O PL 3.813/21 e a tipificação penal das fake news

As transformações tecnológicas depois da década de 1990 tornaram-se um divisor entre dois mundos: um digital, em plena expansão, e outro analógico, em retração. O mundo caminha a passos cada vez mais largos a uma versão digital, onde os estados muitas vezes se veem pequenos diante das grandes empresas de tecnologia.

Com a dificuldade de atuação estatal para acompanhar o desenvolvimento tecnológico e o acesso à informação, nos deparamos com uma situação nova, que pode destruir reputações, influenciar em tomadas de decisões importantes em estados, determinar o rumo de eleições e afetar até mesmo a saúde pública. As fake news já são por muitos consideradas uma epidemia, colocando em situação de risco a confiança nas informações e manipulando a opinião pública.

No período da Segunda Guerra Mundial as nações em guerra utilizavam suas máquinas de propaganda para incentivar sua população e dissuadir o inimigo, criando-se verdadeiras realidades paralelas que possibilitaram situações como o Holocausto. Nessa época iniciaram-se estudos para tentar entender a ação e os efeitos dessas informações.

O investigador Knapp em 1944 publicava e analisava os efeitos desse tipo de  desinformação com um estudo que vai à luz na revista de investigação Public Opinión Quarterly.

Dois anos mais tarde, os famosos estudiosos Allport e Postman centravam-se em outro artigo da mesma publicação — em questionar como algumas notícias tiveram um efeito depressivo para a população civil. As notícias da época em que a combinação de rumores com a consequente propaganda estatal criavam realidades falsas. Constituía-se como um problema social de primeira ordem.

As investigações na época concluíram que tais rumores tratavam de se apresentar sempre como verdadeiro o que queria difundir-se. “Portanto, é uma declaração que se apresenta como verdadeira sem que existam dados concretos que permitam validar ou verificar a sua exatidão.”

Como mencionado, as notícias falsas e seus efeitos nas sociedades são uma questão antiga, entretanto, sua conjugação com as novas tecnologias informativas faz com que seu avanço e efeito seja muito mais agudo e abrangente, produzindo em pouco tempo desequilíbrio social, podendo gerar situações catastróficas, como por exemplo, o caso das fake news sobre as vacinas contra a Covid-19.

No Brasil e no mundo buscam-se formas de impedir que a avalanche de notícias falsas prejudique as sociedades, utilizando-se de sanções na esfera cível e administrativa, bem como aprovando legislações para a regulação das redes. Entretanto, verifica-se que as ações até então adotadas não estão sendo capazes de coibir a prática de produzir, divulgar e financiar a produção de notícias falsas.

O Estado tem tentado impedir o crescimento das fake news, utilizando as ferramentas que possuem para controlar sua difusão. A utilização do direito civil para a reparação de danos e retirada de conteúdos falsos ou ilegais tem funcionado até certo ponto, porém, verificamos que a grande quantidade de notícias falsas e a dificuldade de muitas vezes chegar-se à pessoa do difusor são uma barreira para a aplicação dessas ferramentas.

A aplicação do direito penal em situações relacionadas as fakes news atualmente se dá na maioria dos  casos quando há violação do direito a honra, difamação, calúnia ou a contravenção penal de provocar alarma, com aplicação de sanções muito brandas, como a prevista para o crime de calúnia (artigo 138 do CP), que é de seis meses a dois anos de detenção.

Por este panorama inicial, e em análise preliminar, verifica-se que os demais ramos do direito, e a previsão penal existente relacionada aos crimes contra honra e que não se aplicam a maioria dos casos, são ineficazes para a proteção de bens jurídicos relevantes, e, principalmente, para a proteção da própria informação que é prevista como garantia constitucional (artigo 220, CF/88). Havendo um descrédito generalizado quanto as informações, em razão da proliferação descontrolada de notícias falsas que buscam se passar por verdadeiras, estaríamos colocando em risco a própria existência do Estado democrático de Direito.

Por tais fatos, o Senado, quando dos debates ocorridos na Comissão Parlamentar de Inquérito da Pandemia, deliberou pela necessidade de proteção especial — ao que entendemos ser ao bem jurídico informação —, vendo necessária e legítima a tipificação penal da ação de criar e difundir notícias falsas, surgindo desses debates o PL nº 3.813/21.

