Pagamento de tributos e o direito de desistir conforme a Lei 14.689/2023

O ano de 2024 se iniciou da forma que sonhavam aqueles que trabalham com o contencioso administrativo fiscal federal: com a volta dos plenos trabalhos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), nas sessões presenciais em Brasília. Dar seguimento aos processos, com recursos discutindo o porquê estar o crédito tributário sendo (in)devidamente cobrado, é justamente o que querem os advogados públicos e privados.

Todavia, o advento da Lei nº 14.689/2023 fez com que esse interesse dos contribuintes no julgamento de seus apelos especiais à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF) passasse por nova análise. Explicamos.

Como se sabe, a competência da CSRF cinge-se à solução de divergências interpretativas entre as decisões proferidas pelas Turmas do Carf (artigo 37, §2º, II do Decreto 70.235/72), de modo que sua apreciação tem como foco as teses jurídicas (direito), e não as provas trazidas aos autos (fatos). Também é sabida a perspectiva de sucesso dos contribuintes, ou mesmo de perda pelo mero voto de minerva do presidente (“voto de qualidade”), quanto aos temas julgados no âmbito da CSRF. Exemplos dessa realidade não faltam na jurisprudência do Carf.

Dados esses elementos, é possível que o curso do processo administrativo fiscal traga uma particularidade que culmina na nova análise aventada no início da coluna de hoje: se a decisão recorrida por meio do recurso especial foi proferida contra os interesses do contribuinte por voto de qualidade na Turma ordinária, faria sentido seguir com o recurso especial no âmbito da CSRF [2]?

A análise dessa questão passou a ser indispensável aos contribuintes ante o disposto no artigo 25, §9º-A do Decreto 70.235/72, com redação trazida pela Lei nº 14.689/2023, segundo o qual, na hipótese de julgamento final proferido por voto de qualidade em favor da Fazenda Pública, ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para fins penais, tratadas no processo. Esse tem sido o grande foco – cancelamento de multas mantidas em julgamento por voto de qualidade – daqueles que analisam os efeitos retrospectivos da aplicação do voto de qualidade, com base nas regras trazidas pelos artigos 15 e 16 da própria Lei nº 14.689/2023.

Todavia, decisões proferidas pelo voto de qualidade em processos pendentes de decisão final também foram objeto de disciplina pelo artigo 25-A do Decreto 70.235/72, igualmente trazido pela Lei nº 14.689/2023. Esse dispositivo determina que, na hipótese de o julgamento de processo administrativo fiscal ser resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade, uma vez manifestada pelo contribuinte a intenção de pagar a dívida tributária em 90 dias, será permitida a exclusão dos juros de mora, além do pagamento do valor principal da dívida mediante o ”pacote de benefícios” trazido pela própria lei (utilização de prejuízo fiscal, base de cálculo negativa de CSLL, compensação com precatórios e o parcelamento em 12 vezes).

Desistência do recurso

É justamente porque o dispositivo faz menção à “hipótese de julgamento de processo administrativo fiscal resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública” que é apropriada a ponderação sobre a conveniência do seguimento do recurso especial por parte daqueles contribuintes que tiveram voto de qualidade proferido pela Turma ordinária do Carf no passado, e que correm o risco de perdê-lo pela sobreposição de um julgamento por maioria ou unanimidade contra seus interesses na CSRF. Explicamos também.

É direito do postulante desistir do recurso que fora interposto, o que pode ser feito a qualquer tempo (cf. artigo 998 do Código de Processo Civil). A consequência dessa desistência do direito de recorrer, ou de ver julgado o recurso antes interposto, no âmbito do contencioso administrativo fiscal federal, será a prolação de despacho reconhecendo a desistência do recurso especial do contribuinte e determinando a devolução do processo à repartição fiscal de origem (cf. artigo 61, XIX e parágrafo único do Regimento Interno do CARF – RICARF).

Uma vez declarado extinto o processo (cf. artigo 52 da Lei nº 9.784/1999), passa a existir o “julgamento de processo administrativo fiscal resolvido definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade” a que se reporta tanto o artigo 25-A do Decreto 70.235/72, quanto os artigos 1º e 3º da Instrução Normativa RFB nº 2167/2023 [3].

Nessa situação, de mera desistência do recurso e de extinção do processo dela decorrente, não existe o efeito substitutivo de uma decisão (de mérito) da CSRF em relação ao acórdão proferido pela Turma Ordinária do Carf. Tal efeito só ocorreria se houvesse sido dado seguimento ao julgamento do recurso especial, culminando numa decisão terminativa de mérito do processo (acordão da CSRF), a qual substituiria a anterior decisão de segunda instância. Tudo nos termos do artigo 1.008 do CPC, quando estabelece que “o julgamento proferido pelo tribunal substituirá a decisão impugnada no que tiver sido objeto de recurso”.

Em outras palavras, uma vez feita a desistência (total ou parcial) do recurso especial pelo contribuinte, não há julgamento colegiado via superveniente acórdão para manter ou reformar a decisão anteriormente proferida, mas sim simples despacho, reconhecendo a desistência do recurso e declarando extinto o processo, cristalizando (ou seja, tornando definitivo) os efeitos da última decisão (de mérito) proferida no processo. Não há e nunca haverá decisão da CSRF sobre a (im)procedência do crédito tributário, sendo certo que a decisão administrativa final de mérito sobre a matéria é aquela exarada pela Turma ordinária de julgamento do Carf.

Assim é que, com a desistência do REsp, reconhecida por despacho do presidente da CSRF, ou por quem lhe faça as vezes nessa função, torna-se finda a lide administrativa a respeito do tema, sendo que a partir daí conta-se o prazo de 90 dias para a manifestação dos contribuintes no sentido de pagar o valor devido à título de tributo mediante o “pacote de benefícios” trazidos pela Lei nº 14.689/2023.

Redução de litigiosidade

Não parece demais enfatizar que a Lei nº 14.689/2023 não só resolveu a questão do cancelamento das penalidades em caso de empate no julgamento, com clara inspiração no artigo 112 do Código Tributário Nacional, mas também criou estímulos para que o contribuinte pague o valor devido a título de tributo que fora mantido pelo voto da qualidade. Ou seja, trata-se de legislação criada dentro do contexto da promoção da redução de litigiosidade. Afinal, parte relevante das já citadas vantagens (“pacote de benefícios”) só poderá ser usufruída se o contribuinte pagar sua dívida tributária principal, dentro do prazo estipulado pela lei. Ou seja, só poderá ser quitado o crédito tributário com prejuízo fiscal, base de cálculo negativa de CSLL, precatórios e de forma parcelada se o contribuinte deixar de litigar. E como se deixa de litigar? Desistindo do recurso em trâmite no PAF e pagando a dívida sem (novo) questionamento judicial.

Cumpre nesse ponto destacar que a desistência não se confunde com a renúncia ao direito material.

A desistência tão somente põe fim ao processo administrativo e, como se disse, tornam definitivos os efeitos da última decisão de mérito nele proferida. A renúncia ao direito acontecerá apenas se o contribuinte resolver pagar sua dívida, o que ocorrerá por meio de outro ato procedimental no âmbito administrativo, qual seja, o requerimento de opção de pagamento do crédito tributário, dirigido à autoridade fiscal da Delegacia da Receita Federal.

Tal requerimento, nos termos do artigo 3º, §5º, I da IN RFB 2167/2023, representa o trade-off para a fruição do direito de pagar a dívida com desconto de juros moratórios e uso de moedas diferenciadas, caracterizando a “confissão extrajudicial irrevogável e irretratável da dívida, nos termos dos arts. 389 e 395 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil”.

Desistência e renúncia

Com respeito às posições em sentido contrário, o disposto no artigo 133, §3º do Ricarf [4] não altera o entendimento supra. A uma, pois o Ricarf disciplina o rito procedimental perante o Carf apenas, e, portanto, não poderia trazer validamente disposição que pressupusesse a geração de efeitos materiais fora do âmbito do procedimento regulamentado. A duas, pois o Ricarf é aprovado por mera portaria do Ministério da Fazenda, cujo status normativo não permitiria sequer em tese criar obrigação (ou situação) de renúncia a direito sem previsão/autorização em lei em sentido estrito.

Não nos parece que se trata de eventual ilegalidade ou inconstitucionalidade do dispositivo (133, §3º do Ricarf), mas simplesmente de compreendê-lo dentro dos seus limites [5], vale dizer, que desistência e renúncia do interessado são coisas distintas, implicando efeitos distintos. Essa interpretação encontra respaldo, inclusive, no próprio regimento. Veja-se o disposto no art. 118, § 12, do Ricarf, segundo o qual “não servirá como paradigma o acórdão: II – que, na data da interposição do recurso, tenha sido (…) objeto de desistência ou renúncia do interessado na matéria que aproveitaria ao recorrente”.

O que importa destacar é que a interpretação sistemática do Ricarf demonstra que o artigo 133, §3º tem função bastante pontual.

desistência de defesa/recurso pelo contribuinte importa definitividade do crédito tributário em seara administrativa, a propósito, como estabelece o §5 do próprio artigo 133 do Ricarf [6]. Trata-se de “renúncia” com efeito meramente endoprocessual (dentro do PAF) e repercussão na instância administrativa, apenas. É nesse sentido que a renúncia referida no artigo 133, §3º do Ricarf merece ser compreendida: a desistência do recurso não implica renúncia do direito material para fins exoprocessuais (para fora do PAF), mas apenas confere segurança e determinação ao processo administrativo e à constituição do crédito tributário dentro do próprio processo.

renúncia propriamente dita ao direito atinge não apenas o processo, mas o direito material em discussão, e somente nas hipóteses previstas legalmente. O que se garante com a renúncia ao direito não é o mero fim do processo administrativo e a constituição definitiva do crédito tributário dele decorrente, mas a definitividade do pagamento da dívida e o encerramento eficaz do conflito entre as partes.

Imaginemos um contribuinte que, sem petição nos autos do PAF, propõe ação judicial discutindo a mesma matéria que estava em contencioso administrativo. Ele abriu mão da instância administrativa a partir daquele momento, ou seja, ele desistiu do direito de ter julgado o recurso especial (cf. Súmula Carf nº 1). Porém, não há dúvida que não há renúncia alguma ao direito material. Agora imaginemos um contribuinte que apresente petição de desistência do recurso e nessa petição informe que irá propor ação judicial. Esse contribuinte, apenas por ter peticionado sua desistência, renunciou o direito material? Parece claro que não. As situações são idênticas e assim devem ter seus efeitos.

