O paradoxo Tostines, as redes sociais e o teste para brain rot: faça aqui!


Nem todos conhecem o “paradoxo Tostines”. Na época, a maioria chamou de “dilema Tostines”. Dilema é quando temos decisões a tomar e qualquer delas é trágica. Um exemplo é o dilema do trem, em que, para não matar dez pessoas, desvia-se o bólido e mata uma. Já o paradoxo trata de algo sobre o qual não podemos decidir.

Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?  Trata-se de um paradoxo. Os mais jovens não sabem o que é, porque só frequentam redes sociais, com o que, paradoxalmente, em face do excesso de informações, acabam sem conhecimento algum. Como dizia T.S. Eliot, informação não é conhecimento; conhecimento não é saber; saber não é sabedoria.

Interessante notar que o número crescente de smartphones e quejandices tecnológicas, face à facilidade com que se tem acesso a informações, deveria diminuir o número de néscios e similares. Porém, mais informação, mais néscios. Informação demais é informação de menos. Eis aí outra questão paradoxal.

Voltando ao paradoxo Tostines: as redes sociais são superficiais e produtoras de ignorância porque se retroalimentam de ignorantes ou os ignorantes são assim porque frequentam as redes sociais?

Na mesma linha, o que veio primeiro? A agnotologia (produção deliberada de ignorância) ou o tik tok? Boa pergunta. De difícil ou impossível resposta.

A jornalista Becky Korich, em artigo na Folha de S.Paulo, faz uma ironia (ou sarcasmo) com os testes que aparecem nas redes sociais. Você pode testar seu QI (coeficiente de inteligência), seu índice de gordura, seu grau de cretinice, seu índice de alcoolismo, assim como fazer o teste para saber se você tem a doença da moda, o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção…). Korich alerta: além de confundir compreensão sobre transtornos, conteúdo de redes sociais enfraquece capacidade das pessoas de lidar com suas emoções.

E lá vem o teste:

(i) você esquece onde deixou as chaves do carro ou o celular? Check.

(ii) Tem dificuldade em manter o foco em tarefas entediantes? Check.

(iii) Lê vários livros ao mesmo tempo e demora para terminar? Check.

(iv) Sente incômodo com música alta quando está concentrado? Check.

(v) Esquece com frequência o que ia dizer? Check.

(vi) Sente sono pela manhã?

Korich conclui: mil checks. Sim para todas. Veredito: TDHA (transtorno do déficit de atenção por hiperatividade).

O resultado é instantâneo, mostra a jornalista: “os mestres em ‘medicina Tik Tok’ não sabem quem eu sou, de onde vim, se bebo, se fumo, se durmo bem – mas, de tão experts que são, sabem muito mais sobre mim. Funciona assim: uma lista de perguntas de ‘sim’ ou ‘não’ é lançada e o resultado vem no final, junto com a prescrição do remédio”.

Um estudo recente feito por pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, revelou um dado alarmante: dos sintomas relatados nos vídeos mais populares sobre TDAH no TikTok, que somam quase meio bilhão de visualizações, menos da metade se apoia em fontes confiáveis.  As redes sociais podem ser aliadas da saúde mental. Podem ajudar a espalhar informação de qualidade, aumentar a conscientização e combater estigmas e preconceitos. Mas, quando se trata de redes sociais, os likes são mais valiosos do que a ciência comprovada.

A jornalista conta que, em um vídeo, uma adolescente dança, aparece na tela uma relação de “sintomas” de autismo, como não gostar de usar meias, não misturar salada com o restante da comida e dormir com a TV ligada. “Coisas que eu achei que todo mundo fazia, mas na verdade são sintomas de autismo“, diz a legenda. Impressionante. A vítima do outro lado da tela deve abaixar os dedos da mão para cada característica com que se identifica. Se fechar os cinco dedos: bingo! Positivo para o espectro. Impressionante de novo.

E o espantoso de tudo isso, diz Korich, é que nos comentários muitos usuários engolem o diagnóstico: “Me identifiquei com todas, socorro“, “Sim para todas, mas fui diagnosticada como TDAH e agora estou confusa“, “estou descobrindo que sou autista com 56 anos“, “me identifiquei com 4, devo me preocupar?”.

Os vídeos sobre TEA (transtorno do espectro autista) e TDAH estão entre as dez hashtags relacionadas à saúde mais visualizadas do TikTok. Dos mais populares com a hashtag #autism, só 27% tinham informações precisas sobre o transtorno. Alguns prometem a “cura” para o autismo, oferecendo pulseiras magnéticas, óleos essenciais e outras tolices. Esqueceram as rezas de pastores. Ou Ora Pro Nobis. Até a ingestão de alvejantes foi recomendada como tratamento, que, pasme, alguns pais tiveram a insanidade de aplicar aos seus filhos.

As redes sociais são o lugar da charlatanice em grau semelhante ao das igrejas com cultos televisivos que todos os dias fazem “curas” até de Covid, como foi o caso de um missionário ou pastor que diz ter curado mais de 100 mil doentes de Covid. O problema é que ele mesmo foi entubado, mostrando que a realidade também produz ironias e sarcasmos. Será que ele esqueceu de orar? Ou de pagar o dízimo? Bom, deixem pra lá. Só estou fazendo perguntas. Ironia e fé às vezes se mesclam…!

Nestes tempos de cérebro podre ou apodrecimento cerebral (grupos de WhatsApp também colaboram para o brain rot), as redes sociais são um prato cheio para os pesquisadores. Redes: o lugar sem filtro. Em que um idiota se transforma em opinador.

Bom , nenhum pesquisador pode dizer que morre de tédio. Há de tudo nessa selva.

Talvez possamos fazer um teste para saber se o usuário da rede está com brain rot. Inventei o teste hoje. Vamos lá?

(i) Check 1: você não lê jornal e se informa no seu grupo de whatsapp e Instagram, Tik Tok ou X?

(ii) Check 2: fica mais de uma hora olhando filminhos de tik tok em um dia?

(iii) Check 3: há mais de dois anos não lê um livro?

(iv) Check 4: não resiste à tentação de esculhambar a postagem da qual não gostou?

(v) Check 5: é radicalmente a favor da linguagem simplificada (se você é da área jurídica ou do jornalismo a coisa é ainda mais grave) e tende a acreditar nas informações que circulam – resumidinhas – no Instagram e se sente atraído pelas imagens de sucesso?

Se você respondeu “sim” para as cinco checagens, você já está com brain rot em estágio avançado; se você respondeu quatro checagens afirmativamente, seu quadro é difícil, praticamente impossível de recuperar. Só tratamento de choque como ler livros pode lhe salvar.

Mas um adendo: livros que são genuinamente livros. Se for da área jurídica, não vale livro que reproduz o senso comum teórico jurídico. E não vale sinopse, resumidinho ou simplificado-mastigadinho. Nem musicado. Porque, se for algo desse tipo, o efeito é adverso: excesso de concursismo causa brain rot severo.

Dá para seguir no teste – um modelo premium:

(vi) Check 6: você acredita que “textão” é sinônimo de arrogância ou intelectualismo, e que qualquer ideia que exija mais de 30 segundos de atenção deve ser descartada?

(vii) Check 7: você compartilha frases de efeito sem saber quem disse (ou atribuindo a Clarice Lispector)?

(viii) Check 8: você é fofinho(a)/poliana nos grupos de whatsapp que participa, concordando com tudo e colocando emojis de positivo para qualquer platitude ou truismo?

(ix) Check 9: não sabe o que é platitude

(x) Check 10: você se sente satisfeito por “não saber dessas coisas aí” – sejam elas políticas, históricas, filosóficas ou qualquer assunto que não caiba em um meme? Parabéns, você é um entusiasta da agnotologia. Não tem cura.

Muito cuidado. O pior tipo de brain rot é o brain rot performático. Como se fosse bonito. Há algum tempo, ser estúpido era feio. Depois, passou a ser aceitável. Agora, o feio é estudar. E escrever textos difíceis (sic).

Bem, por hoje, é isso. Bocejei uma vez enquanto escrevia este texto. Deve ser TDAH! Check!

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O SUS ainda é política de Estado?

A leitura do jornal do dia 14 de abril de 2025 [1] noticiava a reconfiguração do programa “Mais acesso a especialistas”. A notícia da iniciativa, em princípio louvável, revelava, todavia, bastidores de um conflito interno no Ministério da Saúde, que explicita o quanto ainda temos a amadurecer no tema da construção, monitoramento e avaliação de políticas públicas – não obstante todo o esforço de construção que se tem desenvolvido neste campo. Mais especificamente, o quanto é preciso avançar na visão de que políticas públicas podem não ser de governo, mas sim de Estado.

Vamos localizar o tema. A notícia acima referida, dizia do esforço do Ministério da Saúde, no sentido da reformulação do referido programa. O modelo originário tinha por eixo principal, o desenho de incentivos para que estados e municípios se engajassem em iniciativas para reduzir a fila de espera de procedimentos como exames e cirurgias. A formatação que se baseava no envolvimento dos demais entes federados – é o que diz a notícia – foi reputada indesejável, eis que, dentre outros argumentos, com isso não se tinha o reforço da presença do governo federal como o garantidor da solução do problema. A alternativa agora sob estudo é o uso de parcerias com a rede privada.

A notícia, nos termos em que foi veiculada, desperta algumas perplexidades.

O SUS é política pública de Estado

A primeira delas envolve a naturalidade com que se afirma a relevância de se conferir maior visibilidade a um determinado plano federal, num segmento de serviço público que tem configuração constitucional expressa, a saber, o Sistema Único de Saúde. A execução dos serviços de saúde foi reputada pelo constituinte de 1988, como política pública de Estado, reforçada na sua pretensão de permanência e estabilidade, pelo desenho institucional e principiologia própria, todos explicitados em sede constitucional. A solução de engenharia constitucional foi reforçada, em alguma medida, pela Emenda 20/2000, que assegurava mecanismos de financiamento considerados todos os integrantes do sistema único – ferramenta que indiretamente reforça a viabilidade do sistema, que não sobrevive sem recursos que o sustentem.

A opção, boa ou má sob a perspectiva estritamente política, é do texto constitucional, e até o momento, não foi objeto de qualquer iniciativa de emenda que modifique a escolha constituinte. Nestes termos, segue mandatória, não admitindo flexibilização nos parâmetros fixados na Carta de 1988.

A pretensão de assegurar visibilidade ou identificação pela população, de que o executor do serviço seja este ente federado – ao invés de outro – externa uma visão que entende o SUS como política de governo, que admite reconfiguração conforme a opção estratégica das forças contingencialmente no poder. Afinal, buscar conferir destaque a uma específica camada da federação brasileira é desvincular-se da ideia de sistema único, com o concurso de todos os entes federados em pé de igualdade – alternativa que, a meu sentir, o desenho constitucional pretendeu exatamente evitar.

