Violência política e imunidade parlamentar: limites e vedações

Neste mês, presenciamos pela primeira vez no país a cassação de um vereador do município de São Paulo por suas declarações racistas. O momento enseja reflexão, e neste ensaio traremos algumas das diversas considerações que merecem um olhar atento.

Camilo Cristófaro (Avante) foi processado pela Câmara Municipal de São Paulo, e teve o seu mandato cassado por quebra de decoro parlamentar, com 47 votos a favor e 5 abstenções, na maior cidade do país, que tem a sua população local representada por 55 integrantes do legislativo.

Em um áudio vazado, durante uma sessão remota da Comissão Parlamentar de Inquérito — CPI dos Aplicativos —, o vereador foi ouvido dizendo: “é coisa de preto”, uma fala inegável e indiscutivelmente racista!

A função legislativa, uma das três exercidas pelo Estado, engloba atribuições de predominância relacionadas à atividade fiscalizadora (BRASIL. CRFB, 1988, artigo 49, X), por exemplo, e de elaboração de leis (BRASIL. CRFB, 1988, artigo 59 ss.), para além de outras, de natureza atípica ou não predominante, concernentes à sua competência julgadora, como nos casos em que a Câmara dos Deputados autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o(a) Presidente(a) e o(a) Vice-Presidente(a) da República (BRASIL. CRFB, 1988, artigo 51, I), e o Senado Federal processa-os e julga-os pela suposta prática de crime de responsabilidade (BRASIL. CRFB, artigo 52, I); ou, ainda, quando desempenha atividades de cunho administrativo.

Essas e outras atribuições do Legislativo são de competência dos(as) parlamentares eleitos e eleitas diretamente pelo povo, em uma manifestação da soberania popular, caracterizando a representatividade da democracia indireta, uma das bases do Estado Social Democrático de Direito brasileiro, cujos fundamentos e limites são constitucionalmente definidos e, portanto, devem ser respeitados, seja porque a Constituição é a norma que legitima social, jurídica e politicamente tal manifestação de poder; seja porque o princípio da separação das funções do Estado, e o sistema de “freios e contrapesos”, outro axioma que subsidia a formação do Estado brasileiro constituído a partir da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, estabelecem parâmetros que devem ser seguidos para a efetivação do equilíbrio e da independência entre os três poderes. A imunidade parlamentar representa um desses parâmetros.

Prevista no texto normativo constitucional a partir do artigo 53, a imunidade parlamentar, como garantia para o livre exercício das competências legislativas, não é prerrogativa de titularidade subjetiva, direito ou mesmo privilégio de cada representante popular; pelo menos, não foi tal a razão da sua previsão, tanto que são inalienáveis.

Pensada para operar como um mecanismo de proteção da liberdade e da não sujeição às pressões autoritárias e exógenas, para além da vontade popular, a imunidade parlamentar se apresenta como uma garantia institucional, e se manifesta a partir de distintas perspectivas — material ou formal – e seu início é marcado pela diplomação, ou posse, no caso da imunidade material do(a) representante popularmente eleito(a).

Por ocasião das reflexões trazidas neste ensaio, cumpre-nos pontuar alguns vieses que as acompanham acerca da imunidade material, a partir da perspectiva da violência política.

caput do artigo 53 (BRASIL, CRFB, 1988) estabelece que deputados(as) e senadores(as) são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Ainda que o constituinte não tenha demarcado o prazo ab initio da vigência desta imunidade, resta evidente, pela elaboração do texto normativo, que é a posse que instaura esse momento, porque é a partir de quando serão emitidas palavras, opiniões e proferidos votos em razão da atuação na Casa legislativa.

Assim, se a premissa da imunidade parlamentar é a de garantir o exercício da função legislativa, sob a perspectiva material, tal garantia institucional iniciar- se-á com as atividades legislativas, marcadas pela posse.

De todas as manifestações da imunidade parlamentar, o que temos hoje é que a material é a única que acompanha o Legislativo em todas as unidades federativas; portanto, vereadores e vereadoras, nos termos do artigo 29, VIII (BRASIL.CRFB, 1988), também são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato e na circunscrição do Município, matéria que teve repercussão geral reconhecida e mérito julgado pelo Supremo Tribunal Federal, nestes termos: “[…] nos limites da circunscrição do Município e havendo pertinência com o exercício do mandato, os vereadores são imunes judicialmente por suas palavras, opiniões e votos” (RE 600.063 , red. do ac. min. Roberto Barroso, j. 25-2-2015, P, DJE de 15-5-2015, Tema 469.)

Um segundo aspecto interessante para o recorte deste artigo se refere ao alcance horizontal da imunidade material, que não é absoluta porque limitada pela própria Constituição que a estabelece. Independentemente de onde estiver, o(a) parlamentar será imune, sob a perspectiva material, desde que exercendo atividades durante e em razão do seu mandato; isto porque, a função legislativa compreende ações que são realizadas para além dos limites da casa parlamentar, em visitas à base política, muitas vezes realizadas durante os fins de semana, quando estão nas suas cidades.

Ocorre que a imunidade parlamentar, mesmo quando opera no recinto, virtualmente ou não, da casa legislativa não é absoluta; a própria função parlamentar, que justifica a imunidade, deve atender aos parâmetros constitucionais, princípios e normas estabelecidos pelo constituinte derivado ou reformador, e onde quer que a imunidade parlamentar seja aplicada, mesmo para além do parlamento, tais limites devem ser observados, considerando que a representação popular requer que sejam preservados os valores da liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça como bases supremas de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, tal como nos apresenta o intróito da norma constitucional expresso no preâmbulo do seu texto.

Em entendimento manifestado em sede de Inquérito nº 3.932 (e Pet nº 5.243), de relatoria do ministro Luiz Fux, restou assentado que entrevista concedida a veículo de imprensa não atrai a imunidade parlamentar, porque, in casu, ao afirmar que não estupraria a deputada federal porque ela “não merece” confere a esse delito gravíssimo o caráter de prêmio ou benesse à mulher, reforçando uma relação de subalternização da mulher em relação ao homem, também nesse espaço político, ao pretender que ele, o homem, pudesse avaliar o merecimento de uma mulher em ser ou não estuprada.

Assim, tais manifestações, absolutamente estranhas ao exercício do mandato legislativo, e mesmo a qualquer convívio digno em uma sociedade, que deve ser revestida por um mínimo grau de civilidade, ainda que a entrevista tenha sido concedida no interior da casa parlamentar, não atenua a gravidade do ato, tampouco aproxima a incidência da imunidade parlamentar, conquanto essa nem sequer poderia ter sido lançada como fator de proteção de uma subjetividade e ilícita, violando, assim, as premissas do instituto de tal garantia.

Vejamos que a imunidade parlamentar não pode ser utilizada como um manto protetor de arbitrariedade e violações de direitos, principalmente, porque existe uma responsabilidade política que deve ser arcada por quem se predispõe a ocupar os espaços de poder e decisórios como representantes populares; ademais, não existe qualquer obrigatoriedade imposta pela legislação nacional ou supranacional no que toca ao exercício dessa manifestação que se expressa por meio da capacidade eleitoral passiva.

Em outros termos, quem concorre aos cargos eletivos precisa respeitar as regras do jogo democrático, ter responsabilidade política e conhecer não apenas os termos constitucionais, como os limites impostos ao longo dessa jornada democrática.

Infelizmente, a realidade brasileira nos situa em um cenário ainda mais insólito quando as reflexões acerca da imunidade parlamentar perpassam pelos debates referentes às múltiplas formas de violência política.

Entender política é compreender como, através da manifestação de poder, um status quo pode ser (re)pensado de forma que as necessidades sociais e demandas públicas sejam satisfeitas da melhor forma a minimizar os (des)níveis abissais de desigualdades que nos assolam, nas mais distintas perspectivas. Portanto, a política acontece a todo momento, e a violência a acompanha, infelizmente, em espaços institucionalizados ou não.

Nessa medida, uma das principais questões relacionadas ao debate de gênero, por exemplo, e ainda partindo de uma perspectiva binária da sociedade, consiste exatamente na relação de opressão do homem em relação à mulher: o uso do poder não como um elemento agregador, mas de controle, submissão e opressão. O mesmo ocorre em relação às pessoas negras, indígenas, quilombolas que se inserem em grupos de vulnerabilidades as mais diversas em uma sociedade marcadamente desigual, como a brasileira.

E trazer essa perspectiva para o ambiente da imunidade parlamentar faz-se necessária, sob dois enfoques: porque as pessoas vítimas da violência política também são mandatárias populares; e também quando parlamentares, valendo-se do que supõem como caráter absoluto da imunidade parlamentar, usurpam da confiança que foi em si depositada pelo povo e de forma irresponsável, não apenas sob a perspectiva política, como civil e penal, praticam violências, mesmo quando não estão no espaço da casa legislativa.

Agridem, portanto, quem deveriam proteger, e, inclusive, seus próprios pares!

