabia que na minha fazenda tinha trabalho escravo. Isso é o pior sentimento. O pior que o ódio, a raiva, é a indiferença. Porque a indiferença é a pessoa, não quero saber, eu quero ganhar meu dinheiro. Meu dinheiro está no bolso. E se a fazenda está sendo utilizada para alguma coisa, eu não me importo. Você tem que se importar, porque você tem a responsabilidade.

Qual a função dessa lista do trabalho escravo?

Função pedagógica. E é uma função de pressão mesmo, para que a empresa não entre numa lista. Ela é chamada de lista suja, justamente para pressionar para que ninguém entre nela. Porque realmente não é boa a imagem de uma pessoa que está nesta lista. E é uma forma de pressão legítima. O Supremo já definiu isso. Por outro lado, hoje em dia também já existem selos que podem de certa forma premiar e promover a empresa que faz tudo direito como “aqui não tem trabalho escravo” ou “aqui não tem trabalho infantil”. Também é uma forma de promoção importante. E isso, evidentemente, fica a cargo do Ministério do Trabalho e do Emprego.

Ano passado foi ano de eleições e nós vimos uma atuação grande do Ministério Público do Trabalho contra o assédio eleitoral. Queria que o senhor comentasse um pouco como foi, qual o balanço da fiscalização e dos casos que foram encontrados. E gostaria que comparasse um pouco com o que ocorreu na eleição presidencial.

Em 2022, o Brasil teve uma disputa presidencial muito forte, com a ação de empresários buscando interferir na eleição. Em 2024, percebemos que houve um aumento maior de assédio eleitoral no ambiente da Administração Pública, marcado muito pelo assédio nos serviços públicos. Foram 965 denúncias nas eleições de 2024. E dessas, 420 eram relacionadas à Administração Pública. Dessa vez, a região com maior índice foi Nordeste, diferentemente da eleição de 2022, que foi entre o Sudeste e Sul. O assédio eleitoral é uma realidade no Brasil. Ele permanece. Houve um número maior em 2022. O número diminuiu bastante em 2024. Mas ele continua, no meu ver, ainda alto. O que a gente precisa é manter essa atuação. E principalmente a questão da impunidade. Se você não atuar e não der uma punição, ele vai voltar.

Quais outras frentes de trabalho o Ministério Público pretende priorizar em 2025?

São tantos pontos, são tantos projetos, são tantas atuações, mas a principal ideia é manter a atuação forte do Ministério Público do Trabalho na preservação do próprio direito do trabalho. Fazer uma articulação entre os órgãos, sejam outros ministérios públicos, outros ramos, seja um judiciário. A gente teve uma aproximação muito forte com o MTE. O MPT não tinha uma aproximação na justiça eleitoral, passamos a ter com a eleição de 2022. E aumentar também essa articulação para que as nossas atuações promocionais aumentem, para atuar de forma mais preventiva e evitar novas ações judiciais. Para que o trabalhador e a trabalhadora, quando estiver exercendo a sua atividade, possa ter liberdade, tranquilidade de exercer e ganhar o seu sustento, da sua família. Então a gente existe para isso, para manter o trabalho digno e decente no nosso país. É necessária essa conscientização. E, claro, se não é resolvido, a gente busca a repressão. O que nós sabemos fazer bem e os colegas estão preparados para isso.

Fonte: Jota

Na OAB, Lula defende regulação para combate às “oligarquias digitais”

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a destacar, nesta segunda-feira (17), os problemas causados pela propagação do ódio e da desinformação nas redes sociais, e defendeu a aprovação de uma legislação que enfrente a concentração de poder pelas plataformas digitais.

A declaração foi dada em discurso na cerimônia de posse da nova gestão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília.

“Diante de uma falta de regulamentação adequada, temos observado uma tendência de concentração de poder sem precedentes nas oligarquias digitais. Um poder absolutista, que desconhece fronteiras e visa subjugar as jurisdições nacionais. É imperativo avançar na criação de um arcabouço jurídico robusto, que promova a concorrência justa e proteja as crianças, as mulheres e as minorias”, disse.

O presidente acrescentou que “é

 preciso assegurar que todos tenham acesso equitativo às oportunidades no ambiente digital, e que estejamos todos protegidos da ameaça de uma nova forma de colonialismo, o chamado colonialismo digital”.

Para uma plateia composta por centenas de advogados, de governadores e outros chefes de Poderes, Lula enfatizou o papel histórico da OAB na defesa da democracia, da justiça e dos direitos humanos, mas observou que é preciso manter a vigilância contra novas ameaças autoritárias, mencionando a tentativa de golpe contra a democracia nos fatos que levaram aos ataques de 8 de janeiro de 2023.

“Atualmente, nos deparamos com um cenário global em que o fascismo ressurge sob novas formas. No Brasil, a intolerância política chegou ao extremo de uma tentativa de golpe contra a democracia. Um golpe que previa, inclusive, o assassinato do presidente e do vice-presidente da República, e do presidente do Tribunal Superior Eleitoral”, afirmou.

