Prazo de 30 dias para reparo de produto defeituoso não afeta direito ao ressarcimento integral de danos materiais

O carro do autor da ação ficou 54 dias parado na oficina à espera de peças, e a Quarta Turma decidiu que ele tem o direito de ser indenizado pelos danos comprovadamente sofridos desde o primeiro dia.

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o prazo de 30 dias do artigo 18, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) não limita a obrigação do fornecedor de indenizar o consumidor, o qual deve ser ressarcido integralmente por todo o período em que sofreu danos materiais.

Na ação de danos materiais e morais ajuizada contra uma montadora e uma concessionária, o autor afirmou que comprou um carro com cinco anos de garantia e que, em menos de 12 meses, ele apresentou problemas mecânicos e ficou 54 dias parado nas dependências da segunda empresa ré, devido à falta de peças para reposição.

O caso chegou ao STJ após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) decidir que, além da indenização por dano moral, o consumidor tinha o direito de ser indenizado pelos danos materiais apenas em relação ao período que excedeu os primeiros 30 dias em que o carro permaneceu à espera de reparo. A corte local se baseou no parágrafo 1º do artigo 18 do CDC.

CDC não afasta responsabilidade integral do fornecedor

O relator na Quarta Turma, ministro Antonio Carlos Ferreira, disse que o CDC não exclui a responsabilidade do fornecedor durante o período de 30 dias mencionado no dispositivo, mas apenas dá esse prazo para que ele solucione o defeito antes que o consumidor possa escolher a alternativa legal que melhor lhe atenda: substituição do produto, restituição do valor ou abatimento do preço.

O ministro destacou que o prazo legal “não representa uma franquia ou tolerância para que o fornecedor cause prejuízos ao consumidor nesse período sem responsabilidade alguma”.

De acordo com o relator, uma interpretação sistemática do CDC, especialmente em relação ao artigo 6º, inciso VI – que trata do princípio da reparação integral –, impõe que o consumidor seja ressarcido por todos os prejuízos materiais decorrentes do vício do produto, sem limitação temporal.

“Se o consumidor sofreu prejuízos em razão do vício do produto, fato reconhecido por decisão judicial, deve ser integralmente ressarcido, independentemente de estar dentro ou fora do prazo”, completou.

Consumidor não pode assumir risco em lugar da empresa

Antonio Carlos Ferreira comentou que uma interpretação diversa transferiria os riscos da atividade empresarial para o comprador, contrariando a lógica do sistema de proteção ao consumidor. Conforme apontou, o CDC busca evitar que a parte mais fraca arque com os prejuízos decorrente de defeitos dos produtos.

O ministro ressaltou, por fim, que “este entendimento não deve ser interpretado como uma obrigação genérica dos fornecedores de disponibilizarem produto substituto durante o período de reparo na garantia. O que se estabelece é que, uma vez judicialmente reconhecida a existência do vício do produto, a indenização deverá abranger todos os prejuízos comprovadamente sofridos pelo consumidor, inclusive aqueles ocorridos durante o prazo do artigo 18, parágrafo 1º, do CDC”.

Leia o acórdão no REsp 1.935.157.

Fonte: STJ

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Respeito aos precedentes, um ponto de convergência no debate sobre o futuro do habeas corpus

Especialistas de diferentes esferas do Sistema de Justiça concordam em que a inobservância dos precedentes do STJ e do STF é uma das causas do aumento explosivo de habeas corpus nos tribunais.



Esta terceira e última parte da série de reportagens HC 1 milhão: mais ou menos justiça? propõe uma reflexão sobre como enfrentar o uso excessivo do habeas corpus sem prejudicar seu papel de garantia constitucional na proteção da liberdade. O desafio é complexo e sensível. Trata-se de equilibrar o peso das garantias fundamentais com a necessidade de racionalidade e eficiência no Sistema de Justiça penal.

No centro do debate, o que está em discussão é se é possível – e até que ponto – limitar o uso do habeas corpus em processos criminais. Várias propostas de mudanças jurisprudenciais e legislativas – como a criação de filtros de admissibilidade – estão na mesa, em um esforço para prestigiar o uso dos recursos e a própria função constitucional do HC.

Apesar de atuarem em diferentes esferas do Sistema de Justiça, os especialistas ouvidos convergem em um ponto fundamental: os operadores do direito devem seguir os precedentes fixados tanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) quanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Para muitos, a inobservância das balizas estabelecidas pelas cortes superiores – especialmente por parte de magistrados de primeiro grau, tribunais estaduais ou regionais federais, além de integrantes do Ministério Público (MP) – é um dos principais fatores que alimentam o excesso de habeas corpus.

Precedentes criam unidade nacional na interpretação de questões jurídicas

O ministro Rogerio Schietti Cruz, integrante da Sexta Turma do STJ, diz que o julgamento pelo rito dos recursos repetitivos e a afetação de casos de direito penal para a Terceira Seção ou para a Corte Especial, bem como a edição de súmulas, são alguns mecanismos do tribunal para lidar com o congestionamento de processos: “Com isso, tentamos mostrar, não só à sociedade, mas a todos os tribunais, como pensa o STJ e como deve ser a interpretação das leis federais”.

Segundo o ministro, é importante sensibilizar toda a magistratura e o MP quanto à importância de seguir os precedentes.

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Na medida em que fixamos determinadas teses em julgamentos qualificados, com a composição ampla, em temas já pacificados, elas deveriam ser observadas por todos, de modo a criar uma unidade nacional na interpretação de questões jurídicas, evitando uma série de impetrações de habeas corpus que só ocorrem porque não há a observância dessas decisões.

Ministro Rogerio Schietti Cruz

O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) Guilherme de Souza Nucci também acredita que, se fossem seguidos os entendimentos consolidados pelos tribunais superiores – especialmente os que são favoráveis ao réu –, muitos processos seriam resolvidos logo no primeiro grau de jurisdição, não havendo necessidade de habeas corpus ou recursos às demais instâncias por parte da defesa.


Um olhar específico sobre a real utilidade do habeas corpus

A promotora Fabiana Costa, chefe da Coordenação de Recursos Constitucionais do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), pondera que um olhar específico sobre a real utilidade do HC para a sua admissão pode ser uma medida eficaz no combate ao uso indiscriminado do instrumento, fora de suas finalidades constitucionais.

Fabiana observa que, diferentemente dos recursos no processo penal, que devem cumprir uma série de requisitos legais e formais para serem admitidos, o habeas corpus chega mais rápido para a análise do ministro relator, mesmo quando não guarda relação direta com a liberdade do paciente, nem com nulidades graves ou afrontas à jurisprudência consolidada. “Não é à toa que a maioria dos habeas corpus nem sequer são conhecidos”, enfatiza.

Outro ponto sensível destacado pela promotora refere-se à limitação da atuação do Ministério Público durante o processamento do habeas corpus: “O MP é ouvido como custos legis, mas o membro que conhece todas as peças do processo, conhece todas as cautelares, toda a tramitação daquele feito – que às vezes é extremamente complexo –, nem sequer é ouvido no momento em que o HC está sendo processado”.

Um exemplo de racionalização criado pela jurisprudência 

Em 2020, a Terceira Seção do STJ fixou um marco importante para conter a utilização excessiva do habeas corpus em situações já cobertas por recursos processuais próprios. No julgamento do HC 482.549, o colegiado entendeu que, uma vez interposto recurso cabível contra a mesma decisão judicial, o habeas corpus só poderá ser examinado se visar diretamente à tutela da liberdade de locomoção, ou se apresentar pedido distinto do recurso que reflita no direito de ir e vir.

O relator, ministro Rogerio Schietti, ressaltou que “é preciso respeitar a racionalidade do sistema recursal e evitar que o emprego concomitante de dois meios de impugnação com a mesma pretensão comprometa a capacidade da Justiça criminal de julgar de modo organizado, acurado e correto – o que traz prejuízos para a sociedade e os jurisdicionados em geral”.

