Com texto defasado, prisão temporária envelhece mal e desafia sistema cautelar

A mudança legislativa promovida em 2019 pelo pacote “anticrime” igualou, na prática, duas possibilidades de detenção no curso da investigação policial: a prisão preventiva e a temporária. Isso porque o artigo 311 do Código de Processo Penal passou a ter a seguinte redação:

Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Prisão temporária segue sendo criticada por parte da comunidade jurídica – Freepik

Dessa forma, nas apurações policiais cabe tanto o pedido de prisão temporária quanto o de preventiva. Há, porém, um grave problema: além de idêntica a um tipo de preventiva, a lei de prisões temporárias (Lei 7.960) se tornou obsoleta e inaplicável em determinados crimes, em razão de nomenclaturas antigas e das determinações impostas pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento de uma ação que questionou sua constitucionalidade.

Em 2022, o STF delimitou a aplicação desse instituto, que era — e continua sendo — visto por parte da comunidade jurídica como uma extensão legal da “prisão para averiguações”. No julgamento, a corte rechaçou essa hipótese e reafirmou as semelhanças entre a preventiva e a temporária, utilizando critérios da primeira para formatar a segunda.

 

 

A principal crítica, todavia, ainda é sobre a “razão de existir” da prisão temporária. Para seus detratores, ela é incompatível com o conceito de sistema cautelar, que é baseado na presunção de inocência, ainda que se preserve a possibilidade de um indivíduo ser preso antes do fim do processo.

Nas análises mais otimistas coletadas pela revista eletrônica Consultor Jurídico, especialistas dizem que a prisão temporária ainda tem sua importância no decorrer da investigação, mas reconhecem que as mudanças no texto da lei diminuíram seu alcance.

Justificativas genéricas

Regulamentada pela Lei 7.960, que vigora desde 1989, a prisão temporária teve origem em uma medida provisória assinada pelo então presidente José Sarney. A norma foi inserida no ordenamento brasileiro com justificativas genéricas como o combate à criminalidade e o suposto aumento do número de crimes à época.

“A prisão temporária já surge com a marca da inconstitucionalidade, pois nasce de uma medida provisória, um meio ilegítimo de criar norma processual penal. Mas acabou se consolidando, em que pese o vício formal. Sem embargo, materialmente ela também se mostrou inconstitucional, pois virou uma prisão para obter confissão/colaboração do investigado, em flagrante violação da presunção de inocência e do direito de não autoincriminação”, afirma o criminalista Aury Lopes Jr., um crítico da prisão temporária.

O presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, segue pelo mesmo caminho: “Nós temos um vício de origem, de inconstitucionalidade formal. Ao meu juízo, isso não está superado.”

“Trata-se de um instituto ultrapassado, que mesmo quando introduzido no ordenamento sempre pareceu um ‘corpo estranho’, porque não é um instituto compatível com a presunção de inocência e com o direito a não se autoincriminar, garantias constitucionais consagradas”, diz o vice-presidente da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Leonardo Sica.

A origem e os vícios

Antes da Carta de 1988, a prática da prisão “para averiguações” era comum nas polícias — para elas, nada mais era do que uma forma de detenção para pressionar o indivíduo a “colaborar” com a investigação, seja com um depoimento, seja para produção de provas ou outra finalidade policial. A doutrina, todavia, diverge quanto à institucionalização da prisão “para averiguações” por meio da sanção da lei da prisão temporária, em 1989.

 

 

No Supremo, mesmo antes da tese firmada em 2022, houve diversos questionamentos à validade da norma. A decisão mais detalhada, no entanto, foi mesmo a de dois anos atrás, quando prevaleceu o voto do ministro Edson Fachin, que determinou que a prisão temporária tem de seguir cinco requisitos cumulativos:

“1) For imprescindível para as investigações do inquérito policial; 2) Houver fundadas razões de autoria ou participação nos crimes dispostos na lei aprovada em 1989; 3) Justificativa de fatos novos; 4) For adequada à gravidade concreta do crime; e 5) Quando não for suficiente a imposição de medidas cautelares diversas”.

Na ação que tramitou no STF, houve discussões sobre a compatibilidade do instituto com a Constituição e, no final, a solução foi torná-lo “mais rígido”, adotando requisitos que eram típicos das prisões preventivas.

O professor e procurador da República Andrey Borges de Mendonça, estudioso do tema, tem ressalvas à argumentação de que a prisão temporária fere a presunção de inocência, mas acha a discussão válida. Ele cita outro ponto importante do debate: o standard (qualidade) das provas, fragilidade constante no Direito Penal brasileiro que fica mais evidente nos casos de prisão temporária.

“É uma decisão valorativa do legislador. Eles pensaram: ‘Como estamos no início de uma investigação, não temos provas suficientes em princípio, (temos) menos indícios de autoria’. Faz parte de uma investigação. Mas a prisão pode se tornar necessária por um determinado período de tempo”, diz Mendonça.

“É uma discussão. Se pode prender alguém com uma prova (com padrão) ‘mais baixa’ do que da prisão preventiva? Isso não é uma forma de burlar a temporária? Eu não defenderia isso, mas compreendo que é uma argumentação razoável.”

É raro, mas acontece muito

Na prática, no entanto, há uma quantidade considerável de casos em que não são observadas todas essas condições impostas pelo STF de forma cumulativa. Além disso, os requisitos são subjetivos e carecem de maior fiscalização (como no caso das preventivas), resultando inevitavelmente em ilegalidades.

“Hoje, o Estado possui inúmeros instrumentos para que se possa fazer uma investigação bem mais adequada sem a necessidade da prisão temporária. Essa medida é nada mais, nada menos do que um instrumento intimidador”, diz o advogado Fabio Menezes Ziliotti.

Um caso recente ilustra esse problema: em abril, um professor foi preso por um crime que havia sido cometido a 200 quilômetros de sua casa e de seu trabalho. A prisão temporária foi decretada apenas com base no reconhecimento fotográfico do homem pela vítima, e o Tribunal de Justiça de São Paulo soltou o acusado após pedido de Habeas Corpus.

Como se nota em outros casos semelhantes (HC 192.778, por exemplo), o reconhecimento pessoal ou fotográfico, que não tem eficácia comprovada e é questionado inclusive por membros do Ministério Público, é utilizado como “fundada razão de autoria” e respalda detenções temporárias.

Outra situação criticada por advogados é a prisão temporária que visa ao depoimento, o que é considerado ilegal. No dia a dia, todavia, é difícil fiscalizar se, de fato, o investigado é instado a depor logo após o cumprimento da medida cautelar.

Ziliotti propõe uma reflexão para demonstrar o tamanho do problema e a ineficácia da prisão temporária: “Quando o acusado é preso temporariamente, ele tem direito ao silêncio. E esse silêncio não pode ser utilizado em prejuízo do mesmo. Por isso a prisão temporária é desnecessária no Estado de Direito”.

Mesmo com o respaldo da lei pelo Supremo, “acredito que ela tem uma convivência que não merece prestígio porque não traz, concretamente, juízo de cautelaridade”, afirma Renato Vieira.

“O Supremo Tribunal Federal, para dizer que a lei de prisão temporária é constitucional, teve de se valer de argumentos próprios e específicos de prisão preventiva”, complementa o presidente do IBCCRIM.

A ideia da prisão para averiguação acabou rechaçada pela corte, mas a sua natureza cautelar e a própria eficácia do instituto não foram devidamente esclarecidas. “Se desde 1989 havia um vício de origem por ela suceder uma medida provisória, e havia o risco de ela ser vista como sucedâneo de prisão para averiguação, no frigir dos ovos, a prisão temporária não tem autonomia para subsistir em um regime de cautelaridade”, diz Vieira.

Útil, porém defasada

Logo que o Supremo estabeleceu as novas diretrizes para a prisão temporária, de certa forma tentando afastar do mecanismo a pecha de “prisão para averiguações”, o procurador Galtiênio da Cruz Paulino questionou, em artigo publicado na ConJur“Afinal, ainda existe prisão temporária?”.