Assim, para o que aqui se discute, a desistência do recurso deve ser seguida da renúncia ao direito material controvertido apenas quando e se o contribuinte pretender realizar o pagamento do débito, inclusive na nova forma criada pela Lei nº 14.689/2023.

Considerações finais

Em suma: sendo o caso de recurso especial por parte do contribuinte, em havendo desistência dessa pretensão, não há concomitante renúncia de direito, tampouco acórdão substitutivo da CSRF. Há, como visto, despacho do presidente do Carf, baixando o processo para a unidade de origem, para reconhecimento e execução da decisão definitiva da Turma ordinária contrária ao contribuinte por voto de qualidade, nos termos dos artigos 42 e 43 do Decreto 70.235/72. Havendo decisão definitiva de mérito proferida pelo Carf por voto de qualidade em favor da Fazenda Pública, pode o contribuinte optar por pagar o débito principal do tributo em 90 dias, conforme os benefícios da Lei nº 14.689/2023.

Nesse novo contexto vivenciado pelos advogados, procuradores da Fazenda Nacional e conselheiros do Carf, vemos um início de 2024 que foi muito bom, porém sem corresponder exatamente aquilo que esperávamos. Para aqueles que acompanharam a última reunião de julgamento da 1ª Turma da CSRF, viram-se diante de um tribunal que foi afogado pelas repercussões da Lei nº 14.689/2023. Esperemos que cada vez mais as nebulosidades em torno da matéria se dissipem, permitindo o pronto pagamento de tributos na forma da nova legislação. Essa situação não apenas auxiliará o Poder Executivo a atingir seu desejado superávit fiscal, como também implicará desafogamento do contencioso administrativo federal, permitindo-se que a CSRF se debruce sobre os casos que tanto merecem sua atenção.


[1] O que foi também objeto de cuidadoso tratamento nessa coluna, mas com conclusão oposta a que se chegará aqui. Nesse sentido, vide: Recursos especiais contra decisões por voto de qualidade: é hora de jogar a toalha? (conjur.com.br).

[2] “Art. 1º. Esta Instrução Normativa dispõe sobre a aplicação do art. 25-A do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, aos processos administrativos fiscais decorrentes de decisão definitiva favorável à Fazenda Nacional, proferida pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) com base no voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do referido decreto.”

“Art. 3º. Para a aplicação de que trata esta Instrução Normativa, o contribuinte deverá formalizar requerimento no prazo de 90 (noventa) dias, contado da ciência do resultado do julgamento definitivo proferido pelo Carf, observado o disposto no § 1º.”

[3] “§ 3º. No caso de desistência, pedido de parcelamento, confissão irretratável de dívida e de extinção sem ressalva de débito, estará configurada renúncia ao direito sobre o qual se funda o recurso interposto pelo sujeito passivo, inclusive na hipótese de já ter ocorrido decisão favorável ao recorrente.”

[4] A falta da interpretação aqui evidenciada invariavelmente deve levar à conclusão pela ilegalidade/inconstitucionalidade do dispositivo, como posto em anteriormente nesta coluna, em artigo de Carlos Augusto Daniel Neto. Vide: Recursos especiais contra decisões por voto de qualidade: é hora de jogar a toalha? (conjur.com.br). Acessado em 04.03.2024.

[5] § 5º. Quando houver decisão favorável ao sujeito passivo, total ou parcial, com recurso da Fazenda Nacional pendente de julgamento, e a desistência for total, o Presidente de Câmara declarará a definitividade do crédito tributário, tornando-se insubsistentes todas as decisões que lhe forem favoráveis.

Fonte: Conjur

Mulheres e as atividades aduaneiras: uma combinação exitosa

Na próxima sexta-feira, dia 8 de março, comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Escolhermos a ocasião para celebrar e reconhecer o progressivo êxito das mulheres nas atividades aduaneiras, invocando experiências próprias e iniciativas nacionais e internacionais.

Dia Internacional da Mulher: origens

A data comemorativa do dia das mulheres já foi em 28 de fevereiro, nos Estados Unidos, e em 19 de março, em alguns países da Europa, e passou a ser o último domingo de fevereiro, na Rússia, antes da adaptação ao calendário gregoriano. Em 1917, as mulheres, na Rússia, protestaram e fizeram greve por “pão e paz” no último domingo de fevereiro (que caiu no dia 8 de março, no calendário gregoriano). Quatro dias depois, o czar abdicou e o governo provisório concedeu às mulheres o direito de voto. Após a Segunda Guerra Mundial, o 8 de março passou a ser comemorado em vários países, e, em 1975, “Ano Internacional da Mulher”, a Organização das Nações Unidas adotou a data comemorativa [1], embora tenha permitido em resolução da Assembleia Geral, em 1977, que os membros elegessem data distinta, de acordo com suas tradições [2].

Em 2024, o tema da data comemorativa nas Nações Unidas é “Investir nas Mulheres: Acelerar o Progresso”, com destaque para cinco ações conjuntas para promover a igualdade de gênero [3]. A preocupação com a igualdade de gênero está ainda presente no Objetivo 5 de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, e em diversos instrumentos de outras organizações internacionais, inclusive na área de comércio.

As organizações internacionais e a igualdade de gênero

A Organização Mundial das Aduanas (OMA) começou a tratar do tema da igualdade de gênero em 2013 [4] e publicou, em 2020, um “Compêndio sobre Igualdade de Gênero e Diversidade nas Aduanas”, com iniciativas de 17 países (entre elas, a referente ao Comitê de Ética da RFB, no Brasil)[5]. Em 2023, a OMA publicou a segunda edição do compêndio, com mais 12 experiências comparadas [6] e uma “Ferramenta de Avaliação da Igualdade de Gênero”, com 18 indicadores atrelados a seis princípios estratégicos (estratégia, governança e liderança; emprego, carreira, desenvolvimento e compensação; equilíbrio trabalho-vida; violência baseada no gênero e assédio; operações de fronteira e relações com intevenientes; e segurança) [7].

Ainda em 2022, a OMA havia divulgado que apesar de 37% dos funcionários das aduanas dos países membros serem mulheres, apenas 16% dos cargos máximos eram ocupados por elas [8]. Para buscar incentivar os membros a adotarem ações inclusivas sobre o tema, a OMA já havia lançado, em 2020, a “WCO Declaration on Gender Equality and Diversity”, que, em seu item 8, encorajou o secretariado da organização, representante dos diversos membros da OMA, a “…comprometer-se e partilhar as suas políticas em matéria de igualdade e diversidade de gênero, como um incentivo às administrações aduaneiras”.

De fato, a OMA tem a australiana Gael Grooby como encarregada da diretoria de “Tarif and Trade Affairs”, e várias mulheres atuando em sua estrutura, em postos-chave. Tivemos a opotunidade de participar de eventos e missões com algumas delas, como a americana Eleanor Thornton [9], especialista internacional sênior em comércio, e a dominicana Karolyn Salcedo [10], líder de projetos no âmbito da OMA. É importante ainda destacar que temos uma brasileira, a auditora-fiscal Yara Novis, no quadro de oficial técnico sênior da OMA, na área de classificação de mercadorias.

Spacca

No entanto, não há registro de que o cargo de secretário-geral da OMA [11], posição de comando da organização, tenha sido ocupado por uma mulher, o que coloca a OMA em desvantagem, em termos de política de igualdade de gênero (política sugerida em sua própria declaração, acima transcrita) em relação a outras organizações temáticas de comércio, como a OMC [12] (hoje comandada pela nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala), e a Unctad (hoje dirigida pela costarriquenha Rebeca Grynspan). Cabe destacar que tanto na OMC, quanto na Unctad, essas são as primeiras mulheres que estão à frente das organizações.

Administração aduaneira brasileira e igualdade de gênero

No Brasil, a presença de mulheres em postos de comando, na aduana, antecede as citadas organizações internacionais. Ainda na virada do século, Clecy Maria Busato Lionço e Emely França de Paula já dividiam os dois postos mais importantes da Aduana brasileira. Tive a oportunidade e a satisfação de trabalhar e aprender muito com ambas, na Coordenação de Administração Aduaneira e em projetos como o Plano de Modernização da Aduana Brasileira (PMAB).

E hoje a aduana brasileira continua encabeçada por uma mulher, Cláudia Regina Leão do Nascimento Thomaz, subsecretária de administração aduaneira, sendo também feminino o comando da Coordenação-Geral de Combate ao Contrabando e ao Descaminho (a cargo de Karen Yonamine Fujimoto) e do Centro de Classificação de Mercadorias (Ceclam) — cujo Comitê é presidido por Cláudia Navarro. Na área internacional, Kelly Morgero representa o Brasil e ocupa a vice-presidência do Comitê Técnico de Valoração Aduaneira/OMA. Na área de contencioso, a 3ª Seção do Carf, responsável pelo julgamento de processos aduaneiros, é presidida por Liziane Angelotti Meira, e o Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul), por Andrea Duek Simantob. Adicione-se que a secretaria-adjunta da RFB é também feminina, hoje, sob a responsabilidade de Adriana Gomes Rêgo.

E não só na RFB, mas em outros órgãos relacionados ao comércio exterior, é forte a presença feminina. Na Camex, por exemplo, a secretária-executiva é Marcela Carvalho, e a Secex é chefiada por Tatiana Lacerda Prazeres.

Estudos aduaneiros e mulheres

No âmbito acadêmico, a presença feminina se torna marcante no século 21. No Brasil, merecem destaque ainda no início do século os estudos pioneiros de Liziane Angelotti Meira, sobre Regimes Aduaneiros Especiais [13], e de Vera Thorstensen, sobre a OMC [14].