“A democracia não é um dado adquirido. É uma construção diária, que exige coragem, união e compromisso com os valores que nos tornam uma nação livre e justa. O Brasil de hoje enfrenta desafios que exigem de nós união, coragem e determinação. Precisamos reconstruir as bases da nossa democracia, promover a justiça social e combater as desigualdades que ainda assolam nossa nação”, continuou o presidente.

Lula ainda defendeu as prerrogativas dos advogados, lembrando da própria previsão constitucional da advocacia na Constituição.

O presidente exemplificou que foi a graças ao trabalho da advocacia que ele próprio conseguiu demonstrar sua inocência nos processos da Operação Lava Jato.

“As prerrogativas dos advogados e advogadas não são privilégios, senão direitos fundamentais para o pleno exercício do direito de defesa, tão caro em nossa Constituição. Não é demais lembrar que graças à atuação de uma advocacia combativa pude ver minha inocência prevalecer frente ao abuso de poder perpetrado por um grupo que quis tomar a justiça e o direito para si”.

Reeleição na OAB

Pelos próximos três anos, a OAB Nacional seguirá sendo presidida pelo advogado amazonense Beto Simonetti, reeleito em janeiro para um segundo mandato à frente da entidade. Ele recebeu 100% dos 81 votos válidos e comandará a instituição até 2028.

Simonetti é o primeiro presidente reeleito da entidade desde a redemocratização do Brasil.

Em seu discurso, antes de Lula, o advogado também fez uma defesa enfática da democracia e do Estado de Direito.

“Neste mundo em transformação, devemos sempre ter em mente que a democracia constitucional é a maior conquista jurídica e política da sociedade no pós-Segunda Guerra Mundial. Com ela, a humanidade avançou muito. Passaram a ser prioridades os direitos fundamentais, as liberdades individuais e a igualdade. A estabilidade institucional e a segurança jurídica passaram a ser imperativos”, afirmou.

Ele ainda disse que a OAB deve ser apartidária, mas que é preciso se unir na diversidade em torno de valores democráticos.

Fonte: EBC

Literatura ajuda a conhecer a si próprio e aos outros

Certa vez, ao entrar no gabinete de um juiz para despachar uma petição, o advogado Pedro Pacífico foi surpreendido pelo grito de um assessor, revelando sua identidade de influenciador literário: “É o Bookster!”.

Ele ficou sem reação. Afinal, estava em um ambiente formal, cumprindo rituais do Direito, que eram gravados. Mas a fala do assessor descontraiu o recinto, e o juiz se interessou pela atividade paralela de Pacífico.

“Nesse momento eu percebi que a minha tentativa inicial de separar quem era o influenciador e quem era o advogado não era sustentável. Eu sou as duas coisas, essas duas pessoas”, afirma Pacífico à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Desde então, ele parou de ter receio de ser “descoberto” por colegas do meio jurídico. E isso, inclusive, o fez conhecer “pessoas muito interessantes do Direito, as quais eu talvez não tivesse conhecido se mantivesse com temor de me expor”.

Leituras desinteressantes

No fim do ensino médio, Pacífico prestou vestibular para Medicina em diversas faculdades, menos a Universidade de São Paulo, na qual tentou Direito. Ele se matriculou no curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no campus de Sorocaba (SP). Porém, não gostou do trote longo e exagerado.

Antes do fim de sua primeira semana na PUC-SP, foi aprovado para a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e resolveu ver como era. Logo de cara, gostou mais do ambiente, do perfil dos alunos, da politização e das discussões. E continuou no curso, também influenciado por seu pai e sua irmã, que são advogados.

O seu primeiro estágio foi na área de Direito Tributário, com o professor da USP Luís Eduardo Schoueri, no escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri. No quarto ano, passou a trabalhar com contencioso cível estratégico e arbitragem na banca Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, da qual virou sócio em 2024.

Pacífico sempre gostou de ler e brinca que foi enganado por quem disse que Direito era um curso bom para ele por esse motivo. “Na faculdade, as pessoas liam, mas não liam literatura. Elas liam só textos acadêmicos e técnicos.”

Devido à alta carga de leitura demandada pela graduação, ele deixou a literatura de lado. No fim da faculdade, fez um intercâmbio na Universidade de Sorbonne, na França. Lá, viu como a literatura era forte e importante para os franceses e quis retomar o hábito da leitura.

No entanto, quando voltou ao Brasil, estava perdido sobre o que ler, já que seus colegas e conhecidos não falavam muito de livros. Então descobriu pessoas que abordavam literatura nas redes sociais e conheceu obras muito diferentes das que estava acostumado.

Reprodução/ InstagramO advogado Pedro Pacífico, conhecido como Bookster

 

Depois de um ano, veio a ideia de criar seu próprio espaço. Inicialmente, não desejava necessariamente ser um influenciador, apenas ter uma página para divulgar suas opiniões sobre livros e trocar ideias com interessados no assunto. Em 2017, nasceu o perfil Bookster no Instagram.

Aos poucos, a página foi crescendo. Pelo receio de atrapalhar a sua carreira como advogado, não se expunha. E só foi contar do projeto para alguns conhecidos após atingir cerca de dez mil seguidores.