Para o advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, no entanto, o habeas corpus é o instrumento mais eficaz para corrigir prisões ilegais e outros constrangimentos, e não pode sofrer restrições. “Um ponto crucial é a excessiva formalidade dos recursos. Se houvesse alguma alteração legislativa ou jurisprudencial para flexibilizar essas exigências nos recursos especial e extraordinário, isso poderia reduzir significativamente o número de habeas corpus impetrados”, opina.

Alteração do Código de Processo Penal divide opiniões

Uma oportunidade para a adoção dos aperfeiçoamentos em debate poderia ser a reforma do Código de Processo Penal (CPP), decretado por Getúlio Vargas em 1941. Diversas propostas já foram apresentadas ao Congresso Nacional nesse sentido, sendo uma delas o Projeto de Lei do Senado 156/2009, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 8.045/2010). A proposta original, elaborada por uma comissão presidida pelo ministro do STJ Hamilton Carvalhido (falecido), buscava evitar a utilização do HC como substituto recursal, restringindo as hipóteses de seu cabimento.

De acordo com o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma, essa proposta poderia melhorar a estrutura recursal do processo penal e direcionar muitas questões para serem resolvidas por outros meios processuais mais adequados. Na avaliação do ministro, essa é uma discussão relevante, que deve envolver não apenas os operadores do Sistema de Justiça, mas também administradores públicos e representantes políticos.

Contudo, Ribeiro Dantas alerta que qualquer eventual modificação legislativa deve ser feita com extremo cuidado, já que o habeas corpus vai além de uma mera peça processual: trata-se de uma garantia constitucional fundamental. “Essa garantia é algo que muitos países não possuem, mas que no Brasil está expressamente consagrada na Constituição. Portanto, é necessário ter cautela ao tratar desse tema”, afirma.

Por sua vez, o defensor público Marcos Paulo Dutra sustenta que o CPP em vigor já contém mecanismos adequados para coibir o uso abusivo do habeas corpus. Para ele, o problema não está na ausência de regras, mas na forma como elas são aplicadas. Segundo Dutra, é preciso adotar uma análise mais rigorosa dos critérios legais existentes e, sobretudo, respeitar as balizas interpretativas consolidadas pelos tribunais superiores ao longo dos anos.

Dutra explica que, quando uma nova lei surge, há todo um processo de criação de jurisprudências, doutrinas e interpretações, que gera inseguranças e “coloca em xeque” tudo o que já foi construído sobre o assunto.

“Acredito que é adequado o caminho trilhado pelo STJ e pelo STF de construir balizas, via interpretação do próprio CPP, que permitam uma racionalização do emprego do habeas corpus. Ainda mais diante de um ordenamento jurídico que, nos últimos anos, tem se preocupado tanto em prestigiar os precedentes judiciais. Se isso for prestigiado, não tenho dúvidas de que o próprio número de habeas corpus será reduzido”, expõe o defensor.

Tutela de urgência requerida na petição do recurso especial

O advogado Caio César Domingues de Almeida, que também defende a preservação do habeas corpus nos moldes atuais, propõe uma alternativa voltada à estrutura recursal: a criação, no próprio recurso especial, de um espaço específico para que a defesa possa formular pedidos de tutela de urgência.

“Isso daria mais segurança aos advogados, que hoje temem interpor apenas o recurso e ver a matéria de direito simplesmente não ser apreciada. Atualmente, não há um mecanismo que permita à defesa fazer esse pedido diretamente na peça recursal. Instituir essa possibilidade de forma clara e regulamentada poderia reduzir a quantidade de habeas corpus e tornar o sistema mais eficiente”, argumenta.

Para o advogado, se houver uma mitigação das formalidades processuais nos recursos às cortes superiores, haverá uma redução significativa do número de habeas corpus impetrados: “O que precisa ser repensado é o funcionamento do sistema recursal, especialmente no que diz respeito aos recursos especial e extraordinário”.

Nessa mesma perspectiva, o ministro Ribeiro Dantas defende um sistema de agravos no processo penal, os quais seriam interpostos diretamente nos tribunais, com a possibilidade de concessão de tutelas penais de urgência.


Atualização da Lei de Drogas poderia reduzir o número de impetrações

Na opinião do desembargador Guilherme Nucci, outra medida que pode levar à redução do número de habeas corpus é a reforma de leis já defasadas ou carentes de regulamentação mais precisa – a exemplo da Lei de Drogas, que, segundo ele, responde pelo maior número de habeas corpus analisados atualmente nos tribunais. Para o magistrado, mais do que criar restrições, é necessário corrigir uma grande falha: a ausência de parâmetros objetivos que orientem os juízes de todo o país na aplicação da norma penal.

“Está na hora do legislador entrar em campo e definir definitivamente o que é natureza de drogas, quais são as drogas mais perigosas à saúde, quais não são ou são menos perigosas e qual é a quantidade ideal para se presumir quem é usuário e traficante – como o Supremo fez com a maconha”, avalia o desembargador.

A falta dessas definições, conclui, reflete-se inclusive no aumento de prisões, o que gera mais pedidos de habeas corpus e o aumento desnecessário da população carcerária.

Salvo-conduto para Cannabis medicinal garante direito à saúde e à liberdade

Em meio a toda essa discussão, o habeas corpus segue desempenhando um papel essencial na defesa de direitos fundamentais, até para tutelar, de forma indireta, o direito à saúde. É o que tem acontecido com pessoas que recorrem ao Poder Judiciário em busca da garantia de não serem presas nem submetidas a quaisquer medidas repressivas em razão do uso medicinal da Cannabis sativa.

Em várias decisões, o STJ já deu habeas corpus preventivos para pacientes ou familiares de pacientes que se valem do óleo de canabidiol (CBD), um composto químico da Cannabis sativa que não tem efeitos psicotrópicos, para o tratamento de diversas doenças.

O vídeo abaixo mostra um desses casos em que o salvo-conduto do tribunal permitiu que o cidadão não fosse alvo de sanções penais por cultivar a planta para fins terapêuticos: uma história sobre como os direitos à saúde, à dignidade e à liberdade foram preservados pelo instituto do habeas corpus. 

Fonte: STJ

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Um milhão de habeas corpus no STJ: mais ou menos justiça?

O instrumento jurídico mais ágil para preservar o direito à liberdade, quando utilizado de forma desvirtuada – às vezes totalmente abusiva –, acaba por prejudicar a própria prestação de justiça a quem precisa.



Ao longo do dia 12 de dezembro de 2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recebeu 625 habeas corpus – um número tão elevado quanto comum na rotina da corte –, mas o conteúdo de um deles chamou atenção: trazia o pedido de prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, sob o argumento de que a medida seria necessária para cumprir decisão emitida pelo Tribunal Penal Internacional.

Classificado pelo presidente da corte, ministro Herman Benjamin, como “inusitado“, o caso é curioso não apenas pelo personagem em questão, mas pela contradição entre o pedido e a natureza do habeas corpus – instituto criado para assegurar a liberdade da pessoa, não para restringi-la.

Ainda assim, a petição, como todas que chegam à Justiça, precisou ser analisada e decidida – não apenas de forma monocrática, mas também em colegiado e pela Vice-Presidência do STJ, após sucessivos recursos internos –, juntando-se aos mais de um milhão de habeas corpus recebidos pelo tribunal em sua história – marca atingida em 30 de abril deste ano.

Em uma era marcada pelo avanço da litigância em larga escala, o habeas corpus ocupa lugar central no cotidiano do STJ. Concebido para ser acionado diante de ameaça ou coação ilegal ao direito de ir e vir, tornou-se, ao longo dos anos, uma das ações mais manejadas na Justiça brasileira, revelando não apenas o alcance democrático do instituto, mas também o uso distorcido que dele tem sido feito.

