Demandas judiciais por violência contra a mulher crescem 51% em três anos

Página 36 - Anuário da Justiça Brasil 2024
Resolução do CNJ determinou o julgamento com perspectiva de gênero em todo o Judiciário

Violência doméstica, lesão corporal, estupro, estupro de vulnerável, feminicídio. De acordo com o DataJud, painel de estatísticas do Conselho Nacional de Justiça, esses e outros crimes reconhecidos no arcabouço legal brasileiro representaram em 2023 21% do total de demandas na área penal em apreciação pelo Judiciário brasileiro. No período de 2020 a 2023, o volume de demandas sobre o tema evoluiu 51% — mais que o dobro do incremento constatado por todas as demandas do Direito Penal juntas, que no mesmo intervalo de tempo cresceram 23%.

Um outro dado alarmante dos riscos de nascer mulher em um país profundamente machista como o Brasil foi identificado pela ministra Daniela Teixeira em novembro de 2023, assim que ela tomou posse no Superior Tribunal de Justiça. “No meu gabinete havia 511 processos relacionados a crimes de estupro de vulneráveis, ou seja, cometidos contra pessoas com menos de 14 anos. Esse dado foi o que mais me chocou desde a minha chegada na corte”, afirmou a ministra, mãe de uma menina de 10 anos e uma das cinco mulheres no universo de 31 ministros que atualmente integram a corte.

O volume escandaloso de demandas na Justiça relacionadas à violência contra a mulher reflete o cotidiano de uma população que é numericamente maioria no Brasil, mas que apesar disso sofre a cólera da minoria empoderada por séculos de patriarcado. De acordo com a Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo Instituto DataSenado em 2023, 30% das mulheres com 16 anos ou mais já foram vítimas de algum tipo de violência doméstica ou familiar praticada por homens. Conforme outro levantamento sobre o tema, “Feminicídios em 2023”, divulgado em março pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), um total de 1.463 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil em 2022, um crescimento de 1,6% quando comparado ao ano anterior e maior número da série monitorada pela organização desde a tipificação do crime pela Lei 13.104, de 2015. O feminicídio é uma qualificadora do homicídio doloso, quando o crime decorre de violência doméstica e familiar em razão do menosprezo e da discriminação à condição feminina.

Para fazer o levantamento, o FBSP coleta e consolida as bases de dados dos feminicídios registrados pelas Polícias Civis dos Estados e do DF, que incluem informações detalhadas sobre o perfil das vítimas, dos autores e as características do crime. Assim, é possível traçar o perfil das mulheres que tiveram a vida ceifada em função de gênero. Entre elas, 72% tinham entre 18 e 44 anos, 61% eram negras. Morreram assassinadas em 73% dos casos pelo parceiro ou ex-parceiro, 70% em sua própria residência, fatalmente feridas, em metade dos registros, por golpes de armas brancas. “O espaço da casa, ‘o asilo inviolável’ do qual a Constituição fala, não se apresenta como um espaço do lar, é um espaço de insegurança”, lamentou a secretária-geral do CNJ, juíza federal Adriana Alves do Santos Cruz em palestra para juízes e servidores do STJ no final de 2023. “Quando esses casos chegam à Justiça é porque tudo deu errado”, diz.

Não é por carência de legislação que o Brasil não consegue mitigar a violência cometida contra a população feminina. “A Lei 11.340/2006, batizada em homenagem a Maria da Penha, traduz a luta das mulheres por reconhecimento, constituindo marco histórico com peso efetivo, mas também com dimensão simbólica, e que não pode ser amesquinhada, ensombrecida, desfigurada, desconsiderada. Sinaliza mudança de compreensão em cultura e sociedade de violência que, de tão comum e aceita, se tornou invisível – ‘em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher’, pacto de silêncio para o qual a mulher contribui, seja pela vergonha, seja pelo medo”, disse a ministra Rosa Weber na ocasião de seu voto na ADC 19, julgada procedente por unanimidade do STF para declarar a constitucionalidade dos artigos 1º, 33 e 41 da lei, que vinha sofrendo resistência por uma parte de juízes e desembargadores.

Depois da Lei Maria da Penha, o Brasil ganhou uma série de outras normas concebidas a partir do debate entre a sociedade civil, o parlamento e o Judiciário, caso da Lei do Minuto Seguinte (Lei 12.845/2013), que oferece garantias a vítimas de violência sexual, como exames preventivos e informações sobre seus direitos, a lei que tipificou o crime de Violência Psicológica contra a Mulher (Lei 14.188/2021), a Lei do Feminicídio (Lei 1.463/2022), entre outras.

Mais recentemente duas importantes ferramentas foram adotadas no dia a dia do Judiciário brasileiro na busca por diminuir o número de casos de violência contra a mulher e como forma de evitar que ameaças, agressões atinjam um caminho sem volta. A primeira delas nasceu em 2020 numa parceria do CNJ com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP): o Formulário Nacional de Avaliação de Risco (Fonar) – Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. As 27 perguntas do documento ajudam a entender a situação da vítima, do agressor e o histórico de violência na relação entre ambos.

“O formulário retira muito da subjetividade. Às vezes, a mulher vai numa delegacia e nem mesmo ela lembra nem tem condições de saber se determinado episódio foi importante. O formulário auxilia a identificar os sinais mais evidentes de risco de violência”, explica Alice Bochini, vice-presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas (ABMCJ) e membra do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM). “Adotado pelo Judiciário e pelo MP em 2021 o Fonar transformou-se na Lei 14.149”, tendo sua aplicação estendida a delegacias e entidades que integram a rede de apoio no atendimento a mulheres. Com as respostas do questionário, a autoridade policial e todo o Sistema de Justiça têm condições de requerer ou determinar, por exemplo, a concessão de medidas protetivas.

Segundo a juíza Adriana Cruz, entre as vítimas de feminicídio, em 2022, apenas 11% tinham medidas protetivas deferidas. “Precisamos pensar por que essa política pública judiciária não chegou para essas mulheres.” A medida protetiva de urgência foi criada no escopo da Lei Maria da Penha e é um meio importante para garantir uma proteção emergencial à mulher em situação de risco. No entanto, como demonstram dados dos últimos quatro anos, a concessão de medidas protetivas aponta tendência de queda. Segundo números do Painel de Monitoramento das Medidas Protetivas de Urgência da Lei Maria da Penha, ferramenta do DataJud/CNJ, em 2020, do total de 347 mil solicitações feitas por mulheres em todo o Brasil, perto de 78% foram concedidas. Em 2023, as solicitações saltaram para 704 mil e as concessões caíram para 68% do total.

Na tentativa de garantir a efetividade destas medidas, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), órgão colegiado ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, publicou em abril recomendação de uso de tornozeleira eletrônica nos agressores denunciados por violência doméstica e familiar contra a mulher. “Magistrados e magistradas deverão, ao determinar o monitoramento eletrônico, fundamentar a decisão, definir o perímetro de circulação, os horários de recolhimento e o prazo para reavaliação do uso. É mais um equipamento que permite manter os agressores distantes das vítimas”, explica a advogada Alice Bochini.

Outro importante instrumento estabelecido recentemente pelo Judiciário na luta para reduzir a violência contra a mulher é o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, instituído pelo CNJ como recomendação em 2021 e convertido em resolução em 2023 após o Brasil ser condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no paradigmático ‘caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil’.

Márcia Barbosa de Souza, uma jovem de 20 anos, negra e moradora de Cajazeiras, município a cerca de 450km de João Pessoa, vivia com o pai e uma irmã pequena na periferia da cidade. Em 1997, em uma viagem à capital paraibana em busca de trabalho, conheceu Aércio Pereira de Lima, 54 anos, casado e no exercício do quinto mandato como deputado estadual. No ano seguinte, de volta à João Pessoa, reencontrou o parlamentar. Estavam em um motel, de onde a moça falou pelo celular do deputado com diversas pessoas.

Apareceria morta no dia seguinte nos arredores de um bairro chique da cidade, com diversas escoriações e hematomas na região da cabeça e no dorso. Causa mortis, segundo laudo pericial: asfixia por sufocamento, resultante de ação mecânica.

A jovem Márcia é a personificação de incontáveis mulheres vítimas de feminicídio no Brasil. Teve a vida esmiuçada, foi julgada e até condenada como se fosse ela a criminosa. Protegido pelas garantias do mandato existentes na época, seu algoz só iria a júri popular em setembro de 2007, sendo condenado a 16 anos de reclusão. Ainda em liberdade, em meio ao recurso contra a sentença, teve um infarto e morreu. Mesmo não sendo mais deputado, recebeu homenagens de seus pares. Foi velado na sede da Assembleia Legislativa da Para-íba como se herói fosse.

Paradigma

“Foi a primeira condenação da corte ao Estado brasileiro concernente integralmente à temática de violência contra a mulher”, escreveu em artigo na revista eletrônica ConJur a delegada da Polícia Civil de Pernambuco Bruna Cavalcanti Falcão. “Não se pode ignorar que as decisões proferidas nesse caso e em outros que tramitaram perante a comissão e a corte refletiram em relevantes transformações sociais, notadamente no fortalecimento do sistema de enfrentamento à violência contra a mulher. Isoladamente, no entanto, não se prestam a revoluções”, analisou.

A partir da condenação na Corte Internacional, o protocolo passou a ser um imperativo legal. “De observância por toda a magistratura”, salienta a secretária-geral do CNJ, Adriana Cruz, que atua em alguns momentos como uma porta voz da norma, elaborada por um grupo de trabalho com juízes e juízas de diferentes segmentos do Judiciário, tendo como modelo o protocolo sobre o mesmo tema feito pelo México, também condenado pelo tribunal interamericano. Além de um chão teórico, o protocolo é composto por um banco de decisões com aplicação da norma, uma espécie de “boas práticas” para inspirar integrantes do Judiciário na tomada de decisões. A ideia do Comitê para Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero, encampado pelo CNJ desde a gestão do ministro Luiz Fux, é sensibilizar e capacitar juízes para a incorporação do protocolo no seu dia a dia.

Na primeira reunião do comitê, em dezembro de 2023, uma das informações registradas na ata do encontro não era das mais alvissareiras: “Sobre a capacitação da magistratura, foi relatado que a Enfam possui um curso básico sobre o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero e que realizou essa capacitação para 25 juízes e juízas de diversos locais do país, em turma formada majoritariamente por mulheres, consignando-se que as vagas inicialmente oferecidas não foram todas preenchidas.”

Priorizar o julgamento dos processos relacionados ao feminicídio e à violência doméstica e familiar contra as mulheres é o item 8 das metas nacionais aprovadas durante o 17º Encontro Nacional do Poder Judiciário, realizado em dezembro de 2023 em Salvador. Coube no planejamento para 2024 atribuir ao STJ o julgamento de 100% dos casos relativos aos temas distribuídos até 2022, enquanto na Justiça Estadual a apreciação de 75% dos processos de feminicídio distribuídos até 31/12/2022.

Em 1º de agosto de 2023, coube ao STF, por unanimidade, pôr a pá de cal que faltava numa daquelas excrescências que perduravam em decisões judiciais Brasil afora: a tese da legítima defesa da honra em crimes de feminicídio ou de agressão contra mulheres. “Hoje, é preciso que isso [matar ou agredir em legítima defesa da honra] seja extirpado inteiramente”, afirmou em seu voto a ministra Cármen Lúcia. “Como disse, mais do que uma questão de constitucionalidade, tendo como base exatamente a dignidade humana, conforme aqui sustentado como fundamento dos votos até agora exarados, estamos falando de dignidade humana no sentido próprio, subjetivo e concreto de uma sociedade ainda hoje machista, sexista, misógina e que mata mulheres apenas porque elas querem ser o que são: mulheres donas de suas vidas”, resumiu a ministra.