Para Paulino, que também é membro-auxiliar na Assessoria Criminal do Superior Tribunal de Justiça, a existência de uma vertente da prisão preventiva “muito parecida” com a temporária esvaziou o instituto, mas ele ainda permanece com suas funções.

“Em determinados casos é necessária a prisão do investigado para colheita de provas relacionadas àquele fato, tanto que a prisão temporária tem tempo, e se o objetivo é atendido, a pessoa pode sair. A intenção em si não é forçar que alguém venha a tomar alguma outra atitude”, diz ele, discordando da argumentação de que o instituto é utilizado para coagir os investigados.

Paulino, no entanto, endossa a crítica de que o texto está defasado. Para ficar em um exemplo, a lei cita “quadrilha e bando” quando já há lei específica sobre organizações criminosas.

“O instituto e as nomenclaturas dispostas na lei são arcaicos”, diz o advogado Eugênio Malavasi, que não entende por que a prisão temporária permanece no ordenamento e sendo aplicada pelos juízos.

“Já se pode decretar prisão preventiva no curso das investigações, para garantir a investigação. Portanto, tornar-se-á despiscienda a lei da prisão temporária.”

Galtiênio Paulino cita mais um exemplo de obsolescência: “Se pegarmos na literalidade em si, alguns dispositivos já não poderiam ser aplicados. Se a gente pegar a decisão do Supremo, em tese, não caberia mais prisão temporária para crimes de organização criminosa, por exemplo”.

O procurador também destaca que, após a decisão do Supremo, não cabe mais o uso do mecanismo em determinados crimes que não têm pena maior do que quatro anos, tendo em vista que o tribunal determinou a aplicação do artigo 313 do Código de Processo Penal (que estabelece os parâmetros da prisão temporária).

“Tem alguns crimes na Lei 7.960 em que a pena é menor do que quatro anos. Ou seja, em tese, já que o Supremo mandou aplicar o artigo 313, não caberia mais a temporária para esses crimes”, diz Paulino, citando o caso do crime de sequestro e cárcere privado, que, pela lei, também não é passível de decretação de temporária.

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Entidades parafiscais pedem que STJ estenda tese sobre contribuição ao Sistema S

Em embargos de declaração, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça terá a oportunidade de reavaliar se o fim do teto de 20 salários mínimos para a base de cálculo das contribuições ao Sistema S deve ser aplicado para todas as entidades parafiscais.

O pedido foi feito, até o momento, em petições da Apex-Brasil, em causa própria, e do Sebrae, em favor de todas as entidades que, em teoria, poderiam ser beneficiárias da tese vinculante firmada pelo colegiado.

Sebrae entende que também é merecedor do fim do limite de 20 salários mínimos – Divulgação

Elas fazem parte do grupo de entidades privadas que atuam em prol do interesse público e que, por esse motivo, são destinatárias dos valores recolhidos das empresas, a depender do ramo produtivo em que se inserem.

Seis dessas entidades atuaram no julgamento da 1ª Seção como amici curiae (amigas da corte), o que as habilita a ajuizar embargos de declaração.

 

A extensão da tese chegou a ser debatida, em voto-vista do ministro Mauro Campbell. Ele propôs eliminar o limite de 20 salários para contribuições voltadas ao custeio de outras onze entidades parafiscais:

  • Salário-Educação
  • Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA
  • Diretoria de Portos e Costas do Ministério da Marinha – DPC
  • Fundo Aeroviário
  • Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas – SEBRAE
  • Serviço Nacional de Aprendizagem Rural – SENAR
  • Serviço Social do Transporte – SEST
  • Serviço Nacional de Aprendizagem do Transporte – SENAT
  • Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo – SESCOOP
  • Agência de Promoção de Exportações do Brasil – APEX-Brasil
  • Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial – ABDI

A maioria no STJ, no entanto, entendeu que o recurso devolvido para aplicação se restringiria apenas à situação das integrantes do Sistema S, conforme o voto da ministra relator Regina Helena Costa.

Teses filhotes

Seria possível estender a tese também porque a lei que fixou o limite de 20 salários mínimos tratou, genericamente, de “contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros”. Assim, o que vale para o Sistema S seria válido também para as demais.

Evitar a extensão certamente vai gerar o fenômeno das teses-filhotes: cada uma das 11 entidades não agraciadas terá de defender nas instâncias ordinárias a posição, até eventualmente chegar ao STJ, para uniformização.

“A limitação ao Sistema S clássico inclusive não trará pacificação social ou jurisprudencial, considerando que quase a totalidade dos processos suspensos/sobrestados pelo tema 1.079 tratam de diversas exações”, diz a petição do Sebrae.

Já a Apex-Brasil informa que está em situação idêntica às entidades do Sistema S, na condição de destinatária das contribuições parafiscais devidas a terceiros. Assim, as razões de decidir serão fatalmente as mesmas.

A entidade destaca que não inclui-la na tese vai deixar margem para que empresas continuem ajuizando ações com o objetivo de limitar as contribuições, o que vai movimentar a máquina do Judiciário indevidamente e impedir a pacificação necessária.

REsp 1.898.532
REsp 1.905.870

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Mudança cultural e reforma na lei fazem explodir as recuperações extrajudiciais

Uma recente mudança na cultura de consensualismo no Brasil fez com que os números de pedidos de recuperações extrajudiciais explodissem nos últimos três anos. Esse aumento também é um resultado da reforma da Lei de Falências, que entrou em vigor em 2021.

Impulsionado por mudanças culturais e legislativas, número de recuperações extrajudiciais disparou nos últimos 3 anos – Mteerapat/Freepik
 

Dados colhidos pelo Observatório Brasileiro de Recuperações Extrajudiciais (Obre) mostram que, entre 2006 e 2024, houve 138 pedidos desse tipo de ferramenta empresarial, sendo que 84 deles (61%) foram registrados após a mudança na lei.

 

 

 

Outro número que mostra esse crescimento é o total de pedidos por ano. Em 2021 e 2022, houve 17 pedidos em cada ano. Em 2023, esse número saltou para 40 (aumento de 135%), e em 2024 já foram feitas dez solicitações de homologação de pedido de recuperação extrajudicial  a mais ruidosa delas foi a do Grupo Casas Bahia, que tenta organizar uma dívida de mais de R$ 4 bilhões.

Somente em São Paulo foram registrados 40 pedidos desde a reforma — entre 2006 e 2021, foram apenas 27 as solicitações no estado. Os paulistas lideram o ranking de pedidos, seguidos do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul. Em termos de valor das causas, o Rio está à frente, com mais de R$ 2 bilhões em média por processo.

 

Reorganização financeira parcial

A recuperação extrajudicial funciona como uma espécie de reorganização financeira parcial da empresa. É menos burocrática e mais barata do que a recuperação judicial, já que não precisa de intervenção constante do Judiciário, que é o responsável pela sua homologação. O plano extrajudicial permite que as empresas negociem com os credores (ou pelo menos com os que julgam serem os mais importantes) de forma autônoma e sem determinadas amarras, sem prejuízo de uma posterior decretação de recuperação judicial ou falência.

São fortes os indícios no Judiciário de que as empresas têm preferido tentar resolver seus problemas financeiros pela via extrajudicial antes de apelar a um plano de RJ. No entanto, o instituto tem algumas limitações. Créditos trabalhistas (com algumas exceções), tributários e oriundos de cessão ou alienação fiduciária não estão sujeitos à recuperação extrajudicial. E determinados tipos de empresas, como as que operam planos de saúde, não podem requerer o instrumento.

“Até a reforma, a gente tem um número bastante pequeno de recuperações extrajudiciais. A partir da mudança, alguns ajustes foram feitos e as extrajudiciais começaram a ficar mais interessantes, até porque a lei incentiva a autocomposição do devedor com seus credores”, comenta a advogada Juliana Biolchi, especializada no tema e diretora-geral do Obre. Ela cita a reforma de 2021 como um fator que mudou a cultura empresarial e impulsionou as recuperações extrajudiciais.