Segunda perplexidade que a iniciativa causa, está na naturalidade com que se proclamou fosse essa a intenção do esforço de reconfiguração da iniciativa então em já em andamento – alinhada com a oferta de incentivos para que estados e municípios reduzissem as filas de atendimento. A proclamação, com todas as letras, de que se buscava transformar uma iniciativa relacionada à tutela ao direito fundamental à saúde numa “marca” do governo federal revela a naturalização da já apontada visão de que se tenha no SUS não propriamente uma política de Estado. Serviços de saúde, segundo esta visão externa, compreenderiam uma dimensão de discricionariedade em relação ao seu modo de prestação, admitindo atores de maior ou menor relevância, identificados com esta ou aquela iniciativa.

Observe o ilustre leitor, que a crítica aqui formulada valeria igualmente caso se identificasse um estado ou município afirmando pretender maior visibilidade do que a conferida aos demais entes federados na execução de serviços de saúde. Iniciativa dessa natureza, deflagrada por qualquer dos entes federados milita contra uma escolha que não está na esfera de discricionariedade do agente político de plantão, eis que foi delimitado pelo constituinte.

Descaracterização do caráter hierarquizado da rede

Terceira perplexidade que a leitura da notícia desperta, diz respeito ao distanciamento de outro critério que tem sede igualmente constitucional, a saber, o caráter hierarquizado da rede de serviços públicos de saúde (artigo 198 CF).

O deslocamento de exames e cirurgias para um específico integrante do SUS (União) pela circunstância de se cuidar de serviço represado se afasta da estrutura em níveis de atendimento (primário, secundário ou terciário), e pode ainda deitar efeitos negativos em relação à premissa de integração funcional, que é de presidir a atuação do sistema único.

Também aqui é de se apontar que não se tenha alternativa contida numa esfera de livre decidibilidade do agente político. Afinal, a hierarquização da rede, referida em texto constitucional expresso (artigo 198, caput CF) organiza o sistema, referindo o paciente a estruturas específicas que hão de prover o atendimento integral, observado o nível de atendimento que sua condição de saúde exija. Não por outra razão se tem, na saúde, uma política de Estado, que é de operar a partir da premissa de estabilidade, para que as ações de saúde possam se dar de maneira orgânica, segundo um signo de planejamento.

O redirecionamento a outras estruturas – iniciativa privada inclusive – pode impactar adversamente no sistema, determinando uma representação equivocada em relação, por exemplo, a providências de continuidade do atendimento inicialmente empreendido por agente externo ao SUS, neste modelo “reconfigurado” do programa “Mais acesso a especialistas”. Mais ainda, é possível prever um contencioso potencial no que toca aos limites de responsabilidade desses agentes estranhos ao SUS, e daqueles que, por determinação constitucional, têm competência para atuar. No centro do conflito, possivelmente, se terá o paciente…

Direcionando a imaginação para o reforço do SUS

Quarta perplexidade que a notícia evidencia, é a apresentação, como uma espécie de argumento de reforço, da tese de que dificuldades de ordem burocrática tornavam mais lento o processo de incentivo de estados e municípios a aderirem ao esforço de redução das filas de atendimento. Assim sendo, a solução “criativa” seria a execução dos serviços por uma via mais célere – que compreenderia não só o redesenho em si do processo de solicitação e  financiamento da providência médica, mas também a troca dos agentes executores.

Se a operação de serviços de saúde é de se dar, como determinado pela Constituição, por intermédio de sistema único, é de se supor que, transcorridos 37 anos da formalização dessa opção institucional, os mecanismos de controle e financiamento tivessem alcançado já nível de aperfeiçoamento que tornassem menos impactante o peso da burocracia no seu funcionamento.

Em tempos de governo digital, em que a União proclama sua excelência na inserção neste admirável mundo novo, a afirmação de que a burocracia do sistema SUS seja um empecilho suficiente a determinar a reconfiguração de uma política pública desta abrangência e relevância soa paradoxal.

Mais ainda; o problema apontado – burocracia – não guarda uma relação direta de solução, com a troca dos agentes executores do serviço público cogitado. O procedimento de execução dos serviços e respectivos pagamentos não se tem por abreviado ou simplificado simplesmente porque o agente executor não é mais um estado ou município. O esforço de simplificação – princípio do governo digital e da eficiência pública, nos termos do artigo 3º, I da Lei 14.127 de 29 de março de 2021 – determinando a desejada agilidade poderia se verificar igualmente com a preservação dos entes federados integrantes do SUS como executores principais dos procedimentos represados.

Também neste ponto se tem por evidenciada uma compreensão do SUS como política de governo – e não de Estado. Afinal, o investimento de imaginação e criatividade na busca de soluções mais ágeis, que preservem as respectivas esferas de responsabilidade dos integrantes do SUS é a visão que se alinha com uma política de Estado, permanente e estável, que se beneficie desta construção incremental de soluções.

A proposição de mecanismos alternativos de agilização dos procedimentos e respectivos pagamentos, sob o argumento de que se está buscando uma solução pontual para um problema de represamento nos atendimentos, secundariza a importância de esforços de revisão estrutural do relacionamento entre os integrantes do sistema SUS – e com isso, nega em alguma medida a já referida opção constituinte por um modelo que não é de estar sujeito às contingências do cenário político. Políticas públicas de Estado são concebidas exatamente para isso.

Preservar a esfera de discricionariedade de agentes políticos é um desdobramento potencial de regimes democráticos – a proposta vencedora nas urnas é de encontrar espaço para concretização no dia a dia da gestão. Esta ideia, todavia, pode encontrar limites na própria Constituição; e isso assim se dá pela relevância do valor social que se esteja a preservar com o recorte da esfera de decidibilidade do agente político.

O SUS é mesmo um desafio; uma experiência particular no cenário nacional – mas tem se revelado, com todos os seus percalços, um grande avanço para a sociedade brasileira. Saúde é uma conquista sujeita a consolidação incremental, e não por outra razão o constituinte optou por erigi-la como política pública de Estado.

Ao gestor ávido por imprimir a sua marca, sempre restarão as (múltiplas) áreas que a Constituição deixou livre à escolha democrática. Mas não no SUS…

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Análise de impacto e o mito do atraso em decisões regulatórias

Quando o Brasil adotou a AIR (análise de impacto regulatório) como ferramenta obrigatória para subsidiar as decisões regulatórias no país, muitos tomadores de decisão temeram o impacto dessa obrigatoriedade sobre as rotinas das instituições. Ainda há muitos adeptos do entendimento de que a AIR é um procedimento burocrático, demorado e que atrasa a tomada de decisão.

Conforme já nos posicionamos no artigo “Por um uso mais racional da análise de impacto regulatório no Brasil”, a AIR é uma ferramenta valiosa que confere racionalidade e legitimidade às decisões regulatórias. No entanto, para que o seu uso seja compatível com a crescente demanda por soluções regulatórias e com a insuficiência de recursos nas autoridades regulatórias, é fundamental que o Brasil encontre um modelo proporcional de AIR, que priorize o seu uso em propostas regulatórias de maior impacto para a sociedade.

Observado o critério da proporcionalidade, um fator que pode, ainda assim, desencorajar gestores a realizar uma AIR é o tempo de sua elaboração. Como observado em artigos anteriores publicados nesta coluna, a urgência é um dos motivos que frequentemente é utilizado para a dispensa de AIR em casos em que sua realização seria recomendável.

Mensurando o tempo de realização de uma AIR

Mas, afinal, enquanto o Brasil busca o seu modelo ideal, a AIR tem provocado atrasos em decisões regulatórias? Quanto tempo tem sido gasto na elaboração de uma AIR? Em busca de contribuir com esse debate, a equipe de pesquisadores do Projeto Regulação em Números, da FGV Direito Rio, realizou levantamento e análise de 1.415 processos regulatórios, conduzidos entre abril de 2021 e abril de 2024, pelas 11 agências reguladoras federais. O objetivo do levantamento foi explorar os dados disponíveis para compreender o tempo de elaboração da AIR no Brasil.

O tempo de duração de qualquer ação pode ser medido pela sua data de conclusão, com desconto de sua data de início. No caso da AIR, a data de conclusão pode ser representada pela data da assinatura do Relatório de AIR. Mas como identificar o momento em que a AIR começou a ser elaborada? As instituições regulatórias nem sempre deixam registros dos primeiros esforços e discussões orientadas às etapas da AIR.

Diante dessa limitação, adotou-se como proxy do início da elaboração da AIR, a data de abertura do processo regulatório. Trata-se de adotar entendimento de que, em alguma medida, a partir da abertura do processo regulatório, esforços institucionais são dedicados ao estudo do tema, à participação social e à identificação de problemas e soluções, como partes integrantes da AIR. A partir desse entendimento, foi possível estimar o tempo de realização da AIR no Brasil (Tabela 1).

Tabela 1. Tempo gasto com a realização de AIR (mediana, em dias)

Agência Reguladora Federal (1)Tempo estimado (2)
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel)543 (n=22)
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)473 (n=44)
Agência Nacional de Águas e Abastecimento (ANA)455 (n=25)
Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)252 (n=20)
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac)234 (n=66)
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT)188 (n=23)
Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)86 (n=18)
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)75 (n=13)

(1) A Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) não apresentaram volume de AIRs suficiente para apuração dos seus resultados.

(2) O resultado foi apurado, em dias, a partir da diferença entre a data de assinatura do relatório de AIR e a data de abertura do processo regulatório. Foi adotada a mediana para amortecer os efeitos de processos atípicos sobre os resultados.

Os dados mostram importante variação no tempo gasto com a realização de AIR, nas diferentes agências. É possível agrupar as agências em 3 grupos distintos. No primeiro, estão a Aneel, a Anvisa e a ANA. As três agências dedicaram mais de 450 dias à realização de AIR. No segundo grupo, Anatel, Anac e ANTT dedicaram em torno de 200 dias para conduzir suas AIRs. E no terceiro grupo estão a ANP e ANS, que realizaram AIRs em menos de 100 dias.

O tempo gasto com a AIR é proporcionalmente menor do que se imagina

A interpretação desses resultados requer cuidado. Não se pode almejar, a priori, que um regulador se posicione no primeiro, no segundo ou no terceiro grupo. O tempo ideal de dedicação à AIR dependerá de inúmeros fatores, como a complexidade de cada processo regulatório, a disponibilidade de recursos para sua realização, bem como o nível de amadurecimento, informações e conhecimento pré-existentes.

Como já foi mencionado, o objetivo dos reguladores deve ser priorizar o uso de AIR em propostas de maior impacto e evitar o desperdício de recursos na realização de AIRs de menor relevância social. Considerando que algumas pesquisas correlacionam — positivamente — um maior tempo de dedicação à AIR com maior qualidade na análise, a estratégia ideal para os reguladores deve ser fazer boas escolhas sobre quais processos regulatórios merecem AIR e dedicar recursos e tempo para a realização de análises qualificadas.