A ocupação pelas mulheres e de pessoas negras das casas parlamentares, e outras esferas de poder, é o resultado de muitas lutas. Em uma sociedade historicamente estruturada pela hierarquização do seu povo em razão de fatores que implicam exclusão, inclusive política, é um constante romper barreiras à entrada em espaços, como a política, não pensados para e pelos sujeitos marginalizados.E mais: revela muito quem somos como sociedade preconceituosa e das dificuldades enfrentadas por distintos segmentos para exercerem direitos reconhecidamente fundamentais, em uma carta cidadã, de modo que a autodeterminação como indivíduo e autonomia do seu ser possam ser exercidas livremente.

Quando pessoas que integram grupos vulnerabilizados 1 socialmente se inserem nesses espaços de poder ou decisórios, são vistas por muitos como intrusas, porque supostamente não lhes cabem tais funções, em uma sociedade pensada sob o olhar hierarquizado de um(a) opressor(a), protagonistas que, sob sua ótica, devem ser. Sob a perspectiva da mulher, quando apresentamos as distintas interseccionalidades que atravessam o debate de gênero, considerando a inexistência da mulher universal e única, mas sim, de mulheres, identificamos que apesar de serem igualmente titulares dos mesmos direitos, nos termos constitucionais, deparam-se com distintos obstáculos, mais ou menos pesarosos, para o exercício do que a ordem constitucional lhes garante, a depender de onde se situam nessa escala das vulnerabilidades que marcam a existência, e a construção, do seu ser, como mulher.

Inegável, parece-nos a necessidade de reafirmar um compromisso coletivo — e mais que isso: cumprir os ditames constitucionais, acerca da efetivação dos limites à atuação do parlamentar, no exercício de uma função pública que clama por respeito e punições diante da violação de direitos mais básicos, como os da igualdade de gênero e racial, p. ex., e de valores essenciais ao Estado democrático de Direito, como o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana, insculpidos no artigo 1º (BRASIL. CRFB, 1988). E por quem se predispôs a ser a voz do povo e, assim, em sua diversidade, essência e existência, respeitá-lo, no exercício de sua autonomia e dignidade humana.

Portanto, no âmbito civil, a responsabilidade pelo pagamento de indenizações por danos morais, e eventualmente patrimoniais, do mandatário que pratica violência política é inequívoca.

Assim como também o é na seara criminal, com amparo na Lei nº 14.192, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher, e de acordo com o artigo 359-P, do Código Penal, tipifica como crime a violência política, com pena de reclusão de três a seis anos, e multa, além da pena correspondente à violência, restringir, impedir ou dificultar, com emprego de violência física, sexual ou psicológica, o exercício de direitos políticos a qualquer pessoa em razão de seu sexo, cor, etnia, religião ou procedência nacional; isso, sem observar outras tipificações de eventuais crimes contra a honra, como calúnia, injúria, difamação, a depender do caso concreto.

Inequivocamente, incide a responsabilidade política, nos termos da norma contida no artigo 55, da Constituição, que determina a perda do mandato parlamentar, nas situações previstas em seus incisos, cuja incidência se aplica aos casos de violência política de gênero, em outra hipótese constitucional, a depender dos delineamentos da situação fática.

Sendo assim, a inviolabilidade civil, penal e política deve ser afastada diante de agressões praticadas por quem deve servir o povo e ser o(a) defensor(a) do bem-social, fraternidade e justiça, como valores supremos da ordem constitucional que legitima a ocupação dos espaços de poder, públicos e decisórios.

*Baseado no artigo “Violência política de gênero no sistema internacional e no ordenamento interno: o Estado Constitucional Cooperativo sob enfoque” escrito pelas duas autoras e publicado na Revista Direito Mackenzie 2023, v.17, n.1, p. 1-31 ISSN – 23172622.


1 “As condições de existência material dessa população negra remetem a condicionamentos psicológicos que devem ser atacados e desmascarados. Os diferentes modos de dominação das diferentes fases de produção econômica no Brasil parecem coincidir em um mesmo ponto: a reinterpretação da teoria do lugar natural, de Aristóteles. Desde a época colonial aos dias de hoje, a gente saca a existência de uma evidente separação quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias amplas, espaçosas, situadas nos mais belos recantos da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes tipos de policiamento: desde os antigos feitores, capitães do mato, capangas, etc. até a polícia formalmente constituída. Desde a casa-grande e do sobrado, até os belos edifícios e residências atuais, o critério tem sido sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é o oposto, evidentemente. Da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos “habitacionais” (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço. No caso do grupo dominado, o que se constata são famílias inteiras amontoadas em cubículos, cujas condições de higiene e saúde são as mais precárias” (GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. p. 14-15).

Fonte: Conjur

STF vai decidir sobre crédito de ICMS em operação de combustíveis

O Supremo Tribunal Federal vai decidir se a manutenção do crédito de ICMS relativo às operações internas anteriores à que destina combustível derivado do petróleo a outro estado é constitucional. A matéria é objeto de recurso extraordinário (RE) com repercussão geral (Tema 1.258).

O tema diz respeito à operação de distribuidora que adquire combustíveis derivados de petróleo de outra pessoa jurídica situada no mesmo estado (operação interna) e, quando verifica situação favorável, vende parcela desses produtos para outro estado.

Em razão da operação interna, ela se credita do ICMS e, por ocasião da operação interestadual, não estorna o crédito. Assim, a questão é saber se o estado de origem pode manter o ICMS referente às operações anteriores à interestadual, sobre a qual não incide o imposto.

O recurso foi interposto por uma distribuidora de Minas Gerais contra decisão do Tribunal de Justiça local que permitiu ao estado de origem manter o imposto referente às operações anteriores à interestadual.

Para a empresa, esse entendimento viola o princípio da não cumulatividade, pois resulta na dupla tributação do produto. A distribuidora sustenta que caberia exclusivamente ao estado de destino da mercadoria todo o imposto sobre os combustíveis, desde a produção até o consumo.

Manifestação
Para o relator do recurso, ministro Dias Toffoli, a matéria afeta as atividades de um relevante ramo da economia nacional e merece ser examinada pelo Supremo na sistemática da repercussão geral, a fim de conferir unidade na interpretação das normas constitucionais apontadas como violadas. Com informações da assessoria de imprensa do STF.

RE 1.362.742

Crime de atentado à democracia — uma análise jurídica

O Código Penal, no Título XII da Parte Especial, trata “Dos Crimes contra o Estado Democrático de Direito“. No capítulo II desse título estão os “Crimes contra as Instituições Democráticas”, dentro do qual se insere o artigo 359, L, que tipifica o delito de atentado violento ao Estado democrático de Direito. De acordo com mencionado dispositivo, constitui infração penal punível com reclusão de 4 a 8 anos, mais a pena correspondente à violência, “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais“.

O crime, originário da junção dos artigos 17 e 18 da revogada Lei de Segurança Nacional, consiste em tentar abolir o Estado Democrático de Direito de duas maneiras: (a) impedindo (totalmente) o exercício dos poderes constitucionais; (b) ou restringindo (parcialmente) tal exercício. Sua realização exige que o agente efetivamente consiga impedir ou restringir o exercício de pelo menos um dos poderes constitucionais. Parece se tratar de um delito de atentado, quando a lei fala em “tentar abolir”, no entanto, a leitura atenta do tipo penal revela ser necessária a efetiva obstrução ou restrição do exercício dos poderes constitucionais. O tipo protege bem jurídico fundamental para a preservação da democracia.

A CF, em seu artigo 1º, caput, definiu o perfil político constitucional da República Federativa do Brasil como o de um Estado democrático de Direito, afastando-se da ultrapassada visão liberal do século 19, restrita ao Estado formal de Direito, sem compromissos sociais. Trata-se do mais importante dispositivo da nossa Carta Magna, já que dele decorrem todos os princípios constitucionais sensíveis, que dão ao nosso modelo constitucional as características de democrático, liberal e com responsabilidade social.

Em um Estado de Direito, todos se submetem às mesmas regras jurídicas, abstratas e impessoais, substituindo-se a vontade unipessoal do líder político, espiritual, príncipe ou ditador, pela vontade objetiva e impessoal da lei. O Estado democrático de Direito vai além. Consiste também na obrigação de intervenção efetiva a fim de reduzir as desigualdades sociais. O Estado de Direito atende às aspirações dos direitos humanos de primeira geração e protege o indivíduo contra o arbítrio. O Estado Democrático de Direito tem exatamente o mesmo compromisso, acrescido da obrigação de prestações positivas para garantir saúde, educação, dentre outros e aplacar o abismo social que separa a miséria da opulência. É o Estado atuante, que deixa de ser um espectador inerte das distorções provocadas pelo sistema capitalista, mantendo, no entanto, seus princípios básicos, como respeito à propriedade privada, livre iniciativa, liberdade econômica, liberdade de expressão e pluralismo político. É um Estado de Direito qualificado pela busca da justiça social.