JURISPRUDÊNCIA

TESES COM PERSPECTIVA DE GÊNERO DEFINIDAS PELO STJ

1 OITIVA DA VÍTIMA
A vítima de violência doméstica deve ser ouvida para que se verifique a necessidade de prorrogação/concessão das medidas protetivas, ainda que extinta a punibilidade do autor.
AgRg no REsp 1.775.341/SP
Relator: Sebastião Reis Julgado em 12/4/2023 na 3ª Seção

2 PROTEÇÃO INDISPONÍVEL
A medida protetiva de urgência, que busca resguardar interesse individual da vítima de violência doméstica e familiar contra a mulher, tem natureza indisponível e poderá ser requerida pelo Ministério Público.
REsp 1.828.546/SP
Relator: Jesuíno Rissato Julgado em 12/9/2023 na 6ª Turma

3 PALAVRA DA VÍTIMA
No contexto de violência doméstica contra a mulher, a decisão que homologa o arquivamento do inquérito deve observar a devida diligência na investigação e os aspectos básicos do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça, em especial quanto à valoração da palavra da vítima.
RMS 70.338/SP
Relatora: Laurita Vaz Julgado em 22/8/2023 na 6ª Turma

4 CORPO DE DELITO
No contexto de violência doméstica, é possível a dispensa do exame de corpo de delito em crime de lesão corporal na hipótese de subsistirem outras provas idôneas da materialidade do crime.
AgReg no AREsp 2.078.054/DF
Relator: Messod Azulay Julgado em 30/5/2023 na 5ª Turma

5 AGRAVANTE
A aplicação da agravante prevista no art. 61, II, “f”, do Código Penal em condenação pelo delito de lesão corporal no contexto de violência doméstica (art. 129, § 9º, do CP), por si só, não configura bis in idem.
AgRg no REsp 2.062.420/MS
Relator: Joel Paciornik Julgado em 20/12/2023 na 5ª Turma

6 INTENÇÃO DE MATAR
A qualificadora do feminicídio, art. 121, § 2º-A, II, do Código Penal, deve incidir nos casos em que o delito é praticado contra mulher em situação de violência doméstica e familiar por possuir natureza de ordem objetiva, o que dispensa a análise do animus do agente.
AgRg no AREsp 2.358.996
Relatora: Laurita Vaz Julgado em 20/10/2023 na 6ª Turma

7 QUALIFICAÇÃO DE FEMINCÍDIO
É inviável o afastamento da qualificadora do feminicídio pelo Tribunal do Júri mediante análise de aspectos subjetivos da motivação do crime, dada a natureza objetiva da qualificadora, ligada à condição de sexo feminino.
AGRG NO HC 808.882/SP
Relator: Rogerio Schietti Julgado em 30/8/2023 na 6ª Turma

8 DEVER DE CUIDADO
Não há bis in idem pela incidência da agravante do art. 61, II, “e”, do Código Penal – que tutela o dever de cuidado nas relações familiares -, e a qualificadora do feminicídio.
AgRg no REsp 2.007.613/TO
Relator: Ribeiro Dantas Julgado em 10/03/2023

9 CUSTÓDIA CAUTELAR
A manifestação da ofendida sobre a revogação de medidas protetivas de urgência é irrelevante para a manutenção da prisão preventiva do acusado, pois a custódia cautelar, fundada na gravidade concreta da conduta, não está na esfera de disponibilidade da vítima de violência doméstica.
AGRG NO HC 768.265/MG
Relator: Rogerio Schietti Julgado em 21/12/2023

10 AUMENTO DE PENA
No contexto de violência doméstica contra a mulher, é possível a exasperação da pena-base quando a intensidade da violência perpetrada contra a vítima extrapolar a normalidade característica do tipo penal.
AGRG NO ARESP 2.384.703/SP
Relator: Reynaldo Soares da Fonseca Julgado em 27/11/2023, na 5ª Turma

11 MAL DO CIÚME
O ciúme é fundamento apto a exasperar a pena-base, pois é de especial reprovabilidade em situações de violência de gênero, por reforçar as estruturas de dominação masculina.
AGRG NO ARESP 2.398.956/SP
Relator: Sebastião Rei Julgado em 28/11/2023, na 6ª Turma

12 VEDAÇÃO DE MULTA
A vedação constante do art. 17 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) obsta a imposição, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de pena de multa isoladamente, ainda que prevista de forma autônoma no preceito secundário do tipo penal imputado.
REsp 2.049.327/RJ
Relator: Sebastião Reis Julgado em 14/6/2023 na 3ª Seção

13 PRISÃO DE GESTANTE
O afastamento da prisão domiciliar para mulher gestante ou mãe de filho menor de 12 anos exige fundamentação idônea e casuística, independentemente de comprovação de indispensabilidade da sua presença para prestar cuidados ao filho.
AGRG NO HC 805.493/SC
Relator: Antonio Saldanha Palheiro Julgado em 20/6/2023 na 6ª Turma

14 CIRURGIA TRANS
É obrigatória a cobertura, pela operadora do plano de saúde, de cirurgias de transgenitalização e de plástica mamária com implantação de próteses em mulher transexual, pois se trata de procedimentos prescritos por médico assistente, reconhecidos pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS) e listados no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS).
REsp 2.097.812/MG
Relatora: Nancy Andrighi Julgado em 21/11/2023 na 3ª Turma

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Muitas vezes passado desapercebido, o direito financeiro dá sustentação à execução das competências administrativas outorgadas para os entes federados pelo regime de repartição de responsabilidades prescrito pelo direito constitucional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Além disso, é o direito financeiro quem lastreia as ações concretas da administração pública balizadas pelo direito administrativo, o que implica na verbalização da frase de que sem orçamento não há gestão pública.

Verticalizado pelas leis orçamentárias (PPA, LDO e LOA), o seu horizonte normativo atravessa a política pública em todos os seus ciclos: planejamento, execução, controle e avaliação.

Além das leis de meios, outro horizonte normativo dá sustentação à intepretação do direito financeiro: a Lei dos Orçamentos (Lei 4.320/1964) e a Lei de Responsabilidade Fiscal — LRF (Lei Complementar nº 101/2000).

Por determinação do artigo 16 desta última, toda criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental deve ter previsão estratégica nas leis orçamentárias, além do estudo a respeito do impacto orçamentário e financeiro no exercício em que entre em vigor e nos dois subsequentes.

Essa fase de planejamento possibilita o entendimento de que há uma indução normativa que determina sustentabilidade orçamentária à criação de uma despesa pública, o que representa um ônus administrativo que lastreia qualquer ação administrativa.

Por isso, é preciso cautela com o dimensionamento do gasto público, que, embora encontre na execução da despesa a sua foz, é na nascente, que representa a fase de planejamento, onde deve o gestor público ter mais ponderação porque uma despesa sem planejamento adequado significa responsabilização pautada em uma construção de nexo causal balizado por critérios formais, já que a despesa pública possui uma matriz prevista em lei em sentido amplo.

Atualmente, o País vivencia um colapso administrativo no Rio Grande do Sul, que, em decorrência do volume de chuvas acima do previsto, viu o seu território ser inundado. E algumas cidades, como é o caso de Eldorado do Sul, praticamente submergirem.

A título de exemplificação, segundo o inciso IV da fundamentação do Decreto Municipal nº 10.0061/2024 [1], “100% da área urbana do município encontra-se submerso, atingindo aproximadamente 10 mil residências e 30 mil habitantes”.

Como se vê, o território do Rio Grande do Sul possui um desafio administrativo de se organizar como um todo. E nesse sentido, qual a colaboração do direito financeiro em um assunto onde prioritariamente atua o direito administrativo com as contratações públicas emergenciais, por exemplo?

Planejamento orçamentário

O primeiro passo é o planejamento orçamentário, que envolve a autorização do gasto e fixação da despesa por intermédio de lei nos termos prescritos pelo artigo 165, §8º da Constituição, para quem “a lei orçamentária anual não conterá dispositivo estranho à previsão da receita e à fixação da despesa, não se incluindo na proibição a autorização para abertura de créditos suplementares e contratação de operações de crédito, ainda que por antecipação de receita, na forma da lei”.

Ocorre que aquele regime é o ordinário, e a situação pela qual passa o território do Rio Grande do Sul se caracteriza por uma imprevisibilidade que denota o caos.

Cidades estão submersas e a infraestrutura da região está comprometida, exemplo do Aeroporto Internacional Salgado Filho, situado em Porto Alegre, o qual está interditado e cuja operação de voos comerciais foi direcionada para a Base Aérea de Canoas, localizada na região metropolitana de Porto Alegre [2].

Esse cenário atrai o acionamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, regido pela Lei nº 12.608/2012, cujo teor do seu artigo 10, parágrafo único indica a sua finalidade para: “contribuir no processo de planejamento, articulação, coordenação e execução dos programas, projetos e ações de proteção e defesa civil”.

Aquele normativo, em seu artigo 1º, inciso VI conceitua o estado de calamidade pública como “situação anormal provocada por desastre causadora de danos e prejuízos que implicam o comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder público do ente atingido, de tal forma que a situação somente pode ser superada com o auxílio dos demais entes da Federação”.

Depreende-se disso que a calamidade pública diz respeito à situação em que a administração pública não apresenta poder de resposta ao ônus de administrar o interesse coletivo em decorrência de força maior e que demanda a atuação de outros entes federados para ajudá-la.

No âmbito local, o Decreto Estadual nº 57.614/2024 [3], de 13 de maio de 2024, declarou estado de calamidade pública em 46 municípios e situação de emergência em 320 municípios. E esses 366 municípios correspondem a 72,43% do território gaúcho.

Esse regime de exceção atrai a incidência da possibilidade de abertura de créditos extraordinários, que é uma permissibilidade de autorização de gasto excepcional via decreto, que, nos termos do artigo 167, §3º, somente é “admitida para despesas imprevisíveis e urgentes”, caso da demanda administrativa daquele estado.

Mas se o volume de chuvas causou danos impossíveis de serem previstos no processo de planejamento orçamentário e financeiro do Estado do Rio Grande do Sul, qual a fonte de recursos que se apresenta para reconstruir aquele ente?

A resposta está no federalismo, forma de Estado pela qual se ergue a República brasileira e que permite a descentralização de recursos financeiros por intermédio de transferências financeiras.

Federalismo de cooperação

Essa forma de Estado, aliada à situação específica que vivencia o Rio Grande do Sul, remete também ao conceito de federalismo de cooperação, o qual envolve duas ideias: a cooperação vertical e a cooperação horizontal e ao escrever sobre o tema José Maurício Conti esclarece que “com relação às unidades envolvidas nas transferências, podemos constatar a existência de transferências entre unidades de grau diverso (cooperação vertical) e entre unidades de mesmo grau (cooperação horizontal). Esta cooperação financeira entre as unidades da federação constitui uma das pedras angulares do moderno federalismo [4]“.

O autor acrescenta ainda que a maior parte dos estados adota sistemas de cooperação vertical, com transferências de recursos oriundos do poder central para as unidades subnacionais e no âmbito do direito financeiro o artigo 25 da LRF, ao conceituar transferências voluntárias como “a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”, encampa aquela magistério.

No que diz respeito à organização do gasto para a reconstrução do Rio Grande do Sul, por determinação constitucional, o protagonismo legislativo e administrativo da União é essencial.

Isso porque nos termos do artigo 21, inciso XVIII da Constituição, é competência da União planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas.

É tanto que o poder central já liberou R$ 12,2 bilhões para que diversos órgãos da União possam executar ações necessárias ao atendimento dos municípios afetados pelas enchentes [5].

A criação do gasto público emergencial decorrente de calamidade pública requer o reconhecimento formal daquele estado administrativo, o que significa que o direito financeiro possui forte vinculação com o processo legislativo como um todo.

Ciente disso o Senado editou o Decreto Legislativo nº 36/2024, o qual reconhece estado de calamidade pública no Rio Grande do Sul até 31 de dezembro de 2024 [6].

Ocorre, porém, que aquele dispositivo possui pertinência temática tão somente com o artigo 65 da LRF, o que significa a suspensão temporária do regime sólido de planejamento fiscal, permitindo a atuação do direito financeiro de maneira imediata à reconstrução do estado.

Vale o registro de que o regime de planejamento administrativo (regras operacionais que dizem respeito ao direito administrativo), embora complementar, deve ser distinto do planejamento fiscal (regras de finanças públicas correlatas do direito financeiro) e a suspensão temporária da aplicabilidade do artigo 65 da LRF não é um salvo conduto ao ordenador de despesas no campo das contratações públicas, que possuem rito próprio previsto na Lei 14.133/2020 [7].