Voltando à provocação que deu título a esse artigo. É comum que tomadores de decisão dispensem as AIRs ou pressionem suas equipes para que as elaborem rapidamente. Os decisores temem perder oportunidades decisórias e não querem que a AIR signifique atrasos nas respostas regulatórias demandadas pela sociedade. Mas afinal, a AIR tem gerado atrasos em decisões regulatórias?

Para tentar responder essa questão, é necessário adotar uma premissa. Deve-se considerar que o uso da AIR não implicará em atraso na decisão quando o tempo dedicado à sua elaboração for significativamente inferior ao tempo total do processo decisório (tempo necessário para a tomada de decisão). Em outras palavras, não é razoável acusar uma AIR, que levou poucos meses para ser elaborada, por ter atrasado uma decisão que precisou de anos para ser tomada.

Nesse sentido, a tabela 2 compara o tempo necessário para a tomada de decisão com o tempo gasto com a realização de AIR, nas agências reguladoras federais brasileiras.

Tabela 2. Comparativo de tempo gasto com AIR e com a tomada de decisão

Agência (1)Tempo gasto com a realização de AIR(2)Tempo necessário para a tomada de decisão (3)%
Aneel54369778%
ANA45572463%
ANS7518141%
Anvisa473129537%
ANTT18861031%
Anac23482928%
Anatel252109323%
ANP8648718%

(1) A Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) não apresentaram volume de AIRs suficiente para apuração dos seus resultados.

(2) O resultado foi apurado, em dias, a partir da diferença entre a data de assinatura do relatório de AIR e a data de abertura do processo regulatório. Foi adotada a mediana para amortecer os efeitos de processos atípicos sobre os resultados.

(3) O resultado foi apurado, em dias, a partir da diferença entre a data do ato normativo e a data de abertura do processo regulatório. Considerou-se apenas os processos com AIR. Foi adotada a mediana para amortecer os efeitos de processos atípicos sobre os resultados.

Os resultados indicados na tabela 2 são esclarecedores. Em seis das oito agências avaliadas, o tempo gasto com as AIRs representou menos da metade do tempo necessário para a tomada de decisão. Mesmo na Aneel e ANA, as duas agências que investiram maior tempo relativo em AIR, foi identificado interstício de tempo superior a 150 dias entre a finalização da AIR e a decisão.

O que se depreende é que não há indícios de que o uso da AIR tenha gerado atrasos em decisões regulatórias. Se atrasos aconteceram, foram processos regulatórios pontuais e atípicos. A análise, a partir de grandes números, indica que houve um hiato entre o tempo que os reguladores precisaram para realizar AIRs e para tomar decisões. Os processos regulatórios podem estar sujeitos a forças, pressões e condições que exigem dos reguladores um amplo tempo para a tomada de decisão. A AIR não é a vilã, ao menos não nesse aspecto.

Este artigo se propôs a examinar alguns dados para inaugurar debate ainda não explorado no país. Examinar o tempo que foi gasto com a elaboração de AIR e se esse tempo repercutiu em atrasos nas decisões. Os resultados indicaram que o uso da AIR não se relacionou com atrasos nas decisões. De modo geral, as agências precisam de muito mais tempo para decidir do que precisam para realizar AIR.

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A falta que faz uma lei geral de processo administrativo normativo

Afirmar que grande parte das normas que regulam o dia a dia dos indivíduos e empresas é elaborada pela administração pública, e não pelo Legislativo, parece levantar pouca polêmica na atualidade. Esse quadro, por vezes nomeado como “deslegalização” ou de “crise da lei formal”, que animou intensos debates doutrinários desde os anos 1990 sobre a necessidade de rever os contornos dados ao princípio da legalidade, consolidou-se na prática da administração no Brasil em todos os níveis da federação.

No entanto, a produção de “atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados”, expressão utilizada pela Lei Geral das Agências Reguladoras, pela Lei de Liberdade Econômica e pelo regulamento da análise de impacto regulatório (AIR), não é isenta de questionamentos. Afinal, como conferir legitimidade democrática a normas de interesse geral elaboradas pela burocracia estatal, ou seja, por agentes públicos não eleitos?

Importância do processo administrativo normativo

Uma resposta usual a essa questão é qualificar o procedimento adotado para elaboração das normas pela administração. Esse procedimento pode ter várias etapas, que antecedem até mesmo a discussão de uma norma específica: informar aos administrados com antecedência quais temas serão objeto de discussão pela instituição; exigir, durante o processo de discussão de um tema específico, a elaboração de estudos que possam auxiliar na tomada de decisão administrativa e esclarecer os motivos que levaram a elaboração da norma destinada a tratar daquele tema com determinadas características; rever periodicamente os efeitos das normas previamente elaboradas, e alterá-las ou revoga-las, se for o caso; e estabelecer mecanismos para que cidadãos e agentes econômicos possam se manifestar e influenciar no conteúdo das normas que irão afetá-los.

Em outros termos, uma resposta é estabelecer regras claras para o procedimento administrativo normativo, entendido como o procedimento que regulamenta como normas administrativas são elaboradas, alteradas ou revogadas.

A fragmentação legal do procedimento administrativo normativo federal

Há uma série de instrumentos de “melhoria regulatória” que podem ser utilizados para enfrentar as questões anteriormente apontadas. A agenda regulatória permite aos agentes econômicos e usuários conhecerem antecipadamente quais temas serão objeto de discussão. A análise de impacto regulatório (AIR) confere racionalidade à tomada de decisão e dá transparência à opção adotada pelo órgão ou entidade, inclusive se for pela decisão de não elaborar uma norma. A avaliação de resultado regulatório (ARR) permite verificar se os impactos do ato normativo para a sociedade e agentes econômicos estão de acordo com os objetivos e premissas que levaram à elaboração da norma. Por fim, os diversos mecanismos de participação social – consulta pública, audiência pública, tomada de subsídios, dentre outros – conferem às partes afetadas pela norma a possibilidade de manifestação.

Contudo, a maior parte desses instrumentos é utilizada quase exclusivamente pelas agências reguladoras, particularmente em decorrência da Lei 13.848/2019. Lá estão previstas a obrigatoriedade de elaboração de agenda regulatória (artigo 21), de AIR (artigo 6º) e de consulta pública, nos casos de minutas de atos normativos (artigo 9º). Já outros órgãos e entidades federais, especialmente da administração direta, pouco adotam esses instrumentos.

A baixa disseminação desses mecanismos entre órgãos e entidades da administração não decorre da falta de previsão legal, mas sim da fragmentação dos dispositivos legais vigentes.

A Lei 9.874/1999 (Lei de Processo Administrativo) contempla mecanismos de participação, como consultas (artigo 31), audiências públicas (artigo 32) e outros procedimentos participativos (artigo 33). Também exige que os resultados desses processos sejam publicizados com a descrição do procedimento adotado (artigo 34).

A Lei 13.848/19 (Lei Geral das Agências Reguladoras) e a Lei 13.874/19 (Lei de Declaração de Liberdade Econômica) estabelecem aos órgãos e entes da Administração Pública federal, direta, indireta e fundacional, a obrigação de realização de AIR na produção de normas de “interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados”. A AIR, por sua vez, é regulamentada pelo Decreto 10.411/2020, que dispõe sobre os usos obrigatórios e facultativos desse e de outro instrumento que introduz ao ordenamento jurídico, a Avaliação de Resultado Regulatório (ARR).

Embora esses dispositivos atinjam toda administração pública federal, vários dos seus órgãos e entidades (Receita Federal, por exemplo) não realizam AIR sob a alegação de que as normas que editam não são “regulatórias”.

Recentemente, o Decreto 11.243/22 foi editado com o objetivo de regulamentar o Protocolo ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica com os Estados Unidos, cujo Anexo II estabeleceu um conjunto de boas práticas regulatórias que ambos os países se obrigaram a adotar. Uma das inovações deste decreto foi instituir a obrigação de elaboração de agendas regulatórias para todos os órgãos e entes da administração pública federal (artigo 6º). Antes da sua edição, agendas regulatórias eram exigidas apenas das agências reguladoras pela Lei Geral das Agências (artigos 17 e 18).

Também pode-se dizer que as normas que regem a realização de agendas regulatórias possuem efeitos restritos, já que os mesmos órgãos e entidades administração pública federal que não realizam AIR, por não se considerarem “reguladores”, também não se sentem obrigados, pelos mesmos motivos, a elaborar agendas regulatórias.

O Decreto 11.243/2022, ao alterar o regulamento da AIR, também introduziu a obrigatoriedade, para todos os órgãos e entidades da administração pública federal, da realização de consulta pública em normas precedidas de AIR, além da obrigação de uso obrigatório de mecanismo de participação social de livre escolha para as propostas de normas dispensadas de AIR em situações de baixo impacto, convergência com normas internacionais e atualização de normas obsoletas (artigo 9º-A, § 2º).

Essa obrigatoriedade, vigente desde 9 de junho de 2024, ainda é pouco conhecida da maioria dos órgãos e entidades reguladoras federais. Recentemente, o Decreto 12.002/2024, que estabelece normas para elaboração, redação, alteração e consolidação de atos normativos, estabeleceu que as consultas públicas realizadas para a produção de normas do Poder Executivo devem ser divulgadas pela plataforma “Participa + Brasil” (artigo 30). Um rápido exame dos mecanismos de participação anunciados nesta plataforma permite identificar que não são todos os órgãos e entidades que vêm realizando consultas públicas, talvez porque não se considerem “reguladores”, ou talvez por mero desconhecimento das novas obrigações instituídas pelo conjunto de normas acima mencionado.

Da urgente necessidade de um regime geral para o processo administrativo normativo

É inegável que necessitamos de normas que costurem essa verdadeira “colcha de retalhos” que são as leis e decretos que hoje dispõem sobre processo administrativo normativo no Brasil.

Esses fatos não são desconhecidos das autoridades públicas. A Casa Civil da Presidência da República coordena atualmente grupo de trabalho que prepara substitutivo ao Decreto nº 10.411/20, visando integrar melhor o uso de ferramentas de melhoria regulatória ao ciclo regulatório.

Tramita no Senado Federal o PL 2.481/2022, uma proposta de reforma da Lei de Processo Administrativo, que passa a prever e regulamentar o uso de ferramentas de melhoria regulatória – como AIR e ARR – na Lei 9.874/1999, além de integrá-los ao uso de mecanismos de participação social. Esse projeto também prevê a possibilidade de invalidação do ato administrativo em caso de descumprimento das regras procedimentais (artigo 50-B, §3º), dispositivo inexistente na legislação atualmente vigente.

Independentemente do caminho que a reforma venha a tomar – se será instituída por decreto ou por lei – alguns cuidados precisarão ser tomados para quebrarmos a lógica de fragmentação normativa acima mencionada.