Um dos seus fundamentos básicos reside no princípio da reserva legal (CF, artigo 5º, XXXIX). Somente a lei pode definir crimes e cominar penas, sendo necessário descrever o fato que se entende criminoso com todos os seus elementos e circunstâncias, de modo que somente seja considerado crime a conduta que corresponder integralmente àquela descrição. Tal requisito denomina-se taxatividade, sem a qual o Estado não pode punir o indivíduo.

É precisamente neste ponto, para garantir a segurança jurídica, que entra a dogmática do Direito Penal. Trata-se do estudo sistemático e metodológico das normas penais, com o fim de fixar seu exato alcance e real significado. O penalista espanhol Gimbernat Ordeig resumiu com precisão: “A dogmática jurídico-penal, ao assinalar limites e definir conceitos, faz possível uma aplicação segura e calculável do Direito Penal, retirando-lhe da irracionalidade, da arbitrariedade e da improvisação. Quanto mais pobre seja o desenvolvimento de uma dogmática, tanto mais previsíveis serão as decisões dos tribunais…” [1].

A ciência jurídica fornece parâmetros técnicos e objetivos para que situações assemelhadas sejam tratadas de modo semelhante, sem a interferência de fatores externos, sejam eles sociais, políticos ou emocionais. A dogmática se submete a um método técnico-jurídico, dedutivo, lógico e abstrato. Até que se atingisse a fase científica do Direito Penal, houve paulatina evolução da humanidade. Inicialmente, havia o poder absoluto do líder tribal ou pajé com suas superstições e crendices. Mais adiante, surgiu o Talião (de talio, de talis, retaliar), retribuição do mal pelo mal (“fractura pro fractura, oculum por oculo, dentem pro dente” — Levítico, XXIV: 19 e 20 e Deuteronômio 19:21).

Ultrapassada a fase pré-penal [2], seguiu-se na Baixa Idade Média, o sistema das ordálias, com suas provas irracionais, vigorando até 1215 , quando abolidas pelo Concílio de Latrão. Havia também o sistema da prova privilegiada, que considerava como plena, meros indícios, no caso de crimes mais graves [3]. Com o fim da Idade Média (1453), veio o Absolutismo (séculos 15 ao 18), no qual o monarca era fonte suprema de poder, com apoio de filósofos como Jean Bodin e Thomas Hobbes. Símbolo dessa época foi Luís 14, conhecido como Rei Sol, cujo reinado se resume na frase: “l´état c´est moi” (o Estado sou eu).

Com o Iluminismo (final do século 18), surgiu um movimento de contestação ao arbítrio com filósofos como Voltaire (1694-1778), Montesquieu (1689-1755), La Metrie (1709-1751), Diderot (1713-1784), D’Alembert (1717-1783), Helvetius (1715-1771), D’Holbach (1723-1789) e Rousseau (1712- 1778). A obra de Rousseau, Teoria do Contrato Social (1762) e de Cesare Bonnessana (Beccaria), Dos Delitos e das Penas (1764), tiveram grande influência na Revolução Francesa de 1789, a qual, contou ainda com a maior crise agrária do século, agravando a fome e a revolta da população contra a nobreza e o rei Luís 16.

Com a Revolução Industrial, a nova classe de poder, a burguesia ascendente busca segurança jurídica, ideia que dominará todo o século 19. Nesse novo ambiente político, Feuerbach redescobre um documento de 1215, imposto pela nobreza britânica ao rei John Lackland (João Sem Terra), denominado Magna Charta Libertatum, cujo artigo 39 estampava um princípio que mudaria os rumos do direito penal: “nullum crimen nulla poena sine praevia lege“. Somente a lei, de forma estrita e taxativa, pode descrever crimes e cominar penas. Estava aberto o caminho para o desenvolvimento científico da ciência criminal.

Com isso, surgem as escolas penais numa fase de ebulição científica e fortalecimento das garantias individuais. A evolução da democracia, tal como a compreendemos nos dias de hoje, é uma jornada histórica complexa que atravessou séculos e foi marcada por transformações significativas no sistema jurídico e na estrutura de governo. No Brasil, nossa CF superou o liberalismo radical do laissez faire, laissez passer e impôs ao Estado deveres de natureza social (CF, artigo 3º). Esse foi o compromisso assumido pela Carta de 1988.

Daí decorre: (a) ser necessário proteger o Estado democrático de Direito contra incursões que visem à sua eliminação; (b) nessa defesa, empregar os instrumentos democráticos previstos em lei. Nesse ponto entram a dogmática e a ciência jurídica, com seus princípios e métodos, orientando o exercício da pretensão punitiva do Estado.

O artigo 359, L, do CP, tem como bem jurídico tutelado a democracia. Cumprindo sua função de taxatividade e a fim de evitar excessivo alargamento de seu alcance punitivo, o tipo penal em questão descreveu as duas formas pelas quais se atenta contra o Estado Democrático de Direito: impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Deste modo, de acordo com a descrição típica do artigo 359, L, do CP, haverá tentativa de abolição do Estado democrático de Direito quando o agente praticar conduta capaz de impedir ou ao menos restringir o funcionamento dos poderes constitucionais.

Não basta vontade ou intenção de impedir ou restringir tal funcionamento, sendo necessário aferir a eficácia dos meios empregados, sob pena de configuração de crime impossível. O artigo 17 do CP considera ser crime impossível, quando a tentativa for impossível pela ineficácia absoluta do meio ou impropriedade absoluta do objeto. É a chamada tentativa inidônea, inadequada ou quase-crime.

É imprescindível que a ação tenha efetiva capacidade de impedir ou restringir de fato, o exercício dos poderes constitucionais. Só a intenção não basta. Quando o agente imagina, por erro, estar praticando um crime, mas na verdade não chega a colocar em risco o bem jurídico tutelado, surge a figura do delito putativo por erro de tipo e não existe crime. Quem atira num cadáver pensando estar matando pessoa viva, quer matar, mas não comete crime algum, face à impropriedade absoluta do objeto material.

Na sua mente existe um crime sendo cometido, mas na realidade o bem jurídico não sofreu risco algum. Invadir edifícios vazios impede ou restringe o exercício dos poderes constitucionais apenas no local invadido, mas não os inviabiliza ou restringe, já que podem continuar sendo desempenhados em lugar diverso. Deve-se considerar também se a desocupação se deu no mesmo e se havia algum tipo de atividade pública sendo exercida naquele momento.

No Direito Penal, enquanto a conduta estiver aprisionada no claustro psíquico da mente humana, ela ainda residirá na fase da cogitação, a qual não é punida pela nossa legislação (cogitationis poena nemo patitur). A segunda etapa do percurso criminoso (iter criminis) é a preparação, quando o agente realiza atos antecedentes necessários ao início da execução. Nesta fase, também ainda não existe crime. A terceira fase é a execução, quando o crime começa a existir. Nesta, o sujeito inicia um efetivo ataque ao bem jurídico tutelado.

No caso do artigo 359, l, do CP, ele terá de realizar atos que efetivamente tenham probabilidade de impedir ou restringir o exercício dos poderes. A ação de impedir ou restringir o funcionamento de um poder pressupõe o emprego de armamento pesado, incluindo armas de uso restrito e uso proibido, organização paramilitar, com estratégia de guerra ou guerrilha. O Exército Brasileiro é sem paralelo a maior força militar da América Latina, sem contar as polícias militares, que constituem sua reserva, além da Polícia Federal e as polícias civis. Não é qualquer movimento que inviabiliza o exercício das funções constitucionais.

É precisamente isto que necessita ser avaliado de acordo com as provas disponíveis, com a necessária individualização das responsabilidades, como determina a ordem constitucional do Estado democrático de Direito (CF, artigo 5º, XLVI). Ainda que os fatos tenham sido cometidos por influência de multidão, é necessário apontar o que cada indivíduo acusado contribuiu causalmente para o desfecho delituoso.

No caso da tragédia do dia 8 de janeiro, mensagens trocadas entre os líderes do movimento indicam inequívoca intenção de derrubar o governo legitimamente eleito. Algumas delas impressionam pelo nível de agressividade e desrespeito. Pretendiam comprovadamente atentar contra o Estado Democrático de Direito. Não basta, no entanto, a intenção. Assim, resta saber quais deles e se algum deles chegou efetivamente a impedir ou restringir o exercício dos poderes constitucionais. Estão configurados delitos de extrema gravidade como o do artigo 288-A do CP (integrar grupo ou milícia particular) ou artigo 288, parágrafo único (associação criminosa armada). Há outros delitos disponíveis como dano qualificado, com pena de até três anos, nos termos do artigo 163, parágrafo único, III. Na somatória, os delinquentes sofrerão merecida reprimenda, nos termos da lei. Há também outros que estavam na manifestação, mas não sabiam das intenções nefastas dos delinquentes que lideraram as reprováveis ações de baderna, desordem e anarquia generalizada. Esses deverão ser punidos de acordo com sua culpabilidade.