Por trás da impressionante quantidade de habeas corpus impetrados no STJ, emergem questões como as fragilidades do sistema recursal, as dificuldades estruturais das cortes sobrecarregadas e a defasagem entre legislação e jurisprudência.

As consequências vão muito além do atraso na tramitação dos processos. O excesso de habeas corpus, especialmente nos colegiados de direito penal, tem prejudicado o cumprimento da missão mais importante do STJ: uniformizar a aplicação das leis por meio do julgamento do recurso especial.

Impetrações sem suporte legal mínimo justificam a aplicação de multas

Absurdos como o requerimento de prisão do presidente russo não são raros. No plantão judiciário de 20 de dezembro de 2024 a 31 de janeiro deste ano, foram protocolados no STJ habeas corpus para impedir a cantora Cláudia Leitte de participar de uma audiência pública e invalidar um pregão eletrônico do Tribunal Superior do Trabalho para aquisição de itens utilizados em eventos.

Após analisar uma série de habeas corpus de um mesmo impetrante, o presidente do STJ aplicou multa de R$ 6 mil pela reiteração de pedidos sem qualquer base constitucional ou legal. O comportamento – que, segundo afirmou Herman Benjamin no julgamento do HC 980.750, configura ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância ímproba – foi punido com base no artigo 77, II e IV, e parágrafos 2º ao 5º, do Código de Processo Civil (CPC), entre outros dispositivos legais.

Em 2024, muitas situações semelhantes foram identificadas nos mais de 89 mil habeas corpus analisados apenas pela Terceira Seção – órgão do STJ que julga os casos da área criminal.

Características do habeas corpus o tornam um instrumento atrativo

A lista de habeas corpus manifestamente incabíveis, com temas que passam longe de qualquer violação ao direito de locomoção, é extensa e variada. A corte já recebeu, por exemplo, um pedido de guardas municipais para obter porte de arma. Em outro caso, o impetrante pretendia uma espécie de “licença para beber e dirigir”: ele queria um habeas corpus preventivo para não se submeter ao exame de bafômetro.

Houve ainda o habeas corpus manejado contra o Tribunal de Justiça do Piauí para questionar a substituição do peticionamento em papel pelo peticionamento eletrônico. Na ocasião, a ministra Laurita Vaz (aposentada), relatora, definiu a pretensão como “descabida” e afirmou que demandas como aquela só contribuíam para o abarrotamento dos tribunais.

A preocupação manifestada por Laurita Vaz e pelo presidente do STJ se confirma em números. O tribunal demorou 30 anos para atingir a marca de 500 mil habeas corpus, mas levou apenas seis anos para dobrar o quantitativo.

O cenário da Terceira Seção ilustra o problema. Segundo o ministro Ribeiro Dantas, que presidiu o colegiado de março de 2023 a fevereiro de 2025 e é o relator do HC 1.000.000, os habeas corpus correspondem a quase 70% dos casos analisados nos órgãos julgadores de direito penal. “Isso desfigura, de certa maneira, o que se espera da jurisdição do STJ em matéria criminal”, avalia o magistrado.


Previsto no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição Federal, o habeas corpus é um poderoso aliado na proteção do direito à liberdade de locomoção, pois é gratuito, não exige maiores formalidades e tem tramitação mais rápida. 

Na mesma linha do texto constitucional, o atual Código de Processo Penal (CPP) dispõe no artigo 647: “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar.”

Devido às suas características, o habeas corpus se tornou um instrumento atrativo também para quem deseja outras coisas que não preservar a liberdade do indivíduo diante de coações ou ameaças ao direito de locomoção. Não é de estranhar, portanto, o aumento de sua utilização nos últimos anos, sobretudo com a facilidade de acesso aos tribunais trazida pelo processo eletrônico.

O que mais preocupa o Judiciário, pelo volume, não são nem os pedidos que de tão despropositados chegam a soar folclóricos, e sim o uso do habeas corpus como panaceia para tentar reformar toda e qualquer decisão desfavorável no processo penal – inclusive proferidas em outros habeas corpus –, em substituição aos recursos previstos na legislação.

História da Justiça no Brasil revela uso amplo do habeas corpus

A utilização do habeas corpus no Brasil é antiga. Ribeiro Dantas conta que ele surgiu no país por meio de decretos, nos tempos do Império, mas a sua introdução expressa no ordenamento jurídico se deu no CPP de 1832. A Constituição republicana de 1891 elevou o instituto à categoria de garantia constitucional.

“É essa Constituição (não se sabe até hoje se foi de propósito ou se foi um esquecimento, isto é, se foi um silêncio simples ou um silêncio eloquente) que diz que se daria habeas corpus para qualquer violação por ilegalidade ou abuso de poder. Não se explicitava que era o direito à livre locomoção”, recorda o ministro.

Com isso, prossegue Ribeiro Dantas, advogados reivindicavam diversos direitos por meio de habeas corpus, e o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecia o caráter mais amplo da ação. Apenas em 1926, uma emenda constitucional definiu que o habeas corpus deveria ser impetrado para assegurar a liberdade de locomoção. Mesmo assim, o instrumento já havia se consolidado, nas palavras do magistrado, como um “bebê grandão”.

Modelos adotados em outros países são mais restritivos

O ministro Rogerio Schietti Cruz, membro da Terceira Seção e presidente do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes e de Ações Coletivas (Nugepnac) do STJ, aponta que o habeas corpus, de fato, se estabeleceu como um instrumento de uso mais extenso e flexível, especialmente em comparação com modelos adotados em outros países.

“No Brasil”, relata Schietti, “o habeas corpus foi ampliando seu leque de incidência de tal modo que, hoje, tudo que ocorre no processo penal, ou mesmo antes dele, pode ser objeto de um habeas corpus. É uma tradição nossa difícil de mudar, porque se você, de alguma forma, criar limitações, isso causará reações, além da desproteção a alguns direitos que são alcançados por uma interpretação bem ampla do instituto”.

A dificuldade para limitar o habeas corpus à sua finalidade expressamente prevista na Constituição e no CPP tem a ver também com o fato de que o Brasil viveu – em um passado não muito distante – mais de 20 anos de ditadura militar. Nesse período, entre as muitas arbitrariedades perpetradas pelo Estado, houve a edição do Ato Institucional número 5 (AI-5), cujo artigo 10 suspendeu a concessão do habeas corpus nos casos enquadrados como “crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.

Com a redemocratização, a chamada Constituição Cidadã de 1988 restabeleceu o devido processo legal, e o habeas corpus – impulsionado pelo sentimento de rejeição ao arbítrio anterior – passou a ser admitido na jurisprudência para corrigir situações apenas indiretamente ligadas à liberdade de locomoção.

Habeas corpus substitutivo de recurso próprio e overruling

Segundo o defensor público Marcos Paulo Dutra, coordenador de Defesa Criminal e do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o habeas corpus, atualmente, simboliza a democratização do acesso à Justiça e é um instrumento fundamental para a superação de entendimentos jurisdicionais (overruling).

“Quando pensamos na guinada promovida pelo STJ a respeito do reconhecimento pessoal e fotográfico, isso se deu por meio do habeas corpus, o que é sensacional”, afirma o defensor.

Ao falar sobre o aumento das impetrações, ele lembra o debate jurisprudencial em torno da admissibilidade do chamado habeas corpus substitutivo de recurso especial ou substitutivo de recurso ordinário constitucional.

“O STJ tem uma jurisprudência consolidada que não admite o denominado habeas corpus substitutivo. Mas, em muitíssimos casos, os ministros, com acerto, evoluem e acabam concedendo a ordem de ofício, tamanhas as teratologias identificadas”, observa Dutra.