Diretrizes para a elaboração de normas gerais de processo administrativo normativo

É preciso que as novas normas gerais de processo administrativo normativo sejam realmente gerais, ou seja, aplicáveis a todos os órgãos e entidades da administração pública federal indistintamente. Como um de nós já teve a oportunidade de manifestar neste evento aqui, talvez seja necessário que os novos instrumentos legais troquem expressões como “análise de impacto regulatório, “avaliação de resultado regulatório” e “agenda regulatória” por “análise de impacto normativo”, “avaliação de resultado normativo’ e “agenda normativa”. Se isso for o preço a se pagar para avançarmos no uso indiscriminado de boas práticas “regulatórias” por todos os órgãos e entidades da administração pública federal, que assim o façamos.

Um outro cuidado que o novo estatuto legal de processo administrativo normativo deve ter é o de integrar os mecanismos de participação social em todas as suas fases. A legislação atualmente estabelece ritos e exigências de transparência ativa apenas para consultas públicas que têm por propósito discutir minutas de atos normativos. Essa modalidade de mecanismo de participação social, como um de nós já se manifestou anteriormente nesta coluna, é talvez a que se revele menos efetiva para alterar o resultado das políticas regulatórias. Mecanismos de participação “fazem mais diferença” quando ocorrem em fases mais iniciais do ciclo regulatório, quando ainda se discute a natureza do problema regulatório de forma ampla.

Os dispositivos legais hoje vigentes são tímidos a esse respeito. Não há normas que prevejam o uso, ainda que facultativo, de mecanismos de participação social na construção de agendas regulatórias ou até mesmo para a discussão de problemas regulatórios amplos. Embora alguns órgãos e entidades reguladoras já o pratiquem, há muitas incertezas sobre quais boas práticas (e.g. exigências de transparência ativa) deverão ser adotadas para conduzir esses mecanismos de participação. É certo que o Decreto 10.411/2020 trata, en passant, da realização (facultativa) de mecanismos e participação na construção de AIRs (artigo 9º). Trata-se, no entanto, de mera previsão da faculdade de uso de mecanismos de participação nessa fase, sem que sejam oferecidos parâmetros para a sua realização.

Quanto ao uso da participação social para a discussão de minutas normativas, a solução dada pelo Decreto 10.411/2020 é insatisfatória, já que, como visto, estabelece a obrigatoriedade de consulta pública apenas para normas precedidas de AIR e a obrigatoriedade de mecanismos de participação de livre escolha para alguns poucos casos remanescentes (artigo 9ºA, § 2º do Decreto 10.411/2020). Trata-se de solução insuficiente, já que o uso de AIR é exceção, e não a regra, da atividade normativa da Administração Pública federal brasileira.

É possível argumentar que a legislação atualmente vigente não fecha as portas para a participação. De fato, há previsões genéricas que permitem a adoção de diferentes instrumentos. Ademais, a ausência de fixação de procedimentos gerais e detalhados pode ser interpretada como um reconhecimento da diversidade de capacidades institucionais da administração pública.

Essas considerações não afastam a necessidade de instituição de normas gerais de processo administrativo normativo federal. Uma reforma se mostra urgente para uniformizar e dar maior clareza aos procedimentos, superando a fragmentação existente. Ela deve alcançar todos os administradores públicos federais que editam normas, e não apenas aqueles que se percebem como reguladores. Por fim, o novo regime de processo normativo administrativo deve estimular o uso de mecanismos de participação social em todas as fases do ciclo de produção de normas, integrando-os às demais ferramentas de melhoria regulatória.

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Tese do STJ sobre crédito de IPI torna produto brasileiro mais competitivo

recente tese do Superior Tribunal de Justiça sobre o aproveitamento de créditos do Imposto sobre Produtos Industrializados torna as mercadorias brasileiras mais competitivas no mercado internacional.Refinaria de Paulínia, Replan, Petrobras

Tese do STJ sobre créditos de IPI torna mais competitivos produtos como os produzidos pelo setor de combustíveis

A conclusão é de tributaristas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico, em relação ao julgamento da 1ª Seção do STJ, na última quarta-feira (9/4).

O colegiado confirmou a posição mais favorável ao contribuinte, inaugurada em 2021, na interpretação do artigo 11 da Lei 9.779/1999, que concede créditos de IPI.

Esses créditos decorrem da compra de matéria-prima, produto intermediário e material de embalagem sobre os quais incidem o IPI e que serão aplicados na industrialização.

A lei dá direito a créditos de IPI nos casos em que o produto final deixa esses estabelecimentos industriais isentos ou com alíquota zero.

Por unanimidade de votos, a 1ª Seção do STJ confirmou que os créditos também são concedidos quando o produto tiver a rubrica NT, de não tributado.

Sem o creditamento, ocorre a chamada exportação do imposto: o IPI passa a compor o preço final, repassado ao comprador do produto — aquele que faz a compra no exterior.

Isso porque, após a exportação, não é possível abater o imposto pago anteriormente, já que a cadeira posterior se desenrola toda fora do Brasil.

Se o IPI deixa de compor o custo do produto final, ele é exportado a um preço melhor, o que o torna mais competitivo.  Isso vai impactar mercados importantes.

Por exemplo, o setor de combustíveis, para produtores e importadores de diesel, gasolina, querosene de aviação, que não são tributados. Também o setor mineral (produtores de ferro, nióbio, alumínio, cobre, ouro).

Créditos de IPI

Renata Emery, sócia na área de Direito Tributário de TozziniFreire e que atuou em um dos processos julgados no STJ, explica que a manutenção dos créditos de IPI reduz o custo dos produtos imunes e reflete de forma homogênea para as empresas que os produzem.

“Veja-se, aliás, que é o mesmo efeito que ocorre em relação a produtos isentos ou sujeitos à alíquota zero”, aponta a advogada, ao defender a interpretação dada no voto do relator, ministro Marco Aurélio Bellizze.

Bianca Mareque e Raphael Castro, da área de tributário e aduaneiro do Vieira Rezende Advogados, ressaltam que o STJ evitou o equívoco de confundir estabelecimento industrial com contribuinte de IPI.

Se é possível industrializar e não ser contribuinte desse IPI e se o artigo 11 da Lei 9.779/1999 não exige isso para o aproveitamento de créditos, não há por quê adotar a restrição defendida pela Fazenda Nacional.

“A interpretação proposta pela 1ª Seção traz maior harmonia e coerência para a compreensão dos institutos da imunidade, isenção e alíquota zero”, dizem.

Impacto econômico

Ambos ainda salientam que a posição dá ao Brasil, um dos maiores exportadores de commodities no mundo, uma melhora nas condições para a exportação de mercadorias com valor agregado.

Isso porque a exportação de tributos é um dos elementos que mais impacta negativamente a capacidade de competição do Brasil no comércio internacional.

“Desse modo, essa acertada decisão do STJ terá como efeito direto o estimular a capacidade do produto industrializado brasileiro competir no mercado externo, incentivo muito bem-vindo, no momento que o comércio global se torna cada vez mais desafiador.”

Na mesma linha, Flávio Molinari, sócio da área tributária do Collavini Borges Molinari, afirma que a tese do STJ reduz o custo da cadeia produtiva. Para ele, a diferenciação proposta pela Fazenda criaria insegurança jurídica e prejuízos econômicos.

“A decisão fortalece a competitividade da indústria nacional ao evitar o acúmulo de créditos de IPI em operações desoneradas. Isso contribui para redução do ‘custo Brasil’, promove a neutralidade tributária e estimula a exportação e os investimentos”, opina.

“Além disso, aumenta a segurança jurídica, uniformizando o tratamento fiscal das operações, o que melhora o ambiente de negócios e a previsibilidade para o setor produtivo”, conclui.

REsp 1.976.618
REsp 1.995.220

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Participante de estudo clínico que ficou com sequelas deve ser indenizada

A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, confirmou a condenação de um laboratório a pagar R$ 300 mil de indenização para a participante de uma pesquisa clínica que desenvolveu doença dermatológica rara e incapacitante.

A mulher relatou os primeiros sinais da doença dez dias após a segunda rodada de aplicação do medicamento drospirenona + etinilestradiol, uma formulação amplamente utilizada em anticoncepcionais orais.

O estudo visava avaliar a biodisponibilidade e a eficácia de um medicamento similar, que seria lançado pelo laboratório.

Diante dos problemas, ela acionou a Justiça para obter o custeio integral dos tratamentos dermatológico, psicológico e psiquiátrico, além de indenizações por danos morais, estéticos e psicológicos.

O Tribunal de Justiça de Goiás reconheceu o nexo causal entre o uso do medicamento e o surgimento da doença e condenou o laboratório a indenizar a vítima em R$ 300 mil, além de pagar pensão vitalícia de cinco salários mínimos devido à redução da capacidade de trabalho causada pelas sequelas irreversíveis.

Ao STJ, o laboratório alegou que o TJ-GO inverteu indevidamente o ônus da prova, exigindo a produção de uma prova negativa, o que seria impossível.

Além disso, argumentou que os valores da condenação deveriam ser reduzidos, pois a renda da vítima era inferior a um salário mínimo antes da pesquisa, e a manutenção integral da decisão do TJ-GO representaria enriquecimento ilícito, contrariando a própria jurisprudência da corte superior.

Condições de tratamento

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a fragilidade da perícia produzida impediu a confirmação, com grau de certeza, do nexo causal entre a administração do medicamento e o desenvolvimento da doença.

No entanto, a ministra enfatizou que o TJ-GO, ao considerar outros elementos que endossavam as alegações da vítima, atribuiu ao laboratório o risco pelo insucesso da perícia, determinando que arcasse com as consequências de não ter demonstrado a inexistência do nexo causal — prova que lhe seria favorável, conforme a dimensão objetiva do ônus da prova.

Além disso, a ministra destacou que a RDC 9/2015 da Anvisa, em seu artigo 12, estabelece que o patrocinador é responsável por todas as despesas necessárias para a resolução de eventos adversos decorrentes do estudo clínico, como exames, tratamentos e internação.

Nancy Andrighi também apontou que a Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde exige que as pesquisas com seres humanos, em qualquer área do conhecimento, garantam acompanhamento, tratamento, assistência integral e orientação aos participantes, inclusive nas pesquisas de rastreamento.

Segundo ela, a resolução “responsabiliza o pesquisador, o patrocinador e as instituições e/ou organizações envolvidas nas diferentes fases da pesquisa pela assistência integral aos participantes, no que se refere às complicações e aos danos decorrentes, prevendo, inclusive, o direito à indenização”.

Pensão vitalícia

Por fim, a relatora destacou que o pensionamento mensal de cinco salários mínimos não configura enriquecimento sem causa, uma vez que, ao determiná-lo, o TJ-GO levou em consideração não apenas a subsistência da autora, mas também o valor necessário para cobrir os tratamentos médicos exigidos pelo seu quadro.