Nos últimos anos, o número de obras sobre Direito Aduaneiro de autoria feminina passou a ser substancial. Utilizemos, a título exemplificativo, as autoras que contribuíram em colunas aqui no “Território Aduaneiro” (Ana Clarissa Masuko, Daniela Floriano, Flávia Holanda Gaeta, Marcela Adari Camargo, Raquel Segalla Reis e Vera Lúcia Feil [15]), ou em obra coletiva que recentemente coordenamos (Tânia Carvalhais Pereira [16], Deolinda Simões, e Sofia Rijo, além de Liziane Angelotti Meira e Vera Lúcia Feil, já citadas anteriormente). No âmbito da pesquisa acadêmica, coordenamos grupo no qual há ativa participação de mulheres, algumas já no nível de doutorado (como Fernanda Kotzias), outras no âmbito de mestrado da UCB (Raquel Segalla Reis [17] e Renata Sucupira Duarte) ou em outros programas (Carmem Silva e Kelly Morgero).

Por certo que cabe aqui também lembrar (de forma reiterada, porque elas já estão em outros pontos do texto) as duas colunistas oficiais do “Território Aduaneiro”: Liziane Angelotti Meira (com quem trabalhei nas equipes elaboradoras do Regulamento Aduaneiro e do Código Aduaneiro do Mercosul, e ainda atuo no Carf) e Fernanda Kotzias (com quem trabalhei no Carf e ainda atuo em pesquisa científica).

Há ainda iniciativas importantes, como a Women Inside Trade (WIT), que reúne, desde 2017, mulheres da academia, dos setores público e privado, em diferentes estágios de carreira, que atuam no Brasil e no exterior, para trocar experiências e debater temas relevantes do comércio internacional. Tive a satisfação de participar de um episódio (cast) da WIT, conversando sobre facilitação do comércio com Constanza Negri, Marina Egydio e Fernanda Kotzias, três mulheres com vasto conhecimento na área [18].

Registre-se ainda a inciativa da Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (Abead), que criou uma Diretoria de Diversidade e Inclusão, hoje a cargo de Monnike Garcia, e realizou pioneiro seminário somente com mulheres especialistas, denominado Customs Insights [19].

No âmbito da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, cabe registrar a participação feminina de Lorena Bartomioli e Catalina García Vizcaíno (Argentina), Glória Maria Alves Teixeira (Portugal), Flavia María Figueredo Omodei e Norma Elena Locatelli Tonelli (Uruguai), Suzanne Ina Offerman, Jane A. Restani e Valerie Hughes (Estados Unidos), Carol Susan Osmond (Canadá), Susanne Aigner (Áustria), Francia Inés Hernández Díaz (Colômbia), Sara Armella (Itália), Liziane Angelotti Meira (Brasil) e María Paulina Achurra Zúñiga (Chile), além de outras mulheres com destaque na área aduaneira admitidas em setembro de 2023 [20].

As publicações, contudo, não se resumem às participantes dos grupos aqui citados, sendo conhecidos, por exemplo, os relevantes estudos de Nora Neufeld sobre o AFC/OMC, ou de Ana Sumcheski (v.g., nos Procedimentos Aduaneiros, em parceria com Alfredo Abarca).

Considerações finais

Qualquer pretensão de tornar exaustiva uma lista de autoras de publicações aduaneiras esbarraria ou na falta de conhecimento deste colunista, ou em sua falta de memória, ou em ambas, aliadas à limitação de caracteres da coluna.

Nem arriscarei também iniciar a lista de competentes colegas de RFB (e de outros países) aduaneiras que conheci nas atividades de elaboração de atos normativos, de negociação internacional, de missões de assessoria técnica a países, de cursos e eventos. A tarefa, além de ser árdua e incompatível com o tamanho da coluna, certamente desaguaria em um imperdoável esquecimento de alguém relevante.

Assim, ao mesmo tempo em que encarecidamente peço desculpas a todas as mulheres que não nominei e contribuem incansavelmente para o desenvolvimento do Direito Aduaneiro, desejo tanto a elas, quanto às aqui nominadas, um excelente Dia Internacional das Mulheres, certo de que o incremento da participação feminina em atividades de comércio exterior já é uma realidade, que tende a se consolidar.


[1] Para mais detalhes, vale conferir a história do “Dia Internacional das Mulheres” em: https://www.un.org/en/observances/womens-day/background. Acesso em 03/03/2024.

[2] Resolução 32/142, de 16 de dezembro de 1977, disponível em: https://documents.un.org/doc/resolution/gen/nr0/313/77/pdf/nr031377.pdf?token=lvif3FFtQdaP8e6UKK&fe=true. Acesso em 03/03/2024.

[3] Disponível em: https://www.unwomen.org/en/news-stories/announcement/2023/12/international-womens-day-2024-invest-in-women-accelerate-progress. Acesso em 03/03/2024.

[4] Curiosamente, tive um primeiro contato acadêmico com o tema por meio da OMA. Em 2015, quando participei de um Seminário de Acreditação de Especialistas em Acordo sobre a Facilitação do Comércio-língua inglesa, no Shangai Customs College, na China, promovido pela OMA, o tema a mim sorteado foi “Aduana e Igualdade de Gênero”. Recordo que passei dois dias lendo documentos da ONU e de outras organizações sobre o tema para preparar a apresentação, visto que no âmbito da OMA ainda não havia muitas fontes de dados sobre igualdade de gênero. Hoje, a lista de documentos e eventos realizados sobre igualdade de gênero e diversidade pode ser consultada em: https://www.wcoomd.org/en/topics/capacity-building/activities-and-programmes/gender-equality.aspx. Acesso em 03/03/2024.

[5] Disponível em: https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/capacity-building/activities-and-programmes/gender-equality/gender-equality-compendium_edition1_en.pdf?la=en. Acesso em 03/03/2024.

[6] Disponível em: https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/capacity-building/activities-and-programmes/gender-equality/gender-equality-compendium_edition2_en.pdf?la=en. Acesso em 03/03/2024.

[7] Disponível em: https://www.wcoomd.org/-/media/wco/public/global/pdf/topics/capacity-building/activities-and-programmes/gender-equality/gender-equality-assessment-tool.pdf?la=en. Acesso em 03/03/2024.

[8] Trouxemos essa informação no canal “Portal Aduaneiro”, em 07/03/2022 (Disponível em: hhttps://www.instagram.com/p/Ca0fSdOJxqf/. Acesso em 03/03/2024).

[9] Que foi nossa examinadora no Seminário de Acreditação de Especialistas em Modernização Aduaneira-língua espanhola/OMA, em Buenos Aires, em 2008.

[10] Que foi nossa examinadora no já citado Seminário de Acreditação de Especialistas sobre o AFC, realizado em Shangai, e com quem já tive a honra de dividir missão de capacitação em matéria de Convenção de Quioto Revisada/OMA, no Peru.

[11] Apesar de o sítio web da OMA não ter um quadro público com ex-Secretários-Gerais (informação que seria recomendável, pelo conteúdo histórico e estatístico, no que se refere a distribuição geográfica e igualdade de gênero, por exemplo), cabe informar que a organização foi comandada pelo francês Michel Danet de 1999 a 2008, pelo japonês Kunio Mikuriya, de 2009 a 2023, e é hoje chefiada pelo norte-americano Ian Saunders.

[12] Na OMC, há ainda duas mulheres entre os quatro postos de Diretor-Geral adjunto: Johanna Hill, de El Salvador, e Angela Ellard, dos Estados Unidos. Disponível em: https://www.wto.org/english/thewto_e/dg_e/ddgs_e.htm. Acesso em 03/03/2024.

[13] MEIRA, Liziane Angelotti. Regimes aduaneiros especiais. São Paulo: IOB, 2002. Tive a oportunidade de entrevistar Liziane Angelotti Meira sobre esse livro, estando a entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6zWHJhwE7us&t=22s. Acesso em 03/03/2024.

[14] THORSTENSEN, Vera. Organização Mundial do Comércio: as regras do comércio internacional e a nova rodada de negociações multilaterais. São Paulo: Aduaneiras, 2009.

[15] Tive a oportunidade de entrevistar Vera Lúcia Feil sobre artigo específico escrito para o Livro “Temas Atuais de Direito Aduaneiro”, estando a entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7oOkuu1anhc&t=96s. Acesso em 03/03/2024.

[16] Tive a oportunidade de entrevistar Tânia Carvalhais Pereira sobre livro específico sobre temas aduaneiro, estando a entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wfV_tY6dNpo&t=10s. Acesso em 03/03/2024.

[17] Registre-se que Raquel Segalla Reis sagrou-se mestre em Direito na última quinta-feira, dia 29/02/2024, em memorável banca, na Universidade Católica de Brasília, na qual apresentou com êxito sua dissertação sobre “Gestão de Riscos no Despacho Aduaneiro de Importação: Inteligência Artificial como Instrumento e Agente de Controle”.

[18] Entrevista disponível em: https://open.spotify.com/episode/2Ae1vlFdHJvNkbozSVfrFw. Acesso em 03/03/2024.

[19] Realizado em 2022 e 2023, e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hqmxtaulbSk. Acesso em 03/03/2024.

[20] Disponível em https://www.iclaweb.org/membership. Acesso em 03/03/2024. Os dados ainda não foram atualizados com as admissões da última reunião anual, realizada em Berlim, em setembro de 2023.

Fonte: Conjur

Processo legislativo e tecnologia: cumprimento da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência

Uma rede de cooperação acadêmico-científica foi formada entre Brasil, Suíça e África do Sul para desenvolver o projeto Fostering inclusive law-making for people with disabilities: risks and opportunities of Intelligent assistive technologies [1], que investigará nos três países, os riscos e as oportunidades que as tecnologias assistivas inteligentes apresentam para a participação política das pessoas com deficiência nos processos legislativos desses países.

A pesquisa, selecionada para receber financiamento da Worldwide Universities Network (Rede Mundial de Universidades), avalia a implementação do artigo 29 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que prevê a participação na vida política e pública das pessoas com deficiência em condições de igualdade com as demais pessoas.

Embora a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência tenha sido recepcionada pelo Brasil em 2009 [2], garantir condições de igual participação política para as pessoas com deficiência é um dever estatal que se extrai de dispositivos previstos na Constituição da República de 1988. o fomento às tecnologias assistidas nos processos decisórios estatais

A Constituição de 1988 prevê, por exemplo, a cidadania e o pluralismo político como fundamentos do Estado Brasileiro (incisos II e V do caput do artigo 1º da Constituição). O princípio da igualdade, também assegurado no caput do artigo 5º, é um dispositivo que convoca o Estado a promover a inclusão das pessoas com deficiência nos processos discursivos que integram os de elaboração das leis e de formação da agenda pública.