Como ensinava Ulpiano, o direito deve dar a cada um o que lhe pertence. A cada responsável, que se atribua o crime que merece, nem mais, nem menos. A imprensa, por vezes, nos casos de maior repercussão, acaba por influir decisivamente, e quase sempre negativamente, no ânimo do julgador. Como observa Carnelutti, “Por isso, antes de tudo, a técnica penal recorre à multiplicidade dos tipos e disponibiliza ao juiz uma espécie de mostruário, cada vez mais completo, para que ele tenha condições de encontrar um tipo penal mais assemelhado à concretização do fato” [4]. É disso que cuida este artigo.


[1] Apud Claus Roxin, Derecho Penal, parte general. Trad. Diego-Manuel Luzón Peña et alii. Madrid: Civitas, 1997 e 199, t.1, p. 207

[2] Gustav Radbruch. Historia de la criminalidade. Barcelona: Bosch, 1995, p. 22

[3] Antonio Magalhães Gomes Filho. Direito à prova no processo penal. SP: Revista dos Tribunais, 1997, p. 22.

[4] Francesco Carnelutti. As Misérias do Processo Penal. Campinas: Editora Servanda. 2012, p. 74

Fonte: Conjur

Período de recolhimento noturno deve ser reconhecido em detração, diz STJ

Embora não exista previsão legal quanto à aplicação da detração para medidas cautelares alternativas à prisão, o período de recolhimento noturno, por comprometer a liberdade do acusado, deve ser reconhecido para o abatimento.

Emerson Leal/STJMinistro Ribeiro Dantas lembrou artigo 319 do CPP, que prevê a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, sem o rigor do encarceramento

Com esse raciocínio, reconhecendo a existência de constrangimento ilegal no caso, o ministro Ribeiro Dantas, do Superior Tribunal de Justiça, restabeleceu, de ofício, uma ordem de detração de pena em favor de uma ré condenada por estelionato que cumpriu recolhimento domiciliar noturno por quatro anos sem monitoramento eletrônico. 

A mulher foi presa em flagrante em fevereiro de 2019. À época, ela era mãe de quatro filhos pequenos. Durante audiência de custódia, foi seguido o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus 143.641 (que autorizou prisão domiciliar para grávidas e mães de crianças pequenas). O juiz de primeiro grau determinou a soltura da ré. Apesar da falta de tornozeleira eletrônica, foram impostas diferentes condições, entre elas, o recolhimento noturno.

Em seguida, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) ofereceu denúncia contra ela. Houve condenação, em primeira instância, a três anos, sete meses e seis dias de prisão, em regime inicial fechado. O MP recorreu da decisão. Contudo, os pedidos foram negados tanto pelo TJ-SP quanto pelo STJ. A corte superior, inclusive, redimensionou a condenação para um ano e quatro meses de prisão.

Diante do novo cálculo e de todo o período em curso do caso, a defesa acionou a primeira instância novamente pedindo a detração da pena, o que foi deferido. Um recurso contra o abatimento da pena foi apresentado pelo MP. Desta vez, o TJ paulista acatou a apelação compreendendo que o abatimento seria inviável, pois não houve monitoramento eletrônico da ré. Na decisão, a 9ª Câmara de Direito Criminal alegou. inclusive, que, caso aceitasse a detração, estaria criando jurisprudência de um “inaceitável crédito, caderneta de pena ou conta corrente de período de cumprimento de pena”.

Ao voltar a acionar o STJ, a defesa invocou o Tema 1.155, que diz que “o período de recolhimento obrigatório noturno e nos dias de folga, por comprometer o status libertatis do acusado, deve ser reconhecido como período a ser descontado da pena privativa de liberdade e da medida de segurança, em homenagem aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem”.

Analisando o pedido, o ministro Ribeiro Dantas explicou que o artigo 42 do Código Penal, ao regulamentar a detração penal, prevê que seja computado da pena privativa de liberdade o tempo que o agente tiver sido mantido preso provisoriamente ou internado. “Não se pode dizer que o artigo supra seja numerus clausus, pois se deve considerar como parte do cumprimento da pena, para o fim de detração, o lapso de tempo em que fica o réu privado de sua liberdade, por prisão provisória.”

Por outro lado, lembra o ministro, quando a privação da liberdade não é essencial para a realização do processo ou como garantia de seus resultados, o artigo 319 do Código de Processo Penal prevê a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, sem o rigor do encarceramento. “Consistem em uma ou várias obrigações cumulativas impostas pelo juiz em desfavor do indiciado ou do réu, dependendo da gravidade do crime, das circunstâncias do fato e das condições pessoais do acautelado.”

As medidas cautelares, destaca Ribeiro Dantas, surgem como intermediárias entre a liberdade plena e o encarceramento provisório, restringindo garantias e direitos do réu. “Dessa forma, embora não exista previsão legal quanto ao instituto da detração para medidas cautelares alternativas à prisão, entendo que, no caso concreto, o período de recolhimento noturno, por comprometer o status libertatis do acusado, deve ser reconhecido como período detraído, em homenagem ao princípio da proporcionalidade e em apreço ao princípio do non bis in idem.”

A defesa da ré foi feita pelos advogados Anderson DominguesKarina de Vicenti DominguesGuilherme VazGislaine de OliveiraBruno Cavalcante Dezidério de Carvalho e Pedro Garbelini, todos integrantes do escritório Anderson Domingues Sociedade de Advogados.

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HC 851.614

Fonte: Conjur

Princípio da insignificância pode ser aplicado a contrabando de até mil maços de cigarro, define Terceira Seção

Em julgamento de recursos repetitivos (Tema 1.143), a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu a tese de que o princípio da insignificância é aplicável ao crime de contrabando de cigarros quando a quantidade apreendida não ultrapassar mil maços, seja pela baixa reprovabilidade da conduta, seja pela necessidade de se dar efetividade à repressão do contrabando de grande vulto.

No entanto, segundo o colegiado, o princípio da insignificância poderá ser afastado nas apreensões abaixo de mil maços se houver reiteração da conduta criminosa, pois tal circunstância indica maior reprovação e periculosidade social.

Ao fixar o precedente qualificado por maioria de votos, o colegiado modulou os efeitos da decisão para definir que a tese deve ser aplicada apenas aos processos ainda em trâmite na data do julgamento (13 de setembro) – sendo inaplicável, portanto, às ações penais já transitadas em julgado. Não havia determinação de suspensão de processos em razão da afetação do tema.

Aplicação pontual do princípio da insignificância já é adotada pelo MP

No voto que prevaleceu na seção, o ministro Sebastião Reis Junior explicou que a conduta de introduzir cladestinamente cigarro pela fronteira brasileira constitui crime de contrabando, tanto no caso de cigarro produzido no Brasil para exportação quanto nas hipóteses em que a importação do produto é expressamente proibida (artigo 18 do Decreto-Lei 1.593/1977).

O ministro ainda lembrou que o Brasil é signatário da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, cujo artigo 15 determina a repressão do comércio ilícito de produtos de tabaco, inclusive o contrabando.

Sob essa perspectiva, e como forma de proteção à saúde pública, Sebastião Reis Junior afirmou que, em regra, deve prevalecer o entendimento de que o contrabando de cigarros não comporta a aplicação do princípio da insignificância.

“Por outro lado, entendo que a posição adotada pela 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, no sentido da aplicação do princípio da insignificância para a hipótese de contrabando de cigarros em quantidade que não ultrapassa mil maços, não só é razoável do ponto de vista jurídico como ostenta uma base estatística sólida para sua adoção”, afirmou.

Apreensões de até mil maços são poucas em relação ao volume total

Para embasar esse posicionamento, o ministro apontou que as apreensões de até mil maços, embora correspondam à maioria das autuações, representam muito pouco em relação ao volume total de cigarros apreendidos. De acordo com as informações estatísticas do ano passado, a maior quantidade se verifica em autuações superiores a dez mil maços, com a concentração mais expressiva (73,41%) nas apreensões entre cem mil e um milhão de maços.

Dessa forma, para o ministro, impedir a aplicação do princípio da insignificância nas apreensões de até mil maços de cigarro seria ineficaz para a proteção da saúde pública, além de sobrecarregar indevidamente os entes estatais encarregados da persecução penal, “sobretudo na região de fronteira, com inúmeros inquéritos policiais e outros feitos criminais derivados de apreensões inexpressivas, drenando o tempo e os recursos indispensáveis para reprimir e punir o crime de vulto”.

Fonte: STJ

Novo processo de perdimento e a cortina de fumaça jurídica

A expressão “cortina de fumaça” faz alusão a técnicas utilizadas por estrategistas militares para esconder tropas e recursos por trás de uma nuvem de fumaça, seja ela natural ou produzida artificialmente, como forma de ludibriar e confundir a contraparte, dando a oportunidade para empregar manobras de contra ataque ou retirada. Esse recurso também é comumente utilizado por ilusionistas para desorientar a plateia, desviando sua atenção do momento da execução do truque e dando credibilidade ao resultado da ilusão criada. No entanto, engana-se quem acredita que o recurso é usado somente por militares e mágicos. No mundo político e do direito, esse tipo de subterfúgio também é corriqueiramente empregado.