“Reconhecida a incapacidade permanente da autora, é devido o arbitramento de pensão vitalícia em seu favor, segundo a orientação jurisprudencial do STJ, não havendo, pois, o limitador da expectativa de vida”, concluiu ela ao negar provimento ao recurso. Com informações da assessoria de imprensa do STJ. 

Clique aqui para ver o acórdão
Processo  2.145.132

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Algofobia, logoterapia e infocracia: a democracia no divã

Talvez aconteça com boa parte dos leitores de textos jurídicos, mas se deparar com uma abordagem que recorra a conceitos de outras ciências (História, Psicologia, Literatura, Filosofia etc.) oferece um genuíno deleite intelectual. Não por diletantismo. Essa abordagem interdisciplinar permite expandir horizontes de compreensão para visualizar determinado fenômeno, tanto quanto possível, como um todo. Afinal, a realidade não é fracionada. Ela é apenas uma e cada vez mais complexa.

Edgar Morin [1] denunciou que “a inteligência que só sabe separar fragmenta o complexo do mundo em pedaços separados, fraciona os problemas, unidimensionaliza o multidimensional. Atrofia as possibilidades de compreensão e reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo”. Essa citação foi transcrita na introdução da dissertação de mestrado [2] deste autor, no agora longínquo ano de 2014, em pesquisa sobre uma determinada hipótese de inelegibilidade, portanto, dentro do eixo temático de Direito Eleitoral, porém com apoio de valiosas lições de Epistemologia, Filosofia, Ciência Política e até mesmo um pouco de Neurociência.

Essa interlocução intelectiva aproxima-se da metodologia dialética, recurso que este autor buscou, em alguma medida, invocar na tese de doutorado [3], quando foi citado o método de pesquisa histórica de Caio Prado Júnior [4], para quem “todos os momentos e aspectos são senão partes, por si só incompletas, de um todo que deve ser sempre o objetivo último do historiador, por mais particularista que seja”. Por essa razão, defendia o autor a importância de não descuidar do “cipoal de acontecimentos secundários” que se manifestam no conjunto dos fatos e revelam a linha-mestra dos acontecimentos e sua respectiva direção.

Hoje essa perspectiva holística é ainda mais urgente para o pesquisador da Ciência Jurídica Eleitoral, assim como para todos os atores que participam do processo eleitoral. No limite, os graves dilemas que a democracia enfrenta atualmente atingem todos os cidadãos. É insuficiente valer-se do acervo de leis e jurisprudências como ferramentas exclusivas de compreensão e resolução dos desafios contemporâneos, especialmente aqueles relacionados à democracia. Logo, autores de outras vertentes de conhecimento enriquecem e contribuem, cada vez mais, no diálogo com a dogmática jurídica para o enfretamento de temas áridos como desinformação, populismo, pluralismo, autoritarismo, regulamentação de mídias sociais, transparência (ou não) dos algoritmos, uso inteligência artificial no contexto eleitoral, possibilidades e limites da democracia.

A par dessa necessidade teórica, que é antes, acima de tudo, prática, determinadas obras de viés não estritamente jurídico começam a se entrelaçar na direção de uma “linha-mestra” de análise, que desagua no que parece ser um dos grandes problemas da democracia no presente e, sobretudo, para o futuro.

Algofobia

A primeira delas é A Sociedade Paliativa [5], do autor sul-coreano, Byung-Chul Han. Nela o autor formula uma investigação filosófica sobre o fenômeno da “algofobia”, essa palavra curiosa que descreve, em resumo, o medo da dor, que acomete e flagela a sociedade contemporânea. Na medida que a tolerância à dor reduziu drasticamente, nasce um estado de anestesia permanente, no qual toda condição dolorosa é desesperadamente evitada. Esse comportamento se projeta para o campo social, em que “conflitos e controvérsias que poderiam levar a confrontações dolorosas têm cada vez menos espaço” [6], assim como para a arena política, na qual a “coação à conformidade e a pressão por consenso crescem” [7].

Essa analgesia implica a perda da vitalidade que alimenta a política, que passar a ingressar, assim, em uma zona paliativa e anuncia uma nova categoria de pós-democracia: uma democracia paliativa, que não é capaz de reformas e não tem coragem para a dor. O paradigma da positividade rejeita toda forma de negatividade, que, na psicologia, substituiu uma psicologia negativa por uma psicologia positiva, na qual pensamentos negativos devem ser evitados e substituídos por pensamentos positivos. A dor se submete a uma lógica de desempenho, que busca canalizar traumas como catalisadores para incremento do desempenho. Na sociedade paliativa, que corresponde à sociedade do desempenho, dor equivale à fraqueza. Uma de suas características, segundo o autor, é que ela consiste em “uma sociedade do curtir [Gefällt-mir]. Ela degenera uma mania de curtição [Gefälligkeitswahn]. Tudo é alisado até que provoque bem estar. O like é o signo, sim, o analgésico do presente. Ele domina não apenas as mídias sociais, mas todas as esferas da cultura. Nada deve provocar dor” [8].

A partir daí, Byung-Chul Han enumera uma série de argumentos que reforçam importância da dor em diversos aspectos constitutivos da vida. Por meio da dor é que se alcança uma escuta ativa do outro, a alteridade. Na sociedade do desempenho, a sensibilidade com o outro significa vulnerabilidade. Não há espaço para sentir a dor do outro. Por sua vez, o compromisso com a individualização da felicidade despolitiza e dessolidariza a sociedade. Além disso, a digitalização contribui para o desaparecimento do confronto porque os algoritmos criam bolhas de desconstrução da realidade em um estado de pura anestesiação. Fake news ou deepfakes representam, portanto, uma forma de apatia, ou anestesia, da realidade. É ainda a dor que distingue humanos da inteligência artificial, pois, ainda que ela seja capaz de aprender e de aprendizado profundo (deep learning), ela não é capaz de ter experiência, uma vez que “apenas a dor metamorfoseia a inteligência em espírito” [9]. Por isso, jamais haverá um algoritmo da dor.

Logoterapia

Essas provocações remetem à obra de Viktor Frankel, intitulada Em Busca de Sentido [10]. Trata-se de um relato autobiográfico do que se passou no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial, com incursões a episódios concretos examinados sob a ótica da logoterapia — fundada pelo autor — também denominada de terceira escola vienense de psicoterapia (posterior à Psicanálise de Freud e à Psicologia Individual de Adler).

Aqui o olhar de Frankel evidencia, diante da trágica experiência própria, a possibilidade de realização do ser humano, mesmo no epicentro do mais indigno e vil experimento da humanidade. Ainda que sob tais circunstâncias, ele argumenta que assiste uma liberdade última ao prisioneiro, privado de tudo, menos da liberdade de decidir como reagir frente às condições que lhe foram dadas. Essa significação do sofrimento, segundo Frankel [11], era associada entre os prisioneiros a uma frase atribuída a Dostoiévski: “temo somente uma coisa: não ser digno do meu tormento” [12]. O contexto dessa reflexão exprimia a garantia assegurada aos prisioneiros de configurar sua vida de modo que lhe fosse preservado um sentido, até seu último suspiro, o que foi testemunhado pelo comportamento de mártires que conservaram sua dignidade nos momentos mais difíceis.

Depois de descrever aspectos psicológicos da entrada até a saída do campo de concentração, Frankel passa a discorrer sobre o conceito da logoterapia, que, em síntese, “concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por esse sentido” [13]. Para a logoterapia, a grande força motora do ser humano é a busca do sentido, evocando uma ideia inata de vontade de sentido, em oposição à vontade de prazer, sustentado pela corrente freudiana. Assim, um de seus princípios fundamentais é não basear o comportamento humano na perseguição pelo prazer ou na fuga da dor; postulado este que permite encontrar sentido, mesmo no sofrimento.

A ausência absoluta de sentido é representada pelo vazio existencial, que, conforme levantamento estatístico de Frankel [14], acometeu 25% de seus alunos europeus e 60% daqueles norte-americanos. A diminuição da importância dos instintos de sobrevivência e das tradições desorienta o ser humano, que passa a desejar reproduzir comportamentos alheios (conformismo) ou que lhes são impostos (totalitarismo). Um dos disfarces da vontade de sentido frustrada é a vontade de poder, sobretudo em sua forma mais primitiva, que é a “vontade de dinheiro” [15]. A manifestação mais aguda do vazio existencial é o suicídio.

Na logoterapia, ademais, o sofrimento não seria condição necessária para a realização humana. Ela sustenta que existe a possibilidade de atribuição de sentido à vida, apesar dele, em circunstâncias inevitáveis, uma vez que “sofrer desnecessariamente é ser masoquista, e não heroico” [16]. A cultura da higiene mental que coage à felicidade agrava o aparente diagnóstico de que infelicidade equivaleria a um desajuste psicológico, privando as pessoas da possibilidade de considerar seu sofrimento enobrecedor ao invés de degradante. O sentido da vida é, portanto, incondicional, pois abrange, inclusive, o sentido potencial do sofrimento inevitável, que faculta, até o último instante, aceitar o desafio de sofrer com bravura e dignidade.

Infocracia

Colocadas essas questões, avança-se para o último degrau dessa incursão teórica, que complementa as duas etapas anteriores. Os conceitos de algofobia e logoterapia oferecem noções acerca dos riscos e mazelas diante dos rumos que caminha a sociedade atual com o império de um paradigma que apregoa a necessidade permanente de experimentar um estado paliativo de anestesia à dor, desprezando a importância ontológica e psicológica que o sofrimento inevitável significa ou pode significar para a realização do indivíduo. Em Infocracia [17], alguns desses elementos são retomados novamente por Byung-Chul Han, para abordar o problema sob uma ótica mais diretamente relacionada à deformação da democracia.

Sua premissa é que, em oposição ao regime de dominação disciplinar, no qual corpos e energias são explorados para ganhar poder como forma típica do capitalismo industrial por meio do adestramento do humano como animal de trabalho, vigora hoje o regime da informação, conceituado como “a forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos” [18]. Nele liberdade e opressão coincidem. Não subsistem os mecanismos violentos de coação, que são substituídos por algoritmos que sussurram no inconsciente, em vez de dar ordens. Com a disponibilização total de dados pelos indivíduos, a dominação ocorre de maneira voluntária, por meio de uma liberdade motivada e otimizada.

Esse modelo denota traços totalitários, visto que o regime da informação aspira ao saber total por meio da operação algorítmica, não pela narração ideológica. O dataísmo “quer calcular tudo que é e será” [19]. A desenfreada digitalização da vida e a intoxicação de informações resulta, assim, na degeneração da democracia em infocracia. A racionalidade discursiva, que garantia a existência de uma esfera pública de debate, cede lugar para a comunicação afetiva, na medida em que prevalecem as informações que mais engajam em detrimento dos melhores argumentos.