A Convenção, entretanto, representou um ganho de substituição do modelo médico para o modelo social de deficiência: em vez ser portadora de uma incapacidade biológica ou psíquica, a pessoa com deficiência está em condições de desigualdade pela incapacidade do meio urbano e político-social em adotar um desenho ou estruturar seus processos de forma a possibilitar o acesso, a inclusão e a participação da pessoa com deficiência com autonomia.

Em 2022, pela primeira vez desde o início da série histórica, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coletou dados sobre a população de pessoas com deficiência no Brasil. Adotando como recorte as pessoas com dois anos de idade ou mais, a Pesquisa Nacional Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnd Contínua) revelou que existem 18,58 milhões de pessoas com deficiência no Brasil.

ConJur

Considerando o cenário das novas tecnologias, tramita na Câmara dos Deputados a  Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 47/2021 [3], aprovada no Senado, que objetiva acrescentar a inclusão digital no rol dos direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição.

A PEC parece concentrar-se no dever do poder público de ampliar o acesso à internet no território nacional, todavia, a inclusão digital é um conceito mais amplo, que abrange as soluções tecnológicas para tornar os ambientes igualmente acessíveis a pessoas diferentes.

Marco Regulatório de Ciência, Tecnologia e Inovação, lei que disciplina as condições para  a existência de pesquisa e inovação no Brasil, nos termos dos artigos 23 24 167 200 213 218 219 219-A da Constituição definiu como princípios da política brasileira para autonomia científico tecnológica, dentre outros (artigo 1º I,II, III):  promoção das atividades científicas e tecnológicas como estratégicas para o desenvolvimento econômico e social; promoção e continuidade dos processos de desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação, assegurados os recursos humanos, econômicos e financeiros para tal finalidade;  redução das desigualdades regionais.

Os objetivos do Marco são: “a capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional do país” conforme o sistema constitucional de ciência, tecnologia & inovação. Para tal, universidades, centros de pesquisa, empresas de base tecnológica, setor público são intérpretes e partícipes da economia do conhecimento e suas aplicações em benefício dos fins da República.

A pesquisa investigará a interface entre o direito fundamental de participação política das pessoas com deficiência no processo legislativo, e os atores da economia do conhecimento em s tecnologias assistivas inteligentes, disponíveis, com o fim de avaliar e propor medidas para a ampliação do cumprimento da convenção.

O Decreto nº 10.094/2019, que dispõe sobre o Comitê Interministerial de Tecnologia Assistiva, estabelece que esse comitê assessorará na estruturação, na formulação, na articulação, na implementação e no acompanhamento de plano de tecnologia assistiva, com vistas a garantir à pessoa com deficiência acesso a produtos, recursos, estratégias, práticas, processos e serviços que maximizem sua autonomia, sua mobilidade pessoal e sua qualidade de vida.

O trecho grifado consta no artigo 2º do decreto e oferece um conceito de tecnologia assistiva centrado na autonomia da pessoa com deficiência. Esses produtos, recursos, estratégias, práticas, processos e serviços foram e serão profundamente impactados pela integração da inteligência artificial a essas tecnologias. Esse cenário demanda não só inovação, mas garantias para o pleno exercício da autonomia da vontade pelos participantes.

Conhecer e disponibilizar ferramentas inteligentes de inclusão para as pessoas com deficiência nos processos de participação política é medida que favorece a apresentação dos problemas que impactam sua vida diária e de soluções para esses problemas a partir desse paradigma de autonomia. A construção de soluções pela própria população impactada confere maior legitimidade e responsividade aos processos políticos, inclusive o de elaboração das leis.

Se “legislar é projetar uma realidade futura” [4], os processos legislativos e de formação da agenda pública serão mais responsáveis na medida em que possibilitarem maior acesso à construção coletiva de soluções pelos seguimentos impactados por leis, políticas públicas e suas repercussões judiciais.

______________________________________

[1]Em tradução livre: “Promover a elaboração legislativa inclusiva para pessoas com deficiência: riscos e oportunidades de tecnologias assistivas inteligentes”. O projeto de pesquisa coordenado pelas professoras da IDHEAP/Universidade de Lausanne (Suíça) Sophie Weerts e Alicia Pastor y Camarasa, tem na equipe a Profa. Ilze Grobbelaar-du Plessis, da Universidade de Pretoria (África do Sul), da Profa Fabiana de Menezes Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Profa Cristiane Silva Kaitel e das pesquisadoras brasileiras e Thábata Filizola Costa.

[2]A Convenção foi recepcionada pelo Brasil por meio do Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Para mais informações sobre a internalização de tratados e convenções internacionais no Brasil, recomenda-se a leitura do artigo O ingresso dos tratados internacionais no Direito brasileiro, de autoria de Raimundo Simão de Melo, publicado nesta ConJur em 10 de maio de 2019.

[3]PEC de iniciativa dos seguintes parlamentares: Senadora Simone Tebet (MDB/MS), Senador Alessandro Vieira (CIDADANIA/SE), Senador Marcelo Castro (MDB/PI), Senador Plínio Valério (PSDB/AM), Senadora Eliane Nogueira (PP/PI), Senadora Mailza Gomes (PP/AC), Senadora Eliziane Gama (CIDADANIA/MA), Senador Telmário Mota (PROS/RR), Senadora Maria do Carmo Alves (DEM/SE), Senadora Zenaide Maia (PROS/RN), Senador Alvaro Dias (PODEMOS/PR), Senador José Aníbal (PSDB/SP), Senador Jorge Kajuru (PODEMOS/GO), Senadora Nilda Gondim (MDB/PB), Senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP), Senador Paulo Paim (PT/RS), Senador Humberto Costa (PT/PE), Senador Roberto Rocha (PSDB/MA), Senador Oriovisto Guimarães (PODEMOS/PR), Senador Fabiano Contarato (REDE/ES), Senadora Leila Barros (CIDADANIA/DF), Senadora Soraya Thronicke (PSL/MS), Senador Weverton (PDT/MA), Senador Flávio Arns (PODEMOS/PR), Senador Giordano (MDB/SP), Senador Lasier Martins (PODEMOS/RS), Senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB/PB), Senador Vanderlan Cardoso (PSD/GO), Senador Eduardo Braga (MDB/AM), Senador Reguffe (PODEMOS/DF). Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/151308. Acesso em: 3 mar. 2024.

[4]Sobre a responsabilidade do processo de escolha e de justificação da legislação nessa ótica prospectiva, recomendamos a leitura do texto Legislação intergeracional: pautas essenciais para os legisladores em 2024, de autoria de Fabiana de Menezes Soares. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-02/legislacao-intergeracional-pautas-essenciais-para-os-legisladores-em-2024/. Acesso em: 3 mar. 2024.

Fonte: Conjur

Ver suspeito ‘jogar algo em cima da laje’ não justifica invasão de domicílio

Denúncia anônima de tráfico de drogas, sem a consequente investigação que dê mínimo suporte às suspeitas, não basta para permitir que policiais entrem na casa de alguém sem autorização judicial.

Ministro Sebastião Reis Júnior anulou provas decorrentes do ingresso forçado em domicílio – Rafael Luz/STJ

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça absolveu um homem que foi condenado à pena de cinco anos de reclusão pelo crime de tráfico de drogas. O colegiado reconheceu a nulidade das provas contra ele.

O réu foi preso em flagrante dentro de sua casa por policiais. Eles foram ao local depois de receber denúncia anônima sobre a prática de tráfico e enxergaram o suspeito “jogando algo em cima da laje do banheiro interno”.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG) entendeu que essa cena dava justa causa para a entrada no domicílio sem autorização judicial. Relator da matéria no STJ, o ministro Sebastião Reis Júnior discordou.

“Ora, o policial nem sequer descreveu o objeto que teria visto ser lançado pelo réu, de modo que inexistem elementos indicativos da prática de crime no interior do imóvel, não restando comprovadas as fundadas razões para o ingresso forçado no domicílio”, disse o magistrado.

Essa posição é coerente com a jurisprudência do STJ sobre o tema, segundo a qual a entrada em domicílio exige fundadas razões ou a autorização do morador, desde que seja devidamente comprovada pelos policiais.

Jurisprudência vasta

A jurisprudência do STJ é, de fato, vasta. Só em 2023, o tribunal anulou provas decorrentes de invasão ilícita de domicílio em pelo menos 959 processos, conforme mostrou a revista eletrônica Consultor Jurídico.

A corte entendeu ilícita a invasão nas hipóteses em que a abordagem é motivada por denúncia anônima, pela fama de traficante do suspeito, por tráfico praticado na calçada, por atitude suspeita e nervosismocão farejadorperseguição a carro ou apreensão de grande quantidade de drogas.

Também anulou as provas quando a busca domiciliar se deu após informação dada por vizinhos e depois de o suspeito fugir da própria casa ou fugir de ronda policial. Em outro caso, entendeu ilícita a apreensão feita após autorização dos avós do suspeito para ingresso dos policiais na residência.

O STJ também definiu que o ingresso de policiais na casa para cumprir mandado de prisão não autoriza busca por drogas. Da mesma forma, a suspeita de que uma pessoa poderia ter cometido o crime de homicídio em data anterior não serve de fundada razão para que a polícia invada o domicílio de alguém.

Por outro lado, a entrada é lícita quando há autorização do morador ou em situações já julgadas, como quando ninguém mora no local, se há denúncia de disparo de arma de fogo na residência ou flagrante de posse de arma na frente da casa, se é feita para encontrar arma usada em outro crime — ainda que por fim não a encontre — ou se o policial, de fora da casa, sente cheiro de maconha, por exemplo.

HC 821.494

Fonte: Conjur

Pequena quantidade e reduzido potencial ofensivo da droga justificam redução da pena

Devido à pequena quantidade de droga e ao reduzido potencial ofensivo da maior parte apreendida, a 12ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) reconheceu o tráfico privilegiado para um réu; diminuiu a pena de quatro anos e dois meses em regime semiaberto para um ano e oito meses em regime aberto, mais multa; e substituiu a pena de prisão por prestação de serviços à comunidade e outra multa.