O perfil foi indicado a interessados em leitura e recebeu um impulso durante a pandemia de Covid-19, quando milhões de pessoas passaram a tentar preencher o tempo livre de forma mais rica. Segundo Pacífico, a página cresceu — hoje tem mais de 600 mil seguidores — por causa do seu gosto por livros, sem ser, todavia, um especialista em literatura. E os seguidores passaram a confiar em suas recomendações.

E chegou uma hora em que não fazia mais sentido esconder quem era o Bookster, e Pacífico passou a se identificar na página. A recepção foi boa, melhor do que ele esperava entre seus colegas. “Deve ter gente que criticou, mas não fiquei sabendo. Não tive nenhum prejuízo na carreira. Mas talvez teria se falasse de algum assunto considerado mais superficial.”

“As novas gerações não estão satisfeitas em seguir uma carreira por toda a vida. As pessoas vivem cada vez mais tempo. Não quero pensar que só vou fazer uma coisa para o resto da minha vida. Eu tenho outros interesses, eu sou múltiplo”, aponta Pacífico.

Não é fácil conciliar a carreira de advogado com a de influenciador literário. Ele costuma gravar conteúdos para sua página aos sábados e domingos, para ir publicando durante a semana. Se tem algo mais urgente ou um evento, marca bem cedo ou à noite para não atrapalhar sua rotina no escritório.

Muitos perguntam a Pacífico se ele pensa em largar a advocacia e se concentrar em seu projeto literário. Ele diz que talvez um dia possa reformular a balança de quanto tempo cada atividade ocupa na sua rotina. Mas não agora — está feliz no escritório e gosta da rotina de advogado.

Livros recomendados

Pedro Pacífico lançou, em 2023, a obra Trinta Segundos Sem Pensar no Medo: Memórias de um Leitor (Intrínseca). Ele conta sua trajetória profissional e de vida e como os livros o alegraram e ajudaram em seu processo de aceitação como um homem gay. No momento, Pacífico está escrevendo seu primeiro romance, ainda sem data para ser publicado.

Alguns de seus autores preferidos são Gabriel García Márquez, José Saramago, Lygia Fagundes Telles e Valter Hugo Mãe. Entre os contemporâneos, cita Mariana Salomão Carrara, que também concilia literatura e Direito (clique aqui para ler o perfil dela feito pela ConJur). Dos influencers literários, menciona Mell Ferraz (Literature-se), Paulo Ratz (Livraria em Casa) e Gabriela Mayer (Põe na Estante).

Pacífico ressalta a importância de profissionais do Direito lerem literatura, não apenas textos técnicos. “Com a leitura, aprende-se a enxergar e conhecer o mundo a partir da perspectiva do outro. Foi algo essencial para eu me aceitar como homem gay, mas também para entender as diferenças no outro. A compreender que está tudo bem ser diferente. E o Direito é entender o problema do outro e tentar resolvê-lo”.

Além disso, destaca, a narrativa é muito importante no meio jurídico. Um advogado ou promotor deve saber contar bem a história de seu representado, de forma a convencer o juiz e obter uma decisão favorável. Contudo, Pacífico ressalta que não se deve ler literatura pensando apenas em benefícios práticos.

“Leia as leis, os manuais jurídicos, mas leia literatura, por prazer, por entretenimento. As pessoas falam ‘mas eu não leio porque já passo o dia inteiro lendo’. A única coisa em comum nos autos de um processo e em um livro de literatura é o ato de ler. Um é profissão, o outro é entretenimento. É preciso separar o que é trabalho de uma leitura por prazer. Para isso, é preciso escolher livros legais, que te interessem, de temas diferentes.”

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Na primeira década do CPC/2015, a visão do STJ em dez temas de direito processual civil

Publicado em 16 de março de 2015, o atual Código de Processo Civil (CPC) entrou em vigor um ano depois para substituir o CPC de 1973, que permaneceu em vigência durante mais de quatro décadas.

O novo código foi um passo importante para a consolidação do sistema brasileiro de precedentes, que busca uniformizar a aplicação do direito a partir da observância obrigatória das decisões das cortes superiores pelos demais órgãos do Judiciário, racionalizando a atividade jurisdicional e evitando a multiplicação de processos sobre temas já pacificados.​

A primeira década do CPC/2015 foi lembrada pela Secretaria de Biblioteca e Jurisprudência do tribunal com uma edição especial de Jurisprudência em Teses.

Nesses dez anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) produziu extensa jurisprudência no campo do direito processual civil ao enfrentar controvérsias em torno da aplicação das normas inovadoras do CPC/2015, em assuntos como honorários advocatícios, impenhorabilidade de bens, sistema recursal e muitos outros.

Flexibilização do cabimento do agravo de instrumento

Em 2018, ao julgar o Tema 988 dos recursos repetitivos, a Corte Especial fixou a tese de que o rol do artigo 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, ou seja, a interposição do agravo de instrumento é admitida diante da urgência, quando se verificar a inutilidade de discutir a questão apenas no momento do julgamento do recurso de apelação.

Leia também: STJ define hipóteses de cabimento do agravo de instrumento sob o novo CPC

A relatora do REsp 1.696.396, ministra Nancy Andrighi, enfatizou que as hipóteses previstas no dispositivo não abrangem todas as questões que podem ser prejudicadas se tiverem de esperar pela discussão futura em recurso de apelação, as quais devem ser reexaminadas imediatamente em segunda instância. Ao mesmo tempo, ela afastou a possibilidade de interpretação extensiva ou analógica.