A discussão em torno do novo processo de perdimento não é inédita. Em verdade, a maior parte dos estudiosos já se posicionou  inclusive, a grande maioria em sentido contrário à legalidade do referido processo [1] Contudo, os artigos e pareceres veiculados até agora tratam basicamente da questão da (1)legalidade da solução aplicada. Por tal motivo, o presente artigo visa contribuir ao debate já lançado de forma inovadora, buscando tratar sobre o futuro e contestar se as medidas são ou não uma mera cortina de fumaça jurídica.

A justificativa da reforma trazida pela Lei 14.651/2023 está relacionada com a possibilidade de o sujeito passivo ter direito ao duplo grau recursal diante da decretação de perdimento pela Aduana, substituindo o rito sumário vigente até então por força do Decreto-Lei 1.455/76, motivada principalmente pelos compromissos internacionais que o país assumiu ao ratificar a Convenção de Quioto Revisada (CQR). Todavia, a nova Lei não possui normas materiais ou processuais, restringindo-se a delegar poderes ao Ministro da Fazenda para regulamentar o processo administrativo de aplicação e julgamento da pena de perdimento, o que de fato ocorreu por meio das Portarias MF 1.005/2023 e RFB 348/2023.

Ainda que não haja qualquer óbice legal para este tipo de delegação de poder, parece-nos curiosa a posição do Poder Legislativo de se eximir da função de legislar e deixar a cargo da Fazenda e da própria RFB, a autoridade aduaneira, regulamentar o novo processo, uma vez que a motivação da reforma era de, justamente, buscar garantir um maior grau de independência do processo recursal em relação às atividades de fiscalização e autuação.

Além disso, as mudanças trazidas ampliaram o já existente “mosaico normativo” do Direito Aduaneiro brasileiro, na medida que permitem que diferentes ritos processuais administrativos possam ser adotados, a depender das circunstâncias, a exemplo da distinção feita para autuações por fraude ao controle aduaneiro com e sem apreensão de mercadorias. Embora ambas as situações sejam passíveis de perdimento, quando houver apreensão de mercadorias, o recurso interposto se sujeitará ao prazo de recurso de 20 dias e será submetido à apreciação do Cejul, ao passo que nos casos em que a mercadoria não for localizada, a pena será substituída por multa e o recurso interposto passa a ter prazo de 30 dias e será submetido à apreciação da DRJ e do Carf.

A expressão “legislação mosaico” é utilizada por Basaldúa para descrever a situação da Argentina antes da promulgação de seu Código Aduaneiro e, assim, criticar as normas dispersas, confusas e, por vezes, contraditórias que coexistiam pela ausência de um quadro normativo consolidado [2]. Apesar de o país vizinho ter, aparentemente, superado a questão, a realidade brasileira de utilização de mini reformas em matéria aduaneira e de delegação do papel de legislador à administração por atos infralegais ainda é bastante presente e preocupante.

A mini reforma tem alguns outros pontos negativos que chamam a atenção, como a imposição/manutenção de prazo de 20 dias para apresentação de impugnação e recurso e a ausência de independência/autonomia da autoridade julgadora nos moldes exigidos pela CQR.

Embora o prazo reduzido para recurso venha sob a (louvável) busca por celeridade processual, da forma como a norma foi estabelecida, essa redução não parece influir de modo decisivo na duração total do processo de perdimento, não se justificando a distinção de prazo em relação ao rito do Decreto 70.235/72.

Cabe lembrar que a exposição de motivos do DL 1.455/76 também indicava preocupação com prazos e custos de armazenagem das mercadorias, mas a solução dada foi a aniquilação do direito de recurso, transformando o rito do perdimento em instância única para acabar com litígios intermináveis [3].

A mesma preocupação com os custos de armazenagem permanece na exposição de motivos da Lei 14.651/2023, com a previsão de prazos recursais reduzidos, ainda que, convenientemente, não tenha sido estabelecida nenhuma imposição de prazos para a duração do processo administrativo e, tampouco, de retenção para fins de lavratura do auto de infração.

A este respeito, a presente mudança parece seguir a mesma linha daquela realizada em 1976, em que se exigiram sacrifícios dos sujeitos passivos sem a devida contraprestação da administração no sentido de buscar celeridade nas análises recursais, prever expressamente na legislação prazos para julgamento e, consequentemente, regulamentar o tratamento a ser dispensado para os casos em que seus agentes descumprirem esses prazos.

É possível que isso decorra de outra característica em comum entre as duas reformas, que é a definição do rito pelo próprio aplicador, o que, como indicado anteriormente, é reflexo da omissão do Congresso Nacional. Com isso, o Executivo federal não apenas delimitou as hipóteses infracionais puníveis com perdimento (Decreto-Lei 37/66), como também regulamentou o rito por meio do qual as autuações serão julgadas.

O resultado desse cheque em branco? As autuações realizadas pela RFB em matéria aduaneira serão julgadas em tribunal administrativo inteiramente formado por seus servidores e sob regras emanadas dentro da própria instituição.

Interessante destacar que as preocupações de juristas e advogados militantes na área encontram guarida na visão emanada pela PGFN por ocasião da publicação de parecer para tratar da autonomia dos julgadores indicados pela RFB ao Carf. Naquela ocasião, ainda que sob situação fática diversa, a Procuradoria categoricamente indicou que a legitimidade do Carf estaria resguardada justamente pelo fato de que o órgão “não integra a estrutura da Secretaria da RFB, de modo que sua autonomia seria ferida se os AFRFBs conselheiros fossem a ela subordinados tecnicamente ao exercerem função pública” e que “como os representante da Fazenda no CARF não estão jungidos às diretrizes emanadas pela RFB, mas sim à legalidade, atuam com independência técnica” [4].

Em resumo, todos os argumentos da PGFN para demonstrar que os julgadores do Carf seriam independentes e imparciais, de forma a dar legitimidade ao processo administrativo sob o rito do Decreto nº 70.235/72 podem ser, ipis litteris, utilizados para contestar a validade da reforma atual e a imparcialidade e adequação do Cejul.

Isso porque, além da especialização para julgar a matéria, é necessária a independência funcional e hierárquica, de modo que os julgadores decidam sem pressão de qualquer tipo pelos envolvidos no conflito e que o tribunal emita decisões de maneira objetiva, fundamentada e imparcial. Sem isso, a efetividade do recurso resta prejudicada e faz-se dele uma etapa meramente ilusória. A expressão “recurso ilusório” se refere a situações em que o processo, pela forma como é conduzido, perde sua utilidade prática, tornando-se um mero rito burocrático de confirmação da decisão inicialmente adotada [5].

Não podemos afirmar, no presente momento, se os recursos apresentados ao Cejul sob o novo rito serão ilusórios, mas as preocupações existem e se fundamentam por diversas formas. Fato é que, diante das desconfianças, o grau de litigiosidade e judicialização devem aumentar, o que não é boa notícia para nenhuma das partes envolvidas.

Diante disso, acreditamos que existem três possíveis cenários em relação ao futuro da discussão sobre a aplicação da pena de perdimento e a efetividade das novas normas correlatas.

O primeiro é a provável discussão judicial da matéria, em que muitos sujeitos passivos devem provocar o Poder Judiciário para realizar o controle de legalidade do novo rito. Ainda que haja real chance de vitória, preocupa-nos os desdobramentos de uma eventual declaração de ilegalidade, visto que os processos seriam provavelmente encaminhados ao Carf, sem qualquer planejamento ou estrutura para tanto.

O segundo é que os tutelados se submetam à jurisdição do Cejul e passem a acompanhar de forma atenta o seu desempenho, de forma a verificar se as suspeitas de “recurso ilusório” ou cortina de fumaça concretizem-se ou não. A esse respeito, existe a aparente vantagem do novo rito em relação à DRJ de que haverá obrigação de publicação de ementas e decisões, o que deve trazer maior transparência ao processo e permitirá que a sociedade possa acompanhar o desempenho e a esperada isenção e tecnicidade prometidas pela RFB quando da criação do centro de julgamentos.

Por fim, o terceiro cenário  e, quiçá, o mais promissor, ainda que independa dos demais  é que a comunidade do comércio exterior não desista de debater a temática e que continue a negociar e discutir possíveis caminhos para efetivamente compatibilizar os procedimentos internos com as obrigações assumidas pelo Brasil em compromissos internacionais, em especial, a CQR.

Neste ponto, parece-nos que a única maneira de endereçar de forma efetiva o problema, contemplando todas as variáveis e preocupações existentes tanto da aduana quanto dos operadores do comércio exterior é por meio de uma ampla reforma não apenas no rito de julgamento do perdimento, mas no próprio sistema punitivo.

O que vemos hoje é um sistema antigo, apartado da realidade fática do comércio exterior e que impõe a pena de perdimento para uma enorme quantidade de infrações. O curioso é que, na maior parte delas, apesar da apreensão, os bens são posteriormente leiloados  ou doados  sendo oportunizado ao infrator adquiri-los novamente para revenda ou utilização. Com isso, o que se verifica é que o sistema atual sobrecarrega injustificadamente a administração, que precisa manter a correta guarda das mercadorias, visto que, ao final, os bens poderão ter a mesma destinação inicialmente pretendida.