Réu foi preso com 50 gramas de cocaína e 128 gramas de maconha – Freepik

O homem foi preso com 50 gramas de cocaína, 128 gramas de maconha e uma balança de precisão. Ele confessou a prática de tráfico e foi condenado pela 1ª Vara de José Bonifácio (SP) a quatro anos e dois meses de prisão no regime semiaberto, além de 416 dias-multa no valor mínimo.

A defesa, feita pelo advogado Diego Vidalli dos Santos Faquim, pediu a aplicação do redutor de pena conhecido como tráfico privilegiado em seu grau máximo, a fixação do regime aberto e a substituição da pena por medidas restritivas de direito.

O tráfico privilegiado é uma causa de diminuição de pena prevista na Lei de Drogas. Ele se aplica quando o agente é primário, tem bons antecedentes, não se dedica a atividades criminosas e não integra organização criminosa.

Patamar máximo

O desembargador Vico Mañas, relator do caso no TJ-SP, considerou que a condenação do réu foi correta, mas decidiu ampliar o redutor para o patamar máximo, de dois terços da pena.

Ele explicou que “não se apreendeu tanta droga no peso total” e que “a maior parte correspondia a maconha, de menor potencial ofensivo.”. Para o magistrado, uma “diminuição menor deve ficar reservada para casos mais expressivos”.

Mañas também acolheu os demais pedidos, já que a Súmula Vinculante 59 do Supremo Tribunal Federal exige a fixação do regime aberto e a substituição da pena de prisão por medidas restritivas de direitos quando é reconhecido o tráfico privilegiado e não há vetores negativos na primeira fase da dosimetria.

Os dias-multa da pena foram reajustados para 166. Já a multa aplicada como parte da substituição da pena é de dez diárias.

Clique aqui para ler o acórdão
Processo 1500426-41.2022.8.26.0559

Fonte: Conjur

Reforma do Código Civil: uma análise dos artigos sobre contrato de seguro

Uma palavra resume a proposta da Comissão de Reforma do Código Civil sobre a atualização dos artigos que tratam do contrato de seguro e da atividade seguradora: equilíbrio.

Os autores conseguiram sintetizar os ajustes necessários e trouxeram para o conjunto das normas não só a evolução tecnológica, como também o repositório jurisprudencial construído desde 2002. Assim como outros países já haviam procedido, modernizando-se, o Brasil contará com um ordenamento balanceado ao consolidar normas equânimes da relação segurado-seguradora.

A distinção feita entre contratos de “adesão” (massificados) e “paritários/simétricos” – nomenclatura extraída da Lei de Liberdade Econômica (13.874/2019) – ou “grandes riscos”, ratifica o modelo internacionalmente aceito e praticado. A Susep iniciou o processo administrativo de flexibilização das condições contratuais no final de 2020 e a reforma do Código Civil consolida esse movimento extremamente positivo.

Conformidade com o mercado internacional
O Brasil avançou e, ainda que tardiamente, ingressou no século 21 no tocante às bases contratuais. Não há como falar em “subscrição” sem que haja a liberdade para o estabelecimento dos termos e condições para cada segurado, todos eles com suas especificidades em relação às exposições de riscos. Na União Europeia, destacando a importância da customização das condições de coberturas, as Diretivas 2002/92/CE e 2016/97/CE, indicam que os mediadores de seguros têm o dever de adequar os produtos para cada cliente, ao menos indicando as razões que nortearam os conselhos dados quanto a um determinado produto, exceto para os “grandes riscos”.

A padronização de clausulados sob o comando estatal, cujo modelo prevaleceu no Brasil desde sempre e até a flexibilização promovida pela Susep (2020), demonstrou que o procedimento é reconhecidamente estagnante e deve permanecer no passado, na história do mercado de seguros brasileiro, sem qualquer tipo de retrocesso.

Alguns ajustes devem ser feitos, no texto proposto para o seguro, mas o conjunto das normas alteradas/inseridas se encontra bem objetivo, atualizado e em conformidade com os mercados internacionais, o que é essencial para o país. Seguros, embora sejam materializados por contratos nacionais e de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, têm estreita conexão com outros mercados, especialmente através dos contratos de resseguro, Facultativos – risco a risco ou Automáticos – de ramos inteiros. Nos grandes riscos a interconexão é mandatória.

A desmonopolização do resseguro, ocorrida através da Lei Complementar nº 126/2007, não foi acompanhada, na ocasião, da liberdade de as seguradoras estipularem as condições contratuais dos diferentes tipos de seguros, sem a prévia padronização e registro junto ao órgão regulador. Os consumidores brasileiros sempre viveram apartados dos demais países, sendo que os produtos padronizados, de forma conducente e extremada pelo Estado, não produziram excelência técnica no atendimento dos interesses seguráveis.

Longe disso, permaneceram amarrados num passado já distante e estagnados no tocante à criatividade, sem a diversidade de modelos de coberturas já comercializados em outros países, inclusive pela grande maioria das seguradoras que também operam aqui no Brasil. A própria Susep superou este paradigma a partir de 2020. As seguradoras privadas adquiriam liberdade de atuação na atividade, cujo cerceamento nunca poderia ter ocorrido. O tempo é outro.

A reforma do Código Civil proposta, convém destacar novamente, está imbuída desse movimento modernizante e coloca o mercado brasileiro no mesmo patamar dos mercados desenvolvidos, cujo movimento é essencial para os consumidores nacionais.

Sugestões 
A reforma não “revoluciona” o sistema a ponto de desconstruir todas as bases já solidificadas e isso é bom para o segmento, para os consumidores e para a continuidade pacífica dos negócios. O processo de renovação é estimulante. Profissionaliza, necessariamente, os agentes do mercado de seguros. Enriquece a técnica subjacente aos contratos de seguros, de cada ramo. Protege de forma adequada e útil os consumidores de seguros. O ordenamento jurídico ajustado e coerente com a atualidade tem o condão de promover esse círculo virtuoso de desenvolvimento.

Em razão de uma análise preliminar do texto proposto, alguns ajustes são recomendados:

  • Parágrafo único do artigo 762 – suprimir, na medida em que a culpa grave, restrita à apreciação/determinação em sede judicial, está superada pela perda de direito em razão da agravação do risco já prevista no artigo 768;
  • Parágrafo único do artigo 763 – desnecessário, apesar da facilidade atual na comunicação eletrônica. As partes devem cumprir as obrigações decorrentes dos contratos;
  • Parágrafo 2º do artigo 766 – todos os proponentes devem prestar informações acerca dos riscos seguráveis e, nos massificados (adesão), se for viável estabelecer tratamento especial, as referidas informações podem ficar circunscritas àquelas solicitadas pela Seguradora, sendo que as eventuais inexatidões devem ser prontamente declaradas/questionadas por ela, ainda na fase pré-contratual;
  • Parágrafo 2º do artigo 768 – inapropriado, uma vez que não se pode transigir a respeito do agravamento intencional do risco;
  • Parágrafo 4º do artigo 769 – é muito extenso o prazo de 30 dias, desnecessariamente;
  • Parágrafo 5º do artigo 771 – inadequada a aplicação exclusiva para os grandes riscos (paritários/simétricos). Em razão do princípio recorrente em seguros de “o que não estiver excluído está coberto”, se for transposto para os termos do parágrafo 5º, pode ensejar a interpretação inadequada de que para os massificados as despesas estarão compreendidas pelas apólices;
  • Parágrafo único do artigo 771-C – inapropriado estabelecer a confidencialidade apenas no tocante aos grandes riscos e mesmo porque as partes são paritárias e podem estabelecer, voluntariamente, as regras aplicáveis sem a necessária ingerência do ordenamento;
  • 771-D – desnecessário, até porque a norma está compreendida no artigo 772;
  • 778 – deve prever a possibilidade de o seguro ser contratado pelo “valor de novo”, notadamente em relação a equipamentos eletrônicos, cuja obsolescência é galopante, além de outros bens, assim como já acontece em relação a mercadorias em geral, veículos novos, etc.;
  • Parágrafo 2º do artigo 786 – inadequada a aplicação exclusiva para grandes riscos.

Outros comentários e sugestões certamente serão apresentados por diversos especialistas e entidades representativas do mercado de seguros, inclusive para os seguros de pessoas. De todo modo, convém destacar, mais uma vez, a relevância do fato de a comissão de reforma ter incluído a parte relativa aos contratos de seguros, tão oportuna e necessária no contexto geral de atualização do ordenamento jurídico civil. A discussão ampliada do tema, através de audiência pública da proposta e no Congresso, estimulará os ajustes necessários, que são poucos em face da qualidade precisa e incontestável do texto proposto. A reforma do Código Civil, abrangendo também os seguros, é muito bem-vinda.

Uma palavra resume a proposta da Comissão de Reforma do Código Civil sobre a atualização dos artigos que tratam do contrato de seguro e da atividade seguradora: equilíbrio.

Os autores conseguiram sintetizar os ajustes necessários e trouxeram para o conjunto das normas não só a evolução tecnológica, como também o repositório jurisprudencial construído desde 2002. Assim como outros países já haviam procedido, modernizando-se, o Brasil contará com um ordenamento balanceado ao consolidar normas equânimes da relação segurado-seguradora.

A distinção feita entre contratos de “adesão” (massificados) e “paritários/simétricos” – nomenclatura extraída da Lei de Liberdade Econômica (13.874/2019) – ou “grandes riscos”, ratifica o modelo internacionalmente aceito e praticado. A Susep iniciou o processo administrativo de flexibilização das condições contratuais no final de 2020 e a reforma do Código Civil consolida esse movimento extremamente positivo.

Conformidade com o mercado internacional
O Brasil avançou e, ainda que tardiamente, ingressou no século 21 no tocante às bases contratuais. Não há como falar em “subscrição” sem que haja a liberdade para o estabelecimento dos termos e condições para cada segurado, todos eles com suas especificidades em relação às exposições de riscos. Na União Europeia, destacando a importância da customização das condições de coberturas, as Diretivas 2002/92/CE e 2016/97/CE, indicam que os mediadores de seguros têm o dever de adequar os produtos para cada cliente, ao menos indicando as razões que nortearam os conselhos dados quanto a um determinado produto, exceto para os “grandes riscos”.