A ministra salientou que o rol também não pode ser visto como exemplificativo, pois, dessa forma, o desejo do legislador de restringir o cabimento do recurso seria contrariado, o que resultaria na repristinação do artigo 522 do CPC/1973.

A respeito do mesmo dispositivo, a Segunda Seção fixou outra tese repetitiva, igualmente sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, cadastrada como Tema 1.022: também cabe agravo de instrumento de todas as decisões interlocutórias proferidas no processo de recuperação judicial e no processo de falência, por força do parágrafo único do artigo 1.015 do atual CPC.
Conforme explicou a relatora do REsp 1.717.213, ministra Nancy Andrighi, são recorríveis imediatamente, por agravo de instrumento, as decisões interlocutórias nas fases de liquidação e execução proferidas em processos recuperacionais e falimentares, não apenas nas hipóteses previstas no CPC, mas também naquelas disciplinadas por legislação extravagante que possuam a mesma natureza jurídica.

Impenhorabilidade da poupança e de outras aplicações financeiras

No início de 2024, no julgamento do REsp 1.660.671, sob relatoria do ministro Herman Benjamin, a Corte Especial do STJ definiu uma importante orientação jurisprudencial sobre a interpretação do artigo 833, inciso X, do CPC, que trata da impenhorabilidade da caderneta de poupança até 40 salários mínimos.

Para o tribunal, a impenhorabilidade poderá ser estendida a valores de até 40 mínimos mantidos em conta-corrente ou em outras aplicações financeiras que não a poupança, caso seja provado que se trata de uma reserva de patrimônio destinada a assegurar o mínimo existencial ou a proteger o indivíduo ou sua família contra adversidades.

Como o entendimento foi fixado no julgamento de recurso especial avulso, o STJ afetou a questão ao rito dos repetitivos (Tema 1.285) para lhe dar os efeitos processuais de um precedente qualificado. O julgamento, iniciado em dezembro na Corte Especial, sob relatoria da ministra Maria Thereza de Assis Moura, está suspenso por pedido de vista.

Ainda a respeito da impenhorabilidade da poupança, o julgamento do Tema 1.235 pela Corte Especial fixou a seguinte tese: a impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo juiz, devendo ser arguida pelo executado no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos ou em embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão.

REsp 2.061.973 chegou ao STJ após as instâncias ordinárias deixarem de penhorar, de ofício, com base no artigo 833, inciso X, do CPC, valores encontrados na conta dos executados. A relatora, ministra Nancy Andrighi, observou que o legislador relativizou a impenhorabilidade ao não utilizar a palavra “absolutamente” no artigo 833. Esse já era o entendimento do STJ ainda durante a vigência do CPC/1973.

De acordo com a ministra, por ser um direito do executado, a impenhorabilidade pode ser renunciada caso o bem seja disponível, não podendo ser considerada, como regra, de ordem pública. Nancy Andrighi observou ainda que o CPC vigente é expresso quando autoriza a atuação de ofício do juiz, o que não ocorre no reconhecimento da impenhorabilidade. Ao contrário, disse a relatora, o código “atribui ao executado o ônus de alegar tempestivamente a impenhorabilidade do bem constrito”.

A pandemia da Covid-19 e o auxílio emergencial

Foi durante a primeira década de vigência do CPC que o país enfrentou a pandemia da Covid-19, a qual trouxe desafios inéditos ao Poder Judiciário. Entre as várias decisões de direito processual civil tomadas pelo STJ em razão da crise sanitária, a Quarta Turma estabeleceu a impossibilidade de penhora do auxílio emergencial – mesmo que parcial – para pagamento de crédito constituído em favor de instituição financeira.

Para o relator do REsp 1.935.102, ministro Luis Felipe Salomão, a verba emergencial a que se referia o caso foi destinada a ajudar pessoas afetadas pela pandemia que ficaram sem acesso ao essencial, por isso, qualquer desconto que não fosse para pagamento de pensão alimentícia atingiria a dignidade dos devedores.

O ministro realçou que, por se tratar de execução de uma cédula de crédito, proposta por instituição financeira, a penhora não poderia ser realizada, por força dos incisos IV e X do artigo 833 do CPC ou, ainda, devido ao parágrafo 13 do artigo 2º da Lei 13.982/2020. Por outro lado, o relator reconheceu que o legislador, buscando um equilíbrio no sistema e objetivando a satisfação do credor, criou exceções que autorizavam a penhora.

Legitimidade da parte para recorrer sobre honorários advocatícios

Em 2021, a Terceira Turma decidiu, no REsp 1.776.425, que tanto a parte – em nome próprio – quanto o advogado possuem legitimidade concorrente para interpor recurso acerca dos honorários advocatícios.

O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), lembrou que, segundo a jurisprudência do STJ em relação ao antigo CPC, tanto as partes quanto os advogados já podiam, em nome próprio, pedir a fixação ou o aumento dos honorários estabelecidos pelo órgão julgador.