Não à toa que a União, enquanto responsável por legislar normas gerais sobre licitação e contratação pública (artigo 22, inciso XXVII da Constituição), recentemente editou a Medida Provisória nº 1.221/2024 [8], a qual flexibiliza regras para contratações públicas, inclusive de engenharia, destinadas ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública.

Aquele normativo apresenta como condição de aplicabilidade, nos termos do seu artigo 1º, §1º, inciso I, a “declaração ou reconhecimento do estado de calamidade pública pelo chefe do Poder Executivo do estado ou do Distrito Federal ou pelo Poder Executivo federal, nos termos disposto na Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012”, o que já aconteceu com o Estado do Rio Grande do Sul, como reconhece a portaria nº 1.377/2024 do Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional.

Como se vê, a gestão das contas públicas em regime excepcional possui como primeiro passo o processo legislativo que reconheça o estado de calamidade pública.

A um segundo momento a expertise do direito financeiro deve ser pauta do ordenador de despesas, que só depois disso deve efetivamente planejar a concretização de um gasto público, sob pena de ser eventualmente responsabilizado.

Visão panorâmica do gestor

É preciso, portanto, uma visão panorâmica sobre o assunto, tendo em vista a transversalidade que há entre o direito constitucional, o direito administrativo e o direito financeiro.

Para o gestor público, é preciso prudência porque no calor da despesa um equívoco que evidencie erro grosseiro em seu processo de planejamento pode ensejar a atuação do direito administrativo sancionador.

Porém, o artigo 22 da lei de introdução às normas do direito brasileiro (LINDB) impõe um campo de visão específico aos órgãos de controle que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados”.

Quando da atuação na análise das contas públicas, devem os órgãos de controle observarem a especificidade do contexto da gestão. Até porque, conforme alerta Eros Roberto Grau, não existe texto sem contexto:

O intérprete procede à interpretação dos textos normativos e, concomitantemente, dos fatos, de sorte que o modo sob o qual os acontecimentos que compõem o caso se apresentam vai pesar de maneira determinante na produção da (s) norma (s) aplicável (ais) ao caso [9].

Dessa maneira, é preciso fazer dois alertas.

O primeiro é que o cenário de destruição do território que administra não significa um salvo conduto para o gestor público no sentido de fazer o que precisa.

É preciso uma legitimidade formal em seu processo decisório.

O segundo é que os órgãos de controle devem analisar especificamente o gasto, o que diz respeito a um estudo meticuloso da fundamentação do ato administrativo que impulsiona a despesa.

Além disso é preciso lembrar que “A LINDB esclarece que a sanção não é um fim em si mesmo e que a teoria do direito administrativo sancionador deve levar em consideração a funcionalidade e o caráter operacional da gestão pública [10]“.

O recomeço do Rio Grande do Sul por um lado depende do protagonismo da União em termos de processo legislativo para que, por outro, por intermédio do federalismo de cooperação, possa destinar recursos às ações prioritárias para o atendimento daquele ente político.

Que a União possa alicerçar segurança jurídica na reconstrução do Rio Grande do Sul e que o direito financeiro colabore com a reordenação das margens do Guaíba.

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Referências bibliográficas

ARAÚJO, Mário Augusto Silva. Direitos sociais, prestação de contas e Direito Administrativo Sancionador. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/araujo-direitos-sociais-prestacao-contas-direito-sancionador/

BRASIL, Decreto Legislativo nº 326/2024. Disponível em https://legis.senado.leg.br/norma/38454538/publicacao/38456540

_______,Medida Provisória nº 1.221/2024. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/mpv/mpv1221.htm

CONTI, José Maurício. Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. Editora Juarez Oliveira. São Paulo/SP: 2001

ELDORADO DO SUL. Decreto Municipal nº 10.0061/2024. Disponível em https://www.eldorado.rs.gov.br/arquivos/decreto_-_calamidade_11105506.pdf

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a aplicação/interpretação do Direito. Malheiros Editores. 5ª edição. São Paulo/SP: 2009

RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 57.614/2024. Disponível em https://www.diariooficial.rs.gov.br/materia?id=999537


[1] Declara Situação de Anormalidade – ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA – nas áreas do Município afetadas pelo evento adverso Chuvas Intensas – COBRADE 1.3.2.1.4, conforme Portaria nº 260/2022 – MDR. Disponível em https://www.eldorado.rs.gov.br/arquivos/decreto_-_calamidade_11105506.pdf acesso em 21/05/2024

[2] Informação disponível em https://www.gov.br/anac/pt-br/noticias/2024/base-aerea-de-canoas-rs-comeca-a-receber-voos-comerciais acesso em 21/05/2024

[3] Disponível em https://www.diariooficial.rs.gov.br/materia?id=999537

[4] CONTI, José Maurício. Federalismo Fiscal e Fundos de Participação. Editora Juarez Oliveira. São Paulo/SP: 2001, p. 40.

[5] Informação disponível em https://www.gov.br/planejamento/pt-br/assuntos/noticias/2024/governo-federal-abre-credito-extraordinario-de-r-12-2-bilhoes-para-o-rio-grande-do-sul acesso em 21/05/2024

[6] Disponível em https://legis.senado.leg.br/norma/38454538/publicacao/38456540 acesso em 21/05/2024.

[7] Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

[8] Dispõe sobre medidas excepcionais para a aquisição de bens e contratação de obras e de serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública. disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/mpv/mpv1221.htm

[9] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a aplicação/interpretação do Direito. Malheiros Editores. 5ª edição. São Paulo/SP: 2009

[10] ARAÚJO, Mário Augusto Silva. Direitos sociais, prestação de contas e Direito Administrativo Sancionador. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-jan-14/araujo-direitos-sociais-prestacao-contas-direito-sancionador/ acesso em 21/05/2024.

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Conflito entre poderes mostra descompasso de legisladores com Constituição

O Judiciário legisla? Liberdade de expressão tem limites? Existe uma ditadura da Justiça? Passada a tormenta dos tempos em que a democracia parecia ser uma diversão perigosa, perguntas como essas pululam em corações e mentes inquietas mais para confundir do que para explicar, todas elas tendo como alvo preferencial o sistema de Justiça em geral e o Supremo Tribunal Federal em particular. Ou o ministro Alexandre de Moraes, particularissimamente falando.

congresso nacional

 

Na verdade, dúvida não há. O que se tenta mesmo é desacreditar o Judiciário brasileiro, não por seus defeitos e mazelas reais, mas pelo fato de ter se tornado o núcleo central da defesa das instituições e do Estado Democrático de Direito. Os autores dos ataques são os manés que perderam a batalha em 8 de janeiro de 2023.

Só que a guerra agora é mais sutil do que nos tempos em que um presidente da República ia para a praça xingar ministros e prometer desobediência civil. E pode vir na forma de ameaça de desacatamento do ordenamento jurídico nacional por um bilionário que brinca de ser o dono do mundo. Pode ser mera bravata de Elon Musk, o dono da rede de relacionamento social X, ex-Twitter, que dias depois de dizer que não acataria as ordens de exclusão de perfis do seu aplicativo foi desmentido pelos gestores de sua rede que asseguraram o fiel cumprimento dos mandados recebidos.

O certo é que a ameaça das big techs ao modelo de democracia participativa é real e vai muito além do debate sobre o direito a liberdade de expressão invocado por Musk e seus cúmplices. “O que está se construindo é um regime de informação, que consiste em ‘uma forma de dominação na qual as informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos’” escreveram os advogados e professores Ingo Sarlet e Gabriela Sarlet, em artigo publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico, citando o filósofo sul-coreano e professor da Universidade de Berlim Byung-Chul Han. “Nessa perspectiva, prossegue, ‘não é a posse de meios de produção que é decisiva para o ganho de poder, mas o acesso a dados utilizados para a vigilância, controle e prognóstico de comportamentos psicopolíticos’.”

 
Ponto de equilíbrio: os presidentes dos 3 Poderes, Rodrigo Pacheco, Luís Roberto Barroso e Luiz Inácio Lula da Silva – Gustavo Moreno/SCO/STF

Daí o clamor geral pela regulamentação global do mercado de informação virtual. O ministro Dias Toffoli entende que a legislação atual já tem elementos para enquadrar as empresas, mas não subestima a necessidade de um regramento específico das redes sociais: “É evidente que o Congresso precisa regular o ecossistema virtual, muito embora eu entenda que a legislação atual pode ser aplicada a ele. O próprio Código Civil deixa claro que, se alguém causa prejuízo a outrem, a pessoa é responsável por reparar esse prejuízo. Se o prejuízo se deu pela utilização de meios virtuais, o direito a indenização é cabível e a reparação é devida”.

Tramita há mais de três anos no Congresso Nacional o Projeto de Lei 2.630/2020 que “institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet”. Aprovado no Senado, debaixo de uma intensa campanha contrária das big techs, o projeto dormita na gaveta da Câmara desde maio de 2023, em estado terminal. Em abril de 2024, o presidente da casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), anunciou a criação de um grupo de trabalho para apresentar uma “proposta mais madura”.

Enfrentamento às fake news

Na omissão do Legislativo, o Judiciário tem sido a principal força de enfrentamento desse novo poder. Além de dois inquéritos no Supremo Tribunal Federal para investigar o uso das redes para a propagação de fake news e mensagens de ódio – ambos abertos de ofício e sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes –, coube ao TSE baixar normas para disciplinar o uso das redes sociais no contexto das eleições municipais de 2024. Elas terão de adotar medidas para impedir a circulação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados, além de tomar providências imediatas para cessar o impulsionamento, a monetização e o acesso a esse tipo de conteúdo, sob pena de responsabilização civil e administrativa.

A regulamentação da internet é apenas uma das muitas matérias que tem colocado em lados opostos o Judiciário e o Legislativo. O fenômeno, que não é novo, acentuou-se a partir da atual legislatura, iniciada em 2023. O Senado, que elegeu uma vigorosa bancada de direita ultra conservadora em outubro de 2022, colocou em andamento uma pauta de temas com vistas a desafiar o poder do Supremo. Em novembro de 2023, com votos de senadores da base governista, a câmara alta aprovou a PEC 8/2021, que limita o poder dos ministros da corte de proferir decisões monocráticas. A medida, que ainda terá de ser votada pela Câmara dos Deputados, tem pouco efeito prático visto que o próprio STF já havia restringido as possibilidades de decisões individuais pela corte. Mas valeu como um recado, como admitiu o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), ao discursar na abertura do Ano Legislativo de 2024. “O Senado votou uma proposta de emenda à Constituição que limita as decisões monocráticas do STF. Indispensável dizer aqui do convencimento que a maioria do Senado teve em relação a esse tema.”

Tramitam, ainda, no Senado, três propostas de emenda à Constituição, todas com a intenção de fixar mandatos e aumentar a idade mínima para ser ministro do Supremo. No início do ano, Rodrigo Pacheco chegou a dizer que colocaria as propostas na pauta de votação da casa, mas depois mudou de ideia. Atualmente, a idade mínima para ingressar na corte é de 35 anos e os ministros permanecem no cargo até os 75 anos de idade (para saber mais sobre o tema leia aqui).

Argumentos a favor ou contra as propostas não faltam, mas nenhum deles afasta a tese de casuísmo para que a matéria seja pautada neste momento. Como lembrou o ministro Gilmar Mendes, chama a atenção que estas propostas, que tentam interferir diretamente na estrutura e no funcionamento da corte, sejam apresentadas justamente após o Supremo ter se revelado como a instituição que enfrentou as ameaças contra o Estado Democrático de Direito. “O que me surpreende é o foco inicial no Supremo”, disse o ministro em entrevista à GloboNews em março. “Um relatório internacional mostrou que, de todos os países que tiveram problemas com a extrema-direita, o Brasil foi o que melhor se saiu, graças à institucionalidade. E nisso o STF teve um papel importantíssimo. Depois disso tudo, com tantas reformas necessárias e urgentes, a primeira reforma que o Congresso consegue votar é uma emenda contra o Supremo.”