A mudança na norma promoveu certos incentivos ao instrumento, como a redução do quórum mínimo para a aprovação do plano e a simplificação dos processos, suprimindo obrigações como a de publicar o edital de convocação dos credores em jornal de grande circulação. O texto também estabeleceu a possibilidade de stay period (suspensão das ações e execuções) no instituto.

“Estamos começando a ver os resultados da reforma agora”, diz Juliana. “É uma mudança cultural. Um movimento lento, porém dentro de um conserto maior de incentivo à autocomposição que existe em todo o Direito. Um movimento paulatino e orgânico.”

Esse crescimento ocorre ao mesmo tempo em que o próprio Judiciário faz um esforço para impulsionar soluções consensuais, retirando certas responsabilidades da Justiça, que está abarrotada e onde o tempo de tramitação é relativamente alto. Segundo Juliana, a ascensão das recuperações extrajudiciais se deve a uma soma de fatores, como a tentativa de contorno dessa morosidade e um incentivo maior ao protagonismo das partes na solução de conflitos.

“O mercado está consciente de que o tempo do Judiciário, em alguns casos, não atende à celeridade necessária para que as operações sejam exitosas, e isso faz com que busquem formas alternativas de autocomposição — sem deixar de observar a segurança jurídica necessária ao cumprimento das condições de pagamento propostas”, diz a advogada Lívia Gavioli Machado, especializada em insolvência. “O que se busca é a segurança jurídica através da chancela judicial, de outro modo seria apenas um acordo privado. Contudo, o grande desafio está no equilíbrio entre a autonomia da vontade das partes e a mínima intervenção do Poder Judiciário.”

 

Negociação em foco

Está consolidado no imaginário popular que o Poder Judiciário é uma espécie de arena em que dois polos se enfrentam. Ocorre que esse embate muitas vezes é lento, caro e prejudicial para todos, incluindo a própria Justiça.

Não foi à toa que a reforma de 2021 impulsionou as negociações entre credores e devedores. Nessa esteira, já surgiram iniciativas semelhantes em outras áreas, como a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso) e o Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal Superior do Trabalho (Cejusc/TST).

“A recuperação judicial ‘vingou’ mais em 2005 (ano de aprovação da Lei de Falências) do que a extrajudicial porque a gente nunca teve uma cultura de negociação em que pudesse ter o ganha-ganha. Essa cultura foi amadurecendo a partir da recuperação judicial. Não estamos tão maduros assim, mas já está melhor”, afirma a advogada Tatiana Flores, sócia do escritório LDCM Advogados.

Ela cita como um exemplo prático os grandes bancos, que, via de regra, são inflexíveis quando estão na posição de credores. No entanto, segundo Tatiana, as instituições financeiras começaram a perceber que estavam perdendo tempo e dinheiro em recuperações judiciais que, muitas vezes, terminavam em negociação entre as partes.

A advogada diz que o caso do Grupo Casas Bahia é um marco por causa desse movimento. “Instituições absolutamente tradicionais como o Banco do Brasil e o Bradesco (principais credores da varejista) já começaram a sua negociação. Ou seja, elas já previram que uma reestruturação organizada e bem feita vai ser melhor para elas. Isso mostra que você pode ter uma situação mais célere para o credor e para o próprio devedor.”

“Ainda que os empresários utilizem das medidas de recuperação para superar uma crise financeira, mesmo com tais remédios é necessário negociar”, afirma o advogado Bruno Boris, professor de Direito Empresarial da Universidade Presbiteriana Mackenzie. De acordo com ele, os empresários perceberam que, com a recuperação extrajudicial, há mais possibilidades de manter a atividade econômica de seus negócios.

“O devedor sabe que não pode pedir um deságio tão considerável que valha mais a pena para o credor optar pela quebra da empresa, mas também não tão insignificante que não lhe permita transpor esse momento complicado. Isso exige concessões mútuas e muito do know-how desenvolvido na cultura da mediação e conciliação é aplicado nessas situações”, diz Boris.

João Loyo de Meira Lins, sócio do Serur Advogados, é mais pragmático quanto à influência dos mecanismos de solução de conflitos no crescimento das recuperações extrajudiciais. Para ele, as vantagens do acordo para as partes ainda norteiam esse movimento, e não necessariamente a ampliação de uma cultura de consensualismo.

“Essas mudanças normativas podem, é verdade, contemplar questões ligadas à busca por autocomposição e até mesmo pela redução da intervenção judicial”, afirma Lins. “Mas, aparentemente, elas surtem efeitos concretos quando o direito posto passa a prever condições e mecanismos que sinalizam para as vantagens do acordo no caso concreto. A mera menção a valores abstratos de consensualismo, seja na lei ou na jurisprudência, ainda não parece suficiente para criar essa cultura em um Brasil tradicionalmente marcado pela litigiosidade.”

 

As discussões a partir do crescimento

O crescimento das recuperações extrajudiciais trouxe consigo o aumento de questionamentos de certas práticas, tendo em vista que o instituto nunca foi tão utilizado quanto é hoje. Lívia Gavioli afirma que há a necessidade de cautela na negociação entre devedores e credores, em especial na modalidade impositiva, para evitar distorções.

“Em que pese a celeridade almejada através da composição anterior com os credores de cada espécie, não é possível deixar de observar que, na modalidade impositiva, as condições apresentadas se aplicam a todos os credores sujeitos, mesmo os não aderentes. Isso demanda atenção, não só aos requisitos formais, dispostos nos artigos 162 a 164, mas também o cuidado na análise da origem dos créditos para garantir que todos os aderentes, de fato, são credores”, alerta ela.

Segundo a advogada, o juiz deve dispor de um auxiliar para analisar os documentos, para, dessa maneira, diminuir as assimetrias e permitir “que todos os credores tenham elementos suficientes para apresentar as eventuais impugnações”.

Meira Lins, por sua vez, diz que, a despeito do nome, o instituto não deixa de ser um processo judicial. “Existe, portanto, menos controle, tanto pelo Judiciário quanto pelos demais credores, das etapas que antecedem a apresentação e a homologação do plano. Isso se reflete em discussões sobre possíveis fraudes e nulidades ou o direito de impugnação ao plano por aqueles credores que se sentirem prejudicados.”

Já Tatiana Flores aponta um questionamento em relação à doutrina que tem sido frequente: o uso do financiamento DIP (debtor-in-possession, na sigla em inglês) para os devedores em recuperação extrajudicial. O termo diz respeito à possibilidade de contratação de financiamento por empresa que tenta se reestruturar.

“Ainda há dúvida sobre o DIP em casos extrajudiciais. Tem fundamento legal, mas a questão toda é a consequência disso, que é pensar um instrumento da recuperação extrajudicial de forma finalística. Lembrando que, diferentemente da RJ, se não homologar, a empresa não vai falir.”

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Juiz reconhece direito de dependente químico a auxílio do INSS

O trabalhador que tem dependência química e desenvolve transtornos mentais e comportamentais por causa do uso de drogas tem direito ao auxílio por incapacidade temporária, desde que seja segurado e esteja dentro da carência necessária no momento do requerimento do benefício.

Com base nesse entendimento, o juiz José Luis Luvizetto Terra, da 4ª Vara Federal de Passo Fundo (RS), reconheceu o direito de um segurado do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) ao benefício desde a data em que fez o requerimento administrativo.

No caso concreto, o autor da ação estava internado em um hospital psiquiátrico para reabilitação e não teve condições de comparecer à perícia médica marcada pelo INSS — que deve ser feita presencialmente.

Uma perícia posterior constatou que o trabalhador sofre de transtornos mentais e comportamentais provocados pelo uso de cocaína — síndrome de dependência. Em razão dessa patologia, ele estava temporariamente incapacitado para o trabalho desde 10 de maio 2023.

Ausência justificada

Na decisão, o juiz destacou que o autor comprovou que não compareceu à perícia por estar internado e que, por isso, deveria receber os valores referentes ao benefício desde 17 de maio de 2023 — quando fez o requerimento administrativo.