O ministro ressaltou que, embora o artigo 99 do atual código não trate diretamente dessa legitimidade, a interpretação do dispositivo leva à conclusão de que o entendimento adotado anteriormente não foi revogado.
Por fim, o relator destacou que o parágrafo 5º do mesmo artigo, ao dispor sobre o requisito do preparo, cita a possibilidade de a parte beneficiária de gratuidade judiciária recorrer apenas sobre os honorários.

Ônus da prova sobre exploração do imóvel rural em regime familiar

Em uma década do CPC, outra importante tese do tribunal no campo da impenhorabilidade de bens foi firmada no julgamento do Tema 1.234 dos recursos repetitivos, no qual se definiu que cabe ao devedor provar que o imóvel rural é explorado pela família e não pode ser penhorado, de acordo com o artigo 833, inciso VIII, do código.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, frisou que a Segunda Seção, ao julgar o REsp 1.913.234, em 2023, já havia pacificado o entendimento de que é do executado o ônus de comprovar que o imóvel se qualifica como pequena propriedade rural explorada pela família.

“Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma”, explicou a ministra. Segundo ela, o importante é assegurar os meios para a efetiva manutenção da subsistência do executado e de sua família.

Honorários têm natureza alimentar, mas não são prestação alimentícia

Ainda sobre o tema dos honorários advocatícios, a Corte Especial estabeleceu em 2024, sob o rito dos repetitivos (Tema 1.153), que a verba honorária sucumbencial, apesar de sua natureza alimentar, não se enquadra na exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do CPC.

O relator do REsp 1.954.380, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, sublinhou que a discussão da matéria girou em torno da distinção entre as expressões “natureza alimentar” e “prestação alimentícia”, sendo decidido que esta última é espécie e aquela, gênero.
Conforme salientou o ministro, diferentemente dos honorários advocatícios, a prestação de alimentos é uma obrigação periódica e contínua que pode, inclusive, resultar de condenação por ato ilícito ou ato de vontade. 

É vedada a fixação de honorários por equidade em causas de grande valor

A Corte Especial, ao julgar o REsp 1.850.512, de relatoria do ministro Og Fernandes, decidiu que é inviável a fixação de honorários de sucumbência por apreciação equitativa quando o valor da condenação ou o proveito econômico forem elevados.

Cadastrado como Tema 1.076, o repetitivo estabeleceu que apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação, o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório, ou ainda o valor da causa for muito baixo.

O relator lembrou que o atual CPC buscou dar objetividade às hipóteses de fixação de honorários, e apenas excepcionalmente autorizou a apreciação equitativa do juiz, segundo o artigo 85, parágrafo 8º. Conforme acrescentou, o parágrafo 3º desse artigo ainda preservou o interesse público, estabelecendo regra diferenciada para os casos em que a Fazenda Pública é parte.

O ministro ressaltou que o advogado deve informar claramente ao seu cliente os custos de uma possível sucumbência para que juntos decidam, de modo racional, se é viável iniciar um litígio. “Promove-se, dessa forma, uma litigância mais responsável, em benefício dos princípios da razoável duração do processo e da eficiência da prestação jurisdicional”, completou.

A liberdade do juiz para rever valores da multa cominatória

Em 2020, a Corte Especial decidiu que é possível que o magistrado, a qualquer tempo, e mesmo de ofício, revise o valor desproporcional das astreintes.

O relator do EAREsp 650.536, ministro Raul Araújo, afirmou que é preciso observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade na imposição da multa cominatória, tendo em vista que a sua finalidade é conferir efetividade ao comando judicial, e não indenizar, substituir o cumprimento da obrigação ou enriquecer uma das partes.

O ministro comentou que esse valor é estabelecido sob a cláusula rebus sic stantibus, não ensejando preclusão ou formação de coisa julgada. Segundo apontou, a quantia pode ser revista a qualquer tempo, conforme artigo 537, parágrafo 1º, do CPC, ou até mesmo excluída quando não houver mais justa causa para sua mantença.

Comprovação de feriado local na interposição do recurso

Uma controvérsia muito debatida na corte diz respeito à necessidade de comprovação de feriado local para demonstrar a prorrogação do prazo recursal e a tempestividade do recurso.

Em 2019, no julgamento do REsp 1.813.684, interpretando o CPC/2015, a Corte Especial decidiu que era necessário comprovar nos autos a ocorrência do feriado local, por meio de documento idôneo, no ato de interposição do recurso. O ministro Luis Felipe Salomão, cujo voto prevaleceu naquele julgamento, enfatizou que o CPC tinha inovado ao trazer expressamente que a comprovação de feriado local no momento do protocolo era indispensável.

No entanto, em 2024, a Lei 14.939 estabeleceu que, se o feriado local não for comprovado na interposição do recurso, o tribunal deverá determinar a correção do vício ou mesmo desconsiderá-lo se a informação já constar do processo eletrônico. No início de 2025, a Corte Especial, sob relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, julgou o AREsp 2.638.376 e definiu que a nova regra se aplica a recursos já interpostos.