Ferramentas de microtargeting (focalização no micro) orientam a formulação de programas para eleitores, de acordo com seu perfil psicométrico, nas mídias sociais, de modo a influenciar inconscientemente o comportamento eleitoral tal qual o comportamento do consumo. Autonomia e liberdade de escolha, que são pressupostos do processo democrático, são minados pela manipulação de dados na infocracia. No final das contas, há uma crise da verdade atrelada a um novo niilismo [20] do século 21, que não se funda na perda de crenças religiosas ou valores, mas da verdade em si. Sem ela, perde-se a facticidade e se passa a viver em um universo desfactualizado, no qual inexiste critério de distinção entre verdade e mentira.

É, pois, em face desses conceitos que a sobrevivência do regime democrático exige conformação. Se a inteligência artificial [21] já é capaz de oferecer as soluções para os problemas atuais da democracia, por que não está tudo bem? Ou está tudo bem e ninguém percebeu? Para que para escrever um artigo, então? Talvez o último suspiro do resquício da natureza humana para não sucumbir de vez ao dataísmo seja a capacidade de transcender a fim de encontrar as conexões necessárias de elementos (ainda) invisíveis no universo de dados para fugir da superfície de informações e mergulhar na essência da realidade, ou do que sobrou dela.


[1] MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 14.

[2] Tribunais de contas e inelegibilidade: limites da jurisdição eleitoral. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023.

[3] A tolerância no processo eleitoral: contorno jurídicos e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumem Juris: Rio de Janeiro, 2022.

[4] PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[5] HAN, Byung-Chul. A sociedade paliativa: a dor hoje. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

[6] Ibidem, p. 7.

[7] Ibidem, p. 7.

[8] Ibidem, p. 9.

[9] Ibidem, p 46.

[10] Fui presentado com este livro coincidentemente em duplicidade por dois amigos distintos. Minha esposa me indagou, na ocasião, se eu estaria acometido por alguma depressão ou crise existencial que ela desconhecia.

[11] FRANKEL, Viktor E. Em busca de sentido: um psicológo no campo de concentração. São Leopoldo: Vozes. Petrópolis: Vozes, 2021, p. 89.

[12] Fiquei muito intrigado com essa formulação e quis localizar exatamente a citação de Dostoievski, que não foi referida no texto de Frankel. Encontrei, contudo, na obra “O Idiota”, diálogo travado entre o Príncipe Míchkin com Hipótilo, jovem afligido por uma grave tuberculose, reproduzido nos seguintes termos: “ – (…) Mas diga-me: não sente nesta altura um grande desprezo pela minha pessoa? – Por quê? Porque o senhor parece ter sofrido e sofre mais que nós? – Não senhor, mas sim porque sou indigno do meu sofrimento”. (DOSTOIÉVSKI, Fiodor. O idiota. Tradução de A. Augusto dos Santos. Mimética: São Paulo, 2019, p. 560).

[13] FRANKEL, op. cit., p. 124.

[14] Ibidem, p. 131.

[15] Ibidem, p. 132.

[16] Ibidem, p. 138.

[17] HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Petrópolis: Vozes, 2022.

[18] Ibidem, p. 7.

[19] Ibidem, p. 22.

[20] Ibidem, p. 81.

[21] Formulei para a Meta AI esta indagação: “Você consegue me dar as soluções para os problemas atuais da democracia?” (Quantas pesquisas não foram e são produzidas no Brasil e no mundo para investigar essa questão?). Para a minha surpresa, a inteligência artifical não afirmou que era incapaz de responder. Ao contrário, foram enumerados os 5 problemas mais “comuns”, cada qual com duas soluções específicas, assim classificados: 1) desinformação e manipulação de dados; 2) polarização política e divisão social; 3) corrupção e falta de transparência; 4) desigualdade econômica social; e 5) mudanças climáticas e degradação ambiental. Acerca do problema 1, as soluções foram: “Fortalecer a educação midiática e promover a alfabetização digital, para que as pessoas possam distinguir entre informações confiáveis e falsas”; e “Implementar regulamentações mais rigorosas para as plataformas de mídia social, para evitar a disseminação de desinformação”.

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Punitivismo do STF vai repercutir nas demais instâncias, diz advogado

Para o advogado Roberto Soares Garcia, presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), a composição atual do Supremo Tribunal Federal tem se mostrado “a mais punitivista” dos últimos tempos, o que deve reverberar nas demais instâncias.

“O recrudescimento das penas impostas pelo Supremo e a menor amplitude do direito de defesa logo repercutirão nas instâncias inferiores, o que resultará em maior punitivismo nos juízos de piso. Ou melhor, já está resultando. Esse quadro de recrudescimento exacerbado da resposta penal precisa ser modificado, sob pena de afastar o Brasil do garantismo penal estabelecido por nossa Constituição”, disse ele em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Ele cita como exemplo as penas impostas aos réus do 8 de janeiro de 2023, decisões recentes a respeito do Tribunal do Júri e a descriminalização da maconha para consumo próprio.

“Na prática, o julgamento que começara com a descriminalização do porte de drogas para uso próprio, diante da guinada punitivista, acabou ficando restrito à maconha. Dessa forma, abandonou o viés da inconstitucionalidade do tipo do artigo 28 da Lei de Drogas para focar nos critérios que permitem a definição do crime de tráfico”, disse.

Garcia também acredita que as sustentações orais por meio de gravações está afastando os jurisdicionados do Supremo e que as entidades que atuam como amigas da corte por vezes não se sentem escutadas.

“Nos julgamentos presenciais, com sustentação oral, o que se tem verificado é a existência de grande número de amigos da corte admitidos, o que pulveriza o tempo da sustentação que, não raro, não ultrapassa cinco minutos. Esse lapso mal comporta os cumprimentos protocolares, o que faz da exposição dos argumentos uma verdadeira corrida contra o relógio”, reclama.

Leia a entrevista:

ConJur — senhor recentemente afirmou que vê uma espécie de retrocesso em matéria penal no Supremo. Em que sentido?
Roberto Soares Garcia — Acompanho o STF desde 1993. A formação atual tem se mostrado mais e mais punitivista. Inspirada pelos ecos da tentativa de golpe de janeiro de 2023, creio evidente a predominância, até o presente momento, de evidente rigorismo penal e processual.

O recrudescimento das penas impostas pelo Supremo e a menor amplitude do direito de defesa logo repercutirão nas instâncias inferiores, o que resultará em maior punitivismo nos juízos de piso. Ou melhor, já está resultando. Esse quadro de recrudescimento exacerbado da resposta penal precisa ser modificado, sob pena de afastar o Brasil do garantismo penal estabelecido por nossa Constituição.

ConJur — O recente julgamento sobre o porte de maconha não está em sentido oposto ao do punitivismo?
Roberto Soares Garcia — Ao contrário, esse julgamento demonstra a guinada punitivista. O julgamento teve início em agosto de 2015, com a prolação do voto do ministro Gilmar Mendes, em que o relator basicamente acolhia a inconstitucionalidade do porte de drogas para uso, sem restringir a decisão a tipos de entorpecentes ou quantidades acima das quais seria presumível o tráfico. O ministro Fachin pediu vista, mas devolveu o caso rapidamente, votando, em setembro daquele ano, de forma um pouco mais restritiva do que Gilmar. O ministro Barroso acompanhou. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Teori (Zavascki, morto em 2017).

O caso volta efetivamente a julgamento somente em 2023, já com o voto do ministro Alexandre de Moraes, que leva o relator e os demais ministros a, depois, adequarem suas posições para restringir o julgamento à maconha, impondo limitações de quantidade a partir da qual pode se dar a configuração de tráfico.

Na prática, o julgamento que começara com a descriminalização do porte de drogas para uso próprio. Dessa forma, acabou ficando restrito à maconha e abandonou o viés da inconstitucionalidade do tipo do artigo 28 da Lei de Drogas para focar nos critérios que permitem a definição do crime de tráfico. Não se trata, evidentemente, de um julgamento trágico para o garantismo, mas é revelador de progressiva adesão da corte a um viés cada vez mais punitivista.

ConJur — Em quais outros casos vê essa guinada que considera como punitivista?
Roberto Soares Garcia — O Supremo decidiu recentemente pela possibilidade de serem anuladas absolvições por quesito genérico no Tribunal do Júri. Trata-se de um retrocesso. No Brasil, o julgamento pelo Júri é um direito fundamental do acusado por crimes contra a vida e os a ele conexos. Dentre as excepcionalidades desse procedimento, está o quesito da clemência, pelo qual os jurados, embora reconheçam que aconteceu uma morte dolosa e o responsável por ela foi o réu, afirmam que ele deve ser absolvido.

Trata-se de inequívoca projeção da soberania do Júri, que não deve estar sujeita à revisão de Tribunal togado por meio recurso, como acabou sendo decidido pelo STF. Clemência é virtude que modera o rigor da punição. Mesmo reconhecendo que aquele acusado matou alguém, o que é crime, o jurado, legítimo titular da soberania popular, afirma que ele não deve ser punido.

No mais das vezes, essa absolvição nasce do reconhecimento de que o jurado, se estivesse na mesma situação que se encontrava o réu, talvez também tivesse matado. Trata-se de sentimento que toma o jurado durante a sessão de julgamento e é insuscetível de revisão recursal, porque sentimento não está sujeito a apelação. Pode-se, claro, criticar a racionalidade da adoção de forma de julgamento que privilegie o sentimento, mas esse é o modelo adotado pela Constituição, em cláusula pétrea.

ConJur — Qual o possível impacto?
Roberto Soares Garcia — Há um claro enfraquecimento da soberania dos julgamentos pelo júri, com a invalidação, na prática, da regra da clemência. Uma vez anulado pelo tribunal o julgamento que afirmara a clemência, não se há de esperar que ela seja reafirmada no segundo julgamento, embora o novo conselho de sentença tenha liberdade para fazê-lo.

Quem já participou de julgamentos pelo Júri sabe a força subjetiva que tem a anulação pelo Tribunal de Justiça da decisão anteriormente tomada pelos jurados. Como o fundamento da clemência é a empatia, a experiência mostra que o argumento de que o tribunal já a afirmou indevida será definitivo, obstando a formação do sentimento de que aquele acusado não merece a condenação.

ConJur — Outra decisão recente envolvendo o júri é a que permitiu a prisão imediata após condenação. Qual é sua avaliação a respeito?
Roberto Soares Garcia — Há diferenças entre o procedimento de júri e procedimentos comuns, mas entre elas não está a supressão antecipada da presunção de inocência dos julgados por crimes contra a vida.

No que se refere ao momento do início de cumprimento da pena, o ordenamento jurídico estabelece marco único, o trânsito em julgado de sentença condenatória (art. 5º, LVII, da Constituição e art. 283 do CPP), o que já foi assentado pelo STF, nas ADCs 43, 44 e 54. A decisão da Suprema Corte que autoriza o cumprimento antecipado da pena, em casos de condenação pelo Júri, cria duas categorias de condenados: os condenados por crimes contra a vida e os condenados por crimes diversos, outorgando menos garantias aos condenados pelo Júri, que não poderão aguardar o julgamento de seus recursos antes de serem submetidos às punições.