O projeto de lei busca acrescentar ao Código Penal no título dos crimes contra a paz pública, o artigo 288-B, visando penalizar quem cria ou divulga notícia sabidamente falsa: “Art. 288-B. Criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante”.

O PL em comento, formalizado em período de pandemia, onde proliferavam-se a veiculação por meio das redes sociais de notícias falsas acerca da própria pandemia, seus efeitos, formas de conter o contágio e até mesmos negacionistas, que questionavam a existência do coronavírus e a eficácia das vacinas. Situações extremas que levaram a sociedade que já vivia em situação de grave restrição, a indagar e discutir abertamente os limites da liberdade de veicular informação.

A tipificação da conduta de criar e divulgar fake news é um fato jurídico, visto que, mesmo que ainda não colocado em votação o Projeto de Lei nº 3.813/21, este é manifestamente um propulsor para que analisemos a tipificação das fake news, diante da proposta legislativa.

Verificamos que o proposto artigo 288-B do Código Penal não se caracterizaria como sendo um tipo penal meramente formal, mas exige a existência de dolo específico para a sua aplicação, que entendemos estar caracterizado pela necessidade de conhecimento da falsidade da notícia, ou seja, a intenção deliberada de enganar criando ou divulgado o falso, com aspecto de verdadeiro, e como se verdade fosse. Existe aí a tipicidade material, o efetivo risco ao bem jurídico protegido, que ao nosso ver é a garantia constitucional da informação.

Esse conhecimento da falsidade exigido para a caracterização da conduta típica, limita a penalização a apenas aqueles que comprovadamente deturpam e violam a informação, utilizando esta garantia constitucional, para manipular e lesar toda a coletividade.

O conhecimento da falsidade se apresenta como uma questão processual, ou seja, probatória, que deverá ser apurada para que se chegue a possibilidade de adequação a tipificação prevista, excluindo da penalização aquele que desconhecendo a falsidade divulga a informação, é, portanto, a expressão “sabe ser falsa” uma limitação a tipificação, protegendo aquele que inadvertidamente compartilha uma informação que acreditava ser verdadeira.

Verificamos no PL 3.813/21 a existência de diversos elementos normativos como “alterar ou corromper gravemente” ,  que exigem uma análise valorativa para a aplicação do tipo penal, que seria entender se houve alteração ou corrompimento substancial a informação criada ou divulgada, acrescentando-se que esse corrompimento ou alteração seria grave o suficiente para que a informação seja recebida como verdadeira, ao ponto de ter condições de manipular a opinião pública.

Objetivamente o tipo penal proposto pelo PL n. 3.813/21, indica a aplicação a violações relacionadas  à “saúde, à segurança, à economia”,  limitando a abrangência do tipo, o que implicaria a sanção apenas a notícias falsas que alteram ou corrompem gravemente informações, manipulando a opinião pública quanto a temas relacionados à saúde, segurança e economia, elegendo o legislador essas áreas como de maior relevância a proteção da informação veraz, pois, é claro, que notícias falsas relacionadas a temas vitais a sociedade são muito mais danosos.

Elegendo objetivamente essas três áreas sensíveis, o legislador dá um passo a mais e acrescenta ao tipo penal tipo penal a conjunção “ou a outro interesse público relevante”, o que ao nosso ver possibilita ao julgador ultrapassar as áreas da saúde, economia ou segurança pública anteriormente eleitas, podendo estender a tipificação penal a qualquer fato relacionado a divulgação dolosa de notícia sabidamente falsa, criando uma ampla possibilidade de análise subjetiva quanto ao que seria interesse público relevante.

Entendemos que a existência da conjunção de elementos valorativos que criam tipos penais extremamente “flexíveis”, gerando insegurança jurídica ante o grau de subjetivismo, implicando ao cidadão depender do conceito de “interesse público relevante” que possui o julgador no momento da aplicação da lei penal, o que, ao nosso entender afastaria a proposta de tipificação penal dos fundamentos constitucionais que dão sustentação a teoria do bem jurídico, como por exemplo os princípio da dignidade da pessoa humana, da taxatividade penal e da reserva legal.