As propostas anti-Judiciário foram desenterradas pelo presidente do Senado supostamente em retaliação a decisões do Supremo que desagradaram integrantes do Parlamento. Coisas como a autorização dada para a Polícia Federal fazer operações de busca e apreensão contra os deputados federais Alexandre Ramagem (PL-RJ) e Carlos Jordy (PL-RJ). O primeiro é acusado de liderar um esquema de espionagem ilegal quando chefiou a Agência Brasileira de Inteligência durante o governo Bolsonaro. O segundo é suspeito de ser um dos mentores dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.

Seguindo a lei da física de que a toda ação corresponde uma reação, o Congresso respondeu com uma proposta de emenda à Constituição que prevê que este tipo de operação contra parlamentares precisa de autorização prévia do Parlamento.

Pedra de toque

Antes disso, já despertara a ira da classe política a decisão do Supremo que considerou inconstitucional o chamado orçamento secreto, depois rebatizado como emendas do relator, um artifício usado pelos parlamentares para se apropriarem para fins eleitorais de fatias do orçamento da União.

Além de minar a instituição em sua essência, o Legislativo passou a operar com uma pauta paralela à do Supremo, principalmente em temas relacionados a direitos individuais e aos costumes. Para cada decisão judicial à frente tomada pelo Supremo, o Congresso contrapõe-se com um recuo legislativo.

Foi o que aconteceu, por exemplo, na discussão sobre o direito ao aborto, talvez uma das pedras de toque usadas no mundo inteiro para distinguir um progressista (a favor) de um conservador (contra). Antes de deixar a Presidência do STF e se aposentar, a ministra Rosa Weber quis deixar uma marca indelével de sua gestão e para tanto colocou em julgamento a ADPF 442, que pede sejam considerados inconstitucionais os artigos 124 e 126 do Código Penal que tipificam o aborto como crime. Rosa proferiu seu voto para descriminalizar o aborto feito até a décima-segunda semana de gestação.

Na oportunidade, destacou que, apesar da competência do Congresso Nacional para legislar sobre o tema, o Poder Judiciário é obrigado, constitucionalmente, a enfrentar qualquer questão jurídica a ele apresentada sobre lesão ou ameaça a direitos seja da maioria ou das minorias. “Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas possam ser causados pela vontade da maioria. No Brasil, essa tarefa cabe ao Supremo Tribunal Federal”, frisou. Um pedido de vista do ministro Roberto Barroso suspendeu o julgamento.

O Congresso não entendeu o recado e já tramita no Senado um projeto de decreto legislativo para que seja feito um plebiscito para que a população brasileira diga se concorda ou não com a legalização do aborto.

Também no quesito tráfico de drogas, o Congresso reagiu com um projeto de lei que criminaliza o porte de qualquer quantidade de substância proibida, contrapondo-se à discussão que corre no Supremo, no julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, com repercussão geral (Tema 506), que busca definir justamente qual a quantidade de maconha que define se um portador é usuário ou traficante. O que poderia ser um primeiro passo para discutir a política e a legislação de combate a drogas acabou virando o estopim que incendiou os defensores do proibicionismo. Já em 2024, o Senado aprovou a PEC 45/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco, que insere no artigo 5º, o sagrado artigo dos direitos fundamentais do cidadão, a determinação de que é crime a posse ou porte de qualquer quantidade de droga considerada ilegal.

Uma das primeiras e mais controversas decisões do Supremo nesta seara – a que equiparou a união de pessoas do mesmo sexo ao casamento civil, em 2011 – voltou à baila. Na Câmara dos Deputados, o PL 580/2007, que inseria no Código Civil dispositivo para legalizar a união homoafetiva foi substituído pelo PL 5.167/2009 que torna ilegal a união entre pessoas do mesmo sexo. O parecer invertendo o sentido do projeto foi aprovado pela Comissão de Previdência Social e Família.

Marco Temporal

Nenhum tema mostra tão bem o conflito instalado entre os poderes da República como a tese do marco temporal, que estabelece que só podem ser demarcadas como terras indígenas as áreas que estavam efetivamente ocupadas por indígenas à época da promulgação da Constituição de 1988. Em 21 setembro de 2023, por nove votos a dois, no julgamento do RE 1.017.365, o Supremo considerou inconstitucional a tese que havia sido construída pelo próprio Supremo em 2009, no julgamento da demarcação da terra indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima.

Uma semana depois da decisão da corte, o Senado aprovou o PL 2.903/2023, que restabeleceu a tese. Mandada à sanção presidencial, a nova lei foi sancionada pelo presidente Lula em outubro de 2023 com 32 vetos, inclusive o que estabelecia o marco temporal. Em novo capítulo, em dezembro, o Congresso derrubou os vetos do presidente e promulgou a Lei 14.701, legalizando a tese.

A promulgação da lei resultou em ações de controle de constitucionalidade apresentadas ao Supremo por partidos de esquerda e de direita: três, ADIs 7.583, 7.586 e 7.582, uma delas proposta pelo PT, PV e PCdoB, pede que a lei seja declarada inconstitucional; outra, a ADC 87, do PL, Progressistas e Republicanos pede que ela seja declarada constitucional.

Como se não fosse o bastante, já tramita no Senado uma proposta de emenda à Constituição instituindo a tese. Ao fim e ao cabo, caberá ao Supremo dar a última palavra.

Talvez seja assim mesmo que deve funcionar em uma democracia. O flagrante conflito de posições entre Legislativo e Judiciário, contudo, é didático na medida em que deixa claro qual é o papel de cada instituição. Enquanto cabe ao Congresso interpretar o sentimento da maioria e fazer valer o seu ponto de vista, cabe à Justiça fazer valer o respeito à lei e à Constituição e preservar os direitos da minoria.

Como bem lembrou o ministro Roberto Barroso ao falar sobre as propostas contra a corte : “É inevitável que o Supremo desagrade segmentos políticos, econômicos e sociais importantes, porque, ao Tribunal, não é dado recusar-se julgar questões difíceis e controvertidas. Tribunais independentes e que atuam com coragem moral não disputam torneios de simpatia. Interpretar a Constituição é fazer a coisa certa, mesmo quando haja insatisfações, porque assim é . Nesse espírito de diálogo institucional, o Supremo não vê razão para mudanças constitucionais que visem a a alterar as regras do seu funcionamento. Num país que tem demandas importantes e urgentes, que vão do avanço do crime organizado à mudança climática, que impactam a vida de milhões de pessoas, nada sugere que os problemas prioritários do Brasil estejam no Supremo Tribunal Federal”.

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O cram down mitigado e a função social da empresa

A regulamentação da recuperação judicial no ordenamento jurídico pátrio se embasou fortemente no artigo 170 da Constituição (CF/88), na medida em que prevê que a ordem econômica será regida pela função social da propriedade, pela valorização do trabalho humano e pela livre iniciativa.

 

Nesse sentido, no direito pátrio, as empresas devem ser vistas não apenas como um mecanismo da livre iniciativa destinadas exclusivamente à obtenção de lucro, posto que também servem para a geração de empregos e renda, para a sociedade e para o poder público por intermédio do pagamento dos tributos relacionados com a atividade explorada.

Na Lei Federal nº 11.101/05, vislumbra-se a concretização dessas normas no princípio da preservação da empresa, consagrado no seu artigo 47, que aduz:

Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

A leitura desse dispositivo permite concluir que a recuperação judicial não tem por objetivo único tutelar os interesses dos credores, devendo esses se adequarem à manutenção da fonte produtiva e dos empregos dos trabalhadores, dentre outros.

Marcelo Sacramone [1] aduz que a Lei Federal nº 11.101/05 rompe com a tradição eminente liquidatória das legislações pretéritas para estabelecer uma visão conciliatória de defesa dos credores, com a preservação das empresas e os interesses de terceiros, consumidores, empregados e outros.

Por outro lado, o artigo 45 da Lei de Falência e Recuperação de Empresas (LFRE) aduz a forma como o plano de recuperação judicial (PRJ) será devidamente aprovado, exigindo-se o alcance dos quóruns da maioria dos presentes de cada uma das quatro classes, bem como mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia, para os titulares de créditos com garantia real e quirografários.

Esse dispositivo é o responsável por corporificar o princípio da soberania da vontade dos credores na recuperação judicial.

Aprovação forçada de PRJ

Ainda que não atinja esse quórum, o artigo 58, parágrafo 1º da LFRE previu a possibilidade da aprovação forçada do PRJ mediante o “cram down” à brasileira, desde que preenchidos critérios mais brandos, como voto favorável de mais da metade de todos os créditos presentes à assembleia, reprovação em apenas uma das classes de credores votantes e voto favorável de 1/3 dos credores na classe que houver a rejeição.

Ainda assim, pode-se imaginar situações em que a não aprovação do plano decorra exclusivamente da arbitrariedade de algum(ns) dos credores, o que poderia macular o postulado da preservação da empresa do artigo 47 da LFRE.

Marcelo Sacramone [2] esclarece que a aprovação por intermédio do quórum alternativo previsto no artigo 58, parágrafo 1º da LFRE não se confunde com o “cram down” americano, já que a legislação brasileira previu um conjunto de requisitos mais brandos para que o plano fosse aceito pela própria assembleia de credores, segundo o seu juízo de conveniência e oportunidade, não havendo a interferência do magistrado nessa situação.

Já o “cram down” americano ocorre quando o próprio juiz aprova o PRJ apresentado pelo credor, mesmo não tendo havido o preenchimento dos requisitos legais, havendo nitidamente uma aprovação “goela abaixo” do planejamento formulado pela recuperanda. Esse instituto se aproxima do “cram down” mitigado, que vem sendo autorizado, em situações excepcionais, pelo STJ.

A Lei Federal nº 14.112/20 incluiu o parágrafo 6º no artigo 39 da LFRE, que previu expressamente a nulidade do voto abusivo, quando exercido pelo credor com um propósito manifestamente ilícito para si ou para terceiro.

A lógica da abusividade [3] caminha no sentido de que o credor deve demonstrar que a proposta exposta no PRJ seria mais desvantajosa de que eventual situação sua diante de uma virtual falência, sob pena de não se mostrar razoável o seu voto contrário à aprovação, já que a decretação da falência é a decorrência lógica da rejeição do plano, situação essa que também se denomina de irracionalidade econômica do voto.

Outra situação que demonstra o abuso do direito de voto do credor ocorre quando há o manifesto desinteresse em se debater os termos do PRJ, com a ausência de questionamentos ou oposição de contrapropostas por parte do titular do direito, evidenciando a ilicitude da finalidade do ato do titular do direito.

Por oportuno, verifica-se que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) já declarou a nulidade do voto do credor em situações semelhantes, confira-se:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. Nulidade de voto, determinada a realização de nova AGC. Decisão mantida. Ausência de racionalidade econômica e interesse em negociar. Voto meramente emulativo. §6º do art. 39 da LRF. Prevalência do princípio da preservação da empresa. Art. 47 da LRF. Doutrina e precedentes. RECURSO DESPROVIDO.
(TJSP;  Agravo de Instrumento 2144262-09.2023.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado 1ª RAJ/7ª RAJ/9ª RAJ – 2ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem; Data do Julgamento: 13/12/2023; Data de Registro: 13/12/2023)

Agravo de Instrumento. Recuperação judicial. Insurgência contra a decisão que declarou nulo o voto da agravante/credora, fundado no abuso de direito. Direito ao voto que não é absoluto. Aprovação do plano que, no caso, dependia, exclusivamente, do voto favorável da recorrente. Agravante que se opôs à aprovação por mero desinteresse, sequer apresentando fundamentos jurídicos ou questionando as suas cláusulas. Opção pela quebra, defendida pela recorrente, que, além de revelar comportamento excessivamente individualista, vai de encontro com os princípios da função social, preservação da empresa e estímulo à atividade econômica, frustrando o próprio objetivo da lei de regência. Decisão mantida. Agravo desprovido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2208230-13.2023.8.26.0000; Relator (a): Natan Zelinschi de Arruda; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Especializado 1ª RAJ/7ª RAJ/9ª RAJ – 1ª Vara Regional de Competência Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem; Data do Julgamento: 18/11/2023; Data de Registro: 18/11/2023) (grifei).