A contradição é evidente, já que a Constituição outorga aos acusados perante o Júri direito à defesa plena, enquanto o Supremo concedeu maior proteção aos acusados em geral, aos quais a Constituição outorga direito à defesa ampla. Em poucas palavras, para o STF, amplo é mais do que pleno, o que é um absurdo vernacular, inclusive.

Mas há situação ainda mais absurda, gerada pela decisão: a 1ª Turma do STF determinou que o cumprimento de pena de crime conexo julgado pelo Júri também deve ser iniciado logo depois da Plenária; se tivesse sido processado pelo juízo comum, a condenação somente poderia ser executada depois de findos os caminhos recursais, tornando o direito fundamental ao julgamento pelo Júri em ônus. Ocorre que não é dado à Suprema Corte transformar remédio em veneno.

ConJur — O senhor atuou no pedido do IDDD para reabrir o debate sobre embargos de amici curiae. Por que o STF deveria ter recebido os embargos de amigos da corte?
Roberto Soares Garcia — O IDDD foi amigo da corte na ADPF 347 (estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário). Depois de publicado o acórdão, verificamos que o Supremo deixou de enfrentar dois argumentos nossos.

Um deles propunha o fim de restrições ao âmbito de incidência de habeas corpus, como estratégia para ‘filtrar’ com mais eficiência a entrada e permanência de presos no sistema. O outro sugeria a concessão automática de progressão de regime de cumprimento de pena, desde que vencidos os prazos legais, cabendo ao MP a oposição à alteração favorável de regime, em interpretação conforme ao art. 112 da LEP.

Ora, quando qualquer decisão judicial deixa de apreciar alegação relevante da parte, cabem embargos para sanar a omissão (art. 1.022 do CPC). Em caso de amigo da Corte, o fundamento legal explícito está no art. 138, § 1º, do CPC, bem como no art. 26 da Lei 9.868/99, no caso de ações de controle concentrado.

Tendo em vista que embargos declaratórios servem ao aprimoramento das decisões judiciais, nos parecia injustificável seu descabimento, já que a mais alta Corte do país não haveria de rejeitar sugestão de aperfeiçoamento dos seus provimentos.

Buscamos, então, pareceres dos professores Flávio Luiz Yarshell, Cássio Scarpinella Bueno e Georges Abboud, que afirmaram o cabimento de embargos declaratórios pelo amicus curiae. Infelizmente, nossos embargos não foram conhecidos, ao argumento de que não cabem embargos de declaração em ações de controle concentrado de constitucionalidade, em virtude do princípio da especialidade.

ConJur — Embargos de amigos da corte não fariam com que o procedimento fosse usado de forma protelatória?
Roberto Soares Garcia — Não parece razoável excluir do litigante ou de terceiro interessado o direito de ver aperfeiçoada a prestação jurisdicional pelo receio de que o instrumento processual seja mal usado por alguém. A presunção, afinal, é de que os litigantes serão éticos e colaborarão para o fim útil do processo, em especial em sede de jurisdição constitucional.

Ademais, o art. 1.026 do CPC estabelece o teto de duas oposições de embargos e prevê multa para os que forem protelatórios. Se o Tribunal entende que o amigo agiu mal, que se lhe imponha punição.

Essa consideração atrai uma interessante questão, que precisa ser enfrentada. Ao contrário das partes, os amigos da corte são escolhidos pelo relator, que os admite ou não dentre as entidades representativas da sociedade civil, por decisão monocrática irrecorrível. Isso significa que os habilitados mereceram a confiança da corte, o que torna absolutamente descabida a presunção de mal uso e a imposição de restrição a embargos de quem, afinal, já teve a seriedade afirmada pelo próprio Tribunal. Não há razão para desconfiar de embargos opostos por amigo da Corte.

ConJur — Os terceiros interessados sentem-se ouvidos pelo Supremo quando fazem sustentações orais?
Roberto Soares Garcia — Não. A opção por julgamentos virtuais retirou do cidadão, representado por advogado, o acesso ao seu dia na corte. Hoje, a maioria dos julgamentos do Supremo se dá em Plenário Virtual, sendo permitida só a apresentação de gravações com os argumentos das partes.

Embora a esses vídeos se dê o nome de sustentação oral gravada, trata-se de mero memorial audiovisual, que não permite interação síncrona com os julgadores ou ajuste do discurso diante da reação dos ministros. Esse modelo de julgamento impede a prestação de esclarecimentos sobre fatos e não abre a oportunidade para resposta a questionamentos dos julgadores durante a própria sustentação.

Nos últimos tempos, nesse aspecto, o Supremo Tribunal Federal tem se afastado do jurisdicionado, o que é muito ruim. Nos julgamentos presenciais, com sustentação oral, o que se tem verificado é a existência de grande número de amigos da corte admitidos, o que pulveriza o tempo da sustentação que, não raro, não ultrapassa cinco minutos.

Esse lapso mal comporta os cumprimentos protocolares, o que faz da exposição dos argumentos uma verdadeira corrida contra o relógio. Quase tudo se perde na pressa em falar sobre temas tão complexos, em tão pouco tempo, e as próprias posições jurídicas sustentadas pelos amici acabam indefesas.

ConJur — A gestão do ministro Barroso passou a colocar em pauta alguns processos só para que fossem feitas as sustentações orais. O julgamento fica para data posterior. Essa medida não busca justamente levar mais em conta a posição dos amigos da corte?
Roberto Soares Garcia — Esse é um método de julgamento muito mais interessante, porque os ministros ouvem as sustentações sem estarem com seus votos já preparados. Embora seja esperado que todos já tenham suas posições mais ou menos definidas sobre as questões postas nos processos, fica um espaço para o convencimento do magistrado.

Além disso, o ambiente dessas audiências exclusivas para sustentações orais parece favorecer a interação entre ministros e advogados, com os julgadores interrompendo as orações para formular questões, o que enriquece o julgamento e, talvez, desestimule sustentações despreparadas ou decoradas, tornando a troca entre operadores do direito mais rica e estimulante.

Espero que essa forma nova de julgamento se consolide e constitua, de fato, um início da retomada da relevância da sustentação oral nos julgamentos do Supremo, já que o movimento do tribunal tem sido, nos últimos tempos, de se recusar a ouvir a voz do jurisdicionado, o que é muito grave.

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Dívida prescrita não pode ser cobrada na Justiça, mas não deixa de existir

A prescrição de uma dívida impede que ela seja cobrada na Justiça, mas não anula a existência do débito. Com esse entendimento, a 32ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo manteve a sentença que reconheceu a existência de uma dívida da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU).

Uma empresa de cobranças processou a CDHU por mensalidades de condomínio atrasadas, de maio a setembro de 2015, no valor de R$ 549,92. A ação não cobrava a dívida, mas pedia que ela fosse reconhecida em juízo, mesmo após a prescrição, para ser cobrada posteriormente.

O pedido foi aceito pelo juiz de primeiro grau, com base no Código Civil. Segundo a norma, a pretensão de cobrança da dívida prescreve em cinco anos, mas isso não extingue o débito, que permanece como uma obrigação natural.

O desembargador Marcus Vinicius Rios Gonçalves, relator do recurso, teve o mesmo entendimento. “A prescrição atinge tão somente a pretensão, não a dívida em si, razão pela qual acertada a sentença.”

O relator afastou a alegação da CDHU de que a ação movida pela empresa era inadequada porque a dívida já estava prescrita. Conforme destacou o magistrado, a ação não pedia a execução do débito, mas apenas o reconhecimento de sua existência.

“Quanto à carência de ação e inépcia da inicial, verifica-se que a ação visa apenas à declaração da existência de dívida prescrita, conforme se observa em destaque na inicial (fls. 7), sendo adequada a presente ação para tal finalidade, não tendo sido apontada, ainda, irregularidade na inicial. Não se postula qualquer cobrança ou execução”, afirmou Gonçalves.

O escritório Carneiro Advogados atuou no caso.

Clique aqui para ler o acórdão
AC 1018077-74.2023.8.26.0506

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Afinal, qual a amplitude do direito de acesso amplo e integral aos autos?

Direito de acesso amplo e integral aos autos (artigo 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94 e SMV nº 14/STF)

Apesar de toda celeuma filosófica ocasionada por essa discussão, o processo penal brasileiro se preocupa com a verdade, mas não a qualquer custo. Não à toa que, ao disciplinar o instituto da revisão criminal, o artigo 621, III, do Código de Processo Penal (CPP) permite a rescisão da coisa julgada em razão de prova nova que demonstre a inocência do acusado, mas jamais a culpabilidade deste. Em suma, ao reconstruir suposto fato criminoso pretérito, convolado em hipótese acusatória, o processo penal justo (e eficiente) coaduna verdade, direitos fundamentais e garantias processuais, sendo esta a hélice tríplice sustentada por nós: garantia, justiça e eficiência [1].

Desse modo, Gustavo Henrique Badaró sustenta que “o resultado do processo penal somente será justo e legítimo, caso sejam respeitados três fatores concorrentes: um correto juízo fático, com vistas à reconstrução histórica dos fatos imputados; um correto juízo de direito, com uma acertada interpretação da lei e aplicação da norma aos fatos; e, por fim, o funcionamento do instrumento processual, respeitando direitos e garantias das partes, com estrita observância do rito legal” [2]. Em poucas palavras, Francesco Carnelutti dizia que “[a] função do processo penal é a de pôr a descoberto a inocência ou culpa do acusado” [3].

Nesse contexto, um direito específico assume especial relevância: o de acesso amplo e integral aos autos. Afinal, antes de esboçar qualquer espécie de defesa, deve-se conhecer a hipótese acusatória (ou investigatória) e os respectivos elementos de prova. Com os olhos vendados, a presença do advogado se torna inócua e meramente formal, considerando que, muito além do conhecimento jurídico, é necessário ter pleno conhecimento sobre os fatos, sob pena da defesa técnica se confundir com uma aventura judicial – vedada pelo art.igo 2º, VII, do Código de Ética da OAB.