Dito isso, a redução das hipóteses de perdimento aos casos estritamente necessários  ou seja, àqueles em que a mercadoria não pode ser destinada ao mercado interno em razão de proibição, contrabando, ausência de homologações e controles técnicos e sanitários  e a definitiva mudança de punição dos demais casos para multa ou outra penalidade que não comprometa o fluxo comercial e não implique dever de guarda e destinação pela aduana, soa como a única solução viável e que permite a efetiva conformação de todos os direitos e preocupações existentes.

Dado o exposto, esperamos que o debate continue vivo e que haja espaço para que uma verdadeira reforma no direito aduaneiro possa ser perseguida e promovida. E, por ora, resta a torcida para que as alterações recentes não tenham sido realizadas apenas para dar uma aparência de conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo governo brasileiro, ou seja, que não se confirmem como uma mera “cortina de fumaça” jurídica.

[1] A este respeito, vale conferir o artigo publicado nesta coluna em 29/08/2023.

[2] BASALDÚA, Ricardo Xavier. La sancion del Código Aduanero: su importância a nivel nacional e internacional. Revista El Derecho n. 92, 1981.

[3] BRASIL. DIÁRIO DO CONGRESSO NACIONAL. Mensagem n. 35. Diário Oficial de 24 de abril de 1976.

[4] Parecer PGFN/CJU/COJPN nº 787/2014.

[5] LASCANO, Julio Carlos. Procedimientos aduaneros. Buenos Aires: Omar Buyatti, 2015, p. 32.

Fonte: Conjur

Repetição de indébito não deve seguir o rito dos precatórios

O STF (Supremo Tribunal Federal) jugou em agosto o RE 1.420.691, que se transformou no Tema 1.262, tendo sido fixada por unanimidade a seguinte tese: “Não se mostra admissível a restituição administrativa do indébito reconhecido na via judicial, sendo indispensável a observância do regime constitucional de precatórios, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal”. O trâmite foi peculiar, pois na mesma sessão de julgamento foi reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito, o que não é usual.

O caso foi relatado pela ministra Rosa Weber, revertendo o julgamento do TRF-3, que possui jurisprudência consolidada em sentido oposto, permitindo que se realize a repetição administrativa de indébito, reconhecido pela via judicial, sem a sistemática de precatórios. Na decisão foi mencionada a jurisprudência do STF a respeito e distinguido o Tema 1.262 do Tema 831, este relatado pelo ministro Fux prescrevendo que “o pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal”.

A distinção se cinge ao fato de que no Tema 831/Fux se discutiu a possibilidade de restituição administrativa dos valores cobrados a maior nos cinco anos que antecederam a impetração de mandado de segurança, ao passo que no Tema 1.262/Weber, o debate se referiu ao necessário rito dos precatórios independentemente do tipo de ação interposto, impedindo a restituição administrativa dos valores reconhecidos como indevidos.

Não me parece que a solução encontrada pelo Tema 1.262/Weber tenha sido a melhor, em face de uma distinção básica: o sistema de precatórios foi criado para a realização de despesas públicas fruto de decisões judiciais, o que acarretou a criação de um procedimento para inserir previsão orçamentária específica para seu pagamento, isto é, o precatório.

No caso das repetições de indébito tributário a situação é diametralmente oposta, pois o dinheiro já havia ingressado nos cofres públicos, e a devolução não se caracteriza como uma despesa decorrente de ordem judicial, mas como o que realmente é: uma devolução de recursos que já haviam ingressado nos cofres públicos. Logo, não se trata de uma despesa, mas da devolução de recursos que não deviam ter sido recolhidos — daí a lógica da repetição de indébito, isto é, devolução de valores indevidamente carreados aos cofres públicos.

O limite de qualquer receita tributária é o Princípio da Estrita Legalidade, o que implica em dizer que deve ser devolvido tudo que tiver sido recolhido acima do limite legal estabelecido, pois inconstitucional. Logo, identificada cobrança a maior do que a legalmente devida, o Estado deve devolver aos contribuintes, sem maiores delongas, da forma menos onerosa possível, pois estes já foram apenados com o indevido recolhimento à margem da lei.

Se a decisão judicial for para ampliar o montante pago por uma desapropriação, ou pagar uma gratificação a servidor que a devesse ter recebido a seu tempo e modo, estaremos defronte a uma despesa, decorrente de ordem judicial, na qual cabe o sistema de precatórios. Sendo a decisão judicial para devolver tributo pago a maior, não cabe precatório, pois não se trata de despesa, mas de devolução, uma vez que o dinheiro ingressou irregularmente no Tesouro. Neste caso deveria até mesmo haver a imposição de multa pela conduta irregular do Fisco quando exigisse tributo indevido — claro que a multa se sujeitaria ao regime de precatórios, não o montante principal a ser devolvido.

É contra a lógica jurídica estabelecer o regime de precatórios para devolver o que foi recolhido a maior. Se fosse o caso de obrigar o Estado a pagar o que não pagou, a lógica precatorial seria plenamente adequada — mas não é o que ocorre nas repetições de indébito, que se referem à devolução do que foi pago à maior. Enfim, não se trata de despesa, mas de devolução.

É inadequada a lógica presente no Tema 831/Fux, pois coloca o rito processual do mandado de segurança acima do direito material.

Porém a situação se torna ainda pior no caso do Tema 1.262/Weber, pois aplica a dinâmica dos precatórios para toda e qualquer repetição de indébito tributário, seja qual for a via processual eleita. O prejuízo para a ordem jurídica é enorme.

Para tornar curta uma longa história, pode-se resumir a posição aqui exposta à seguinte afirmativa, quase que como uma Tese a ser discutida pelo STF: A sistemática de precatórios é indevida para a devolução de tributos que ingressaram nos cofres públicos à margem do Princípio da Estrita Legalidade, independentemente do meio processual utilizado para tanto.

Fonte: Conjur

PIS/Cofins e o crédito do frete na aquisição para o setor do agronegócio

Na cadeia do agronegócio, muitos insumos utilizados no processo produtivo estão exonerados do PIS/Cofins, havendo casos de alíquota zero ou mesmo suspensão.

A discussão, ainda não pacificada, tendo idas e vindas, diz respeito à possibilidade ou não do crédito no regime não cumulativo do PIS e Cofins quanto ao serviço de transporte  frete  nas aquisições de insumos não tributados.

À luz da não cumulatividade prevista no texto constitucional (artigo 195, § 12) e concretizada em lei, a partir da previsão de direito ao crédito do insumo e também do frete (artigo 3º, II e IX, das Leis nº 10.637/2002 e 10.833/2003), é possível em nossa visão a tomada do crédito.

Uma inicial interpretação do artigo 3º, IX, da Lei nº 10.833/2003 poderá levar à equivocada afirmação de que inexiste crédito de frete na entrada de produtos (aquisição), mesmo que o ônus seja do adquirente, uma vez que o texto legal faz menção à venda.

Não há dúvida de que este posicionamento interpreta de forma isolada e literal o inciso IX, deixando de revelar a adequada amplitude do texto normativo.

A legislação deve ser interpretada de maneira sistemática, levando em consideração, portanto, todo o ordenamento jurídico, razão pela qual o inciso IX, forçosamente, há de ser analisado à luz da não-cumulatividade, bem como dos demais dispositivos da Lei nº 10.833/2003, sobretudo, incisos I e II do artigo 3º, expressamente mencionados pelo inciso IX.

Mais do que isso, a interpretação deve se atentar à finalidade do texto normativo, permitindo que este cumpra seu desiderato, sem contradição e incoerência.

Tais ponderações iniciais são relevantes para se afirmar que há plena viabilidade do crédito quanto ao pagamento do frete na aquisição, quando o adquirente assume o ônus, o que é incontroverso no caso concreto, inexistindo questionamento.

Isto porque: (1)  a interpretação há de ser feita à luz da não-cumulatividade; (2)  a legislação permite o crédito quando o frete estiver relacionado à venda de mercadorias ou aquisição de insumos; (3)  não existe previsão legal vedando o crédito de maneira que as restrições devem ser interpretadas de modo literal e estrito; (4)  existe explícita pretensão no texto normativo para se reconhecer, no regime não-cumulativo, o crédito para venda de mercadorias e insumos, seja na entrada ou saída; (5)  excluir o crédito de frete pelo simples fato de se alterar quem assume o ônus do serviço (vendedor ou adquirente) é uma interpretação incoerente, diante da finalidade da legislação; (6)  cabe analisar o contexto jurídico e fático, levando em consideração a complexidade da operação, eis que, a partir do transporte, indispensável à obtenção da mercadoria para venda ou insumo (bem ou serviço), permite-se a continuidade do processo produtivo por meio da revenda ou utilização para realizar um serviço ou elaborar um produto a ser comercializado.

O frete pago pelo adquirente na compra de mercadoria ou de insumos não deixa de ser um custo, de maneira que a avaliação de toda a operação e sua complexidade impõe o crédito em tais hipóteses, até mesmo como forma de concretizar verdadeiramente a não-cumulatividade.