Via paralela mais ágil e desestímulo ao uso do recurso especial

Na avaliação do advogado criminalista Caio César Domingues de Almeida, autor do livro Habeas Corpus na Jurisprudência dos Tribunais Superiores, a atual arquitetura recursal tem levado os operadores do direito a enxergar no habeas corpus uma via paralela – e mais ágil – para garantir a apreciação de questões urgentes, especialmente quando há alguma possibilidade de risco à liberdade do acusado.

Para ele, o sistema atual desestimula o uso regular do recurso especial, cujas exigências procedimentais muitas vezes inviabilizam o exame do mérito.

Como forma de enfrentar o número excessivo de habeas corpus, o advogado sugere uma flexibilização que permitisse à defesa pleitear medidas de urgência diretamente no corpo do recurso especial, à semelhança do que já ocorre com a concessão de habeas corpus de ofício em certos casos. “Essa possibilidade traria mais segurança aos advogados, que hoje recorrem ao habeas corpus temendo que a discussão de direito nem sequer seja apreciada nos tribunais superiores”, diz.

Ministro alerta para necessidade de atualização do CPP

Essa percepção encontra eco no próprio STJ. O ministro Ribeiro Dantas alerta que o uso massivo do habeas corpus se relaciona diretamente com a defasagem do CPP, em vigor desde 1941. Para ele, a legislação brasileira não foi atualizada para lidar com a complexidade e as demandas do processo penal contemporâneo, especialmente no que se refere à celeridade na análise de decisões interlocutórias que afetam a liberdade do réu.

Ribeiro Dantas traça um paralelo histórico com o uso excessivo do mandado de segurança entre as décadas de 1970 e 1990, quando esse instrumento funcionava como uma espécie de “válvula de escape” para ineficiências do processo civil.

Segundo ele, somente após reformas profundas no CPC – que tornaram os mecanismos recursais mais funcionais e acessíveis –, o mandado de segurança perdeu seu caráter emergencial e passou a ser utilizado de forma mais racional. No processo penal, no entanto, o ministro destaca que faltam instrumentos processuais adequados para lidar com situações que não podem esperar.

“Nesses casos, o habeas corpus muitas vezes se apresenta como a única via rápida e eficaz, diante de recursos ordinários excessivamente formais, complexos e morosos”, comenta o ministro.

Leis em descompasso com jurisprudência geram “avalanche” de ações

Para o jurista Guilherme de Souza Nucci, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, o maior problema não se encontra no manejo do habeas corpus ou na esfera do processo penal, mas sim na falta de atualização de alguns normativos, como a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas).

O magistrado, que é autor de obras na área do direito penal e do direito processual penal, aponta que as drogas respondem por mais de 50% da carga de trabalho da Justiça criminal, mas esse dado não recebe a devida atenção por parte do legislador. O resultado dessa lentidão é que os tribunais superiores acabam definindo parâmetros que já poderiam estar no texto legal, como é o caso da descriminalização, decidida no STF, do porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal.

Outro exemplo citado pelo magistrado diz respeito à incidência do princípio da insignificância. Ele lembra que, nesse caso, o STJ já estabeleceu filtros em sua jurisprudência.

“Mas onde está na lei? Não tem. Então, o advogado vai reclamar junto ao STJ o tempo todo. Nós temos que atualizar a lei penal utilizando os próprios institutos que os tribunais estão adotando, para que pare a avalanche de habeas corpus reclamando, muitas vezes, o óbvio”, declarou Nucci.

Uma resposta efetiva diante da violação de direitos

Em meio ao debate sobre o uso excessivo do habeas corpus, a história do vídeo abaixo mostra como, apesar das distorções e do volume preocupante de impetrações, esse instrumento continua a representar uma resposta efetiva à violação de direitos fundamentais. No caso de Romário dos Santos, foi a decisão do STJ no HC que fez a diferença entre uma condenação injusta e o restabelecimento da paz em sua vida.​

A série especial HC 1 milhão: mais ou menos justiça? debate o aumento expressivo do uso desse instrumento constitucional, trazendo diferentes pontos de vista sobre o fenômeno e o seu impacto nas atividades dos tribunais.

No próximo domingo: o papel de cada ator do Sistema de Justiça no ingresso massivo de habeas corpus no STJ.

Fonte: STJ

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Primeira Seção fixa teses sobre prescrição intercorrente em processo administrativo de apuração de infração aduaneira

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.293), fixou três teses sobre a ocorrência da prescrição intercorrente em processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras de natureza não tributária.

Na primeira tese, o colegiado definiu que incide a prescrição intercorrente prevista no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de três anos.

A segunda tese estabelece que a natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa, primordialmente, ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.

Por fim, a terceira tese fixa que não incidirá o artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999 apenas se a obrigação descumprida, embora inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.

Com o julgamento, podem voltar a tramitar os recursos especiais e agravos em recurso especial que estavam suspensos à espera do precedente qualificado. As teses devem ser observadas pelos tribunais de todo o país na análise de casos semelhantes.

Inércia poderá causar a extinção de processos aduaneiros

O relator do tema repetitivo, ministro Paulo Sérgio Domingues, lembrou que a Lei 9.873/1999 estabeleceu o regime jurídico da prescrição apenas no âmbito da administração pública federal – seja ela direta ou indireta –, cabendo aos estados e municípios estabelecerem seus próprios regramentos.

Segundo o ministro, também há limitações materiais à aplicação da regra da prescrição intercorrente prevista no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999, tendo em vista que, conforme estipulado no artigo 5º da mesma lei, a prescrição não se aplica às infrações de natureza funcional e aos procedimentos de natureza tributária.

Paulo Sérgio Domingues apontou que o critério a ser observado para definir se uma infração legal deve ou não seguir as regras da Lei 9.873/1999 é a natureza jurídica da norma violada, e não o procedimento que tenha sido escolhido pelo legislador para se promover a apuração ou a constituição definitiva do crédito correspondente à sanção pela infração praticada.

“O procedimento, seja ele qual for, não tem aptidão para alterar a natureza das coisas, de modo que as infrações de normas de natureza administrativa não se convertem em infrações tributárias apenas pelo fato de o legislador ter estabelecido, por opção política, que aquelas serão apuradas segundo processo ou procedimento ordinariamente aplicado para estas”, afirmou.

Atividade aduaneira é complexa e sanções podem ter implicações tributárias e não tributárias

O ministro Domingues reforçou que, em razão da complexidade do procedimento de despacho aduaneiro, surgem dificuldades na definição da natureza jurídica da obrigação legal – por exemplo, identificar se a infração resulta em violação de norma administrativo-aduaneira ou a inobservância de uma obrigação tributária acessória.

Por outro lado, citando o precedente da Primeira Turma no REsp 1.999.532, ele apontou que só se atribui natureza tributária às obrigações que repercutem, de maneira direta, na fiscalização e na arrecadação das exigências fiscais, não bastando o simples efeito indireto de imposições legais com finalidades diferentes.

Como consequência, o ministro enfatizou que, na seara aduaneira, a natureza jurídica do crédito decorrente de sanção será de direito administrativo se a norma violada buscar, em especial, o controle do trânsito internacional de mercadorias ou a regularidade do serviço aduaneiro. 

“Não incidirá o artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 9.873/1999 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado”, concluiu.

Leia o acórdão no REsp 2.147.578.

Fonte: STJ

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Juros e correção monetária sobre multa civil incidem a partir do ato de improbidade, define Primeira Seção em repetitivo

Segundo o relator, ministro Afrânio Vilela, se os juros e a correção não fossem calculados a partir do ato ímprobo, o valor da multa não refletiria o real proveito econômico obtido pelo agente infrator.