O julgador também entendeu que a data indicada pela perícia para o fim do pagamento do benefício (10 de janeiro de 2024) vedou o direito do autor de pedir a prorrogação do auxílio administrativamente. Por isso, ele determinou a sua implantação e manutenção por mais 60 dias.

“Registro que é facultado à parte demandante, caso entenda persistir sua incapacidade para o trabalho, requerer a prorrogação do auxílio por incapacidade temporária, na forma prevista no regulamento, ocasião em que será submetida a uma nova perícia administrativa, ficando o amparo automaticamente prorrogado até o dia da avaliação médica.”

O autor foi representado pelos advogados Jane Marisa da SilvaGuilherme Henrique Santos da Silva e Luccas Beschorner de Souza, do escritório JMS Advogados.

Processo 5005900-49.2023.4.04.7104

Fonte: Conjur

Dia das Mães trabalho invisível e dupla jornada

A ideia de comemorar o Dia das Mães surgiu nos Estados Unidos, no início do século 20, com Anna Jarvis, cujo intento era homenagear a sua mãe, Ann Jarvis, conhecida por realizar trabalho social com outras mães, no período da Guerra Civil Americana [1].

No Brasil, o dia foi oficializado na década de 1930, pelo Decreto nº 21.366/32, instituído por Getúlio Vargas, ao considerar que “um dos sentimentos que mais distinguem e dignificam a espécie humana é o de ternura, respeito e veneração, que evoca o amor materno”.

Mas será que esse amor materno, muitas vezes chamado de instinto maternal, que designa um amor puro e incondicional, realmente existe, ou é uma invenção moderna, construído a partir de uma sociedade patriarcal, que impõe às mulheres a obrigação e a responsabilidade pelos cuidados com os filhos e a família?

Frases frequentemente ouvidas, como “mãe só tem uma” ou “ser mãe é padecer no paraíso”, valorizam a importância materna, como se a mãe fosse insubstituível no dever de amar os filhos e na obrigação de realizar todas as tarefas decorrentes dessa “atribuição natural”, que ao final, só lhe trará felicidade!

Aliás, segundo a visão tradicional, a maternidade é elemento essencial da identidade feminina, de forma que a mulher só seria genuinamente plena ou conheceria o amor verdadeiro após ser mãe!!!

Trabalho invisível

No próximo domingo, dia 12 de maio, muitas famílias comemorarão o Dia das Mães, com almoços e presentes, sem, no entanto, lembrar que as mulheres são responsáveis por mais de 75% do trabalho não remunerado, conforme o relatório “Tempo de cuidar: o trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global de desigualdade”, realizado pela Oxfam Brasil[2].

Segundo a OIT, o trabalho de cuidado não remunerado, também conhecido como trabalho invisível, consiste na prestação de cuidados diretos, pessoais e relacionais, como alimentar uma criança ou cuidar de um familiar doente; e, no exercício de cuidados indiretos, como cozinhar, limpar e lavar.

A prestação desses cuidados não remunerados é considerada trabalho e contribui de maneira significativa para a economia do país, assim como para o bem-estar individual e da sociedade [3].

Portanto, o trabalho invisível, normalmente atribuído às mulheres, é aquele que garante a sobrevivência das pessoas, a manutenção do lar, e o apoio àqueles que dependem de suporte material ou emocional.

Dupla jornada e discriminação

A realização do trabalho invisível e a necessidade de garantir a subsistência própria e da família com o trabalho produtivo acarretam a conhecida dupla jornada, já que além de executar atividades remuneradas, as mulheres ainda acumulam a responsabilidade pelas atividades reprodutivas (de trabalhos domésticos e de cuidados).

A Convenção nº 156 da OIT, relativa à Igualdade de Oportunidades e de Tratamento para Homens e Mulheres [4], ainda não ratificada no país, determina que os trabalhadores com responsabilidades familiares e que possuam dependentes não sejam alvo de discriminação.

O objetivo principal da convenção é erradicar a exclusão de trabalhadoras e trabalhadores que enfrentam dificuldades para conciliar a vida familiar e o trabalho, além de criar políticas e medidas de igualdade de oportunidades de forma a evitar que os encargos familiares sejam um empecilho para a participação plena e equitativa no mercado de trabalho.

Diante dessa complexa realidade, que impõe às mulheres a felicidade plena com a maternidade, mas também o sacrifício com a sobrecarga de trabalho e a dupla jornada, compete às famílias, neste dia de comemoração, refletir sobre o verdadeiro papel de cada um no exercício do trabalho de cuidado.

Feliz Dia das Mães.


[1] https://brasilescola.uol.com.br/datas-comemorativas/dia-das-maes.htm

[2] https://www.oxfam.org.br/blog/o-papel-da-multiplicacao-de-riquezas-na-evolucao-das-desigualdades/

[3] https://webapps.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—europe/—ro-geneva/—ilo-lisbon/documents/publication/wcms_767811.pdf

[4] A Convenção n. 156 da OIT foi adotada pela Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho na sua 67ª sessão, em Genebra, em 23 de junho de 1981, entrando em vigor na ordem internacional, em 11 de agosto de 1983. A referida Convenção ainda não foi ratificada pelo Brasil, mas já teve seu processo iniciado, em março de 2023, com a assinatura de mensagem do Presidente da República ao Congresso Nacional (https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/despachos-do-presidente-da-republica-468754338)

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Judiciário usa controle difuso para conceder progressão sem exame criminológico

Ministros, desembargadores e juízes de primeira instância estão autorizando progressões de regime sem que os presos sejam obrigados a passar por exame criminológico. A exigência do laudo consta na recém-sancionada Lei 14.843/2024, cujo objetivo principal era proibir as saídas temporárias, popularmente conhecidas como “saidinhas”.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou o trecho do texto que barra as saidinhas, mas a obrigatoriedade do exame criminológico para a progressão de regime foi mantida.

A obrigação, que havia sido extinta em 2003 e agora está de volta, causa controvérsia. Criminalistas consideram que ele é inviável e tende a barrar a progressão, uma vez que o Estado não tem condições de promover os exames para todos os presos que têm direito ao benefício.

E o próprio ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, falou em um evento sobre o custo elevado do exame, que consiste em uma avaliação psicológica para avaliar se o condenado tem chances de cometer novos crimes caso passe para o regime aberto ou o semiaberto.

Juízes consideram inconstitucional

Embora a lei tenha sido sancionada há menos de um mês, já começaram a surgir decisões contra a necessidade do exame. Em uma delas, o juiz André Luís Bastos, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 10ª Região, em Sorocaba (SP), afirmou que a medida é “incidentalmente inconstitucional” (clique aqui para ler a decisão).

De acordo com ele, a nova obrigação fere o princípio constitucional da individualização da pena, uma vez que impõe “genérica e indistintamente” o exame criminológico a todos os reeducandos, “em flagrante desprezo à análise individual e concreta de cada caso, de acordo com a natureza do crime, e, especialmente, histórico carcerário do indivíduo”.

“Em que pese o posicionamento sustentado pelo Parquet, este magistrado entende incidentalmente inconstitucional a nova redação conferida ao artigo 112, §1º, da Lei de Execução Penal, acrescentado pela Lei nº 14.843/2024, tendo em vista que fere o princípio constitucional da individualização da pena”, sustentou o julgador.

Já o juiz Davi Marcio Prado da Silva, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 3ª Região, em Bauru (SP), citou trecho da Súmula Vinculante 26 do Supremo Tribunal Federal, que considera inconstitucionais situações em que o princípio da individualização da pena deixa de ser observado (clique aqui para ler a decisão).

“A exigência indiscriminada e abstrata, sem fundamentação idônea e sem a indicação de base empírica que revele elementos concretos de gravidade, personalidade ou outras circunstâncias recentes, que em tese, possam vir a desabonar a progressão de regime, viola o texto constitucional, com o qual se incompatibiliza a exigência indiscriminada de realização prévia de exame criminológico”, afirmou ele na decisão.

O juiz citou como precedente a Reclamação 29.527, em que a 2ª Turma do Supremo entendeu que decisões que determinam o exame criminológico como condição para a progressão de regime violam a Súmula 26.