Bem por isso, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que [1] “na apuração do valor do PIS/Cofins, permite-se o desconto de créditos calculados em relação ao frete também quando o veículo é adquirido da fábrica e transportado para a concessionária  adquirente  com o propósito de ser posteriormente revendido”.

Neste sentido, ainda, de longa data, temos julgamentos firmados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf):

CRÉDITO DA COFINS NÃO-CUMULATIVA. SERVIÇO DE FRETE NA AQUISIÇÃO DE INSUMO. POSSIBILIDADE. Como o custo com frete compõe o valor da despesa na aquisição de insumo, ele deve fazer parte do cálculo do crédito da Cofins não-cumulativa, nos termos do art. 3o, inciso II, da Lei nº 10.833/2003″ [2].

Para que seja possível o crédito do frete nas operações de aquisição (entrada), cumpre observar as seguintes condições: (1)  ser uma operação para aquisição de bens para (re)venda ou insumos (bens ou serviços) utilizados na prestação de serviços e na produção ou fabricação de bens ou produtos destinados à venda (no caso concreto a grãos, fertilizantes, entre outros  insumos da requerente); (2)  o pagamento deve ser assumido pelo adquirente; (3)  o serviço deve ser tributado; (4)  prestado por pessoa jurídica domiciliada no Brasil.

Deste modo, ficaria somente a discussão a respeito do crédito ser possível ou não pelo fato de que os insumos transportados não gerariam este direito de modo que o “acessório segue o principal”.

Em síntese: o frete acompanha a sorte do bem ou insumo para se constatar a viabilidade do crédito?

Acreditamos que não. A partir do momento que se nota a relevância e essencialidade do frete no processo produtivo do adquirente, por transportar bens para revenda ou insumos (hipótese em discussão no caso), tem-se a confirmação de que este serviço se caracteriza também como insumo, independentemente da forma de tributação do que se transporta.

Daí porque, cabe ao contribuinte, a partir desta constatação, verificar somente se o serviço realizado de transporte está sujeito ao pagamento de tais contribuições e, por conseguinte, apurar o montante do crédito nos moldes da legislação.

Bem por isso, o fato de a mercadoria ou insumo não ser tributada, ter alíquota reduzida ou majorada, ou suspensão, ou mesmo estar regido por situações de crédito presumido [3], não implica na impossibilidade do crédito ou mesmo alteração da apuração do montante [4].

Perante o Carf, o tema não é novo, sendo possível citar de forma exemplificativa recente decisão reconhecendo o direito ao crédito do frete, dada a sua natureza autônoma:

“FRETES COMPRAS PRODUTOS NÃO TRIBUTADOS. POSSIBILIDADE. Os fretes pagos na aquisição de produtos integram o custo dos referidos insumos e são apropriáveis no regime da não cumulatividade do PIS e da Cofins, ainda que o produto adquirido não tenha sido onerado pelas contribuições. Trata-se de operação autônoma, paga à transportadora, na sistemática de incidência da não-cumulatividade. Sendo os regimes de incidência distintos, do produto (combustível) e do frete (transporte), permanece o direito ao crédito referente ao frete pago” [5].

Por sua vez, também houve reconhecimento neste sentido pela Câmara Superior do Carf:

“CRÉDITOS. DESPESAS COM FRETE (AUTÔNOMO). NÃO CUMULATIVIDADE AQUISIÇÃO DE INSUMOS. ALÍQUOTA ZERO. SUSPENSÃO. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO HAJA VEDAÇÃO LEGAL. O inciso II do artigo 3o das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, que regem as contribuições não cumulativas, garante o direito ao crédito correspondente aos insumos, mas excetua expressamente a aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao pagamento da contribuição (inciso II do § 2o do art. 3o). Tal exceção, contudo, não invalida o direito ao crédito referente ao frete pago pelo adquirente dos produtos sujeitos à alíquota zero ou com suspensão, desde que o frete tenha sido efetivamente onerado pelas contribuições, e que não haja vedação leal a tal tomada de crédito. Sendo os regimes de incidência distintos, do insumo adquirido e do frete a ele relacionado, permanece o direito ao crédito referente ao frete pago a pessoa jurídica, na situação aqui descrita” [6].

Portanto, há precedentes relevantes que reconhecem o direito ao crédito do frete em tais hipóteses.

Por fim, para não restar dúvida do direito ao crédito o próprio fisco chegou a explicitar este direito pela Instrução Normativa nº 2.121/2022, em seu artigo 176:

Art. 176. Para efeito do disposto nesta Subseção, consideram-se insumos, os bens ou serviços considerados essenciais ou relevantes para o processo de produção ou fabricação de bens destinados à venda ou de prestação de serviços (Lei nº 10.637, de 2002, art. 3º, caput, inciso II, com redação dada pela Lei nº 10.865, de 2004, art. 37; e Lei nº 10.833, de 2003, art. 3º, caput, inciso II, com redação dada pela Lei nº 10.865, de 2004, art. 21).

§ 1º. Consideram-se insumos, inclusive:

(…)

XVIII – frete e seguro relacionado à aquisição de bens considerados insumos que foram vendidos ao seu adquirente com suspensão, alíquota 0% (zero por cento) ou não incidência;  

XIX – frete e seguro relacionado à aquisição de máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado de que trata o inciso I do caput do art. 179 quando a receita de venda de tais bens forem beneficiadas com suspensão, alíquota 0% (zero por cento) ou não incidência;” 

Ora, esta prescrição do artigo 176, § 1º, XVII e XIX, da Instrução Normativa nº 2.121/2022, somente explícita um direito que já estava vigorando desde o advento do regime não cumulativo de PIS/Cofins.

Não se nega que houve a revogação (julho/2023) de referidos incisos, no entanto, como é cediço, a Instrução Normativa não cria, muito menos restringe, direitos, dada a necessidade de respeitar ao princípio/regra da legalidade. Bem por isso, somente explicita (declara) direitos existentes, de tal modo que a revogação em nada altera o direito ao crédito do frete na entrada, que já existia antes de referidas alterações, sendo somente uma confirmação.

Vejamos também precedente favorável citando a instrução normativa pelo Carf, por sua Câmara Superior:

“FRETES NA AQUISIÇÃO DE INSUMOS TRIBUTADOS COM ALÍQUOTA ZERO OU ADQUIRIDOS COM SUSPENSÃO DO PIS E DA COFINS. CREDITAMENTO. POSSIBILIDADE. IN RFB Nº. 2.121/2022. É possível o aproveitamento de créditos sobre os serviços de fretes utilizados na aquisição de insumos não onerados pelas contribuições ao PIS/COFINS. Inteligência do art. 176, XVIII, IN RFB nº. 2.121/2022” [7].

Em suma: há possibilidade do crédito de frete  serviço de transporte  nas aquisições de insumos sem tributação (alíquota zero, isenção, suspensão, não incidência).

[1] – STJ, REsp 1215773/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, Rel. p/ Acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 22/08/2012, DJe 18/09/2012.; Vale lembrar que antes deste precedente havia decidido o Superior Tribunal de Justiça que: O art. 3º, IX, da Lei 10.833/2003 restringe o creditamento ao frete na operação de venda de mercadoria, não contemplando o transporte da entrada dos produtos no estabelecimento industrial” (STJ, REsp 1237707/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/03/2011, DJe 01/04/2011).

[2] – CARF, 3ª Seção, AC. 3401-001.896, 4ª Câmara, 1ª Turma, j. 18/07/2012. Cf. CARF, 3ª Seção, AC. 3301-00.980, 3ª Câmara, 1ª Turma, j. 07/07/2011; CARF, Ac. 3402-002.881, j. 28/01/2016.

[3] Por exemplo: arts. 8º e 9º da Lei n. 10.925/2004.

[4] Naturalmente, se advier alguma lei expressa em sentido contrário, daí em tese é possível a restrição ou modificação na apuração do crédito.

[5] – CARF, 3ª Seção, Ac. 3401-011.736, j. 27/06/2023. Cf. CARF, 3ª Seção, Ac. 3401-010.662, j. 27/09/2022.

[6] – CARF, CSRF, 3ª Seção, Ac. 9303-013.973, j. 12/04/2023. No mesmo sentido: “NÃO CUMULATIVIDADE. CRÉDITOS. FRETE NA AQUISIÇÃO DE INSUMOS TRIBUTADOS À ALÍQUOTA ZERO. POSSIBILIDADE. CONDIÇÕES. Os fretes de aquisição de insumos que tenham sido registrados de forma autônoma em relação ao bem adquirido, e submetidos a tributação (portanto, fretes que não tenham sido tributados à alíquota zero, suspensão, isenção ou submetidos a outra forma de não-oneração pelas contribuições) podem gerar créditos básicos da não cumulatividade, na mesma proporção do patamar tributado. No caso de crédito presumido, sendo o frete de aquisição registrado em conjunto com os insumos adquiridos, receberá o mesmo tratamento destes. No entanto, havendo registro autônomo e diferenciado, e tendo a operação de frete sido submetida à tributação, caberá o crédito presumido em relação ao bem adquirido, e o crédito básico em relação ao frete de aquisição, que também constitui “insumo”, e, portanto, permite a tomada de crédito (salvo nas hipóteses de vedação legal, como a referida no inciso II do § 2o do art. 3o da Lei 10.833/2003).”(CARF, CSRF, Ac. 9303-013.859, j. 16/03/2023); Cf. ainda: CARF, CSRF, Ac. 9303-013.669, j. 14/12/2022; CARF, CSRF, Ac. 9303-013.578, j. 18/11/2022.