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.128), fixou a seguinte tese: “na multa civil prevista na Lei 8.429/1992, a correção monetária e os juros de mora devem incidir a partir da data do ato ímprobo, nos termos das Súmulas 43 e 54/STJ”.

Com o julgamento, o colegiado resolveu controvérsia sobre se o marco inicial para o cálculo dos juros e da correção monetária no caso de multa civil por improbidade deveria ser o trânsito em julgado da condenação, a data do evento danoso ou outro marco processual.

A definição da tese jurídica permite o retorno à tramitação dos recursos especiais e agravos em recurso especial que estavam suspensos na segunda instância ou no STJ. O entendimento estabelecido pela seção deve ser observado pelos tribunais de todo o país na análise de casos semelhantes. 

Multa deve refletir o real proveito econômico

O relator do caso, ministro Afrânio Vilela, ressaltou que a multa civil é calculada com base no proveito econômico obtido, na extensão do dano causado ao erário ou no valor da remuneração recebida pelo agente público. Conforme observou, em todos os casos, “o critério legal para a fixação da multa civil remete a um fator relacionado à data da efetivação do ato ímprobo”.

Ao defender a aplicação da Súmula 43 do STJ, o ministro enfatizou que, caso o cálculo da correção monetária tivesse como marco inicial a fixação da sanção ou o trânsito em julgado da condenação, o valor da multa não refletiria o real proveito econômico obtido pelo agente infrator.

Ainda de acordo com Afrânio Vilela, as sanções e o ressarcimento do dano previstos na Lei 8.429/1992 estão inseridos no âmbito da responsabilidade extracontratual por ato ilícito. Nesse contexto, o ministro destacou que, nos termos do artigo 398 do Código Civil, nas obrigações provenientes de ato ilícito, o devedor deve ser considerado em mora desde o momento em que o praticou.

“Desta forma, no pagamento de valores devidos a título de multa civil, aplicável ao disposto na Súmula 54/STJ, segundo a qual ‘os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual'”, concluiu.

Fonte: STJ

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Jurisprudência em Teses lança sexta edição sobre direitos da criança e do adolescente

A Secretaria de Biblioteca e Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) disponibilizou a edição 256 de Jurisprudência em Teses, sobre o tema Direitos da Criança e do Adolescente VI. A equipe responsável pelo produto destacou duas teses.

A primeira mostra que eventual hipossuficiência financeira ou vulnerabilidade da família devem ser levadas em consideração na fixação do valor da multa prevista no artigo 249 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), mas não são suficientes para afastá-la, dado seu caráter preventivo, coercitivo, disciplinador e inibidor de repetição de conduta censurada, a bem dos filhos.

O segundo entendimento afirma que, em alinhamento a normas internacionais, o ECA veda a divulgação de qualquer elemento que permita a identificação, direta ou indireta, da criança ou do adolescente a que se atribua ato infracional.

A ferramenta

Lançada em maio de 2014, Jurisprudência em Teses apresenta diversos entendimentos do STJ sobre temas específicos, escolhidos de acordo com sua relevância no âmbito jurídico.

Cada edição reúne teses identificadas pela Secretaria de Biblioteca e Jurisprudência após cuidadosa pesquisa nos precedentes do tribunal. Abaixo de cada uma delas, o usuário pode conferir os precedentes mais recentes sobre o tema, selecionados até a data especificada no documento.

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Terceira Turma admite envio de ofício às corretoras para encontrar e penhorar criptomoedas do devedor

Segundo o colegiado, embora esse tipo de ativo não seja considerado moeda de curso legal, as criptomoedas têm valor econômico e são passíveis de constrição.
 

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que, no cumprimento de sentença, o juízo pode enviar ofício às corretoras de criptoativos com o objetivo de localizar e penhorar eventuais valores em nome da parte executada.

O recurso chegou ao STJ após o tribunal de origem negar provimento ao agravo de instrumento – interposto na fase de cumprimento de sentença – em que o exequente sustentava a possibilidade de expedição de ofícios para tentar encontrar criptomoedas que pudessem ser penhoradas. 

O tribunal local considerou a inexistência de regulamentação sobre operações com criptoativos. Além disso, para a corte local, faltaria a garantia de capacidade de conversão desses ativos em moeda de curso forçado.

Ativo digital faz parte do patrimônio do devedor

O relator na Terceira Turma, ministro Humberto Martins, lembrou que, para a jurisprudência do STJ, da mesma forma como a execução deve ser processada da maneira menos gravosa para o executado, deve-se atender o interesse do credor que, por meio de penhora, busca a quitação da dívida não paga.

O ministro ressaltou que as criptomoedas são ativos financeiros passíveis de tributação, que devem ser declarados à Receita Federal. Conforme disse, apesar de não serem moedas de curso legal, elas têm valor econômico e são suscetíveis de restrição. “Os criptoativos podem ser usados como forma de pagamento e como reserva de valor”, completou.

O relator comentou que, conforme o artigo 789 do Código de Processo Civil, o devedor inadimplente responde com todos os seus bens pela obrigação não cumprida, ressalvadas as exceções legais. No entanto, em pesquisa no sistema Sisbajud, não foram localizados ativos financeiros em instituições bancárias autorizadas.

Para Humberto Martins, além da expedição de ofício às corretoras de criptomoedas, ainda é possível a adoção de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, com vistas a uma eventual penhora.

Criptomoedas representam desafios para o Judiciário

O relator lembrou que uma proposta legislativa em tramitação, o Projeto de Lei 1.600/2022, define o criptoativo como representação digital de valor, utilizado como ativo financeiro, meio de pagamento e instrumento de acesso a bens e serviços.

Em voto-vista, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva informou que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está desenvolvendo uma ferramenta, o Criptojud, para facilitar o rastreamento e o bloqueio de ativos digitais em corretoras de criptoativos.

Cueva salientou a necessidade da regulamentação desse setor, diante das dificuldades de ordem técnica relacionadas com a localização, o bloqueio, a custódia e a liquidação de criptoativos, o que traz desafios para o Poder Judiciário tanto na esfera cível quanto na penal.

Fonte: STJ

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A interpretação do STJ sobre as possibilidades de busca pessoal e a validade das provas encontradas

A caracterização da fundada suspeita capaz de justificar o procedimento da revista pessoal sem mandado está na raiz de inúmeras controvérsias sobre a validade das provas obtidas.

O mundo jurídico descreve como revista ou busca pessoal aquilo que o povo conhece como “baculejo”, “enquadro” ou “dar uma geral”: trata-se da averiguação do corpo do suspeito, pela polícia, em busca de provas ou indícios de crimes.

A busca pessoal está regulada no Código de Processo Penal (CPP). De acordo com o artigo 244 do CPP, esse tipo de procedimento não depende de mandado judicial em três situações: no caso de prisão; quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou objetos que constituam indícios de delito; ou quando for determinada no âmbito de busca domiciliar.

A avaliação do que pode constituir a fundada suspeita está na raiz de inúmeras discussões sobre a validade de provas obtidas em revista pessoal realizada sem mandado judicial. No esforço de compatibilizar a segurança pública com os direitos fundamentais garantidos pela Constituição, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem formado uma ampla jurisprudência a respeito do tema.

Circunstâncias objetivas e urgência justificam a abordagem

Em 2024, no AgRg no HC 860.283, a Quinta Turma entendeu que ficou caracterizada fundada suspeita num caso em que os policiais fizeram a abordagem após serem informados sobre comercialização de drogas por meio de mensagens no Facebook e no WhatsApp.

Conforme os autos, os acusados foram abordados em via pública com drogas para venda e, além de confessarem o crime, autorizaram a entrada dos policiais em sua residência, onde foram encontrados mais entorpecentes e materiais utilizados para o tráfico.