A padronização de clausulados sob o comando estatal, cujo modelo prevaleceu no Brasil desde sempre e até a flexibilização promovida pela Susep (2020), demonstrou que o procedimento é reconhecidamente estagnante e deve permanecer no passado, na história do mercado de seguros brasileiro, sem qualquer tipo de retrocesso.

Alguns ajustes devem ser feitos, no texto proposto para o seguro, mas o conjunto das normas alteradas/inseridas se encontra bem objetivo, atualizado e em conformidade com os mercados internacionais, o que é essencial para o país. Seguros, embora sejam materializados por contratos nacionais e de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, têm estreita conexão com outros mercados, especialmente através dos contratos de resseguro, Facultativos – risco a risco ou Automáticos – de ramos inteiros. Nos grandes riscos a interconexão é mandatória.

A desmonopolização do resseguro, ocorrida através da Lei Complementar nº 126/2007, não foi acompanhada, na ocasião, da liberdade de as seguradoras estipularem as condições contratuais dos diferentes tipos de seguros, sem a prévia padronização e registro junto ao órgão regulador. Os consumidores brasileiros sempre viveram apartados dos demais países, sendo que os produtos padronizados, de forma conducente e extremada pelo Estado, não produziram excelência técnica no atendimento dos interesses seguráveis.

Longe disso, permaneceram amarrados num passado já distante e estagnados no tocante à criatividade, sem a diversidade de modelos de coberturas já comercializados em outros países, inclusive pela grande maioria das seguradoras que também operam aqui no Brasil. A própria Susep superou este paradigma a partir de 2020. As seguradoras privadas adquiriam liberdade de atuação na atividade, cujo cerceamento nunca poderia ter ocorrido. O tempo é outro.

A reforma do Código Civil proposta, convém destacar novamente, está imbuída desse movimento modernizante e coloca o mercado brasileiro no mesmo patamar dos mercados desenvolvidos, cujo movimento é essencial para os consumidores nacionais.

Sugestões 
A reforma não “revoluciona” o sistema a ponto de desconstruir todas as bases já solidificadas e isso é bom para o segmento, para os consumidores e para a continuidade pacífica dos negócios. O processo de renovação é estimulante. Profissionaliza, necessariamente, os agentes do mercado de seguros. Enriquece a técnica subjacente aos contratos de seguros, de cada ramo. Protege de forma adequada e útil os consumidores de seguros. O ordenamento jurídico ajustado e coerente com a atualidade tem o condão de promover esse círculo virtuoso de desenvolvimento.

Em razão de uma análise preliminar do texto proposto, alguns ajustes são recomendados:

  • Parágrafo único do artigo 762 – suprimir, na medida em que a culpa grave, restrita à apreciação/determinação em sede judicial, está superada pela perda de direito em razão da agravação do risco já prevista no artigo 768;
  • Parágrafo único do artigo 763 – desnecessário, apesar da facilidade atual na comunicação eletrônica. As partes devem cumprir as obrigações decorrentes dos contratos;
  • Parágrafo 2º do artigo 766 – todos os proponentes devem prestar informações acerca dos riscos seguráveis e, nos massificados (adesão), se for viável estabelecer tratamento especial, as referidas informações podem ficar circunscritas àquelas solicitadas pela Seguradora, sendo que as eventuais inexatidões devem ser prontamente declaradas/questionadas por ela, ainda na fase pré-contratual;
  • Parágrafo 2º do artigo 768 – inapropriado, uma vez que não se pode transigir a respeito do agravamento intencional do risco;
  • Parágrafo 4º do artigo 769 – é muito extenso o prazo de 30 dias, desnecessariamente;
  • Parágrafo 5º do artigo 771 – inadequada a aplicação exclusiva para os grandes riscos (paritários/simétricos). Em razão do princípio recorrente em seguros de “o que não estiver excluído está coberto”, se for transposto para os termos do parágrafo 5º, pode ensejar a interpretação inadequada de que para os massificados as despesas estarão compreendidas pelas apólices;
  • Parágrafo único do artigo 771-C – inapropriado estabelecer a confidencialidade apenas no tocante aos grandes riscos e mesmo porque as partes são paritárias e podem estabelecer, voluntariamente, as regras aplicáveis sem a necessária ingerência do ordenamento;
  • 771-D – desnecessário, até porque a norma está compreendida no artigo 772;
  • 778 – deve prever a possibilidade de o seguro ser contratado pelo “valor de novo”, notadamente em relação a equipamentos eletrônicos, cuja obsolescência é galopante, além de outros bens, assim como já acontece em relação a mercadorias em geral, veículos novos, etc.;
  • Parágrafo 2º do artigo 786 – inadequada a aplicação exclusiva para grandes riscos.

Outros comentários e sugestões certamente serão apresentados por diversos especialistas e entidades representativas do mercado de seguros, inclusive para os seguros de pessoas. De todo modo, convém destacar, mais uma vez, a relevância do fato de a comissão de reforma ter incluído a parte relativa aos contratos de seguros, tão oportuna e necessária no contexto geral de atualização do ordenamento jurídico civil. A discussão ampliada do tema, através de audiência pública da proposta e no Congresso, estimulará os ajustes necessários, que são poucos em face da qualidade precisa e incontestável do texto proposto. A reforma do Código Civil, abrangendo também os seguros, é muito bem-vinda.

Fonte: CONJUR

* Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.

Educação: uma olhada em dados do censo escolar

Na semana passada, o Ministério da Educação (MEC) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgaram os resultados do Censo Escolar 2023. Este censo  é descrito, na apresentação do Inep, como “o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e a mais importante pesquisa estatística educacional brasileira” [1].

Trata-se de uma grande pesquisa feita por meio de dados declaratórios que abrangem todas as escolas públicas e privadas do país. Podemos enxergar o censo como um retrato do estado da educação básica e profissional do país — esse retrato é composto sobretudo por indicadores que permitem acompanhar o cumprimento dos muitos deveres estatais para com a educação.

Com relação a esses deveres estatais, não é demais relembrar que nossa Constituição caracteriza a educação como direito de todos e dever do Estado e da família (artigo 205), e que os diversos deveres do Estado são previstos expressamente (artigo 208), assim como os recursos vinculados para seu custeio.

O Censo Escolar é essencial para o acompanhamento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) [2].

O PNE é o principal instrumento de planejamento das políticas públicas nacionais, com vigência decenal, lhe cabendo definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para atingir os seguintes objetivos principais: erradicação do analfabetismo; universalização do atendimento escolar; melhoria da qualidade do ensino; formação para o trabalho; promoção humanística, científica e tecnológica do país, e estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto (artigo 214 CF).

Contratos temporários
Passo a comentar duas questões importantes a partir da análise de dados do Censo Escolar referentes à gestão de pessoal da educação pública, ambas destacadas na apresentação coletiva do MEC e Inep e também pela imprensa [3].

A primeira questão é o grande número de docentes das redes estadual e municipal com vínculos precários — contratados temporariamente.

Nas redes estaduais, na maioria dos estados brasileiros o número de professores vinculados por contratos temporários é maior do que o de professores ocupantes de cargo efetivo (como tal, provido por concurso público).

Há casos gritantes como o de Minas Gerais (80,8% de temporários) e o do Tocantins (79,9% de contratados temporários), ao passo em que no Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte, por exemplo, predominam efetivos (95,6% e 93,7%, respectivamente) [4].

Há um problema grave de desobediência ao regime determinado pela Constituição. Com efeito, um dos princípios que orienta a oferta do ensino é a “valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas” (artigo 206, V).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96), no mesmo sentido, estatui:

“Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:

I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim;

III – piso salarial profissional;

IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho;

V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho;

VI – condições adequadas de trabalho”.

A contratação por prazo determinado existe somente para o atendimento de necessidade temporária causada por excepcional interesse público (artigo 37, IX da CF). Trata-se de excepcionalidade, como qualificado pela Constituição, carecendo de fundamento jurídico a perpetuação de contrato sem excesso em detrimento da valorização da carreira e provimento por concurso.

A predominância dos vínculos precários pode até atender o interesse fiscal de determinados estados (despender menos recursos, não comprometer o limite de despesas com pessoal, por exemplo), mas jamais atenderá ao interesse público — por isso, deve ser objeto de atenção por parte das instituições de controle e da sociedade.

Seleção e formação de diretores
A segunda questão observada se refere à forma de escolha dos diretores e diretoras das escolas públicas.

Primeiramente, as boas notícias:  nas redes estaduais, 23% dos diretores são selecionados por meio de processo seletivo qualificado e eleição com participação da comunidade escolar (um crescimento de 5,7% com relação ao ano de 2022) e 13,7% são selecionados por meio de processo seletivo qualificado de escolha (crescimento de 6,3% com relação ao ano anterior).

Agora, o dado mais preocupante nesse quesito: nas redes municipais, 45,8% dos diretores e diretoras são escolhidos exclusivamente por indicação/escolha da administração (tendo sido constatado, é verdade, diminuição nesse percentual).

Há farta literatura demonstrando a importância dos diretores escolares para a qualidade da educação, incluindo a materialização da gestão democrática [5].

As boas notícias sacadas dos dados relativos à escolha de diretores certamente devem ser creditadas à criação de uma complementação financeira da União para as redes públicas que cumpram determinadas condicionalidades. Trata-se da complementação Vaar (valor aluno ano resultado), criado pela Lei do novo Fundeb (Lei nº 14.113/2020).

De acordo com a referida lei, uma das condicionalidades para o recebimento da complementação por estados e municípios é o:

provimento do cargo ou função de gestor escolar de acordo com critérios técnicos de mérito e desempenho ou a partir de escolha realizada com a participação da comunidade escolar dentre candidatos aprovados previamente em avaliação de mérito e desempenho” (artigo 14, §1º, inciso I) [6].

Em ampla pesquisa intitulada “Seleção e formação de diretores — mapeamento de práticas em estados e capitais brasileiras” [7], realizada pela D3E, Atricon e Todos pela Educação, foram feitas recomendações importantes relativas à seleção e ao acesso à gestão escolar: adotar critérios técnicos combinados a processos democráticos, conforme previsto no Plano Nacional de Educação (PNE) e na nova lei do Fundeb, e realizar processos seletivos mistos que combinem mais de uma etapa de seleção.