Ou seja, o credor tem o dever de cooperar com as negociações ainda que se oponha ao PRJ, apresentando contrapropostas, fundamentos jurídicos explicitando a sua contradição a proposta apresentada pelo devedor, demonstrando interesse na negociação, sob pena do seu comportamento ser tido como abusivo, resultando na nulidade do seu voto contrário.

Onde pode estar o veto ao PRJ

A situação se agrava mais quando o credor que atua abusivamente possui mais de 50% de determinada classe, o denominado supercredor [4], de modo que o seu posicionamento contrário possa implicar em um verdadeiro veto ao PRJ, em uma atuação que simplesmente nega a vigência do princípio da função social em âmbito empresarial, previsto no artigo 170 da CF/88.

O que se percebe é que a aprovação do PRJ “goela abaixo” pode ocorrer tanto mediante a flexibilização dos requisitos do artigo 58, parágrafo 1º da LFRE, quanto mediante a declaração da abusividade dos votos dos credores, acarretando a aceitação do plano, dando-se preponderância ao princípio da preservação da empresa [5].

Efetivamente esse é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que orienta que os juízes pautem os seus posicionamentos na apreciação da rejeição do PRJ com prudência e moderação, verificando-se a possibilidade efetiva do soerguimento das empresas, tendo em conta o princípio da preservação das cooperações.

Seguindo essa linha de entendimento, cita-se o AgInt no AREsp 1551410/SP, da relatoria do ministro Antônio Carlos Ferreira:

[…]. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PLANO. APROVAÇÃO JUDICIAL. CRAM DOWN. REQUISITOS LEGAIS. EXCEPCIONAL MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE. PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. DECISÃO MANTIDA.

1. A jurisprudência do STJ entende pela possibilidade de se mitigar os requisitos do art. 58, § 1º, da LRJF, para a aplicação do chamado ‘cram down’ em circunstâncias que podem evidenciar o abuso de direito por parte do credor recalcitrante.

“Assim, visando evitar eventual abuso do direito de voto, justamente no momento de superação de crise, é que deve agir o magistrado com sensibilidade na verificação dos requisitos do ‘cram down’, preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização, especialmente quando somente um credor domina a deliberação de forma absoluta, sobrepondo-se àquilo que parece ser o interesse da comunhão de credores” (REsp 1337989/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 08/05/2018, DJe 04/06/2018). […]. (AgInt no AREsp n. 1.551.410/SP, relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, julgado em 29/3/2022, DJe de 24/5/2022.).

Posicionamento semelhante também foi manifestado pelo STJ no AREsp 1.551.410, em que o Banco do Brasil detinha 56% de uma das classes, vetando a aceitação do PRJ em situação de abusividade, o que acarretou na atuação do judiciário pela aprovação do plano mediante um autêntico “cram down” ao estilo americano, com a flexibilização das regras do artigo 58, parágrafo 1º do PRJ.

Portanto, o que se conclui diante do estudo apresentado é que um dos nortes mais importantes do instituto da recuperação judicial é o princípio da preservação da empresa, de modo que deve haver uma racionalidade na apreciação da rejeição do PRJ, impondo-se a aprovação por “cram down” por abusividade ou por flexibilizações brandas dos requisitos do artigo 58, parágrafo 1º da LFRE.


[1] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência – 3. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. P. 387.

[2] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência – 3. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2022. P. 523.

[3] Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2024-fev-08/abuso-do-direito-de-voto-do-credor-em-processos-de-recuperacao-judicial/>. Acesso em: 14 mai. 2024.

[4] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cram-down-e-o-abuso-do-direito-de-voto-do-super-credor-na-recuperacao-judicial-07122022>. Acesso em: 15 mai. 2024.

[5] Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-cram-down-e-o-abuso-do-direito-de-voto-em-assembleias-gerais-de-credores-18052023?non-beta=1>. Acesso em: 15 mai. 2024.

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O imediato pagamento de precatórios federais como alívio à tragédia gaúcha

O povo gaúcho está de luto! Estamos enfrentando a maior tragédia climática da nossa história, com chuvas torrenciais e enchentes sem precedentes que devastaram o nosso estado, deixando um rastro de destruição e dor. Cidades inteiras foram submersas, lares foram arrasados, negócios foram arruinados e — o mais importante — vidas foram perdidas.

A tragédia inédita que nos atingiu causou profundo abalo no coração de cada gaúcho, que agora se vê diante de um cenário de completa ruína e desolação.

Diante desse cenário insólito, o caminho para nos reerguermos e reconstruirmos as nossas vidas não será nem curto nem simples, mas longo, tortuoso e custoso. Isso porque as medidas tradicionais que poderiam ser aplicadas para resolver problemas comuns certamente serão inadequadas ou ficarão aquém do necessário.

Por isso, precisaremos pavimentar o longo caminho da cura do povo gaúcho e da revitalização do nosso Rio Grande, não apenas por meio da bem-vinda solidariedade dos nossos conterrâneos de outros estados, mas por meio de propostas inéditas e criativas, que possam ser implementadas com máxima agilidade e eficácia.

Imediata disponibilização

Nesse contexto de urgência, portanto, apresentamos, aqui, uma ideia que poderá contribuir a esse esforço coletivo, sem prejuízo de outras medidas necessárias que a ela poderão se agregar.

A nossa sugestão, dado esse cenário extremo, seria para que se garantisse a imediata disponibilização dos valores vinculados a precatórios federais já expedidos em favor de pessoa ou empresa domiciliada em nosso Estado, sem necessidade de se aguardar até 2025 ou 2026 para a liberação de quanta que já pertence ao seu titular, afastando-se, assim, de modo excepcional, a respectiva ordem cronológica de pagamentos. Essa medida urgente, em nossa opinião, teria os seguintes méritos:

(a) O impacto para o governo federal seria apenas momentâneo e de fluxo financeiro, não trazendo qualquer repercussão efetivamente econômica, na medida em que se estaria apenas antecipando aos seus legítimos titulares o pagamento de créditos já líquidos e certos, sem qualquer comprometimento adicional ao Orçamento da União.

(b) Seria uma injeção rápida e eficaz de recursos disponíveis na economia gaúcha, pois esses valores ingressariam, imediata e diretamente, no nosso muito abalado mercado regional, aumentando o volume monetário em circulação e a liquidez disponível aos agentes econômicos do nosso Estado.

(c) Representaria um apoio financeiro imediato a cidadãos e empresas do Rio Grande do Sul, pois colocaria, hoje, nas suas mãos, dinheiro indispensável para reconstruir suas vidas e seus negócios, evitando a espera de um ou dois anos pela liberação de valores que já lhes pertencem, sendo certo que o recebimento posterior dessa quantia poderá ser muito tardio.

(d) Essa medida provocaria mínimo impacto nos cidadãos e nas empresas de outros estados, pois os demais titulares de precatórios federais já expedidos, localizados em outros estados da Federação, mesmo que temporariamente preteridos na ordem cronológica de pagamentos, sofrerão apenas atraso de alguns meses na disponibilização dos seus recursos, sendo ainda certo que não chegarão a sofrer real prejuízo econômico, pois seus precatórios serão remunerados pela taxa Selic.

Essa medida, mesmo que bastante pontual e singela, muita diferença poderá fazer para aqueles que hoje mais necessitam dos recursos que, inquestionavelmente, já são seus. Sabemos que o Brasil é um só e que o sofrimento em um estado representa o sofrimento de todos. Por isso, a futura reconstrução do Rio Grande do Sul depende de nossa união e de nossa determinação em transformar a dor em solidariedade, a destruição em renovação e a ajuda prestada hoje na esperança de um amanhã mais forte e vibrante.

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TST valida geolocalização como prova digital de jornada de bancário

Por maioria de votos, a Subseção II Especializada em Dissídios Individuais (SDI-2) do Tribunal Superior do Trabalho cassou liminar que impedia que o Banco Santander utilizasse prova digital de geolocalização para comprovar jornada de um bancário de Estância Velha (RS). Segundo o colegiado, a prova é adequada, necessária e proporcional e não viola o sigilo telemático e de comunicações garantido na Constituição Federal. 

whatsapp mensagem telefone celular

 

Numa ação trabalhista ajuizada em 2019, o bancário — que trabalhou 33 anos no Santander — pedia o pagamento de horas extras. Ao se defender, o banco disse que o empregado ocupava cargo de gerência e, portanto, não estava sujeito ao controle de jornada. Por isso, pediu ao juízo da 39ª Vara do Trabalho de Estância Velha a produção de provas de sua geolocalização nos horários em que ele indicava estar fazendo horas extras, para comprovar “se de fato estava ao menos nas dependências da empresa”. 

O bancário protestou, mas o pedido foi deferido. O juízo de primeiro grau determinou que ele informasse o número de seu telefone e a identificação do aparelho (Imei) para oficiar as operadoras de telefonia e, caso não o fizesse, seria aplicada a pena de confissão (quando, na ausência da manifestação de uma das partes, as alegações da outra são tomadas como verdadeiras).

Violação de privacidade

Contra essa determinação, o bancário impetrou mandado de segurança no Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (RS) contra a determinação, alegando violação do seu direito à privacidade, “sobretudo porque não houve ressalva de horários, finais de semana ou feriados”.  Na avaliação do trabalhador, o banco tinha outros meios de provar sua jornada, sem constranger sua intimidade.

O Santander, por sua vez, sustentou que a geolocalização se restringiria ao horário em que o empregado afirmou que estaria prestando serviços. Portanto, não haveria violação à intimidade, pois não se busca o conteúdo de diálogos e textos. O TRT-4 cassou a decisão, levando o banco a recorrer ao TST. 

Sem quebra de sigilo

O ministro Amaury Rodrigues, relator do recurso, considerou a geolocalização do aparelho celular adequada como prova, porque permite saber onde estava o trabalhador durante o alegado cumprimento da jornada de trabalho por meio do monitoramento de antenas de rádio-base. A medida é proporcional, por ser feita com o menor sacrifício possível ao direito à intimidade. 

O ministro lembrou que a diligência coincide exatamente com o local onde o próprio trabalhador afirmou estar, e só se poderia cogitar em violação da intimidade se as alegações não forem verdadeiras. Quanto à legalidade da prova, o relator destacou que não há violação de comunicação, e sim de geolocalização. “Não foram ouvidas gravações nem conversas”, ressaltou.

Em seu voto, o ministro lembra que a Justiça do Trabalho capacita os juízes para o uso de tecnologias e utiliza um sistema (Veritas) de tratamento dos relatórios de informações quanto à geolocalização, em que os dados podem ser utilizados como prova digital para provar, por exemplo, vínculo de trabalho e itinerário ou mapear eventuais “laranjas” na fase de execução. 

“Desenvolver sistemas e treinar magistrados no uso de tecnologias essenciais para a edificação de uma sociedade que cumpra a promessa constitucional de ser mais justa, para depois censurar a produção dessas mesmas provas, seria uma enorme incoerência”, observou.

Ainda, segundo o relator, a produção de prova digital é amparada por diversos ordenamentos jurídicos, tanto de tribunais internacionais como por leis brasileiras, como a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a Lei de Acesso à Informação e o Marco Civil da Internet, que possibilitam o acesso a dados pessoais e informação para defesa de interesses em juízo.

Corrente vencida

Ficaram vencidos os ministros Aloysio Corrêa da Veiga e Dezena da Silva e a desembargadora convocada Margareth Rodrigues Costa. Para Veiga, a prova de geolocalização deve ter ser subsidiária, e não principal. No caso, ela foi admitida como primeira prova processual, havia outros meios menos invasivos de provar as alegações do empregado. 

Na sua avaliação, as vantagens da medida para provar a jornada não superam as suas desvantagens. “A banalização dessa prova de forma corriqueira ou como primeira prova viola o direito à intimidade”, concluiu”. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

ROT 23218-21.2023.5.04.0000

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Disparidade de armas digital no processo penal híbrido

A questão que governa o título é: as teorias de processo foram estruturadas em momento histórico distinto, com suporte na lógica mecanicista [relação causa-efeito], alheias às atualizações teóricas e metodológicas, especialmente em face do contexto tecnológico que invadiu os instrumentos de investigação e julgamento e dos achados da psicologia cognitiva, psicologia social, economia comportamental, neurociência, economia, física, ciência de dados, dentre outros domínios da ciência, em geral, ignorados ou não integrados adequadamente ao domínio do processo penal.