Outra sentença contra a obrigatoriedade foi dada pela juíza Renata Biagioni, também de Bauru, que foi mais uma a alegar violação à Súmula 26 (clique aqui para ler).

“A novel previsão legislativa, a despeito de expressar aparente prestígio à individualização da pena, ao tornar o exame condicionante prévia da progressão (o novo texto não contempla sequer a expressão ‘quando necessário’, contida no texto original do art. 112 da LEP), importa em verdadeiro desprestígio ao sistema progressivo, e, consequentemente, ao princípio da individualização da pena”, disse ela.

Irretroatividade

O juiz José Roberto Bernardi Liberal, do Departamento Estadual de Execução Criminal da 6ª Região, em Ribeirão Preto (SP), analisou um caso parecido por outro ângulo.

Ele entendeu que a nova norma só pode ser aplicada contra condenados por crimes que foram praticados depois da entrada em vigor da lei.

Quanto aos demais casos, inclusive no que se refere a pedidos de progressão feitos depois de a norma passar a vigorar, cabe a regra anterior da Lei de Execuções Penais, segundo o julgador. Ou seja, não há a obrigatoriedade do exame (clique aqui para ler a decisão).

“A regra prevista no artigo 122, parágrafo 2º, da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei nº 14.843/2024, aplica-se somente aos condenados que cometeram infração penal a partir da sua vigência; quanto aos demais, incide a regra anterior”, afirmou Liberal.

Controle difuso

Conforme explicou à revista eletrônica Consultor Jurídico a constitucionalista Vera Chemim, os juízes de primeira instância podem contrariar trechos de uma norma por meio do chamado controle difuso de constitucionalidade.

O controle difuso não se destina especificamente a declarar a inconstitucionalidade de uma norma, mas apenas a afastar a sua incidência em um caso concreto, segundo a constitucionalista.

“Diferentemente do controle abstrato (ou concentrado) de constitucionalidade, em que o colegiado do STF ou do STJ, por exemplo, tem competência para declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica, o controle difuso tem natureza subjetiva (envolve pessoas) e, portanto, limita-se a analisar o caso concreto por meio de um juiz ou tribunal.”

A inconstitucionalidade de uma norma só pode ser declarada pelos órgãos colegiados do Judiciário elencados no artigo 92 da Constituição, e a partir do voto da maioria de seus integrantes.

Assim, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal pode declarar a inconstitucionalidade de parte ou de toda uma lei federal com base na Constituição. Tribunais de Justiça, por outro lado, podem fazer o mesmo quanto a uma lei estadual.

“O juiz singular, por outro lado, só poderá solucionar a demanda, sem declarar a inconstitucionalidade de parte da Lei das Saidinhas, a depender da sua interpretação sobre cada caso concreto”, explica Vera Chemim.

No TJ-SP, entendimentos conflitantes

No Tribunal de Justiça de São Paulo há decisões conflitantes sobre o tema, com diferentes marcos temporais utilizados para manter ou derrubar a progressão de regime.

No último dia 3, por exemplo, a 7ª Câmara de Direito Criminal da corte paulista aplicou a nova lei ao dar provimento a um recurso interposto pelo MP em março — antes, portanto, da vigência da norma, que é de 11 de abril. O MP pediu a anulação de uma progressão de regime sem exame concedida em primeira instância.

No acórdão, a fundamentação é toda baseada na lei deste ano. “Com o advento da Lei nº 14.843/24, a realização de exame criminológico que antes era facultativa e demandava justificativa no caso concreto passou a ser obrigatória”, sustentou o desembargador Mens de Mello, relator do caso.

“Em se tratando de norma processual, vige o princípio tempus regit actum, ou seja, aplica-se de imediato aos feitos em andamento”, prosseguiu o desembargador ao votar pela derrubada da progressão de regime solicitada pelo preso (clique aqui para ler o acórdão).

Já a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP decidiu em sentido oposto em outro caso. Em 29 de abril, o colegiado deu provimento a um recurso apresentado por um condenado que teve a progressão de regime negada em primeira instância.

Em seu voto, o desembargador Amable Lopez Soto entendeu que a nova lei não pode ser aplicada nas progressões de regime solicitadas antes da entrada em vigor da norma (clique aqui para ler o acórdão).

“A exigência de exame criminológico, que antes era mera faculdade a ser avaliada no caso concreto, afigura-se mais gravosa ao sentenciado e, portanto, não pode retroagir para alcançar pedido de progressão anteriormente formulado, caso dos presentes autos.”

STJ começa a receber casos

A discussão já chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde também há entendimentos divergentes sobre o tema. Em 23 de abril, a ministra Daniela Teixeira concedeu, de ofício, ordem em Habeas Corpus para autorizar uma progressão de regime sem exame mesmo com a nova lei já em vigência.

“Apesar da recente Lei 14.843/24 ter incluído o §1º ao art. 112 da Lei de Execução Penal (…), ela só entrou em vigor em 11 de abril de 2024 e o pedido formulado pelo paciente foi em 17 de janeiro de 2024. Portanto, a nova lei, mais grave, não pode retroagir para prejudicá-lo”, escreveu a ministra (clique aqui para ler a decisão).

O ministro Reynaldo Soares da Fonseca, por sua vez, entendeu de maneira diferente no julgamento de outro caso. “Não há como se desconsiderar a recente alteração legislativa promovida pela Lei 14.843/2024, que dentre as modificações promovidas na Lei de Execução Penal, passou a considerar obrigatória a realização do exame criminológico para aferir o direito do executado à progressão de regime” (clique aqui para ler a decisão).

“A decisão de 1º grau aqui atacada data de 23/04/2024, quando já havia entrado em vigor a Lei n. 14.843/2024, e é plausível supor que, mesmo não tendo feito alusão expressa à nova norma legal, tenha sido esse o mote que levou o Juízo de Execução a reiterar a necessidade do exame, tanto mais quando se sabe que todas as leis são dotadas de presunção de constitucionalidade.”

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Apropriação do patrimônio indígena: saga dos 607 artefatos retidos na França

Sem alarde, uma coleção de 607 objetos de grande valor cultural, pertencentes a mais de 50 etnias indígenas brasileiras, deve retornar ao Brasil nos próximos meses, depois de indevidamente retidos por mais de uma década em um museu na França.

São troncos de Kuarup, máscaras, cocares, mantos, adereços, instrumentos musicais, cestarias, armas, esculturas e outros itens etnográficos que finalmente foram devolvidos pelo Museu de História Natural e Etnografia da cidade de Lille, após negociação conduzida pela Embaixada do Brasil na França, em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

A saga dos itens indevidamente apropriados começou em meados de 2003, quando representantes do Museu de Lille adquiriram, de uma loja comercial em São Paulo, um conjunto de peças etnográficas “visando o enriquecimento de seu acervo” [1].

O vendedor não estava cadastrado junto à Funai e os representantes franceses não atentaram para o fato de que os itens eram compostos por partes derivadas de espécies ameaçadas de extinção da flora e da fauna silvestre brasileira, situação que enseja a aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), aprovada em 1973. A Convenção e seu regulamento no Brasil [2] autorizam a exportação temporária desses itens “somente para intercâmbio científico e cultural, ouvida a Funai”.

A “solução” encontrada à época foi a doação do acervo ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, seguida da assinatura, em novembro de 2004, de um contrato de comodato com prazo de cinco anos, renovável por igual período, pelo qual o Museu de Lille levaria a coleção para exibi-la e, após o prazo acordado, devolveria o acervo ao Brasil. O contrato previa expressamente que a prefeitura francesa deveria arcar integralmente com as despesas de transporte, seguro e devolução dos objetos ao museu brasileiro.

‘Esquecimento’ e litígio

Acontece que o tempo passou e o museu francês parece ter “esquecido” do compromisso de devolver os itens. Não se teve nem mesmo notícia de que as peças chegaram a ser exibidas, como havia prometido a Prefeitura de Lille no pedido de ajuda para o desembaraço feito à Funai.