No tocante à formação dos diretores — outra questão que merece análise à luz dos dados do censo — as recomendações foram: garantir oportunidades de formação e desenvolvimento aos professores que desejam se tornar diretores ou àqueles que já estão atuando na gestão; debater as questões relativas ao tempo de duração do mandato, que impactam diretamente o desenho dos tipos de formação a serem oferecidos e seu tempo de duração; avaliar os cursos de formação,  e promover cursos de formação com maior conexão entre teoria e prática.

Conclusão
A realização de pesquisas e a análise de resultados é essencial para o planejamento, monitoramento e avaliação de políticas públicas. Na educação pública, a afirmativa ganha mais relevância quando se constata que há todo um projeto constitucional construído com o fim de garantir educação pública de qualidade e alcançar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para a cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Reconhecer a cogência desse projeto e a juridicidade dos instrumentos que o delineiam (como o Plano Nacional de Educação) é essencial para avançarmos na construção de um país que possa realmente buscar o bem de todos.


https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2023/apresentacao_coletiva.pdf
https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar
https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/02/23/censo-escolar-2023-tres-estados-ainda-somam-mais-de-85percent-dos-diretores-nomeados-por-indicacao-politica-veja-a-lista.ghtml
https://www.estadao.com.br/educacao/tres-noticias-boas-e-dois-problemas-sobre-a-educacao-basica-revelados-pelos-dados-do-mec/

A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federativas

O Censo Escolar é o principal instrumento de coleta de informações da educação básica e a mais importante pesquisa estatística educacional brasileira. É coordenado pelo Inep e realizado em regime de colaboração entre as secretarias estaduais e municipais de educação e com a participação de todas as escolas públicas e privadas do país. A pesquisa estatística abrange as diferentes etapas e modalidades da educação básica e profissional:

  • Ensino regular (educação infantil, ensino fundamental e médio);
  • Educação especial – escolas e classes especiais;
  • Educação de Jovens e Adultos (EJA);
  • Educação profissional e tecnológica (cursos técnicos e cursos de formação inicial continuada ou qualificação profissional).

A  pesquisa estatística tem caráter declaratório e é dividida em duas etapas. A primeira etapa do Censo Escolar  coleta informações sobre os estabelecimentos de ensino, gestores, turmas, alunos e profissionais escolares em sala de aula. A segunda etapa coleta informações sobre o movimento e o rendimento escolar dos alunos, ao final do ano letivo.

O Censo Escolar é realizado anualmente e a declaração é obrigatória para todas as escolas públicas e privadas do país. Além disso, é regulamentado por instrumentos normativos que instituem a obrigatoriedade, os prazos, os responsáveis e suas responsabilidades, bem como os procedimentos para realização de todo o processo de coleta de dados.

[1] https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/pesquisas-estatisticas-e-indicadores/censo-escolar

[2] Sobre o PNE já escrevemos neste mesmo espaço: https://www.conjur.com.br/2023-jun-29/interesse-publico-plano-nacional-educacao-ppa-proximidade-necessaria/

[3] https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2024/02/23/censo-escolar-2023-tres-estados-ainda-somam-mais-de-85percent-dos-diretores-nomeados-por-indicacao-politica-veja-a-lista.ghtml

https://www.estadao.com.br/educacao/tres-noticias-boas-e-dois-problemas-sobre-a-educacao-basica-revelados-pelos-dados-do-mec/

[4] Os dados constam do gráfico 68 disponibilizado na apresentação coletiva. O gráfico 69 trata das redes municipais, por Estado da federação. Disponível em: https://download.inep.gov.br/censo_escolar/resultados/2023/apresentacao_coletiva.pdf

[5] Remetemos o leitor e a leitora à bibliografia específica utilizada para elaboração do relatório da pesquisa “Seleção e formação de diretores – mapeamento de práticas em estados e capitais brasileiras”, realizada pela D3E, Atricon e Todos pela Educação. Relatório disponível em: https://d3e.com.br/wp-content/uploads/relatorio_2305_selecao-formacao-diretores.pdf Acesso em 26 de fevereiro de 2024.

[6] O FNDE divulgou a relação de Municípios inabilitados ao recebimento dos recursos da Complementação Valor Anual Aluno Resultado(VAAR), previstos para o exercício de 2024, em função do não cumprimento das condicionalidades contidas no artigo 14 da Lei Federal nº 14.113/2020 (Lei do FUNDEB): Disponível em: https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-programas/financiamento/fundeb/2024/Redesinabilitadaspormotivo.pdf. Acesso em: 15 fev. 2024.

[7] Relatório disponível em: https://d3e.com.br/wp-content/uploads/relatorio_2305_selecao-formacao-diretores.pdf Acesso em 26 de fevereiro de 2024.

Fonte: Conjur

Em se tratando de medidas provisórias, quem só vê taxa não vê aprovação

A função típica do Poder Legislativo é legislar. Mas a Constituição de 1988 desenhou um modelo de atividade legislativa fortemente centralizado no Poder Executivo, responsável por uma série de ferramentas, como a iniciativa legislativa reservada, o poder de editar medidas provisórias, o pedido de urgência na tramitação de proposições, etc.

Entretanto, sem o Congresso, o presidente não governa, daí que parte das atenções se volta para as relações entre Executivo e Legislativo para avaliar o desempenho legislativo dos governos.

Desde um ponto de vista estritamente jurídico, as chaves de análise baseadas na separação dos poderes, na lógica do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) ou no aspecto estrito da estrutura das normas são insuficientes na compreensão da produção legislativa, sobretudo desde uma perspectiva realista como se propôs aqui.

Torna-se necessário fazer incursões empíricas e interdisciplinares para examinar a produção legislativa do Executivo.

Ocorre que, mesmo quando se parte para a literatura da ciência política, por exemplo, há problemas que não são resolvidos, e a realidade pode até ser distorcida, o que converte as pesquisas legislativas em um campo verdadeiramente desafiador.

Daí que a coluna de hoje — dando sequência às participações anteriores — aponta mais uma imprecisão na forma como parte da academia mede e dissemina seus achados de pesquisa envolvendo as medidas provisórias.

Taxa de sucesso e de dominância
Como sabido, a ciência política trabalha especialmente com dois indicadores bastante tradicionais: a taxa de sucesso (leia-se, o percentual de aprovação das propostas apresentadas pelo Executivo, em relação ao total de iniciativas desse mesmo poder) e a taxa de dominância legislativa do Executivo (isto é, a participação de iniciativas deste último no universo dos projetos aprovados pelo Congresso).

A taxa de sucesso pode ser segmentada por espécie de proposição ou considerar todas juntas (por exemplo, projetos de lei, medidas provisórias, propostas de emenda à Constituição, projeto de lei do Congresso).

Para chegar à taxa de sucesso do Executivo, basta dividir o número das proposições aprovadas pelo número das apresentadas por esse poder.

Já a taxa de dominância é encontrada a partir da divisão do número de leis aprovadas de iniciativa do Poder Executivo pelo total de leis aprovadas no mesmo período, considerando, portanto, as demais iniciativas legislativas.

Observatório do Legislativo Brasileiro monitora esses indicadores em um painel, permitindo visualizar as oscilações ano a ano. A cada ano os números são atualizados, pois essas métricas — ao lado de outras, como o percentual de votações nominais versus simbólicas, a disciplina partidária da base quando há orientação do governo, etc. — expressam a força do Executivo ou o apoio da coalizão.

O problema de indicadores como a taxa de sucesso e a taxa de dominância está em que não captam o emendamento parlamentar, cuja magnitude pode impingir verdadeiras derrotas às preferências do Executivo, que, no entanto, acabam sendo contabilizadas no saldo positivo simplesmente porque houve aprovação, sem olhar para o conteúdo da matéria.

Então, a possível distorção desses indicadores precisa ser olhada com lupas. Do contrário, o indicador não se presta a medir adequadamente o fenômeno investigado.

Exemplos mais concretos ajudam a compreender o argumento
MP nº 1.154/2023, que tratou da estruturação da Esplanada, foi aprovada pelo Congresso, entrando para a taxa de sucesso. Porém, deve-se registrar que foram apresentadas 154 emendas a essa MP, das quais 62 foram acatadas pelo relator, o deputado Isnaldo Bulhões Júnior (MDB-AL).

Com isso, foram revertidas escolhas da versão original da MP. Por exemplo, no art. 42 da MP nº 1154/2023, a demarcação de terras indígenas e quilombolas tinha sido atribuída ao Ministério dos Povos Indígenas, mas durante a tramitação essa responsabilidade foi dividida entre duas outras pastas: o Ministério da Justiça e Segurança Pública (terras indígenas, art. 35) e Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (quilombolas, artigo 25). Assim, a MP nº 1154/2023 foi convertida na Lei nº 14.600/2023, mas não exatamente nos termos pretendidos pelo Executivo.

Nessa mesma MP da reestruturação da Esplanada, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) — que tinha sido extinta com a edição da MP nº 1.156/2023, tendo suas atribuições divididas entre o Ministério da Saúde e o Ministério das Cidades — acabou sendo recriada.

Explica-se. Por falta de acordo, sabia-se que a MP nº 1156/2023 não seria votada e, de fato, essa MP acabou caducando. Tentando contornar isso, a pedido do governo, o relator da reestruturação da Esplanada chegou a incorporar a extinção da Funasa na MP nº 1154/2023.

Entretanto, essa previsão foi retirada durante a votação dos destaques da MP da reestruturação da Esplanada, que, repita-se, foi aprovada, mas nesse ponto representou mais uma derrota. Em resumo, por duas vezes o governo tentou extinguir a Funasa e a matéria foi rejeitada, mas um desses casos entrou como sucesso.

Como se vê, a aprovação das medidas provisórias (e da legislação em geral) é complexa e sua compreensão por um único indicador binário é inadequada. A vitória ou derrota do Executivo não cabe na simples aprovação ou não de uma única proposição pelo Legislativo.