Por todos esses aspectos aqui introdutoriamente traçados, entendemos como extremamente relevante a ação legislativa na propositura do PL nº 3.813/21, pois de fato existe uma necessidade social em conter a difusão de notícias falsas, demonstrando-se que a sua incidência tem trazido prejuízos e insegurança a sociedade. Poderíamos discutir a proteção de qual bem jurídico se destina o tipo penal, ou ainda, tecermos críticas a expressões extremamente abertas que possibilitam uma análise amplamente subjetiva quanto a aplicação do tipo penal, todavia, esses questionamentos que certamente virão em um debate muito mais amplo, não excluem o mérito da proposta, que é de grande importância, mostrando-se o legislador atento quanto a nossa realidade social e os novos dilemas que nos aportam o desenvolvimento das tecnologias.

Fonte: Consultor Jurídico

Inquilino pode obrigar locador a renovar contrato de locação

Diversas empresas optam por alugar imóveis de terceiros para o desenvolvimento de suas atividades, ante o alto investimento necessário para a aquisição de um imóvel.

As locações de imóveis urbanos são regidas pela Lei nº 8.245/1991, a qual possui uma seção específica para tratar das locações de imóveis destinados ao comércio.

Dentre os principais aspectos regulados pela legislação, encontra-se a proteção ao ponto comercial, que não deve ser confundido com o estabelecimento empresarial.

O estabelecimento é o complexo de bens, corpóreos e incorpóreos, organizados para o exercício da atividade empresarial, constituindo, assim, uma universalidade de fato, decorrente da vontade do empresário, que pode ser objeto de negócios na totalidade ¹.

O ponto comercial é um dos principais bens que integram o estabelecimento. É onde a atividade é exercida e reconhecida pela clientela, e que muitas vezes é fator de valorização do imóvel, em decorrência do esforço e trabalho do empresário.

Ciente da importância do ponto para o estabelecimento empresarial, bem como do valor gerado por ele para o imóvel locado, a legislação o protege, conferindo ao inquilino, nas locações comerciais, a possibilidade de obrigar o locador a renovar o contrato de locação, desde que:

  • 1) O contrato de locação tenha sido celebrado por escrito e com prazo determinado;
  • 2) O prazo mínimo do contrato, ou a soma dos prazos dos contratos escritos, seja de cinco anos;
  • 3) O locatário esteja explorando o mesmo ramo pelo prazo mínimo e ininterrupto de três anos.

Frisa-se que se o contrato tiver prazo inferior a cinco anos, e ocorrer a sua prorrogação tácita pela permanência do inquilino no imóvel sem a assinatura de um aditivo ou novo contrato que estabeleça um prazo determinado, considera-se a locação prorrogada por prazo indeterminado, que não é contabilizado para fins da ação renovatória.

Além dos requisitos iniciais, o inquilino precisa estar em dia com as obrigações contratuais, propor a ação renovatória nos seis primeiros meses do último ano do contrato, apresentar proposta de novo aluguel, condizente com o mercado, e provar a manutenção ou substituição eficaz das garantias, como a fiança.

O locador só não estará obrigado a renovar o contrato se:

  • 1) Por determinação do poder público, tiver que realizar obras de radical transformação no imóvel;
  • 2) Planejar efetuar modificações que aumentem o valor do imóvel;
  • 3) Necessitar do imóvel para uso próprio, ou para a transferência de estabelecimento empresarial existente há mais de um ano, do qual a maioria do capital social seja detida pelo locador, seu cônjuge, ascendente ou descendente, desde que não seja do mesmo ramo que o inquilino, salvo se a locação envolvia o próprio estabelecimento;
  • 4) A proposta do inquilino for insuficiente para a renovação, em função do valor do aluguel ser incompatível com o valor de mercado, excluída a valorização causada pelo próprio inquilino;
  • 5) Existir proposta de aluguel feita por um terceiro, em melhores condições do que a do inquilino;
  • 6) Não preenchimento dos requisitos legais pelo inquilino.

Ressalta-se que, nas hipóteses dos itens 1, 2 e 3 (reforma, uso próprio ou transferência de estabelecimento), o locador terá três meses, a partir da entrega do imóvel, para iniciar as obras ou transferir o estabelecimento, sob pena de ter que indenizar o inquilino dos prejuízos e lucros cessantes.