O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, avaliou que foram atendidas as exigências do artigo 240, parágrafo 2º, do CPP. Conforme apontou, houve “demonstração de fundadas razões para a busca pessoal”, a qual estava respaldada por circunstâncias objetivas que indicavam a necessidade de investigação adicional.

Em outro processo, a turma manteve a prisão preventiva do réu por entender que as buscas pessoal e veicular foram realizadas legalmente, tendo em vista que decorreram de denúncia anônima específica devidamente verificada antes da abordagem.

A defesa alegou ausência de fundada suspeita para justificar o procedimento, sustentando que as diligências teriam sido baseadas apenas em denúncias anônimas e alegações genéricas. Entretanto, o relator do AgRg no RHC 193.038, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, afirmou que a denúncia anônima forneceu a descrição detalhada do veículo utilizado para a prática do crime.

O relator lembrou que, para a jurisprudência do STJ, as denúncias anônimas ou intuições subjetivas não são suficientes para autorizar a busca pessoal ou veicular.

Tentativa de fuga configura fundada suspeita

No julgamento do HC 877.943, a Terceira Seção entendeu que o fato de um indivíduo fugir correndo ao avistar a guarnição policial configura fundada suspeita capaz de autorizar a busca pessoal em via pública, nos termos do artigo 244 do CPP.

Para o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, apesar de a fuga não configurar flagrante delito, nem excepcionar a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, é um fato visível que gera suspeita razoável, embora possa ter outras explicações. “A fuga é uma atitude intensa, nítida e ostensiva”, completou.

Por outro lado, o ministro salientou que o ônus da prova, nesses casos, é do Estado, e usualmente a acusação é amparada apenas no depoimento dos policiais. Por isso, Schietti apontou a necessidade de submeter tais provas a uma cuidadosa análise de verossimilhança e de consonância com os demais elementos dos autos.

No mesmo ano, a Sexta Turma decidiu, no HC 889.618, que um indivíduo que se esquivou da guarnição policial se comportou de forma a justificar a suspeita de que estivesse portando objetos ilícitos, circunstância que autorizava a busca pessoal em via pública, nos termos do artigo 240, parágrafo 2º, do CPP.

O relator do caso, ministro Sebastião Reis Junior, destacou que foi verificada uma situação de anormalidade apta a ensejar a busca pessoal. Conforme ressaltou, não houve uso excessivo da busca pessoal – prática que reproduz preconceitos estruturais presentes na sociedade –, estando a conduta dos policiais de acordo com o entendimento adotado no STJ.

Na mesma linha, a Sexta Turma considerou legal a revista de indivíduos que tentaram fugir em alta velocidade e ainda foram vistos pelos policiais jogando droga para fora do carro. A decisão foi no AgRg no HC 838.670, de relatoria do ministro Antonio Saldanha Palheiro.  

Antecedentes criminais não autorizam revista policial

No HC 774.140, a Sexta Turma anulou provas obtidas em busca motivada apenas por antecedente do suspeito. Para o colegiado, o fato de haver um antecedente por tráfico de drogas, desacompanhado de qualquer outro indício concreto de que o indivíduo estivesse trazendo entorpecentes consigo ou no veículo, não autorizava as buscas pessoal e veicular.

Para o relator, Rogerio Schietti Cruz, se a existência de um registro criminal passado fosse justificativa para a pessoa ser constantemente revistada pela polícia, isso resultaria em uma espécie de perpetuação da pena.

Nervosismo e atitude suspeita não bastam para legitimar busca pessoal

Em 2022, a Sexta Turma decidiu, no RHC 158.580, que a revista pessoal ou veicular baseada exclusivamente em “atitude suspeita” é ilegal. O ministro Rogerio Schietti comentou que, apesar de terem sido encontradas drogas durante a abordagem, esta foi motivada apenas pela impressão subjetiva dos policiais sobre a aparência ou a atitude do indivíduo, não tendo sido apresentada nenhuma outra justificativa.

Schietti enfatizou que o CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada, pois, para a busca pessoal sem mandado, também é necessário que tal suspeita se refira à posse de arma, droga ou qualquer coisa que constitua corpo de delito. Segundo o relator, é preciso ter uma finalidade probatória, para que se evitem as abordagens e revistas exploratórias, baseadas em suspeições genéricas.

“O artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória”, explicou.

De forma similar, a Quinta Turma entendeu que o nervosismo do suspeito, percebido pelos policiais, não é suficiente para caracterizar a fundada suspeita para fins de busca pessoal, uma vez que essa percepção é excessivamente subjetiva.

No caso, o relator do AgRg no HC 747.421, ministro Messod Azulay Neto, destacou que a abordagem foi realizada com base na simples intuição policial, desprovida de critérios objetivos, em razão do nervosismo demonstrado pelo indivíduo. De acordo com o ministro, nem a suposta confissão informal do abordado sobre material ilícito guardado em sua residência é capaz de sanar a ilegalidade que tornou nulas as provas obtidas na diligência.

Cheiro de droga justifica busca na pessoa, não em sua casa

A Quinta Turma considerou justificada a busca pessoal em um cidadão que jogou uma sacola no chão e tentou fugir ao notar a aproximação da polícia. O relator do AgRg no AREsp 2.467.742, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, reafirmou que a busca pessoal não necessita de prévia autorização judicial quando houver fundadas suspeitas de possível delito. No caso em análise, ele reconheceu a fundada suspeita e afastou a tese de ilegalidade da busca pessoal.

No AgRg no HC 838.089, julgado pela mesma turma e com o mesmo relator, foi adotado o entendimento que o cheiro de maconha no suspeito justifica a busca pessoal, mas a falta de outras provas impede a entrada sem mandado no seu domicílio.

Reynaldo Soares da Fonseca ressaltou que o fato de não ter sido encontrado nada de ilícito com o suspeito não legitimava a entrada dos policiais, posteriormente, em sua casa, ainda que com a suposta autorização de sua mãe, devido à falta de dados concretos e objetivos que justificassem a diligência.

Uso de capacete, por si só, não gera suspeita razoável

Em meados de 2024, a Quinta Turma entendeu que apenas o ato de usar capacete, mesmo em lugar onde isso não seja praxe, não gera fundada suspeita capaz de justificar a revista policial.

AgRg no HC 889.619 foi interposto pelo Ministério Público na tentativa de reverter a decisão monocrática do ministro Reynaldo Soares da Fonseca que reconheceu a ilicitude das provas resultantes de busca pessoal e absolveu o paciente, que tinha sido condenado por tráfico de drogas.

Em seu voto, o relator observou que o uso de capacete pelos ocupantes da motocicleta, ainda que não fosse comum na cidade, é obrigatório segundo o artigo 244 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Assim, essa circunstância, mesmo aliada ao suposto nervosismo do indivíduo diante dos policiais, não foi motivo suficiente para justificar a busca pessoal.

Inspeções de segurança no transporte público têm caráter administrativo

No julgamento do HC 625.274 e do HC 861.278, a Sexta Turma reafirmou que a busca pessoal em inspeções de segurança – que ocorrem em aeroportos, rodoviárias, prédios públicos, festas e outros eventos ou locais – tem natureza administrativa e não precisa de fundada suspeita para ser realizada. Os dois habeas corpus apresentavam o mesmo contexto: durante fiscalização de rotina em ônibus, policiais encontraram drogas nas bagagens de passageiros.

No HC 625.274, a relatora, ministra Laurita Vaz (aposentada), afirmou que a justificativa para a realização de inspeção de segurança em locais e transportes públicos é distinta da que permite a busca pessoal para fins penais. Segundo disse, embora a inspeção de segurança também envolva restrição a direito fundamental, o indivíduo não é obrigado a se sujeitar a ela.

Ainda nesse sentido, o relator do HC 861.278, ministro Sebastião Reis Junior, apontou que, se a busca administrativa pode ser realizada por agentes privados, mais ainda por agentes públicos em igual contexto, o que não impede o controle judicial posterior, em ambos os casos.