No campo normativo, afora estar inserido dentro do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa (artigo 5º, LIV e LV, da CF), o direito de acesso amplo e integral aos autos encontra resguardo expresso no artigo 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94:

“Art. 7º São direitos do advogado: […]

XIII – examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estiverem sujeitos a sigilo ou segredo de justiça, assegurada a obtenção de cópias, com possibilidade de tomar apontamentos;

XIV – examinar, em qualquer instituição responsável por conduzir investigação, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de investigações de qualquer natureza, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos, em meio físico ou digital”  

Do mesmo modo, analisando-se a legislação internacional, pode-se dizer que o direito de acesso amplo e integral aos autos se situa dentro do artigo 14, 3., “d”, do Pacto Internacional sobre Direito Civis e Políticos – PIDCP (Decreto nº 592/92) e do artigo 8, 2. “c”, do Pacto de San José da Costa Rica (Decreto nº 678/92), respectivamente nos “meios necessários” e “meios adequados” na preparação da defesa técnica:

“ARTIGO 14

  1. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias: […]
  2. b) De dispor do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa e a comunicar-se com defensor de sua escolha;”

***

“ARTIGO 8

  1. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
  2. c) concessão ao acusado do tempo e dos meios adequados para a preparação de sua defesa;”

Como se vê, malgrado o direito de acesso amplo e integral aos autos possua amparo normativo desde o século passado, o início do século 21, caracterizado pela consolidação das grandes operações, acabou flexibilizando referido direito. Alberto Zacharias Toron elucida que, “[c]om o advento das grandes Operações da Polícia Federal a partir de 2003, inaugurou-se um ‘novo’ método investigativo”, qualificado pela bipartição das investigações em duas fases: a oculta e a ostensiva, cujo acesso aos autos era negado para “impedir que os investigados combinassem suas defesas” [4].

Não obstante, o STF sempre foi claro e categórico, no sentido de que “do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial – é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV)” (STF, HC nº 82.354/PR, rel. min. Sepúlveda Pertence, 1º Turma, j. 10/8/2004).

A despeito disso, em razão das frequentes violações ao art. 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94, o Conselho Federal da OAB ajuizou um pedido de edição de súmula vinculante, ensejando na edição da Súmula Vinculante nº 14 em 02/02/2009 pelo Plenário do STF, responsável por dissipar quaisquer dúvidas sobre a existência do direito de acesso amplo e integral aos autos:

“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

De lá para cá, na permanente interpretação (e atualização) do direito de acesso amplo e integral aos autos (artigo 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94 e SMV nº 14/STF), algumas diretrizes interpretativas foram adotadas pelas cortes superiores:

– o direito de acessar todos os elementos de prova produzidos (STF, INQ nº 2.266/AP, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 26/05/2011, DJe 13/3/2012);

– o direito de obtenção de cópias (STF, RCL nº 23.101/PR, rel. min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, j. 22/11/2016, DJe 06/12/2016);

– o direito da vítima de ter acesso amplo e integral aos autos (STJ, RMS nº 55.790/SP, rel. min. Jorge Mussi, 5ª Turma, j. 6/12/2018, DJe 14/12/2018); e

– a nulidade oriunda da violação do direito de acesso amplo e integral aos autos (STJ, RHC nº 114.683/RJ, rel. min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 13/4/2021, DJe 27/4/2021).

A denominada operação “lava jato”, responsável por implementar meios heterodoxos durante a persecução penal, não deixou incólume o direito de acesso amplo e integral aos autos (artigo 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94 e SMV nº 14/STF). À época, não era incomum que a imprensa tomasse conhecimento de informações processuais antes mesmo dos próprios advogados e que o acesso a elementos de prova fosse sonegado, especialmente aos apensos dos acordos de colaboração premiada. Não à toa que, ante as frequentes práticas heterodoxas, foi aprovada a Lei nº 13.869/19, responsável por criminalizar a violação do direito de acesso amplo e integral aos autos:

“Art. 32.  Negar ao interessado, seu defensor ou advogado acesso aos autos de investigação preliminar, ao termo circunstanciado, ao inquérito ou a qualquer outro procedimento investigatório de infração penal, civil ou administrativa, assim como impedir a obtenção de cópias, ressalvado o acesso a peças relativas a diligências em curso, ou que indiquem a realização de diligências futuras, cujo sigilo seja imprescindível:

Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.”

Atualmente, apesar de toda a evolução normativo-interpretativa, o direito de acesso amplo e integral aos autos (art. 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94 e SMV nº 14/STF) continua sendo objeto de flexibilização e cerceamento pelo Estado. Inclusive, com o recentemente julgamento da denúncia oferecida pela PGR contra o ex-Presidente Jair Messias Bolsonaro e demais acusados em razão dos atos antidemocráticos, julgamento protagonizado pela Primeira Turma do STF, o debate acerca da amplitude normativa do art. 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94 e da Súmula Vinculante nº 14/STF adquiriu novos contornos, precisamente sob quais elementos de prova são englobados por referido direito.

Afinal, a defesa tem o direito de acessar apenas os elementos de prova explorados pelo Estado (v.g. Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia Judiciária) ou todos os elementos de prova produzidos, independentemente de eventual correlação com a hipótese acusatória (ou investigativa)?

Direito de acessar ‘tudo’ (não apenas o que corrobora a hipótese acusatória)!

O advento da Lei nº 13.964/19, responsável por inserir o novel artigo 3º-A no CPP, dissipou quaisquer dúvidas sobre a adoção de um sistema acusatório no Brasil. Não obstante, ao julgar as ADIs do juiz das garantias, o Plenário do STF assentou que “[a] estrutura acusatória do processo penal, prevista na primeira parte do dispositivo, apenas torna expresso, no texto do Código de Processo Penal, o princípio fundamental do processo penal brasileiro, extraído da sistemática constitucional, na esteira da doutrina e da jurisprudência pátrias” (STF, ADIs nº 6.298, 6.299, 6.300, 6.305/DF,  rel. min. Luiz Fux, Pleno, j. 24/8/2023, DJe 19/12/2023), concluindo que o sistema acusatório sempre vigorou no Brasil, sendo um desdobramento implícito do artigo 129, I, da CF.

De todo modo, o fato é que o sistema acusatório se caracteriza por distinguir as funções dos sujeitos processuais, sendo que, embora os interesses da acusação e da defesa possam vir a coincidir, qualificam-se, em essência, como antagônicos, motivo pelo qual não há como exigir que a defesa tenha acesso apenas aos elementos de prova vertidos na hipótese acusatória. Isso porque, conforme elucida o ministro Rogério Schietti Cruz, “[a] atuação do Ministério Público e da defesa deve permanecer no mesmo patamar da reciprocidade dialética, de sorte a permitir, sob a ótica do acusado, ‘defender-se provando’, o que somente é possível ante o pleno conhecimento de todo o material coletado em decorrência da atividade investigatória estatal” (STJ, RHC nº 114.683/RJ, rel. min. Rogério Schietti Cruz, 6ªTurma, j. 13/4/2021, DJe 27/4/2021).

Esse é o antigo entendimento do STF, já apontado anteriormente, o qual assenta que “[n]ão é razoável que prova colhida com autorização da Justiça deixe de ser juntada aos autos pela só razão de não se encartar na tese construída pelo Ministério Público e pela polícia” (STF, INQ nº 2.266/AP, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 26/5/2011, DJe 13/3/2012). Em idêntico sentido, o STJ entende que “[p]ode o Ministério, por certo, escolher o que irá embasar a acusação, mas o material restante, supostamente não utilizado, deve permanecer à livre consulta do acusado, para o exercício de suas faculdades defensivas” (STJ, RHC nº 114.683/RJ, rel. min. Rogério Schietti Cruz, 6ª Turma, j. 13/4/2021, DJe 27/4/2021).

Aliás, reconhecido o direito da defesa de acessar todos os elementos de prova (não apenas os utilizados pelo Estado), existem três meios de obtenção de prova que adquirem especial relevância, notadamente pelo aspecto quantitativo – ou seja, pelo volume dos elementos de prova angariados:

– acesso amplo e integral às degravações das interceptações telefônicas;

– acesso amplo e integral aos documentos apreendidos em mandado de busca e apreensão; e

– acesso amplo e integral aos apensos oriundos dos acordos de colaboração premiada.

Sobre isso, a 2ª Turma do STF também já se pronunciou:

“Anoto, ainda, que este Tribunal, embora reconheça ser inexigível a transcrição integral de diálogos captados em interceptações telefônicas, tem assinalado não existir prejuízo à defesa quando o conteúdo da prova é integralmente disponibilizado, permitindo-se o efetivo contraditório. No caso em análise, por outro lado, é fato incontroverso que os dados extraídos dos aparelhos eletrônicos apreendidos não ficaram acessíveis, nem foram preservados mediante backup, o que, conforme reconheceu a Corte local, implicou cerceamento de defesa” (STF, HC nº 218.265/SP, Rel. Min. André Mendonça, 2ª Turma, j. 22/08/2023, DJe 29/08/2023).

***

“Assim, a decisão proferida pelos membros do Parquet obriga os defensores a escutar e transcrever, no ambiente da procuradoria, cerca de 10 horas de áudios gravados em interceptações de comunicações telefônicas de seus clientes. Tal medida, à primeira vista, prejudica o amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, violando assim, o disposto na Súmula Vinculante 14 […]

Entendo que o direito ao ‘acesso amplo’, descrito pelo verbete mencionado, engloba a possibilidade de obtenção de cópias, por quaisquer meios, de todos os elementos de prova já documentados, inclusive mídias que contenham gravação de depoimentos em formato audiovisual” (STF, RCL nº 23.101/PR, rel. min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, j. 22/11/2016, DJe 6/12/2016).

***

“A Segunda Turma tem assentado importante posicionamento no sentido de assegurar a efetividade da ampla defesa e do contraditório aos réus delatados, garantindo o acesso aos termos em que tenham sido citados e que não tenham diligências em curso que possam ser prejudicadas, nos termos da Súmula Vinculante 14 deste STF. […]

Ademais, é necessário ter em mente que, com a devida vênia, não é papel do magistrado definir se o acesso aos documentos é pertinente, útil ou necessário para a construção das teses defensivas. Essa atribuição, por óbvio, somente pode ser desempenhada pelos advogados constituídos nos autos, a quem deve ser disponibilizado amplo acesso aos elementos de prova que apontem, de qualquer forma, para a responsabilização penal do acusado” (STF, RCL nº 5.757/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 13/03/2023, DJe 24/03/2023).

Em resumo, a intepretação atual do direito de acesso amplo e integral aos autos (artigo 7º, XIII e XIV, da Lei nº 8.906/94 e da SMV nº 14/STF) pelos tribunais superiores aponta que referido direito permite ao advogado acessar definitivamente “tudo”, ou seja, a todos os elementos de prova, não apenas os que interessam à hipótese acusatória.

A esse respeito, ao desmistificar a essência do processo penal democrático e sua inegável função epistemológica, Francesco Carnelutti assinala que “[a]s provas servem, exatamente, para nos guiar de volta ao passado na recomposição, melhor dizendo, na reconstrução da história” [5]. Certamente, com os seus olhos vendados, o advogado será tolhido de contribuir com a reconstrução da história, bem como de buscar a verdade e a justiça, transformando-se em mero legitimador da hipótese acusatória.


[1] WEDY, Miguel Tedesco. A eficiência e sua repercussão no direito penal e no processo penal. 1. ed. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2016. p. 306.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. p. 45-46.

[3] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Servanda Editora, 2016. p. 65.

[4] TORON, Alberto Zacharias. Habeas corpus: controle do devido processo legal: questões controvertidas e de processamento do writ. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 56.

[5] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Servanda Editora, 2016. p. 67.

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