O esquecimento só veio à tona porque a loja vendedora dos itens foi autuada pela Receita Federal por “descumprimento ao regime de exportação temporária” e entrou com ação contra a Funai, alegando que havia sido ela a intermediária do negócio.

Peça do acervo que será repatriado – Funai

A Justiça Federal remeteu o processo ao Ministério Público para manifestação, e o procurador regional oficiante comunicou o fato à Procuradoria da República no Rio de Janeiro em 2015, quando então foi instaurado inquérito civil para obter o regresso dos 607 itens.

Nos últimos nove anos, inúmeras reuniões e trocas de comunicações foram feitas, envolvendo o MPF, Funai, Itamaraty e o próprio museu francês. Inicialmente, o museu pleiteou a renovação do empréstimo, afirmando que “a coleção já fazia parte do patrimônio de Lille” [3].

Depois, diante da recusa da Funai em prorrogar o contrato e da entrada do MPF no caso, a prefeitura francesa indicou um escritório no Brasil para defender seus interesses. Após poucos meses, contudo, destituiu os representantes brasileiros, situação que obrigou o Itamaraty a contratar um escritório na França para dialogar com os advogados locais apontados pela prefeitura.

Os advogados do museu, então, passaram a alegar que o contrato de comodato havia vencido em 2009, sem que houvesse renovação ou pedido de devolução por parte da Funai. Os representantes do museu ainda afirmaram que os itens custaram 94 mil euros e que a instituição não teria gastado tal importância “unicamente para que a coleção lhe fosse emprestada por cinco anos” [4].

Obrigação de devolver

Do ponto de vista do Direito Internacional, além da Cites, outros dois instrumentos ratificados pelo Brasil — a Convenção da Unesco sobre importação e exportação de bens culturais (1970) e a Convenção de Unidroit sobre bens culturais ilicitamente furtados (1995) — garantem o regresso dos bens culturais ao seu local de origem, independentemente da boa-fé do adquirente.

Vale citar, também, a Lista Vermelha brasileira, elaborada pelo Conselho Internacional de Museus (Icom), que traz, em sua categoria de bens etnográficos em risco para o tráfico ilícito, um pequeno número ilustrativo de itens mais demandados no mercado internacional de arte, como os que são da coleção em devolução pelo Museu de Lille. Portanto, o vínculo lógico e legal entre apropriação indevida e devolução de patrimônio cultural é evidente. Se a apropriação dos bens for ainda ilegal, existe a obrigação de devolvê-los, como neste caso.

É importante mencionar ainda a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, segundo a qual é direito destes povos controlar o uso do seu patrimônio cultural, inclusive para “praticar e revitalizar suas tradições e costumes culturais”.

Cabe, assim, aos estados, concederem “reparação por meio de mecanismos eficazes que podem incluir a devolução”, ainda que a expropriação tenha sido lícita e independente das intenções maculadas por um suposto investimento de manutenção de salvaguarda da coleção.

Custo da repatriação

No caso das 607 peças apropriadas, em novembro de 2018, o museu francês mudou a orientação e passou a admitir a devolução, desde que ela fosse integralmente custeada pelo Estado brasileiro. Entre litigar em um tribunal francês pleiteando o cumprimento do contrato ou suportar integralmente os custos da repatriação, a Funai optou pela segunda saída.

Assim, licitou e contratou empresa especializada na embalagem, transporte e desembaraço de obras de arte. Segundo informou recentemente o Museu do Índio ao MPF, as peças já foram todas cadastradas, higienizadas e se encontram em um depósito na França, aguardando liberação para retorno.

A negativa do museu de Lille em cumprir o contrato que ele mesmo havia assinado e a fragilidade do sistema jurídico internacional de transferência e devolução de bens culturais já custaram aos cofres públicos brasileiros mais de R$ 1,2 milhão, considerando os gastos com serviços de higienização, transporte, desembaraço aduaneiro e advocacia. Foi o preço necessário para que o Brasil obtivesse o retorno dos 607 artefatos etnográficos, atualmente em processo final de saída do território francês.

Outro caso

Outro exemplo de um bem etnográfico retido na Europa são os mantos da etnia Tupinambá, levados do Brasil ainda no século 17. Atualmente, existem apenas cinco deles em museus, na Dinamarca, Suíça, Bélgica, França e Itália. Um dos mantos será voluntariamente devolvido ao Brasil pelo Museu Nacional da Dinamarca (Nationalmuseet) e integrará, inicialmente, o acervo do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, já que o território da aldeia Tupinambá de Olivença, destinatário final da peça, ainda não foi demarcado, impossibilitando o uso do bem cultural por seu povo titular originário.

Segundo Maria Valdelice Amaral de Jesus, ou Jamopoty, em entrevista para a Agência Brasil [5], “o manto tem uma força espiritual dos nossos ancestrais que é para a demarcação desse território. Não devemos esquecer que esse território foi demarcado em 1926. E hoje a gente precisa demarcá-lo de novo.”

Observa-se então, uma prática emergente associada ao entendimento de haver uma obrigação com certos valores do patrimônio cultural, incluindo a identificação territorial e cultural, vinculada ao uso social dos mantos pelas comunidades, representando um costume ritualístico com suas ancestralidades a fim de justificar tais devoluções, como o vivenciado por Jamopoty, na França, ao usar o manto. Essas considerações éticas se aproximam da opinio juris necessitatis, condição necessária para a existência de um costume na comunidade internacional e para o sucesso na recuperação de bens apropriados indevidamente.

Assim como o caso dos mantos tupinambás, o esforço das autoridades brasileiras em recuperar o rico acervo etnográfico levado pelo Museu de Lille levanta discussões sobre práticas coloniais e decoloniais praticadas por museus de etnografia e história natural, possuidores de acervos retirados dos povos originários, adquiridos de forma lícita ou ilícita.


Notas:

[1] Ofício da Conselheira de Cooperação e Ação Cultural da Embaixada da França, datado de 29 de outubro de 2023, constante do Inquérito Civil do MPF.

[2] Portaria Ibama nº 93, de 07 de julho de 1998.

[3] Comunicação da Prefeitura de Lille ao Museu do Índio, de 23 de fevereiro de 2011.

[4] Manifestação do escritório francês de advocacia contratado pela Prefeitura de Lille, datada de 24 de setembro de 2018.

[5] Disponivel em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-09/museu-das-culturas-indigenas-exibe-manto-sagrado-tupinamba-ate-domingo#:~:text=Segundo%20Jamopoty%2C%20o%20manto%20ficará,território%20foi%20demarcado%20em%201926. Acessado em: Abr. 2024.

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TJ-RS suspende prazos processuais e só analisa medidas urgentes

Os prazos processuais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foram suspensos entre os dias 11 e 17 de maio, no primeiro e segundo graus de jurisdição. Só serão analisados atos de natureza urgente.

A medida foi tomada em um ato conjunto nesta segunda-feira (6/5), entre o presidente do TJ-RS, Alberto Delgado Neto, e a corregedora-Geral da Justiça, Fabianne Breton Baisch.

Tribunal de Justiça Rio Grande do Sul teve fornecimento de energia interrompido – Divulgação/CNJ

O Ato Conjunto 003/2024 determina a suspensão do expediente presencial do Poder Judiciário do estado do Rio Grande do Sul, dos serviços judiciais  nos dias 11 a 17 de maio de 2024, no primeiro e do segundo graus de jurisdição, mantido o serviço de plantão permanente.

Também ficou estabelecida a suspensão dos prazos processuais, jurisdicionais (cíveis e criminais) e administrativos, nos dias 11 a 17 de maio de 2024, inclusive, no âmbito dos primeiro e segundo graus de jurisdição, sem prejuízo da prática de ato processual de natureza urgente e necessário à preservação de direitos.

A medida levou em consideração que o sistema eproc está operando com infraestrutura reduzida, em face do desligamento do data center do prédio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em função do desligamento das bombas de escoamento da “Rótula das Cuias”, por intermédio do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) da Prefeitura de Porto Alegre, gerando inundação e interdição dos prédios.