Técnica do julgamento ampliado não depende de requerimento

Uma das grandes inovações do CPC/2015 na área dos recursos foi a extinção dos embargos infringentes e a criação do julgamento ampliado – técnica prevista no artigo 942 para ser usada em caso de julgamento não unânime da apelação. Em 2018, ao analisar o REsp 1.771.815, a Terceira Turma fixou importantes interpretações sobre o julgamento ampliado, também chamado de ampliação do colegiado.

Seguindo o voto do relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a turma definiu que, se o julgamento da apelação não for unânime, a ampliação do colegiado deve ser adotada de ofício pelo órgão julgador, sem a necessidade de pedido da parte, pois não se trata de uma nova espécie recursal.

Ficou decidido também que os desembargadores que já tiverem votado poderão modificar seu voto na continuação do julgamento, e que o exame da apelação, na hipótese do julgamento ampliado, pode envolver todas as questões do recurso, e não apenas o capítulo em que se registrou a divergência.

De acordo com o relator, “o prosseguimento do julgamento com quórum ampliado em caso de divergência tem por objetivo a qualificação do debate, assegurando-se oportunidade para a análise aprofundada das teses jurídicas contrapostas e das questões fáticas controvertidas, com vistas a criar e manter uma jurisprudência uniforme, estável, íntegra e coerente”.

Fonte: STJ

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O Direito Tributário protege a propriedade, não a liberdade

Será o tributo a expressão da liberdade, o que se encontra disseminado na doutrina, tendo como destaque no Brasil a obra de Ricardo Lobo Torres? Ele afirma em diversas partes de sua enciclopédica obra que o tributo libertou a humanidade da servidão, que se caracterizava pelo Estado Patrimonial, correspondente histórico do feudalismo e do absolutismo, em que o poder dos senhores feudais e dos monarcas sobre a vida das pessoas era completo. Afirma que, com o advento do Estado Fiscal, baseado na arrecadação dos tributos, a humanidade se libertou e passou a ter essas relações reguladas pelo Direito, delimitando o poder do monarca.

Para compreensão deste aspecto, é necessário dar um passo atrás e entender que a grande distinção histórica, da qual decorreu a criação da tributação, foi a modificação na estrutura da propriedade durante o período absolutista, e que, com as revoluções burguesas, se transformou em propriedade privada individual, e, após, com a revolução industrial, foi criada nova dinâmica econômica baseada não mais na conservação da propriedade, mas em sua circulação. Tudo isso impactou fortemente a forma pela qual foi feita a arrecadação para sustentação do Estado ao longo do tempo.

É necessário analisar a relação de causa e efeito, sendo a alteração do sistema de propriedade a causa, e a instituição do sistema de tributação seu efeito. O modelo de propriedade em cada fase histórica do Estado é que determina a arrecadação para sua sustentação, sendo que a tributação surge na passagem do Estado Absoluto (Estado Moderno) para o Estado Liberal, daí advindo o Estado de Direito.

No período absolutista, ainda em decorrência da anterior fase feudal, pertenciam ao monarca todas as propriedades existentes em seu reino, sendo admitido que a nobreza e o clero também dispusessem da propriedade mais importante de todas, que era a das terras. Aos camponeses não era permitido ter propriedades, e trabalhavam nas terras de seus senhores, constituindo-se em seus súditos, aos quais deviam servidão e para os quais pagavam em trabalho ou em produtos que cultivavam em troca de proteção contra a ameaça de outros soberanos, de outros senhores feudais, ou ainda, de bandidos.

Não se nega que a limitação do poder dos soberanos absolutos foi um passo importante para a civilização, e que a criação de mecanismos de contenção de seu poder de arrecadar foi muito relevante, se afigurando como essencial a concordância da assembleia dos súditos para vários dos poderes absolutos que os soberanos exerciam, como se vê na Magna Carta, de 1215, e nos documentos históricos dos direitos fundamentais que se lhe seguiram.

Nesse período se encontra o embrião do princípio da legalidade e, por conseguinte, do Estado de Direito. Posteriormente, o que era uma assembleia da nobreza passou a ser de representantes do povo, tendo sido instituídos mecanismos jurídicos mais completos e complexos para regular diversas matérias, concentradas na constituição, instituto criado pelos norte-americanos nos albores de sua independência, há pouco mais de dois séculos, e que se configurou como um marco no surgimento do Estado Liberal.

Considerando os documentos históricos dos direitos fundamentais, a afirmação da propriedade privada como um direito individual surge na Declaração de Direitos da Virgínia, ocorrida em 1776, em seu art. 6º. É obvio que existia propriedade privada individual antes dessa Declaração, como se pode ver nos debates teóricos acerca do tema, por exemplo, entre Locke e Rousseau. A novidade dessa Declaração foi sua afirmação por colonos que declaravam seu território independente da Inglaterra, isto é, contra o poder soberano da monarquia britânica.

Logo após, em 1789, os franceses proclamaram por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ser a propriedade um direito inviolável e sagrado. Observe-se que esta proclamação não se refere ao povo francês, mas a todos os homens. E nem decorre de uma declaração de independência contra o jugo de outra nação, como ocorreu com os norte-americanos, cuja afirmação foi fruto de um confronto com a nação colonizadora. Esta Declaração surge como uma afirmação de um direito de todos os homens, individualmente considerados.