Já na situação do item 5 (proposta em melhores condições efetuada por terceiro), o locador deverá indenizar o inquilino pela perda do ponto comercial, abrangendo as despesas imediatas com a mudança e os lucros cessantes decorrentes, inclusive de eventual desvalorização do estabelecimento do inquilino.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que cabe ação renovatória para os imóveis locados com o fim de desenvolver a atividade empresarial, ainda que não direcionados à recepção da clientela, caso contribuam para a manutenção ou crescimento da clientela, em demanda que envolvia locação para instalação de antenas de celulares (REsp 1.790.074).

Em sentido semelhante, para os depósitos e locais análogos em que não há atendimento da clientela, Sylvio Capanema de Souza defende que é possível a ação renovatória, desde que se comprove que se trata de local indispensável à atividade, como um prolongamento do estabelecimento ².

Quanto ao prazo da renovação, o Superior Tribunal de Justiça possui precedentes no sentido que o prazo máximo de prorrogação é de cinco anos, ainda que o contrato original seja superior, mas que é possível que o inquilino realize novo pedido de renovação ao final desses cinco anos, sucessivamente, pois não há proibição legal para tanto (REsp 1.971.600 e REsp 1.990.552).

O direito à renovação é estendido às locações celebradas pelas indústrias e sociedades civis com fins lucrativos (sociedades simples, destinadas exclusivamente às atividades profissionais de natureza científica, literária e artística, não empresárias).

É fundamental que inquilino e locador considerem a possibilidade da renovação obrigatória quando da negociação do contrato de locação, por representar fator crítico tanto ao futuro da empresa, no caso do inquilino, quanto da destinação do imóvel, no caso do locador, sendo uma verdadeira restrição ao direito de propriedade a fim de privilegiar a proteção ao ponto comercial.

Fonte: Consultor Jurídico

Plano de saúde não pode reduzir atendimento em home care sem indicação médica, diz STJ

Qualquer redução de assistência à saúde que seja repentina e significativa, durante tratamento de doença grave e contrariando indicações médicas, viola os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana.

Com base nesse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, decidiu que é vedado ao plano de saúde reduzir o atendimento hospitalar em domicílio, conhecido como home care, sem indicação médica.

No9 processo, uma mulher, diagnosticada com parkinsonismo com evolução para espasmicidade mista e atrofia de múltiplos sistemas (MAS), ajuizou ação de obrigação de fazer combinada com compensação por dano moral após o plano de saúde reduzir seu tratamento domiciliar, de 24 para 12 horas por dia. O juízo de primeiro grau considerou que a redução foi indevida e determinou que o plano mantivesse o home care de forma integral.

No entanto, o Tribunal de Justiça de Pernambuco reformou a decisão, limitando os serviços ao máximo de 12 horas diárias, sob o fundamento de que o home care com enfermagem de 24 horas não deve ser concedido para casos de maior gravidade, pois nessas situações o mais adequado seria manter o paciente no hospital.

Redução abusiva
A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, ponderou que, mesmo não tendo havido a suspensão total do home care, ocorreu uma diminuição “arbitrária, abrupta e significativa” da assistência até então recebida pela paciente — conduta que deve ser considerada abusiva.

“A redução do tempo de assistência à saúde pelo regime de home care deu-se por decisão unilateral da operadora e contrariando a indicação do médico assistente da beneficiária, que se encontra em estado grave de saúde”, disse.

A ministra também questionou o entendimento do TJPE de que a internação domiciliar não deveria ser autorizada para pacientes em situação grave. Segundo a relatora, conforme foi decido no AREsp 2.021.667, “é uníssono o entendimento nesta corte de que é abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar (home care) como alternativa à internação hospitalar”.

Por fim, Nancy Andrighi ressaltou, citando o julgamento do REsp 1.537.301, que a prestação deficiente do serviço de home care ou a sua interrupção sem prévia aprovação ou recomendação médica, ou, ainda, sem a disponibilização da reinternação em hospital gera dano moral, pois “submete o usuário em condições precárias de saúde à situação de grande aflição psicológica e tormento interior, que ultrapassa o mero dissabor”.

Acompanhando o voto da relatora, o colegiado restabeleceu a sentença que condenou o plano de saúde a arcar com a internação domiciliar e a pagar R$ 5 mil à segurada por danos morais. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Fonte: Consultor Jurídico

Juíza de MS ordena que Spotify reative perfil de usuário em até 48h

Por entender que estavam presentes os requisitos para concessão de tutela de urgência — probabilidade do direito e perigo de dano —, a juíza Larissa Luiz Ribeiro, da Comarca de Pedro Gomes (MS), determinou que o Spotify reativasse a conta de um usuário.