A iniciativa também é proveniente dos reflexos da iniciativa da CEEE Equatorial Energia, que desligou o fornecimento de energia elétrica de toda a região próxima aos prédios do TJ e Foro Central, cujos sistemas passarão a funcionar através da geração de energia por combustão a diesel. Não é possível determinar por quanto tempo perdurará a inviabilidade do prédio do Foro Central II.

O ato também estabelece que , no período de 6 a 12 de maio de 2024, para restringir a sobrecarga ao sistema eproc, terão andamento processual somente as medidas de urgência, que tramitarão através dos serviços de plantão jurisdicional.

Ficam suspensas as audiências e sessões de julgamento em todas as suas modalidades, inclusive virtuais, designadas para o período entre os dias 7 a 17 de maio. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-RS.

Clique aqui para ler o ato conjunto

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Proteção legal do meio ambiente do trabalho no Brasil

Em termos de legislação ambiental o Brasil é um dos países mais avançados do mundo, o que ocorre também no aspecto do meio ambiente do trabalho. Com relação a este, o arcabouço legal consta da Constituição de 1988, que inovou a respeito, das várias Constituições estaduais, que seguiram a mesma linha, da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), da Consolidação das Leis do Trabalho — CLT (Capítulo V, que trata da segurança, higiene e medicina do trabalho e foi totalmente alterado em 1977 pela Lei n. 6.514), da Portaria nº 3.214/78, com várias Normas Regulamentadoras, das convenções coletivas de trabalho, das sentenças normativas proferidas pela Justiça do Trabalho nos Dissídios Coletivos de Trabalho e das Convenções da Organização Internacional (OIT). Para completar o arcabouço legal, têm-se ainda o Código Penal e leis esparsas cuidando da parte criminal, inclusive dos crimes ambientais.

Nosso objetivo é trazer para o leitor, neste e em próximos artigos, indicações dessa legislação, começando hoje pela Constituição de 1988, da qual se extrai que o mais fundamental direito do homem, consagrado em todas as declarações internacionais, é o direito à vida, suporte para existência e gozo dos demais direitos humanos.

Mas esse direito, conforme assegura a nossa Constituição no artigo 225, requer vida com qualidade e, para que o trabalhador tenha vida com qualidade é necessário que a ele sejam assegurados seus pilares básicos, que são trabalho decente e em condições seguras e salubres.

Daí por que assegura o artigo 1º da Constituição, como fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado democrático de Direito, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho, entre outros.

O artigo 170 da mesma Lei Maior, que cuida da ordem econômica no sistema capitalista, diz que a ordem econômica funda-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado como princípio a defesa do meio ambiente, do que se extrai que, em termos teóricos, a Carta Magna procurou compatibilizar a livre iniciativa para o desenvolvimento econômico com o respeito à dignidade humana no trabalho, o que significa dizer que o constituinte se norteou no princípio do desenvolvimento sustentado e sustentável.

Livre iniciativa

Em outras palavras, o constituinte de 1988 assegurou e incentivou a livre iniciativa econômica, respeitados os princípios que norteiam a dignidade da pessoa humana, no caso, o respeito ao meio ambiente do trabalho como direito fundamental.

O artigo 6º, que contém o chamado piso básico de direitos do cidadão, um dos mais importantes comandos constitucionais, relaciona como direitos sociais a educação, a saúdeo trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados e a moradia, na forma desta Constituição.

Quanto ao meio ambiente, no geral, o artigo 225 assegura que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público (§ 1º) promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente (inciso VI), sendo que as condutas e atividades consideradas lesivas a ele sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (§ 3º).

Com relação ao meio ambiente do trabalho, estabelece o artigo 7º da Lei Maior que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inciso XXII).

Como afirmou o saudoso professor Pedro Paulo Teixeira Manus (Direito do Trabalho. 4. ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 215/16) “o legislador constitucional posiciona-se pela defesa da saúde do trabalhador, o que não era explícito no texto anterior, bem como sublinha a necessidade de melhoria das condições de trabalho do ponto de vista da saúde dos que trabalham”.

O artigo 196 da Norma Maior, numa confirmação de que o Direito Ambiental do trabalho não é um mero direito trabalhista, diz que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, o que é completado pelo artigo 200, incisos II e VIII, que cometem ao Sistema Único de Saúde (SUS), além de outras atribuições, nos termos da lei, executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador, e colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Como se vê, é o meio ambiente do trabalho um dos mais importantes aspectos do meio ambiente, que, pela primeira vez na história do nosso sistema jurídico recebeu proteção constitucional adequada, a qual, no entanto, precisa sair do papel para a prática diária, o que somente será possível mediante reformulação de entendimentos clássicos que sempre prestigiaram as formas indenizatórias — insuficientes, por sinal — como o pagamento dos adicionais de insalubridade e de periculosidade. Mesmo indenizações por danos material, moral e estético não resolvem o problema, pois nada “paga” a vida de um ser humano e as consequências sociais e humanas decorrentes de um acidente laboral, sem se falar no grande custo para as empresas e para a economia do país.

Efetividade

Realmente, para assegurar a efetividade do direito ambiental do trabalho, além de outras providências de outros sujeitos da relação capital e trabalho, incumbe ao Poder Público promover educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.

Quanto aos aspectos reparatórios, estabelece o artigo 7º, inciso XXVIII, como direito do trabalhador, seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa, acolhendo em parte jurisprudência já firmada pelo STF, na Súmula nº 229, que, embora de forma mais restritiva, assegurava indenização do direito comum (arts. 159 do CC de 1916 e 186 do atual) ao trabalhador acidentado, em caso de dolo ou culpa grave do empregador, independentemente dos benefícios a cargo do órgão previdenciário oficial.

No inciso XXIII do artigo 7º, assegura a Constituição à reparação pelo trabalho penoso, insalubre e perigoso, mediante o pagamento de adicionais de remuneração.

Por fim, diz o artigo 5º (incisos V e X) que é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem e que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Há outras disposições constitucionais pertinentes aos temas do meio ambiente e da saúde do trabalhador, sendo estes os mais utilizados no dia a dia das demandas judiciais sobre ao assunto.

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Importância dos aspectos subjetivo, temporal e causal no seguro D&O

O seguro de responsabilidade civil para diretores e conselheiros (seguro RC D&O, no jargão empregado pela Susep) é, sem dúvida, um importante instrumento ao exercício dos atos de gestão das sociedades, que enfrentam uma crescente necessidade de proteção financeira contra eventuais reclamações decorrentes de suas ações e/ou omissões.

A complexidade do ambiente empresarial, aliada à variedade de situações que podem dar origem a essas reclamações, demandam uma análise meticulosa do escopo da cobertura comumente oferecida pelas apólices D&O.

A fim de, didaticamente, estruturar o que deve ser examinado pelo intérprete a fim de conhecer o alcance da cobertura contratada, três aspectos se afiguram de fundamental importância, quais sejam: o subjetivo, o temporal e o causal.

Os dois primeiros usualmente serão de solução mais fácil, por assim dizer, considerando que a análise será mais pragmática. Pelo primeiro — o vetor subjetivo —, deseja-se saber se a pessoa em xeque é ou não uma administradora (diretora, conselheira, CEO, CFO, COO, entre outras nomenclaturas possíveis).

O que se deseja conhecer quando se investiga esse primeiro vetor é se a pessoa implicada está em posição de exercer um ato de gestão em nome da sociedade, se a representa, para os fins de direito. Veja-se que o administrador poderá ser regulamente eleito (um diretor estatutário, por exemplo), ou, até mesmo, um diretor de fato, tudo a depender, nesse particular, dos termos da apólice convencionada.

Ainda com relação ao primeiro vetor, é importante ter em mente que o seguro D&O é, usualmente, contratado por uma empresa (tomador) por conta de seus administradores (os segurados). Não se trata, como o próprio nome do seguro explicita, de um seguro concebido para a tutela do patrimônio da pessoa jurídica (tomador), mas da pessoa física dos administradores — em inglês, directors and officers liability insurance. Há possibilidade jurídica de contratação diretamente pela física do administrador, nos termos da regulação em vigor (Circular Susep nº 637/2021), mas, na prática, essa modalidade quase não ocorre.