Uma mesma matéria pode entrar em mais de uma MP, seja via emendamento parlamentar, seja pela reinserção em MP na sessão legislativa subsequente. As discussões se desenrolam ao longo do tempo e isso precisa ser levado em consideração.

De acordo com a literatura da ciência política, o primeiro ano de governo costuma ser o de maior força, com as maiores taxas de sucesso.

Quando os últimos números do atual governo saíram no início de 2024, com a manchete de que o presidente Lula teve o menor índice de medidas provisórias aprovadas em comparação aos seus antecessores, nos primeiros 11 meses de mandato, o governo logo se apressou em explicar que houve matérias veiculadas em MPs não aprovadas que, mesmo assim, acabaram virando lei, pois seu conteúdo foi incorporado a projetos de lei aprovados.

De certa forma, por tudo o que se acaba de explicar, a lógica do governo está certa. De fato, quem só olha para a taxa de aprovação não tem a real dimensão dos conteúdos que se tornaram norma.

Isso vale tanto para derrotas relativas computadas como vitórias plenas — como no caso que se acaba de mencionar da MP nº 1154/2023 (Reestruturação da Esplanada) —, quanto o contrário: matérias não aprovadas em um primeiro momento, que acabaram sendo convertidas em lei depois.

Tudo indica que isso acontecerá mais uma vez, por exemplo, com a MP nº 1.202/2023, na parte em que determinou a reoneração gradual da folha de pagamento de pagamento para 17 setores produtivos a partir de 1º de abril de 2024. Segundo vem sendo noticiado, o presidente da República apresentará um projeto de lei sobre o tema.

Com base nessa constatação — de que a taxa de sucesso apurada de forma só quantitativa vem perdendo sua capacidade para servir como um indicador preciso, capaz de dar conta do grau real de alinhamento entre os poderes Executivo e Legislativo —, Cesar Rodrigues van der Laan vem fazendo um minucioso levantamento quanto às MPs editadas entre 2019 e 2022 (durante o governo Bolsonaro).

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, feita manualmente, porque esse tipo de coleta e análise não pode ser automatizada.

Para tanto, o autor está examinando cada uma das MPs do período.

A leitura, uma a uma, tem o propósito de verificar os casos em que as matérias acabaram sendo aprovadas em um segundo momento (ou seja, derrotas que depois se tornaram vitórias) ou os casos em que, mesmo tendo caducado, as MPs cumpriram seu papel (ou seja, situações de não aprovação que devem ser lidas como sucesso).

Para ficar em só um dos exemplos trazidos por ele, cite-se o caso da MP nº 1.013/2020, bastante ilustrativo do crescente uso estratégico que vem sendo feito das MPs.

A referida MP alterou o artigo 7º da Lei nº 10.480, de 2 de julho de 2002, para prorrogar o prazo de recebimento de gratificações por servidores ou por empregados requisitados pela Advocacia-Geral da União (AGU) até 2 de dezembro de 2022.

Embora não tenha sido convertida em lei (por decurso do prazo sem votação), a MP nº 1013/2020 gerou efeitos concretos enquanto vigeu e amparou pagamentos até abril de 2021.

Então, sem solução de continuidade, foi editada a MP nº 1.042/2021, que promoveu uma reestruturação das gratificações, eliminando a provisoriedade até então vigente, tendo-se convertido na Lei nº 14.204, de 16 de setembro de 2021.

A MP nº 1042/2021 representou uma continuação da MP nº 1.013/2020. Embora a primeira tenha revogado as alterações que a última fez no referido artigo 7º da Lei nº 10.480/2002, ambas precisam ser lidas em conjunto e representam uma vitória do Executivo, seja porque no primeiro round a MP nº 1013/2020 surtiu os efeitos esperados — mesmo não aprovada pelo Congresso deve entrar como vitória —, seja porque no segundo round a MP nº 1.042/2021 resolveu o imbróglio de vez.

Enganos
O trabalho de Cesar Rodrigues van der Laan está em andamento, mas já se revela promissor para mostrar a discrepância da métrica tradicional em consideração às nuances comentadas acima.

Sem adiantar seus achados, basta registrar que ele encontrou uma variação percentual de 31% nas taxas de sucesso, dependendo de a medição ter sido em caráter quantitativo ou qualitativo, uma diferença muito significativa em se tratando de um mesmo fenômeno sob análise.

Com isso, chega-se à síntese do argumento de hoje: mesmo o giro empírico das pesquisas legislativas pode trazer enganos.

Começa-se a ver produções guiadas por estudos quantitativos (a partir de coletas automatizadas) e artigos repletos de gráficos em coluna, em barra, em pizza, em linha, em rede, etc., que até podem embelezar os trabalhos, mas vêm com conclusões — quando não vazias — no mínimo imprecisas, como se acaba de explicar. Com pesquisas exclusivamente quantitativas, perde-se uma dimensão importante.

Atenta a esse ponto, Helen Romero cuidou de estruturar sua pesquisa empírica sobre a edição de MPs e a relação entre a Presidência da República e o Congresso com base em nove variáveis: quantidade, temática, relevância, resultado, tempo, emendas, decisão, veto e deliberação. Tais variáveis foram cruzadas, levando às conclusões pertinentes. Só assim é possível perceber a interação estratégica e as táticas de que o Executivo lança mão para alcançar seu objetivo junto ao Legislativo.

Uma das dificuldades das pesquisas sobre a produção legislativa, sobretudo envolvendo a relação entre o Poder Executivo e o Congresso Nacional, está nisso: para serem bem feitas, certas investigações precisam ser feitas “na unha”, como se diz, manualmente, de forma qualitativa.

Trabalhar só com números, de forma cega para o que de fato significam, pode gerar distorções. O exemplo da taxa de sucesso quantitativa versus qualitativa envolvendo as medidas provisórias é ilustrativo disso.

Só lendo cada uma das proposições para compreender as tendências. Só a partir dos números de não aprovação, por exemplo, não é possível enxergar que, na verdade, o que amentou foi a quantidade de MPs “feitas para caducar”, bem como a maior utilização da via dos PLs para tratar, com êxito, de assuntos que não foram aprovados em MPs.

É desperdício de tempo dedicar-se a computar mecanicamente números em certos fenômenos sociais e humanos. É preciso melhorar os resultados quantitativos das pesquisas e análises, apresentá-los em moldura qualitativa, evitando recair na falácia da falsa precisão.

Deparando-se com dilema semelhante, John Maynard Keynes bem sintetizou o ponto numa frase que, a despeito de pensada para o âmbito da economia e dos investimentos, vem bem a calhar para a pesquisa empírica na Ciência Política e no Direito: “é melhor estar aproximadamente certo do que precisamente errado”.

Fonte: Conjur

Ausência de advogado doente em audiência isenta pagamento das custas, decide TST

A ação trabalhista demanda conhecimentos técnicos que auxiliam a parte na condução da causa. Com base nessa premissa, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho decidiu nesta quarta-feira (21/2) que o autor de um processo não precisa pagar as custas processuais se seu advogado não comparece à audiência de instrução e julgamento por estar doente.

Advogada ficou doente e não pôde comparecer à audiência – Freepik

O caso é o de um pedido de indenização por morte de familiar em acidente de trabalho. Minutos antes da audiência, os autores da ação foram informados de que sua advogada estava doente e, por isso, não poderia comparecer.

O §2º do artigo 844 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) diz que o autor deve ser condenado ao pagamento das custas em caso de ausência na audiência de julgamento, exceto se comprovar, em até 15 dias, que houve motivo “legalmente justificável”.

No caso julgado, a parte contrária argumentou que a defesa dos autores era feita por uma banca com dois advogados habilitados. Assim, se uma advogada estava impossibilitada de comparecer à audiência, ainda havia outro profissional para cumprir esse papel.

Outro argumento usado foi o de que a regra da CLT se refere apenas às partes. Assim, se é o advogado quem está impossibilitado de ir à audiência, o Judiciário não poderia isentar o autor das custas.

Entretanto, a decisão de segunda instância afastou o pagamento das custas processuais, que eram de R$ 56,4 mil. A defesa da parte ré, então, recorreu ao TST.

O ministro Breno Medeiros, relator do caso na corte superior, afirmou que a ação em questão demandava “conhecimentos técnicos sobre responsabilidade civil nas relações de emprego”. Por isso, ele considerou correta a conclusão da segunda instância.

O magistrado ainda ressaltou que a existência de outro advogado na banca responsável pela defesa da parte autora não foi registrada no acórdão de segundo grau.

RR 480-05.2022.5.08.0116

Fonte: Conjur

Regra de impenhorabilidade vale para conta corrente se preservar sobrevivência do devedor

A regra que proíbe a penhora de valores depositados em caderneta de poupança até o limite de 40 salários mínimos pode ser estendida para casos de conta corrente ou qualquer aplicação financeira, desde que o montante sirva para assegurar a sobrevivência do devedor.

Lucas Pricken/STJ

Para ministro Herman Benjamin, impenhorabilidade só vale se devedor provar que dinheiro é para sua sobrevivência

A conclusão é da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, que nesta quarta-feira (21/2) deu provimento a dois recursos especiais ajuizados pela União contra particulares na tentativa de bloquear valores pelo sistema Bacenjud.

Com o provimento, os casos voltam ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, para que analise se os montantes que são alvo de constrição representam reserva destinada à sobrevivência do devedor.

A solução foi dada pelo ministro Herman Benjamin, relator do caso, após levar em consideração voto-vista anterior do ministro Luis Felipe Salomão. O caminho encontrado fez com que a votação na Corte Especial fosse unânime.

A impenhorabilidade de valores de até 40 salários mínimos depositado em caderneta de poupança está prevista no artigo 833, inciso X do Código de Processo Civil.

A dúvida é se essa proteção poderia ser estendida a valores em conta corrente ou outras aplicações financeiras.

“Se a medida de bloqueio/penhora judicial por meio físico ou eletrônico atingir dinheiro mantido em conta corrente ou qualquer outra aplicação financeira, poderá, eventualmente, a garantia da impenhorabilidade ser estendida a tal investimento”, disse o relator.

“Desde que comprovado pela parte atingida pelo ato constritivo que referido montante constitui reserva de patrimônio destinado a assegurar o mínimo existencial”, complementou.

REsp 1.660.671
REsp 1.677.144

Fonte: Conjur