A modificação no sistema arrecadatório para sustentação do Estado ocorreu nessa fase histórica, não pela criação do sistema tributário, que surgiu como um subproduto da modificação do sistema de propriedade, que passou a normativamente assegurar e proteger a propriedade privada individual. A dinâmica da circulação da propriedade foi intensificada durante a revolução industrial, influenciando, por conseguinte, a tributação das riquezas e da propriedade, modificando a sistemática da arrecadação.

O Estado protegido do poder

Essa trajetória histórica demonstra que uma das formas de resguardar a propriedade privada dos cidadãos foi a de estabelecer mecanismos limitados para a arrecadação aos cofres reais, que se tornaram cofres públicos, por meio de normas jurídicas que delimitassem esse poder e carreassem os recursos para o erário, para uso em prol da sociedade, e não do governante de plantão. Ao longo das revoluções burguesas e com o advento do constitucionalismo monárquico, até mesmo o Rei passou a ser obrigado a respeitar a Constituição de seu país e as leis que dela adviessem.

Para delimitação do poder do Estado sobre a propriedade privada é que, em decorrência, foram criados os mecanismos tributários, que se agregaram a outros institutos jurídicos para garantia do conjunto das liberdades consagradas e delimitadas pelas constituições, sendo uma delas a de usar, gozar e dispor de sua propriedade privada, podendo defendê-la contra todos.

Foi essa modificação no sistema de propriedade, e na delimitação dos poderes por parte das constituições, que se configurou efetivamente o Estado de Direito e, com isso, a separação da propriedade real absoluta, posteriormente transformada em propriedade pública, da propriedade privada, devendo os indivíduos contribuírem para o custeio dos serviços governamentais por meio da tributação, e não pela imposição forçada decorrente do poder absoluto dos monarcas. Posteriormente se chegou ao Estado Democrático de Direito, com o advento de outros institutos e direitos ao sistema.

Exatamente por isso que se deve ter cautela quando contemporaneamente se classifica as receitas públicas em originárias, decorrentes da exploração do patrimônio do Estado, e derivadas, como aquelas que decorrem do poder de império do Estado — esta afirmação requer como complemento que tal poder é exercido “de conformidade com o ordenamento jurídico existente”, e não por meio do vetusto conceito de “poder de império”, abandonado desde a queda do modelo de Estado Absoluto.

Nada obsta que se alinhe a tributação à defesa das liberdades, ao invés da defesa da propriedade privada, mas esta decorre de uma conclusão inafastável à luz do direito posto, uma vez que os direitos fundamentais são dos contribuintes, e visam defender seu patrimônio, isto é, sua propriedade privada.

É óbvio que no sistema vigente nos países ocidentais, a defesa da propriedade privada se insere como uma defesa das liberdades, mas são dois passos distintos, pois uma coisa é defender a propriedade privada, e outra coisa é considerar que ser livre é ter o direito de poder ser proprietário de algoe dele usar, gozar e dispor.

Não é apenas a propriedade privada que faz o homem ser livre. O tributo delimita o espaço entre o reconhecimento da propriedade privada e a receita pública, que é a arrecadação do Estado. Essa delimitação decorre do Estado democrático de Direito, sendo o tributo um elemento de todo esse conjunto. Ser livre decorre de outros fatores, estudados por Amartya Sen, dentre outros, e passa pela análise de diversas disciplinas que envolvem liberdade e igualdade. O tributo, como instrumento de contenção do poder estatal em face dos governos, é um dos múltiplos institutos fundamentais para o exercício dessa liberdade, como contenção do poder governamental sobre a propriedade privada dos indivíduos.

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Motoapp: é preciso regular, não proibir

São Paulo não tem trânsito eficiente. Muito menos amigável. Também não tem transporte suficiente para atender adequadamente a demanda, especialmente nas periferias, aquela que mais precisa de transporte público.

O viário, bem público, é disputado por todos os modais. Historicamente, foi dada preferência ao automóvel, ineficiente para a boa mobilidade urbana. Vivemos enredados entre a prevalência do transporte individual, os interesses em torno do transporte coletivo (individual e coletivo) e a irracionalidade alocativa da destinação do viário, o que torna o trânsito hostil aos mais vulneráveis: pedestres, motociclistas, ciclistas, usuários de patinetes elétricos.

Nesse contexto, se insere a polêmica em torno do motoapp, opção de deslocamento a custo menor do que táxis e automóveis e com previsibilidade maior que os ônibus.

O município de São Paulo sempre despontou como fonte de inovação em políticas de modalidade. Agora resolveu andar na contramão da lei e das evidências. Há dois anos, a municipalidade publicou decreto suspendendo temporariamente o transporte individual de passageiros em motos por aplicativo. Desafiou a lei alegando que precisava realizar maiores estudos. Passado esse tempo o máximo que conseguiu produzir foi um relatório cuja conclusão final é que viagens em motocicleta ensejam riscos!

Não foi feita uma pesquisa comparativa com outros municípios. Não se demonstrou porque viagens intermediadas por aplicativos são mais perigosas que caronas diárias em motocicletas. Não se comparou riscos de viagens de entregadores de encomendas e de transporte de passageiros.