Guarda municipal e sua legitimidade para buscas pessoais

No HC 839.525, a Quinta Turma reconheceu a ilicitude das provas obtidas mediante indevida atuação da guarda municipal, bem como das provas derivadas, e absolveu um homem condenado pelo crime de furto.

A relatora, ministra Daniela Teixeira, disse que o indivíduo foi revistado pelos guardas municipais sem que houvesse justa causa (fundada suspeita) para o procedimento, mas somente porque ele carregava um saco de lixo preto na cabeça, sendo a situação de flagrante descoberta só após a realização da busca pessoal.

Conforme enfatizou a relatora, a guarda civil municipal está autorizada a fazer busca pessoal em situações de flagrante delito e nas hipóteses em que, além da existência de fundada suspeita, houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução de serviços municipais, assim como proteger os seus usuários.

Em outro processo, a Quinta Turma entendeu que os agentes de segurança privada contratados por uma sociedade de economia mista do setor ferroviário não podem fazer busca pessoal. Conforme destacou o relator do HC 470.937, ministro Joel Ilan Paciornik, “somente as autoridades judiciais, policiais ou seus agentes estão autorizados a realizar busca domiciliar ou pessoal”, não podendo os seguranças privados sequer serem equiparados a guardas municipais. A controvérsia desse processo aguarda um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que já reconheceu a repercussão geral do tema.

Fonte: STJ

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No Mês do Consumidor, reportagem especial mostra problemas do mercado online

O mercado online se tornou a preferência de muitos consumidores, que buscam facilidade e praticidade no dia a dia e não veem mais a necessidade de sair de casa para comprar. Mas, com o crescimento desse mercado, as pessoas precisam estar cada vez mais atentas aos riscos do ambiente virtual. Fraudes, sites falsos e roubo de dados pessoais são algumas das ameaças que podem prejudicar a experiência de compra.  

No mês em que se comemora do Dia do Consumidor (15 de março), uma reportagem especial produzida pela Coordenadoria de TV e Rádio do Superior Tribunal de Justiça (STJ) apresenta relatos de pessoas que tiveram problemas no mercado online, dicas de especialistas sobre segurança e as decisões que o tribunal vem tomando nesse tema.

Clique na imagem para assistir:

Fonte: STJ

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Na primeira década do CPC/2015, a visão do STJ em dez temas de direito processual civil

Publicado em 16 de março de 2015, o atual Código de Processo Civil (CPC) entrou em vigor um ano depois para substituir o CPC de 1973, que permaneceu em vigência durante mais de quatro décadas.

O novo código foi um passo importante para a consolidação do sistema brasileiro de precedentes, que busca uniformizar a aplicação do direito a partir da observância obrigatória das decisões das cortes superiores pelos demais órgãos do Judiciário, racionalizando a atividade jurisdicional e evitando a multiplicação de processos sobre temas já pacificados.​

A primeira década do CPC/2015 foi lembrada pela Secretaria de Biblioteca e Jurisprudência do tribunal com uma edição especial de Jurisprudência em Teses.

Nesses dez anos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) produziu extensa jurisprudência no campo do direito processual civil ao enfrentar controvérsias em torno da aplicação das normas inovadoras do CPC/2015, em assuntos como honorários advocatícios, impenhorabilidade de bens, sistema recursal e muitos outros.

Flexibilização do cabimento do agravo de instrumento

Em 2018, ao julgar o Tema 988 dos recursos repetitivos, a Corte Especial fixou a tese de que o rol do artigo 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, ou seja, a interposição do agravo de instrumento é admitida diante da urgência, quando se verificar a inutilidade de discutir a questão apenas no momento do julgamento do recurso de apelação.

Leia também: STJ define hipóteses de cabimento do agravo de instrumento sob o novo CPC

A relatora do REsp 1.696.396, ministra Nancy Andrighi, enfatizou que as hipóteses previstas no dispositivo não abrangem todas as questões que podem ser prejudicadas se tiverem de esperar pela discussão futura em recurso de apelação, as quais devem ser reexaminadas imediatamente em segunda instância. Ao mesmo tempo, ela afastou a possibilidade de interpretação extensiva ou analógica.

A ministra salientou que o rol também não pode ser visto como exemplificativo, pois, dessa forma, o desejo do legislador de restringir o cabimento do recurso seria contrariado, o que resultaria na repristinação do artigo 522 do CPC/1973.

A respeito do mesmo dispositivo, a Segunda Seção fixou outra tese repetitiva, igualmente sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, cadastrada como Tema 1.022: também cabe agravo de instrumento de todas as decisões interlocutórias proferidas no processo de recuperação judicial e no processo de falência, por força do parágrafo único do artigo 1.015 do atual CPC.
Conforme explicou a relatora do REsp 1.717.213, ministra Nancy Andrighi, são recorríveis imediatamente, por agravo de instrumento, as decisões interlocutórias nas fases de liquidação e execução proferidas em processos recuperacionais e falimentares, não apenas nas hipóteses previstas no CPC, mas também naquelas disciplinadas por legislação extravagante que possuam a mesma natureza jurídica.

Impenhorabilidade da poupança e de outras aplicações financeiras

No início de 2024, no julgamento do REsp 1.660.671, sob relatoria do ministro Herman Benjamin, a Corte Especial do STJ definiu uma importante orientação jurisprudencial sobre a interpretação do artigo 833, inciso X, do CPC, que trata da impenhorabilidade da caderneta de poupança até 40 salários mínimos.

Para o tribunal, a impenhorabilidade poderá ser estendida a valores de até 40 mínimos mantidos em conta-corrente ou em outras aplicações financeiras que não a poupança, caso seja provado que se trata de uma reserva de patrimônio destinada a assegurar o mínimo existencial ou a proteger o indivíduo ou sua família contra adversidades.

Como o entendimento foi fixado no julgamento de recurso especial avulso, o STJ afetou a questão ao rito dos repetitivos (Tema 1.285) para lhe dar os efeitos processuais de um precedente qualificado. O julgamento, iniciado em dezembro na Corte Especial, sob relatoria da ministra Maria Thereza de Assis Moura, está suspenso por pedido de vista.

Ainda a respeito da impenhorabilidade da poupança, o julgamento do Tema 1.235 pela Corte Especial fixou a seguinte tese: a impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo juiz, devendo ser arguida pelo executado no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos ou em embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão.

REsp 2.061.973 chegou ao STJ após as instâncias ordinárias deixarem de penhorar, de ofício, com base no artigo 833, inciso X, do CPC, valores encontrados na conta dos executados. A relatora, ministra Nancy Andrighi, observou que o legislador relativizou a impenhorabilidade ao não utilizar a palavra “absolutamente” no artigo 833. Esse já era o entendimento do STJ ainda durante a vigência do CPC/1973.

De acordo com a ministra, por ser um direito do executado, a impenhorabilidade pode ser renunciada caso o bem seja disponível, não podendo ser considerada, como regra, de ordem pública. Nancy Andrighi observou ainda que o CPC vigente é expresso quando autoriza a atuação de ofício do juiz, o que não ocorre no reconhecimento da impenhorabilidade. Ao contrário, disse a relatora, o código “atribui ao executado o ônus de alegar tempestivamente a impenhorabilidade do bem constrito”.

A pandemia da Covid-19 e o auxílio emergencial

Foi durante a primeira década de vigência do CPC que o país enfrentou a pandemia da Covid-19, a qual trouxe desafios inéditos ao Poder Judiciário. Entre as várias decisões de direito processual civil tomadas pelo STJ em razão da crise sanitária, a Quarta Turma estabeleceu a impossibilidade de penhora do auxílio emergencial – mesmo que parcial – para pagamento de crédito constituído em favor de instituição financeira.