[7] – CARF, CSRF, Ac. 9303-013.950, j. 12/04/2023.

Fonte: Conjur

Para o STJ, não cabe à Fazenda compensar saldo de ICMS ao lavrar auto de infração

A utilização de crédito de ICMS para compensação do tributo devido é uma possibilidade a ser exercida pelo contribuinte no momento do lançamento por homologação. Assim, não é possível impor ao Fisco que faça esse encontro de contas no momento do lançamento de ofício.

Direito de crédito só pode ser exercitável no âmbito do lançamento por homologação, disse o relator, ministro Gurgel de Faria
Lucas Pricken/STJ

Com base nesse entendimento, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial de um laboratório farmacêutico que tentava anular um auto de infração lavrado pela Fazenda de São Paulo pelo não pagamento de ICMS no valor de R$ 1,8 milhão.

Segundo o contribuinte, o Fisco paulista deixou de considerar que ele tem R$ 20 milhões em créditos de ICMS aptos a serem compensados em sua escrituração contábil. A alegação é que a decisão administrativa feriu o princípio da não cumulatividade.

É plenamente possível usar esse crédito para compensar a cobrança futura de ICMS, desde que isso seja feito dentro do prazo de cinco anos da data de emissão do respectivo documento fiscal. O que se discutiu, no caso, foi uma possível ampliação das formas admitidas para essa compensação.

O direito à compensação pode ser exercido no lançamento do ICMS por homologação, quando o próprio contribuinte calcula o tributo e antecipa o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, a quem caberá homologar esse ato.

Se o contribuinte não declara o fato gerador do ICMS, o lançamento por homologação é substituído pelo lançamento de ofício, em que o agente fiscal calcula o montante devido. No caso, isso ocorreu pela lavratura de um auto de infração por falta de pagamento, com imposição de multa.

Para a empresa, caberia ao Fisco paulista, no momento de lavrar o auto de infração, perceber que ela tinha crédito suficiente para abater a totalidade do que não recolheu a título de ICMS. Essa possibilidade já foi admitida pelo STJ, em precedente da 2ª Turma (REsp 1.250.218).

Para as instâncias ordinárias, no entanto, esse encontro de contas é uma tarefa do contribuinte, que pode ou não exercê-la no momento oportuno. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) concluiu que não há qualquer dever da administração fazendária de fazer essas contas.

Voto da ministra Regina Helena abordou a praticabilidade para pagamento do ICMS
Lucas Pricken/STJ

Essa interpretação foi referendada por unanimidade de votos na 1ª Turma. Relator, o ministro Gurgel de Faria observou que cabe somente ao contribuinte escolher o momento para compensação dos créditos de ICMS e quais deles serão efetivamente aproveitados.

Se a empresa não exerce essa faculdade no momento oportuno, não pode fazê-lo retroativamente. “Concluo, assim, que o direito de crédito somente pode ser exercitável no âmbito do lançamento por homologação”, afirmou o relator.

Consequências
Na visão do ministro Gurgel de Faria, é simplesmente impossível o Fisco considerar eventual saldo credor de ICMS no lançamento de ofício do imposto. Isso porque a análise feita depende da validade das declarações e dos documentos apresentados pelo contribuinte quando da ocorrência do fato gerador.

“Se cada vez que o Fisco não homologar a apuração e o pagamento do imposto for necessária a investigação de toda a documentação fiscal relacionada com os créditos do contribuinte, o objeto da fiscalização será aumentado em muitas vezes, inviabilizando, na prática, o exercício do mister da administração tributária”, explicou ele.

Essa questão prática também foi levada em conta no voto-vista da ministra Regina Helena Costa, que classificou o lançamento por homologação como instrumento de praticabilidade para pagamento do ICMS, pois simplifica e racionaliza a atividade administrativa.

Para ela, adotar a disciplina do lançamento por homologação também para os casos de lançamento de ofício resultaria na redução significativa desses benefícios e implicaria salvo-conduto para uma atuação descompromissada com a cultura de conformidade fiscal.

Uma empresa que possui créditos de ICMS, por exemplo, não precisaria se preocupar com a falta de pagamento do tributo no futuro ou com obrigações tributárias acessórias, pois caberia ao próprio Fisco afastar essas irregularidades em prol de uma compensação que o próprio contribuinte não fez quando teve a oportunidade.

“Ademais, caso a medida pleiteada se tornasse a regra, os direitos da empresa recorrente de parcelar o débito, buscar a transação e utilizar posteriormente o saldo, observado o prazo decadencial, seriam atingidos”, concluiu a ministra.

Clique aqui para ler o acórdão
AREsp 1.821.549

Fonte: STJ

Transformação do Carf em órgão arrecadador

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) mandou o seu projeto de orçamento para o Congresso considerando que, com a mudança na lei (PL 2.384/2023), permitirá que o voto do presidente do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) será o que valerá em caso de empate — dois votos e não um voto só, pois é um voto de qualidade — e, com isso, pretende arrecadar até R$ 59 bilhões.

O que me entristece, na fala do ministro Haddad  — que eu respeito, temos relação desde a época que ele era assessor da prefeita Marta Suplicy (SP), tendo dado palestras, inclusive, no Conselho Superior de Direito, que eu presido — , e o que me impressiona é a forma como ele falou, como mandou, a forma como foi mudado que, na minha opinião, tem duas falhas fundamentais.

A primeira é que transforma o Carf não num órgão de julgamento justo, de procurar a justiça tributária, de fazer justiça entre o contribuinte e o Fisco. Mas num órgão de arrecadação. O que vale dizer, quando há empate, significa uma dúvida enorme, vai valer o voto daquele que é fiscal para que se possa ter a arrecadação.

O que menos importa é a justiça tributária. O que mais importa é ter dinheiro em caixa.

Quando, na verdade, toda a luta que se faz — desde que comecei a discutir direito tributário, há 65 anos, desde que nós tivemos o Relatório Newmark para, na União Europeia, definir o seu regime tributário, desde a Royal Commission Taxation, do Canadá, quando se discutiu quais eram as funções fundamentais da política tributária, que era fazer justiça tributária, transformar o Carf não num tribunal de julgamento justo, mas num tribunal para decidir a favor da Receita  — dando um peso de duas vezes ao presidente, que é sempre um agente fiscal.

É evidente não compreender qual é a função da revisão administrativa, do processo administrativo fiscal. Esse é o aspecto em relação ao espírito que levou a essa alteração.

E o segundo aspecto, esse, a meu ver, é o mais grave. Os pais do direito tributário — aqueles que fizeram o direito tributário, aqueles que compuseram o Código Tributário Nacional, aqueles que redigiram a Emenda Constitucional nº 18, aqueles que introduziram o sistema tributário que nós não tínhamos antes, Rubens Gomes de Sousa, Carlos da Rocha Guimarães, Aliomar Baleeiro, todos aqueles que foram, realmente, os pais do direito tributário — puseram, no Código Tributário Nacional, o artigo 112, dizendo o seguinte: num caso de dúvida para a decisão entre uma discussão contribuinte/fisco, tem que prevalecer a interpretação mais favorável ao contribuinte. E o Código Tributário tem eficácia de lei complementar.

Portanto, estão mudando uma lei complementar por meio de uma lei ordinária, dizendo que, em caso de dúvida, tem que prevalecer a vontade do fisco, e não como manda o CTN, como manda uma lei de hierarquia superior à lei ordinária, que condiciona a lei ordinária, que é o Código Tributário Nacional, e que, no caso de dúvida, incidisse a favor do contribuinte e não a favor do Fisco. O que vale dizer, a meu ver, é uma evidente ilegalidade nessa lei ordinária que o Congresso acaba de aprovar.

Por meio de lei ordinária, estão modificando o Código Tributário Nacional, dizendo, em caso de dúvida, porque se tem quatro votos de um lado e quatro votos de outro, eu tenho dúvida. E daí um deles passa a ser o superior julgador, porque a sua posição valerá duas vezes, e não um voto só. Então, apesar de ser quatro a quatro, fica cinco a quatro, e um tem o valor de dois. Portanto, me parece que temos uma violação ao CTN.

Na minha opinião,  primeiro, o projeto transforma o Carf não num tribunal de justiça tributária, mas num tribunal apenas de arrecadação fiscal. Segundo lugar, fere, a meu ver, o Código Tributário Nacional, que manda que, no caso de dúvida, tem que se decidir a favor do contribuinte, artigo 112, e não a favor do Fisco.

Fonte: Conjur