Não se fez análise de impacto regulatório, nem análise de custo benefício. Tampouco se regulou a atividade, estabelecendo condições de segurança e idoneidade para oferta de serviço. Simplesmente se pretendeu proibir que aplicativos ofereçam tais viagens sob a alegação que, do contrário, haveria uma “carnificina”. Algo que não sobreveio em outros municípios, mesmo da Região Metropolitana em contam com o serviço há anos.

A pretensão afronta a lei, carece de fundamento e vai contra o interesse público. Municípios não têm competência para proibir transporte individual por motocicletas e muito menos a intermediação por aplicativos.

Compete à União legislar sobre trânsito, transporte e mobilidade (Constituição, artigo 21, IXe XI). Proibir o motoapp seria o mesmo que a Municipalidade vetasse viagens de motocicleta ou motos com dois passageiros na Cidade. Proibir os aplicativos em âmbito municipal corresponderia a dizer que no território paulistano bets são vedadas.

A Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana PNMA (L. 12.587/12) separa transporte público (ônibus, táxi) do transporte remunerado privado individual de passageiros, que é expressamente admitido independente do veículo. Já a Lei 13.640/18 delimita estritamente os limites do poder regulatório do município, o que torna qualquer outra exigência ilícita e, tacitamente, veda a proibição de algum destes modais de transporte individual. Fosse pouco, a Lei se Liberdade Econômica (L. 13.874/19) determina ser abuso regulatório, ilícito portanto, impedir o exercício de atividade econômica sem fundamento necessário e suficiente.

A motivação declarada pela municipalidade, por sua vez, é absolutamente inconsistente. Alega-se que a atividade seria temerária, fomentando mortes e acidentes. Sem nenhum estudo. E contra as evidências colhidas onde já opera o serviço, como demonstram as estatísticas. Pior: contra o verificado nos dias em que o serviço esteve ativo em São Paulo: em mais de 500 mil viagens, só duas ocorrências, ambas leves. Estatisticamente, um risco menor que andar de patinete. Alega-se ainda que este modal sobrecarregaria a rede de saúde e a previdência. Para além da absoluta falta de estudos sérios e mesmo evidências, a alegação vai contra a PNMA que exige para tal transporte a contratação de seguro (artigo 11A, II).

No último ano, segundo dados do Infosiga, 483 pessoas morreram em sinistros envolvendo motocicletas na capital paulista, algo lamentável. Atribuir isso ao transporte individual por aplicativo é contornar a verdade. Não há estatística oficial atribuindo uma fração destas motes a aplicativos. A presunção, aliás, vai em sentido contrário pois em 2024 o serviço não era oferecido por boa parte do ano.

Interesse do cidadão

É contrafactual pretender atribuir esse aumento aos condutores que utilizam apps. Em todo o país, eles representam 2,3% do total da frota. São 800 mil trabalhadores autônomos para um contingente de 34,2 milhões de motos. Um dos aplicativos disponíveis já intermediou um bilhão de corridas nessa modalidade. Apurou índice de acidentes ou incidentes de 0,0003% de todos os deslocamentos realizados pelas motocicletas. O serviço de motoapp oferecido em cidades como o Rio de Janeiro e outras 24 capitais de estado brasileiras, mostram as estatísticas, não elevou o número de sinistros.

O que se verifica em municípios em que o serviço é admitido, é que motociclistas profissionais, que já usam a moto para entregas, migrem para este serviço, em tempo parcial ou sazonalmente. A se tomar pelo raciocínio temerário das autoridades, o próximo passo será proibir entregadores em motocicletas para evitar acidentes.

Mas o pior efeito dessa cruzada contra o motoapp é a desconsideração do interesse do cidadão paulistano. Esse modal de transporte é muito útil e empregado na primeira ou última milha de uma viagem. É utilizado por pessoas de sua casa, especialmente em comunicasses mais periféricas, até a conexão com o modal de transporte radial (ônibus, trem, metro). Na periferia dos grandes centros substitui as viagens a pé. Para as mulheres é alternativa para trajetos nos quais são expostas a violência, pois os motoristas passam por crivo e controle rigorosos.

O valor médio das viagens fica ente cinco e dez reais. Em seminário da Folha de S.Paulo, Geovana Borges, da Cufa, afirmou a importância do motoapp para as mulheres da periferia. Destacou ainda que a atividade é uma alternativa de renda para famílias mais vulneráveis. Fatores simplesmente desprezados pelo município de São Paulo.

Regular qualquer atividade é prerrogativa do poder público. Mas como todo dever deve ser realizado com responsabilidade, fundamentação exaustiva. Proibir uma atividade que já existe há anos em mais de 3.300 das 5.571 cidades brasileiras baseado em raciocínios intuitivos ou alegações genéricas tangencia a inconsequência.

Andar de moto é perigoso? Sim. Vamos proibir as motocicletas? Claro que não. A circulação de motos no país desde há muito foi regulamentada, e cabe aos agentes públicos fiscalizá-la e executar boas políticas de educação de trânsito. Vale o mesmo para o transporte individual de passageiros por motoapp. A lei nacional já determinou que é proibido proibir. Cabe aos municípios regular. Sem abuso, Com motivação e ponderação. E sem bravatas.

*artigo a pedido da 99 Táxi 

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