Sob uma perspectiva cronológica, o exame assertivo quanto à existência de cobertura passará, em primeiro lugar, pela análise de quem está a requerer a cobertura respectiva. Se for um administrador, de direito ou de fato (aqui, a depender do conteúdo do contrato), deverá haver cobertura, o que autoriza o intérprete a passar para o segundo vetor, qual seja, o temporal.

Vetor temporal

Também dispondo de uma considerável dose de pragmatismo, o vetor temporal decorre da modalidade de contratação comumente adotada pelo mercado segurador, tanto no Brasil quanto no exterior, para comercializar essas apólices.

Fazendo aqui um breve percurso histórico, os seguros, em geral, sempre foram contratados à base de ocorrência. Nesta forma de contratação, se o sinistro (um incêndio, por exemplo) ocorresse durante o período de vigência da apólice, sob a perspectiva temporal, haveria cobertura. Esse mesmo raciocínio se afigurava perfeito para sinistros em ramos como automóvel, vida, entre outras espécies dos chamados ramos elementares, e isto por uma razão singela: a identificação do fato gerador de cobertura, no tempo, afigurava-se objetiva.

Nos anos 50/60 do século passado, especialmente nos Estados Unidos, o escândalo a propósito do uso da talidomida (medicamento que, tempos mais tarde, gerou o nascimento de fetos com má formação congênita), e também o uso do amianto na construção civil, forçaram uma mudança radical em termos de exposição do mercado segurador, uma vez que os sinistros se materializavam muito tempo depois de esgotada a vigência dos seguros respectivos.

Diante de uma exposição enorme e descontrolada, as seguradoras, então, introduziram, em adição à contratação à base de ocorrência, a contratação à base de reclamação. Ao invés de examinar o fato gerador (o incêndio, anteriormente mencionado), agora a análise passaria a concentrar-se na data em que o terceiro formulasse a reclamação contra o segurado. Se ela ocorresse durante o período de vigência, ou, também, no período adicional (complementar ou suplementar), o sinistro estaria coberto.

A finalidade da introdução da contratação à base de reclamação foi mesmo delimitar no tempo a exposição das seguradoras, considerando que, principalmente nos seguros de responsabilidades (D&O, E&O, cyber, RC geral, entre outros), reconheceu-se a dificuldade de identificar quando e se os terceiros apresentariam as suas reclamações. Além dos períodos adicionais, voltados ao futuro, isto é, depois de esgotada a vigência da apólice, há também de considerar o período de retroatividade da apólice e a data de conhecimento dos fatos geradores pelo segurado, dirigidos ao passado, isto é, antes de concluída a contratação.

Após a introdução da contratação à base de reclamação, surgiu uma modalidade ainda mais refinada, qual seja, a contratação à base de reclamação com notificação. A finalidade da notificação foi, diante de expectativas de sinistro (e não sinistros propriamente ditos), possibilitar que os segurados as avisassem às seguradoras, vinculando as apólices em questão mesmo se os sinistros respectivos fossem reclamados em apólices posteriores. Trata-se de um ferramental criado a fim de gerar ainda mais informações pelas seguradoras a respeito da sinistralidade que se avizinha e gerar proteção aos segurados conscientes de seus possíveis fatos geradores.

A identificação das expectativas de sinistros e dos sinistros, no tempo, nem sempre é fácil, considerando que, em não raras vezes, os fatos são complexos, afigurando-se difícil precisar, com exatidão, quando ocorreram e se tornaram de conhecimento dos segurados. Seja como for, ainda se nota uma carga considerável de pragmatismo nesta análise.

Vetor mais complexo

O terceiro vetor, depois de cumprido o exame dos dois primeiros — subjetivo e temporal — é o causal, possivelmente o mais complexo de todos. A doutrina societária, de maneira uníssona, reputa difícil a definição do que seja um ato de gestão. Veja-se, a propósito, a lição de Marcelo Vieira von Adamek[1]:

“Logo, a irresponsabilidade do administrador tem como pressuposto a prática de ‘ato regular de gestão’, impondo a necessidade de definir essa expressão, cujo alcance não foi expressamente posto na atual lei acionária nem na anterior (DL n. 2.627 I 40, artigo 121).

A noção antagônica da expressão ‘ato regular de gestão’ deve compreender-se logicamente na expressão antitética ‘ato irregular de gestão’, como verso e reverso da mesma moeda. E, como necessariamente os únicos parâmetros válidos para a aferição da regularidade do ato do administrador devem ser encontrados na lei ou no estatuto (ato-norma), segue-se que irregular será o ato de gestão praticado com violação da lei ou do estatuto; também o será o ato praticado fora dos limites das atribuições de seu cargo, já que semelhante atuação, por evidente, contrastará igualmente com a lei e com o estatuto.”

Ora, se os seguros D&O são voltados à cobertura dos atos de gestão, a dificuldade para defini-los acaba, consequentemente, também gerando dificuldade para entender o que esse seguro verdadeiramente cobre. E, nessa toada, cabe ao estudioso aprofundar o seu exame não em questões próprias do direito dos seguros, mas do direito societário, mais especificamente numa disciplina que, pelos comercialistas, é reputada uma das mais instigantes nesse ramo do direito, qual seja, a responsabilidade dos administradores.

A Susep, por intermédio da Circular 637/2021, em seu artigo 12[2], ilumina a questão em torno da cobertura para o ato de gestão, mas padece da dificuldade referida ao não o conceituar. Gerir uma empresa pode compreender uma miríade de afazeres os mais diversos e, às vezes, até mesmo certas obrigações de não fazer, como, e.g., abster-se da prática de uma conduta anticoncorrencial.

Nessa altura, todo o capítulo dedicado à responsabilidade dos administradores, previsto nos artigos 153 a 159 da Lei nº 6.404/1976 (lei das S.A.) deve ser trazido à baila. Para facilidade de análise, e respeitando os estreitos limites dessa coluna, dois são os principais deveres a serem observados pelos administradores, quais sejam, diligência (LSA, artigo 153) e lealdade (artigo 155).

Contratos de seguro D&O, sob a perspectiva causal (o terceiro vetor), estarão voltados a violações ao dever de diligência porque a sua antítese é a negligência que, no direito civil, remete à conduta culposa. E é justamente porque nós, seres humanos, cometemos erros (culpa), que contratamos os seguros de responsabilidades (entre eles, os seguros D&O).

Já se vê mecânica completamente diferente quando se tem em mente o dever de lealdade (LSA, artigo 155), cuja antítese é a deslealdade e, no direito civil, o dolo, este, reconhecidamente, o inimigo número um dos seguros — leia-se, a propósito, o artigo 762 do CC[3].

Exemplificando, violações ao dever de lealdade são materializadas pelo insider trading, um dos pecados capitais no âmbito do mercado de bolsa de valores, por representar uma traição à confiança depositada pela sociedade no administrador que, a um só tempo, também viola a fidúcia de investidores e de acionistas como um todo.

Os três vetores referidos — subjetivo, temporal e causal — são fundamentais à análise de cobertura nos seguros D&O.


[1] ADAMEK, Marcelo Vieira von. Responsabilidade civil dos administradores de S/A (e as ações correlatas). São Paulo: Saraiva, 2009, p. 212.

[2] Art. 12 da Circular Susep 637/2021. “Além de outras exclusões previstas em lei, o seguro de RC D&O não cobre os riscos de responsabilização civil dos segurados em decorrência de danos causados a terceiros, quando fora do exercício de seus cargos no tomador, em suas subsidiárias ou em suas coligadas. Parágrafo único. Devem ser enquadrados no ramo de seguro de Responsabilidade Civil Geral, os seguros destinados a garantir apenas o interesse específico das pessoas jurídicas responsabilizadas pelos danos causados a terceiros, em consequência de atos ilícitos culposos praticados por pessoa física, que exerça ou tenha exercido cargos executivos de administração ou de gestão”.

[3] Art. 762 do CC. “Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro.”

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