Os impactos da Era da Informação [Castells; Floridi], dos avanços tecnológicos [Internet, Web, computadores, processo digital, prova eletrônica-digital, inteligência artificial, big data, dentre outras entidades] e das contribuições dos domínios adjacentes simplesmente não existiam à época. Em consequência, ao mesmo tempo que é inválido criticar os teóricos do Saber Convencional do Processo Penal pelos recursos então inexistentes e/ou indisponíveis, também é inválido continuar aplicando modelo em parte obsoleto e incapaz de responder ao contexto atual, situado em três domínios com fronteiras difusas: Mundo Analógico, Mundo Digital e Mundo Híbrido.

O Mundo Analógico é o que se refere aos eventos penais sem qualquer conexão ao contexto digital, quer como ambiente ou prova, restringindo-se à coleta de provas analógicas [documentos físicos; depoimentos e perícias materiais], em número cada vez menor. No extremo oposto estão os crimes genericamente designados de Digitais, realizados no ambiente digital, em franco crescimento [Scott Sydow]. No entremeio estão os crimes híbridos, em que tanto a realização da conduta, quanto as provas, conectam-se direta ou indiretamente ao contexto digital, atualmente em maior número.

Ainda que assumamos a autonomia do Direito e, por consequência, da especificidade do campo jurídico, também é verdade que o contexto analógico se alterou substancialmente em face contexto digital [Virada Digital, diz Dierle Nunes], exigindo a aquisição de competências [conhecimentos; habilidades; experiencias; atitudes] ausentes na formação convencional do agente penal [qualquer humano que interage nos procedimentos penais].

A transformação do contexto analógico em digital promoveu a modificação das coordenadas do cotidiano e, por consequência, do processo penal, especialmente a imensa produção de dados por meio de dispositivos [sensores, smartphones, câmeras etc.], com a ampliação da produção de prova eletrônico-digital.

Segue-se que a ausência de conhecimentos mínimos quanto aos novos temas e artefatos amplia a disparidade de armas digitais [confira os escritos de Luiz Eduardo Cani]. A atualização teórica e operacional de cada agente depende da disposição individual quanto ao prévio reconhecimento das fraquezas, associada à aquisição de novas competências digitais [conhecimentos, habilidades; experiências; atitudes].

Distância entre recursos

Diferentemente da Polícia e do Ministério Público que realizam constantes treinamentos e são providos de unidades de inteligência [muitas vezes às sombras], os defensores públicos e advogados privados contam somente com o esforço individual, em geral, com orçamentos limitados e preconceitos limitadores das mais variadas ordens quanto à incorporação de tecnologia defensiva.

A distância entre os recursos tecnológicos disponíveis entre acusação e defesa tende a aumentar, salvo quanto aos profissionais que se derem conta das limitações digitais e, por si, avançarem no sentido de adquirirem novas competências necessárias à redução da disparidade de armas digitais.

De minha parte foi necessário um longo letramento digital porque formado em 1996, desde então, embora tenha acompanhado a criação e evolução dos computadores, da Internet e da Web, não tinha a compreensão adequada da estrutura, do funcionamento e das oportunidades [desconhecidas].

Reconhecer os limites e abandonar a arrogância analógica é um ato de coragem, talvez de sobrevivência profissional. Embora tenha iniciado o letramento digital, o esforço para compreender o universo digital é imenso, impondo a necessária e constante atualização, porque a cada dia surgem novidades.

O maior obstáculo é o de que a maioria dos agentes penais conta apenas com papel, caneta e um editor de texto para gerenciar o caso penal. A metodologia se resume em anotar o que se julga importante, com riscos e rabiscos, associando o material selecionado às competências [conhecimentos; habilidades; experiência; atitude], além da pesquisa parcial na doutrina e, principalmente, na jurisprudência, com imensas dificuldades de identificar, diante do excesso de fontes [abundância digital], o que é compatível e útil do que é incompatível e inútil. Aloca-se tempo e recursos em atividades redundantes, ineficientes e repetitivas.

O amadorismo metodológico tende a ampliar a exposição ao risco de erros [perigos; catástrofes]. O pior é que muitos sequer se dão conta do contexto de risco, por desconhecerem a existência de instrumentos e ferramentas ágeis à melhoria do desempenho. No entanto, desde a passagem da máquina de escrever para os computadores, com a criação da Internet [a estrutura física] e as infinitas possibilidades da Web [a conexão de conteúdo; rede; aplicações], Open Source Intelligence [Osint; Rodrigo Camargo; Wanderson Castilho], a incorporação de recursos tecnológicos às práticas jurídicas, especialmente à gestão de caso penal, é condição necessária à competitividade [Isabela Ferrari; Fernanda Lage].

Do contrário, a defasagem aumenta a exposição aos riscos decorrentes da lentidão de acesso, localização e processamento do imenso volume de dados e de informações produzidos em um caso penal, ainda que aparentemente simples.

Por isso a importância das Tecnologias de Informação e Comunicação [TICs], os achados da Gestão do Conhecimento e as novas oportunidades de aquisição e de tratamento de dados. Até porque a proteção de dados pessoais, especialmente o conceito de “autodeterminação informacional”, é inerente ao processo penal, motivo pelo qual se deve avaliar o impacto, dentre outras normativas, da Emenda Constitucional 115, do Marco Civil da Internet, da Lei Geral de Proteção de Dados e da Convenção de Budapeste.

Ainda que não tenhamos, ainda, a LGPD-Penal, os princípios e regras gerais incidem no processo penal. Do contrário, estaríamos em Zona de Exceção, situação incompatível com o regime democrático. Então, do ponto de vista da Administração Pública, lugar da investigação criminal, as exigências mínimas são exigíveis. Quem sabe você tenha ficado curioso e possa ler o acórdão da Ação Direta de Constitucionalidade 51, proferido pelo Supremo Tribunal Federal.

Denomina-se de Tecnologias da Informação e Comunicação [TICs] o conjunto de dispositivos [meios: dispositivos; ferramentas; instrumentos] aptos à otimização do armazenamento, do acesso, do processamento e da troca de dados e de informações com finalidades múltiplas. Os avanços tecnológicos propiciaram o aumento do potencial das máquinas, inserindo-se no cotidiano pessoal e profissional, especialmente por meio de computadores, da internet e da web (www).

A consequência foi a aceleração e a ampliação do volume das trocas de informações no contexto. No domínio do Direito e do Processo Penal o impacto das TICs é imenso, em geral, pouco integrado às atividades defensivas, embora amplamente utilizadas nas atividades de investigação e de inteligência.

Em consequência, a adoção de estratégias de integração dos achados das ciências de dados mostra-se como condição de possibilidade às atividades relacionadas à gestão de caso penal concreto. Ao mesmo tempo que confere ampla possibilidade de obtenção de dados e de informações, promove a disparidade de armas procedimentais em diversos campos.

Além da gestão do caso penal, o acesso, a aquisição e o processamento do imenso volume de dados disponível tornam-se privilégio de quem adquiriu dispositivos e competências relacionadas à implementação do devido processamento. Os demais esperam impávidos um milagre.

Dentre as diversas possibilidades, encontra-se a alegação da Perda de Uma Chance Probatória Digital, consistente na omissão quanto à aquisição ou produção de prova por parte do Estado Investigador e/ou acusador, reduzindo as chances defensivas de modo tangível, objetivo e mensurável. Se existem sensores disponíveis no cotidiano, a ausência de levantamento das câmeras públicas, privadas ou bodycam podem significar, a depender do caso, a alteração da valoração do conjunto probatório.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do AgRg. HC 213387, voto ministro Gilmar Mendes [2ª Turma, PV; 05-12/05/2023], deixou assentado:

“Embora em julho a de 2020, os agentes policiais insistem em realizar a diligência sem uso de câmeras corporais, aquisição de imagens de câmeras da região ou mesmo da viatura, confiando na sobrevalorização da força das declarações que se mostra inválida no contexto digital atual. Em consequência, a omissão dos agentes estatais retira a tração cognitiva das declarações dos policiais analisadas no contexto dos autos, principalmente quanto às premissas adotadas pela decisão monocrática.”

Há um longo caminho a ser construído, incompatível com a inércia analógica de muitos agentes penais. Se, em geral, os currículos do curso de direito são insuficientes à aquisição de competências [conhecimentos; habilidades; experiências; atitudes] associadas ao mundo digital e/ou híbrido, vinculados às novas oportunidades com dados, então a formação adequada dependerá da motivação e do esforço pessoal.

O letramento digital autodidata pode ocorrer com pesquisas aleatórias no Google ou supervisionada por alguém com mais tempo de estrada e que, por isso, sinaliza previamente as armadilhas e de erros evitáveis. Os desafios são imensos porque ninguém se torna profissional de elite sem esforço pessoal, alocação de tempo e de recursos orientados à melhoria do desempenho. Essa parte é com você. Mas conte conosco.

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Rescisória (como compensação) contra errônea aplicação de precedentes

1. Delineando a temática

Há muito tempo venho falando sobre o problema do precedentalismo à brasileira, ou, então, de uma má importação do instituto dos precedentes ao Brasil. Publiquei sobre o assunto em diversos locais: em livros, em artigos, aqui mesmo na ConJur, em colunas, em podcasts, enfim [1]. Ainda assim, “voltemeia” me pego precisando falar sobre o assunto novamente. Hoje, no entanto, diferente das vezes anteriores, gostaria de abordar o tema a partir de uma decisão judicial, da qual tive conhecimento recente [2], proferida em 2020 (já em tempos pandêmicos).

No julgamento da Reclamação nº 36.476/SP, que tramitou no Superior Tribunal de Justiça, a Corte Superior assentou entendimento de que não cabe reclamação contra decisão que inadmite ou nega seguimento a recurso extraordinário/especial com fundamento em entendimento firmado pela corte em regime de repercussão geral ou julgamento de recursos repetitivos.

Ou seja, o STJ disse que a reclamação não é instrumento cabível para corrigir ocorrência de erro na aplicação de precedente oriundo de repercussão geral ou recursos repetitivos. O  instrumento cabível seria a ação rescisória, em uma leitura conjunta do artigo 988, §5º, inciso II, e artigo 966, inciso V, §5º, ambos do CPC.

2. O caso concreto

A reclamação havia sido ajuizada com base no artigo 988, IV, do CPC [3], contra ato praticado pelo TJ-SP. O caso concreto dizia respeito a um cumprimento de sentença de uma ação coletiva, em que a Telefônica Brasil S.A. havia sido condenada em ação civil pública movida pelo MP-SP a emitir diferença de ações, ou pagar os respectivos valores, em favor dos consumidores que, mediante contrato de participação financeira, adquiriram plano de expansão de linha telefônica, “na forma mais favorável ao consumidor”. Sobreveio decisão favorável ao MP, que foi recorrida pela Telefônica Brasil até que precisou interpor recurso especial.

Dentre os fundamentos utilizados no recurso especial, um deles foi de que é inaplicável o critério de conversão fixado pelo STJ no Recurso Especial repetitivo nº 1.301.989/RS, porque havia uma distinção entre o caso concreto e o padrão decisório do precedente, na medida em que, nesse caso concreto, o pedido formulado no cumprimento de sentença não foi de entrega das ações convertida em perdas e danos, mas de indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência da entrega a menor. Veja-se, então, que desde o início a Telefônica Brasil S.A. vem sustentando que o tribunal aplicou erroneamente a decisão oriunda do entendimento fixado em recurso repetitivo, simplesmente porque não fez o devido distinguishing.

O recurso repetitivo utilizado como precedente tinha como principal objetivo somente saber 1) se o cessionário para o ajuizamento de ação de complementação de ações tem legitimidade ativa; 2) qual era o critério para a conversão das ações em perdas e danos; e 3) qual eram os critérios para conversão em perdas e danos da obrigação de pagar dividendos. Contudo, conforme se depreende do recurso especial da Telefônica Brasil S.A., no caso concreto o pedido havia sido somente de indenização pelos valores pagos a menor, e não de conversão das ações em perdas e danos.