Para o relator do REsp 1.935.102, ministro Luis Felipe Salomão, a verba emergencial a que se referia o caso foi destinada a ajudar pessoas afetadas pela pandemia que ficaram sem acesso ao essencial, por isso, qualquer desconto que não fosse para pagamento de pensão alimentícia atingiria a dignidade dos devedores.

O ministro realçou que, por se tratar de execução de uma cédula de crédito, proposta por instituição financeira, a penhora não poderia ser realizada, por força dos incisos IV e X do artigo 833 do CPC ou, ainda, devido ao parágrafo 13 do artigo 2º da Lei 13.982/2020. Por outro lado, o relator reconheceu que o legislador, buscando um equilíbrio no sistema e objetivando a satisfação do credor, criou exceções que autorizavam a penhora.

Legitimidade da parte para recorrer sobre honorários advocatícios

Em 2021, a Terceira Turma decidiu, no REsp 1.776.425, que tanto a parte – em nome próprio – quanto o advogado possuem legitimidade concorrente para interpor recurso acerca dos honorários advocatícios.

O relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), lembrou que, segundo a jurisprudência do STJ em relação ao antigo CPC, tanto as partes quanto os advogados já podiam, em nome próprio, pedir a fixação ou o aumento dos honorários estabelecidos pelo órgão julgador.

O ministro ressaltou que, embora o artigo 99 do atual código não trate diretamente dessa legitimidade, a interpretação do dispositivo leva à conclusão de que o entendimento adotado anteriormente não foi revogado.
Por fim, o relator destacou que o parágrafo 5º do mesmo artigo, ao dispor sobre o requisito do preparo, cita a possibilidade de a parte beneficiária de gratuidade judiciária recorrer apenas sobre os honorários.

Ônus da prova sobre exploração do imóvel rural em regime familiar

Em uma década do CPC, outra importante tese do tribunal no campo da impenhorabilidade de bens foi firmada no julgamento do Tema 1.234 dos recursos repetitivos, no qual se definiu que cabe ao devedor provar que o imóvel rural é explorado pela família e não pode ser penhorado, de acordo com o artigo 833, inciso VIII, do código.

A relatora, ministra Nancy Andrighi, frisou que a Segunda Seção, ao julgar o REsp 1.913.234, em 2023, já havia pacificado o entendimento de que é do executado o ônus de comprovar que o imóvel se qualifica como pequena propriedade rural explorada pela família.

“Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma”, explicou a ministra. Segundo ela, o importante é assegurar os meios para a efetiva manutenção da subsistência do executado e de sua família.

Honorários têm natureza alimentar, mas não são prestação alimentícia

Ainda sobre o tema dos honorários advocatícios, a Corte Especial estabeleceu em 2024, sob o rito dos repetitivos (Tema 1.153), que a verba honorária sucumbencial, apesar de sua natureza alimentar, não se enquadra na exceção prevista no parágrafo 2º do artigo 833 do CPC.

O relator do REsp 1.954.380, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, sublinhou que a discussão da matéria girou em torno da distinção entre as expressões “natureza alimentar” e “prestação alimentícia”, sendo decidido que esta última é espécie e aquela, gênero.
Conforme salientou o ministro, diferentemente dos honorários advocatícios, a prestação de alimentos é uma obrigação periódica e contínua que pode, inclusive, resultar de condenação por ato ilícito ou ato de vontade. 

É vedada a fixação de honorários por equidade em causas de grande valor

A Corte Especial, ao julgar o REsp 1.850.512, de relatoria do ministro Og Fernandes, decidiu que é inviável a fixação de honorários de sucumbência por apreciação equitativa quando o valor da condenação ou o proveito econômico forem elevados.

Cadastrado como Tema 1.076, o repetitivo estabeleceu que apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação, o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório, ou ainda o valor da causa for muito baixo.

O relator lembrou que o atual CPC buscou dar objetividade às hipóteses de fixação de honorários, e apenas excepcionalmente autorizou a apreciação equitativa do juiz, segundo o artigo 85, parágrafo 8º. Conforme acrescentou, o parágrafo 3º desse artigo ainda preservou o interesse público, estabelecendo regra diferenciada para os casos em que a Fazenda Pública é parte.

O ministro ressaltou que o advogado deve informar claramente ao seu cliente os custos de uma possível sucumbência para que juntos decidam, de modo racional, se é viável iniciar um litígio. “Promove-se, dessa forma, uma litigância mais responsável, em benefício dos princípios da razoável duração do processo e da eficiência da prestação jurisdicional”, completou.

A liberdade do juiz para rever valores da multa cominatória

Em 2020, a Corte Especial decidiu que é possível que o magistrado, a qualquer tempo, e mesmo de ofício, revise o valor desproporcional das astreintes.

O relator do EAREsp 650.536, ministro Raul Araújo, afirmou que é preciso observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade na imposição da multa cominatória, tendo em vista que a sua finalidade é conferir efetividade ao comando judicial, e não indenizar, substituir o cumprimento da obrigação ou enriquecer uma das partes.

O ministro comentou que esse valor é estabelecido sob a cláusula rebus sic stantibus, não ensejando preclusão ou formação de coisa julgada. Segundo apontou, a quantia pode ser revista a qualquer tempo, conforme artigo 537, parágrafo 1º, do CPC, ou até mesmo excluída quando não houver mais justa causa para sua mantença.

Comprovação de feriado local na interposição do recurso

Uma controvérsia muito debatida na corte diz respeito à necessidade de comprovação de feriado local para demonstrar a prorrogação do prazo recursal e a tempestividade do recurso.

Em 2019, no julgamento do REsp 1.813.684, interpretando o CPC/2015, a Corte Especial decidiu que era necessário comprovar nos autos a ocorrência do feriado local, por meio de documento idôneo, no ato de interposição do recurso. O ministro Luis Felipe Salomão, cujo voto prevaleceu naquele julgamento, enfatizou que o CPC tinha inovado ao trazer expressamente que a comprovação de feriado local no momento do protocolo era indispensável.

No entanto, em 2024, a Lei 14.939 estabeleceu que, se o feriado local não for comprovado na interposição do recurso, o tribunal deverá determinar a correção do vício ou mesmo desconsiderá-lo se a informação já constar do processo eletrônico. No início de 2025, a Corte Especial, sob relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, julgou o AREsp 2.638.376 e definiu que a nova regra se aplica a recursos já interpostos.

Técnica do julgamento ampliado não depende de requerimento

Uma das grandes inovações do CPC/2015 na área dos recursos foi a extinção dos embargos infringentes e a criação do julgamento ampliado – técnica prevista no artigo 942 para ser usada em caso de julgamento não unânime da apelação. Em 2018, ao analisar o REsp 1.771.815, a Terceira Turma fixou importantes interpretações sobre o julgamento ampliado, também chamado de ampliação do colegiado.

Seguindo o voto do relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a turma definiu que, se o julgamento da apelação não for unânime, a ampliação do colegiado deve ser adotada de ofício pelo órgão julgador, sem a necessidade de pedido da parte, pois não se trata de uma nova espécie recursal.

Ficou decidido também que os desembargadores que já tiverem votado poderão modificar seu voto na continuação do julgamento, e que o exame da apelação, na hipótese do julgamento ampliado, pode envolver todas as questões do recurso, e não apenas o capítulo em que se registrou a divergência.

De acordo com o relator, “o prosseguimento do julgamento com quórum ampliado em caso de divergência tem por objetivo a qualificação do debate, assegurando-se oportunidade para a análise aprofundada das teses jurídicas contrapostas e das questões fáticas controvertidas, com vistas a criar e manter uma jurisprudência uniforme, estável, íntegra e coerente”.

Fonte: STJ

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