O TJ-SP negou seguimento ao recurso especial sob o fundamento de que se aplica à espécie a tese firmada no REsp 1.301.989/RS, que fixou o Tema 658. Esse, então, o cenário que levou ao ajuizamento da reclamação, em que a Telefônica Brasil S.A sustentou que, nesse caso concreto, é inaplicável o entendimento firmado no REsp 1.301.989/RS, porque sua pretensão é de indenização do valor das ações entregues a menor, e não de emissão dessas ações, com eventual conversão em perdas e danos.

Isto é: era uma questão de encaixe. E contra um mau encaixe, cabe fazer a distinção para dizer que “não se trata de…”.

3. Sintomas de uma doença que parece incurável: o precedentalismo e as normas feitas pelo Judiciário… para o futuro – normas sem caso concreto

Esse cenário descrito no caso analisado é apenas um sintoma daquilo que se tornou o instituto dos precedentes no Brasil:

1. fixa-se uma tese, que se torna uma “norma-padrão”,

2. e ela passa a ser replicada em todos os casos minimamente semelhantes,

3. sem que se faça a devida diferenciação entre a questão discutida no caso concreto e o padrão decisório adotado pelo órgão julgador.

Isso demonstra a dificuldade de se trabalhar com os precedentes no Brasil, que são tratados pela doutrina como uma “resposta pretérita e geral ao caso concreto”, mas com pretensão de ser norma geral e abstrata.

No caso da reclamação, sequer se discutiu se, de fato, o caso concreto tinha relação com o padrão decisório do precedente utilizado. A corte extinguiu o processo por entender que a reclamação não é a via adequada para questionar decisão que inadmite ou nega seguimento a recurso especial com base em entendimento firmado em recursos repetitivos, que a via adequada seria, na realidade, a ação rescisória. Porém, o que interessa é que a própria ministra relatora Nancy Andrighi admite a problemática da questão.

Explico.

A ministra fez longo voto trazendo considerações sobre a gênese da reclamação, seu histórico e seu desenvolvimento processual. Mencionou, ainda, o processo legislativo que originou as alterações promovidas pela Lei nº 13.256/2016 ao CPC. Nesse ponto, mencionou que, na redação original do artigo 988 do CPC, ele previa o cabimento da reclamação para “garantir a observância de enunciado de súmula vinculante e de precedente proferido em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência”.

No entanto, a Lei 13.256/2016 promoveu uma alteração nesse aspecto, modificando o inciso IV do artigo 988 para fins de constar “garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência”.

O que deve ser adicionado ao arrazoado da ministra é que a modificação legislativa em questão só ocorreu em razão da pressão exercida pelos próprios ministros dos tribunais superiores para que houvesse uma limitação ou mesmo a extinção das reclamações, conforme pode ser verificado a partir dos debates do Plenário da Câmara dos Deputados ao apreciar o projeto de lei que deu origem à Lei 13.256/2016 [4].

Assim, a anterior previsão de reclamação para garantir a observância de precedente oriundo de casos repetitivos foi excluída, passando a constar, nas hipóteses de cabimento, apenas o precedente oriundo de IRDR, que é espécie daquele. A alteração legislativa incluiu, ainda, o §5º, inciso II, segundo o qual é inadmissível a reclamação “proposta para garantir a observância de acórdão de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida ou de acórdão proferido em julgamento de recursos extraordinário ou especial repetitivos, quando não esgotadas as instâncias ordinárias”.

Ao mencionar o motivo pelo qual os legisladores optaram por retirar uma hipótese de cabimento da reclamação e a regulamentar agregando-lhe um pressuposto de admissibilidade, a ministra disse que a corte temia o crescente número reclamações e agravos discutindo má aplicabilidade de temas repetitivos e em repercussão geral. Assim, para evitar o tolhimento total da possibilidade de discutir a aplicabilidade de teses firmadas em repercussão geral e recursos repetitivos, o PL acrescentou essa possibilidade no cabimento da ação rescisória. Nesse ponto, a ministra mencionou expressamente se tratar de uma “compensação” ao jurisdicionado, quando aplicado erroneamente o precedente.

Veja-se, com isso, que há três questões relevantes a serem discutidas:

(1) a Corte Superior admite, expressamente, que há um problema jurídico relacionado com a aplicabilidade dos precedentes no Brasil, qual seja, o fato de os tribunais insistirem em aplicá-los sem realizar o devido distinguishing, o que se insere também na problemática das teses firmadas em sede de recursos repetitivos e em repercussão geral;

(2) a corte admite que esse problema leva ao ajuizamento de diversas ações no país, porque o problema se repete em diversos casos concretos, o que faz com que as partes venham ao Judiciário buscar a adequada aplicabilidade do precedente;

(3) em vez de resolver a raiz do problema e orientar adequadamente a aplicabilidade dos precedentes, a legislação retira a possibilidade desse “remédio” e coloca, no lugar, a ação rescisória, como forma de “compensar” o tolhimento dos direitos das partes. Uma evidente tentativa de tapar o sol com a peneira.

Portanto, deve ser observado que o “sistema de precedentes” que foi inicialmente pensado por meio da construção legislativa do CPC, foi mutilado antes mesmo de entrar em vigor, em razão do pragmatismo dos tribunais superiores que, por meio de seus procers, já reconheciam a incapacidade de lidar com os erros de aplicação em concreto de precedentes por parte dos tribunais regionais. Isto é, já antes de começar os tribunais demonstravam desconfiança para com os seus “precedentes”.

Em verdade, a ação rescisória, que veio como uma tentativa de compensar decisões mal fundamentadas, só foi possível mediante a interferência do deputado Paulo Teixeira para que houvesse alguma possibilidade de contestar em juízo a aplicação errônea de precedente. Porém, de manejo muito dificultado. O problema não foi e dificilmente será resolvido. Nem deveria tentar ser resolvido a partir do “medo da Corte” de ter muitos processos por causa da má aplicabilidade dos precedentes. Criou-se um problema e, para tentar resolver o problema, cria-se outro problema que não resolve o primeiro problema.

Vale salientar, a despeito de tudo que foi dito até aqui, que o Supremo já admitiu o uso da reclamação como instrumento para fazer valer os seus precedentes, sobretudo em casos oriundos da Justiça do Trabalho [5].

4. O já velho problema que persiste: “o que é isto – o precedente?”

Eis, aí, um sintoma da doença que venho diagnosticando há anos: a má compreensão da doutrina jurídica e dos tribunais acerca do que seja, afinal, um precedente. Faz-se, na verdade, uma leitura — equivocada — do artigo 927 do CPC, que descaracteriza a verdadeira essência do que é, afinal, um precedente, a partir da conclusão de que

  1. o CPC de 2015 aproxima o Brasil e, portanto, seu sistema de civil law ao do common law; e que
  2. os provimentos elencados no artigo 927 são considerados, em princípio, “de forma simplificada”, como “precedente”.

Ora, independentemente de se dizer que “imitamos o common law” (o que é irrelevante), uma coisa é certa: pouco aprendemos com o common law. Por exemplo: lá não se fazem precedentes para o futuro. Aliás, precedentes não são “fabricados” ou “construídos”. Não há uma “fábrica” de precedentes e tampouco um gerenciamento de precedentes. Eles surgem e se tornam precedentes. Porque são aplicados na medida em que novos casos assim exigem. No common law, ao contrário do que se diz por aqui, não estão encarregados de fazer estoques de normas. E sabe por quê? Porque isso é tarefa do legislador.

De forma equivocada (um exemplo é o modo como o tema é tratado pela Revista de Precedentes do IPDP), a tese precedentalista brasileira sustenta que os precedentes brasileiros são compreendidos como “razões generalizáveis extraídas da justificação das decisões” e que emanam exclusivamente (sic) das Cortes Supremas e são sempre obrigatórios” [6]. Essa parcela da doutrina entende que os precedentes, uma vez que vinculantes, são entendimentos que firmam orientações gerais obrigatórias para o futuro”. Nisso já reside o maior equívoco: se é precedente, não pode ser “geral” e “para o futuro”. Disso surgem algumas questões, dentre elas: podemos tratar precedentes, instrumentos vinculantes, súmulas, entendimentos firmados em recursos repetitivos e em repercussão geral, todos esses elementos, como se fossem todos mecanismos voltados para pré-ordenar o direito aplicável em casos futuros? Se sim, não há uma clara subversão das funções de cada um dos Poderes da República?

No caso concreto analisado, no fundo o que a Telefônica Brasil S.A. estava questionando era o fato de que a ratio decidendi – ou seja, a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto – havia sido ignorada pelo tribunal.

Venho afirmando de há muito que aplicar um precedente não é extrair, de um caso concreto, uma “tese geral” e aplicar aos casos subsequentes. Mas é, pelo contrário, identificar qual a ratio da decisão precedente, a partir de diversos mecanismos, e aplicar essa mesma ratio aos casos subsequentes. Isso pode resultar na mesma decisão precedente, ou não. Como se poderia falar em precedentes em um contexto no qual a ratio já nasce como tese do tribunal que “lança” o “precedente”? Cria o próprio parâmetro que servirá de baliza para o futuro? Uma autoprodução legiferante?

Fica evidente, portanto, em termos filosóficos, a tentativa de buscar respostas antes das perguntas e de solucionar eventuais problemas interpretativos futuros. Mas quem deve cuidar do futuro é o legislativo. O discurso precedentalista é uma tentativa de transformar o instituto importado em um sistema de teses abstratas proferidas pelos tribunais superiores, o que gera os problemas recorrentes de má aplicabilidade das decisões anteriores.

Há, contudo, um problema também de ordem hermenêutica. A palavra, o texto, não nos salvam da contingência da vida. Caímos, novamente, nos limites da linguagem. Não se pode aplicar uma precedente sem identificar a sua ratio e sem fazer o devido distinguishing da mesma forma que não se pode achar que no texto da norma estão contidas todas as possibilidades de casos concretos. Tenho dito e digo novamente: a pretensão de isomorfia é ilusória. Impossível.

Quando um conjunto de pessoas propõe algo, por meio de um enunciado ou um precedente, propõem nada senão uma tentativa de se chegar a um conjunto de palavras capaz de abarcar o mundo e conferir-lhe um sentido último — o ponto, e, portanto, a inevitável contradição, é que isso é feito sem que se saiba, contudo, de que mundo se trata. Um sujeito propõe. De que lugar? Qual é a fundamentação (no caso, do enunciado ou do precedente)? Uma outra palavra ou um conjunto de palavras. De novo: uma analítica que se autofunda.

A questão se agrava quando a própria corte reconhece esse problema e deixa de fornecer uma resposta adequada. É dito: esse problema (é) de vocês e cria um problema para nós (a distribuição massiva de recursos e ações), então, como resposta, vamos tolher o direito de usufruírem desses recursos e, como forma de compensar, colocamos a ação rescisória no lugar.

Mas que não será fácil de manejar.

Post scriptum sobre precedentes e o ceticismo jurídico:

Lendo os inúmeros textos e livros editados sobre precedentes à brasileira, descobre-se que a tese central é que o direito é indeterminado e, por isso, os tribunais superiores devem “determiná-lo” fazendo teses. Ocorre que essa é uma postura cética sobre o direito. E por isso os precedentes não “pegam”. Não são seguidos. E sabe por quê? Porque quem vai aplicar o “precedente” também considera o direito indeterminado. E, por assim pensar, considera também o precedente um termo carente de determinação. E assim se faz um círculo vicioso. E viciado.

O ponto está para além de dizer que uma cultura não se cria do zero, com a importação de um instituto. Já seria suficiente dizer isso. Mas há mais: não apenas não se criou, como jamais se criará uma cultura de precedentes sem que se leve a sério o instituto do distinguishing. Para dizer que um caso é semelhante quando é semelhante, e que há diferença quando diferença houver. Porque esse é o espírito da máxima de “treat like cases alike”. Sabedoria milenar: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. No common law já sacaram isso desde Edward Coke.


[1] Além de dois livros, já muito escrevi sobre isso na ConJurPrecisamos falar sobre os precedentes à brasileira (acesse aqui), Ainda e sempre o ponto fulcral do direito hoje: o que é um precedente? (acesse aqui), A jurisdição constitucional e a “cultura de precedentes” (acesse aqui), A pergunta: o que é necessário para existir um precedente? (acesse aqui).

[2] O incansável advogado Paulo Iotti foi quem me enviou a decisão e me inspirou a escrever sobre o tema.

[3] Art. 988. Caberá reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para: IV – garantir a observância de acórdão proferido em julgamento de incidente de resolução de demandas repetitivas ou de incidente de assunção de competência.

[4] Vasculhando os anais: dep. Paulo Teixeira (PT-SP e como líder): “Nós estamos mudando, porque o Supremo Tribunal Federal fez uma reivindicação: limitar e acabar com as reclamações. E o Superior Tribunal de Justiça fez outro pedido: que eles não ficassem com juízo de admissibilidade. Portanto, é ponderável que esta Casa dialogue com essas duas instâncias do Judiciário, para atender essas duas reivindicações”.  Adendo: Então entrou a ação rescisória como compensação, que foi aprovada sob “método de presidência” de Eduardo Cunha. Ele queria votar o texto principal de qualquer jeito e propôs que a proposta fosse apresentada na forma de uma emenda aglutinadora. Por isso a incongruência entre a extinção da previsão de Reclamação para contestar a não aplicação de precedente ao mesmo tempo que foi inserido inciso que expressamente define o descabimento de reclamação em face de descumprimento de precedente sem o esgotamento das instâncias ordinárias.

[5] RECLAMAÇÃO 59.795/MG, Rel. Min. Alexandre de Moraes. Julgada em 19/05/2023.

[6] Cf. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel; ARENHART, Sérgio Cruz. O Novo Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.611.

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Projeto de lei busca aumentar prazo decadencial em casos de violência doméstica

O Projeto de Lei nº 1.713, de 2022, que busca alterar o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), prevê prazo maior para representação criminal em contexto de violência doméstica e tem pareceres favoráveis no Congresso Nacional.

Fruto das pesquisas de várias mulheres de diversas áreas de atuação, o PL 1.713, idealizado por estas subscritoras e minutado pela Comissão Nacional da Mulher Advogada Criminalista da Abracrim (Abracrim Mulher), encontra-se com parecer favorável na Comissão da Defesa dos Direitos da Mulher, na Câmara dos deputados.

Aprovado em decisão terminativa na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o PL busca ampliar o prazo decadencial de seis para 12 meses para o exercício da “representação” e a propositura de “queixa-crime”, em casos de violência doméstica.

Tempo hábil

Considerando o ciclo de violência e toda a estrutura patriarcal existente na sociedade, a pretendida alteração legislativa é de suma relevância, pois permitirá que mulheres vítimas de violência doméstica tenham tempo hábil para buscar o apoio do sistema de justiça criminal sem atropelar seu próprio tempo.

Além disso, o projeto leva para a sociedade uma maior compreensão sobre a complexidade do ciclo de agressão sofrido pelas mulheres vítimas de violência doméstica, ciclo muitas vezes não compreendido, o que gera ainda mais sofrimento e preconceito, impondo às mulheres vítimas de violência ainda mais sofrimento e violência.

Acréscimo

A redação final aprovada no Senado Federal acresce o parágrafo único ao artigo 103 do Código Penal, passando a vigorar com a previsão de que para os crimes que se processam mediante representação criminal, no contexto de violência doméstica e familiar contra pessoa do gênero feminino, a ofendida decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 12 (doze) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime.

No que se refere às alterações previstas na Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), temos o acréscimo do artigo 16 – A que de fato aumenta para 12 (doze) meses o prazo para o exercício do instituto da representação pela vítima em situação de violência doméstica e familiar.

Referidas propostas efetivarão alteração na Lei Processual, que passará a viger adequando-se à nova e necessária disposição legal.

Importante destacar emenda acolhida e incorporada ao relatório final da CCJ, que acrescenta o artigo 394-B ao Código de Processo Penal com a previsão da celeridade e prioridade na tramitação processual, e que também independerão, em todos os graus de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas, salvo em caso de má-fé.

A única discussão divergente no projeto é quanto à utilização dos termos “gênero feminino”, “sexo feminino”, “mulher”, porém, todos os pareceres até o momento são uníssonos quanto à necessidade da alteração da lei com a ampliação do prazo para representação criminal, permitindo, assim, que o sistema de Justiça resguarde direitos.

O projeto, que se encontra com um texto substitutivo devido às emendas apresentadas e incorporadas ao texto, após apreciação conclusiva nas comissões, vide artigo 24, II, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, retornará ao Senado Federal, onde a casa originária decidirá pela manutenção das alterações realizadas na Câmara dos deputados, ou pela manutenção do texto aprovado pela casa iniciadora.

Ciclo da violência

Vale mencionar que o maior estudo de referência no mundo para compreensão do impacto da violência doméstica na mulher, foi realizado pela psicóloga clínica e forense norte-americana Eleonor E. A. Walker (2017).

Eleonor identificou em pesquisa de campo realizada com cerca de 1.500 mulheres, um padrão de abuso da mulher, que a pesquisadora cunhou como “ciclo da violência doméstica”, para se referir à repetição da violência doméstica em que a mulher está inserida.

O resultado da pesquisa apontou os reflexos na vida e na saúde mental da mulher, além de descrever os mecanismos psíquicos que justificam a enorme dificuldade da mulher em sair destas situações.

Segundo a justificativa apresentada no texto original, a intervenção precoce e mais efetiva em níveis menores de violações pode interromper ou amenizar a evolução do ciclo da violência, vindo a prevenir crimes menores que se agravam e desaguam no feminicídio. Dilatar o prazo decadencial é intervir em fases anteriores da violência e precursoras do feminicídio.

Sobre a complexidade do ciclo da violência doméstica e a perda de prazos decadenciais pelas vítimas imersas em situação de violência doméstica, Izabella Borges tratou do tema nesta coluna em duas oportunidades, em janeiro de 2021 [1], em texto escrito em coautoria com Bruna Borges, e em fevereiro do mesmo ano [2].

A minuta do projeto de lei foi elaborada por estas subscritoras, Izabella Borges – idealizadora da ideia – e Ana Paula Trento – presidente Nacional da Abracrim Mulher, além de Izadora Barbieri – diretora legislativa da Abracrim Mulher Nacional –, Layla Freitas – secretária-geral da Abracrim Mulher Nacional –, Simone Cabredo – diretora de assuntos Acadêmicos da Abracrim Mulher Nacinal – e pela psicanalista e psicóloga Forense Tamara Brockhausen.


[1] https://www.conjur.com.br/2021-jan-20/escritos-mulher-decadencia-ambito-violencia-domestica-prazo-fatal/ (acessado em 14 de maio de 2024).

[2] https://www.conjur.com.br/2021-fev-24/escritos-mulher-violencias-genero-instituto-decadencia-parte-dois/

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Penhora e expropriação de bens com alienação fiduciária em execuções civis

Em se tratando de execuções civis, um dos grandes desafios enfrentado pelos credores é a localização de bens disponíveis à penhora. Não raras vezes, o único patrimônio localizado em nome dos executados é o direito aquisitivo de bens móveis e/ou imóveis, oriundos de contratos com garantia de alienação fiduciária.

O artigo 1.361 do Código Civil descreve como fiduciária “a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor”. Referido diploma legal destina o capítulo IX, da Seção VI, para regular o instituto. Tamanhos são o alcance e a relevância do tema que outras leis também estabelecem regras para a sua aplicabilidade, tais como: a Lei nº 9.514/1997, que institui a alienação fiduciária de coisa imóvel (artigos 22 e seguintes); e a Lei nº 4.728/1965, que disciplina sobre o mercado de capitais (artigo 66-B).

Considerando essa característica de oferta da propriedade resolúvel para a obtenção de crédito, é comum encontrar no ramo bancário contratos com garantia de alienação fiduciária, a qual é oferecida com o objetivo de facilitar a obtenção do crédito mediante a entrega da propriedade temporária de coisa móvel ou imóvel ao credor. Vale destacar que essa propriedade não é plena, considerando a sua condição resolutiva, já que, após a quitação do débito, a propriedade retorna integralmente ao devedor.

Neste tipo de garantia, há o que se denomina como desdobramento da posse, de modo que a posse indireta passa a pertencer ao credor, enquanto a posse direta continua com o devedor, durante a adimplência contratual. Ao final da avença, se houver o pagamento integral do contrato, a propriedade plena é transferida ao devedor e extingue-se a propriedade resolúvel do credor sobre a coisa, assim como o desdobramento da posse.

A teor do permissivo contido no artigo 835, XII, do CPC, pode-se dizer, então, que é possível a penhora dos direitos aquisitivos de determinado bem de propriedade do devedor fiduciante, oriundos de contratos com alienação fiduciária de bens móveis e/ou imóveis.

Ocorre que este tipo de penhora acaba por encontrar certa resistência, principalmente do credor fiduciário, o que impõe a necessidade de diferenciar a penhora de direitos aquisitivos e a penhora efetiva sobre o bem.

Sobre a penhora dos direitos aquisitivos de bens com alienação fiduciária, é possível verificar que: […] o objeto da penhora será o direito de aquisição do domínio, isto é, o direito que tem o devedor-fiduciante de ser investido na propriedade plena do bem, desde que efetive o pagamento da dívida que o onera” (cf. “Penhora dos Direitos do Fiduciário e do Fiduciante“, de Melhim Namen Chalhub, de 11.09.2016.

Penhora é possível

O Superior Tribunal de Justiça já consolidou o entendimento de que é possível a penhora dos direitos decorrentes do contrato de alienação fiduciária, tendo em vista sua grande expressão econômica (v.g. STJ, AgInt no REsp n. 1.992.074/SP, 4.ªT, relator: ministro Luís Felipe Salomão, j. 8.8.2022).

Conforme dispõe o artigo 797, I, do CPC, incumbe ao exequente requerer a intimação do credor fiduciário quando houver a penhora de direitos aquisitivos de bens gravados com alienação fiduciária. Contudo, em que pese a penhora recaia tão somente sobre os direitos aquisitivos do devedor, rotineiramente, o credor fiduciário se manifesta contrário à realização do leilão.

O atual entendimento jurisprudencial caminha no sentido de que a efetivação de hasta pública dos direitos aquisitivos do devedor sobre o bem prescinde de anuência do credor fiduciário (v.g. TJ-SP, AI 2219787-94.2023.8.26.0000, 31.ª Câmara de Direito Privado, Relator: desembargador Adilson de Araujo, j. 29.09.2023; e TJ-PR, AI 0006158-50.2023.8.16.0000, 10.ª Câmara Cível, relator: desembargador Albino Jacomel Guerios, j. 29.05.2023). Isso se explica pelo fato de que a persecução de direitos aquisitivos e a posterior hasta pública não adentram ao patrimônio de qualquer terceiro estranho à execução.

Em realidade, há potenciais benefícios, inclusive ao credor fiduciário, eis que, na hipótese de venda em leilão, o arrematante pode adquirir a propriedade plena do bem, mediante o pagamento integral do saldo devedor da dívida fiduciária, ou haverá a sub-rogação nos direitos e obrigações do contrato, especialmente quanto ao saldo devedor, que será agora por ele quitado diretamente ao credor fiduciário.

É necessário apenas que no edital de leilão conste expressamente que o objeto da venda são os direitos e não o bem propriamente dito, em atendimento ao requisito previsto no artigo 886, I, do CPC, bem como para que não haja, posteriormente, eventual alegação de nulidade e constrição de patrimônio alheio.

Com efeito, deve-se admitir a expropriação dos direitos aquisitivos sobre bens com alienação fiduciária, sendo dispensável a concordância do credor fiduciário do bem, não sendo adequado aguardar a quitação do contrato de financiamento para só então determinar a realização do leilão. Impedir a venda judicial do bem tornaria inócua a penhora dos direitos aquisitivos, o que contraria os princípios que regem o processo executivo, dentre eles, principalmente, a celeridade e a efetividade da execução.

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