A decisão foi provocada por ação de obrigação de fazer em que o usuário alega que teve seu perfil desativado sob o argumento genérico de que teria violado os termos de condições de uso da plataforma.

O autor argumenta que possui a conta há anos e, por hobby, passou a criar playlists que cresceram organicamente e chegaram a atingir até 100 mil seguidores em algumas delas.

A magistrada apontou que, ao analisar os documentos encartados nos autos, entende-se que a suspensão do perfil deveria ter sido justificada por um comportamento irregular em relação ao conteúdo disponibilizado na plataforma.

“Vale dizer, deveria a empresa requerida ter indicado, ao menos, em que consistiria tal comportamento irregular a justificar a sua atuação preventiva. O perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo, por sua vez, consubstanciado no fato de que o autor possui atividade econômica ligada às redes sociais, atuando como assinante mensal e necessita dar continuidade ao exercício de suas atividades empresariais, sendo evidente que o bloqueio/suspensão de acesso sua conta, sem qualquer justificativa clara e precisa, lhe ocasiona graves danos”, registrou.

Diante disso, a juíza determinou a reativação do perfil do usuário em até 48 horas e ordenou que fosse marcada uma audiência de conciliação.

Os advogados Ricardo Nunes Leal Filho e Márcio Pompeu atuam pela parte autora.

Fonte: Consultor Jurídico

Empresa não ter intervalo de almoço justifica recisão indireta

A 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu a rescisão indireta do contrato de trabalho — conhecida por justa causa do empregador — a uma encarregada de um restaurante, localizado no Shopping Ibirapuera, em São Paulo. Para o colegiado, a não concessão do intervalo intrajornada e o não pagamento de horas extras são graves o suficiente para inviabilizar a manutenção da relação de emprego. Com isso, a empresa foi condenada a pagar as verbas rescisórias devidas nas dispensas sem justa causa.

Na ação, a encarregada da área de alimentação, por vezes também cozinheira, requereu a rescisão indireta, prevista no artigo 483, da CLT, a partir de 5 de abril de 2018, quando notificou o empregador por meio de telegrama. Além das irregularidades, ela disse ter presenciado o homicídio de um colega no ambiente de trabalho, o que teria lhe causado grave abalo psicológico.

O restaurante, porém, alegou que a trabalhadora havia abandonado o emprego e, por isso, a dispensou por justa causa.

O juízo de 1º grau manteve a justa causa, mas deferiu as horas extras e o intervalo intrajornada. O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TJ – SP), por sua vez, afastou a hipótese de abandono de emprego, mas considerou que a rescisão ocorrera por iniciativa da empregada, que não teria direito às verbas devidas nas dispensas sem justa causa.

Em sua fundamentação, o TRT assinalou que as questões que amparavam o pedido de rescisão indireta eram controvertidas e, por si só, não permitiam o reconhecimento de falta grave do empregador. Por outro lado, a iniciativa da rescisão partiu da empregada, que assumiu, assim, o risco de decisão desfavorável. Contudo, essa circunstância não caracteriza abandono de emprego, pois a empresa foi notificada.

Segundo o relator do recurso de revista da trabalhadora, ministro Caputo Bastos, o artigo 483, alínea “d”, da CLT permite a rescisão indireta no caso de descumprimento das obrigações contratuais pelo empregador. Em relação à encarregada do restaurante, ele considerou que a supressão do intervalo intrajornada e o pagamento incorreto das horas extras configuram a justa causa patronal, pois demonstram a falta grave relacionada ao descumprimento das obrigações do contrato. Com informações da assessoria de imprensa do TST. 

Fonte: Consultor Jurídico

Projeto de Lei 3.780/2023: entre sofismas, (mais) penas e seletividade

Há algum tempo, uma obra um tanto conhecida, já alertava (BECCARIA, 2012): que a pena não seja um ato de violência de um ou de muitos contra um membro da sociedade. Ela deve ser pública, imediata e necessária, a menor possível para o caso, proporcional ao crime e determinada pelas leis”. Desde então, não parece ter havido qualquer mudança acerca da redução da criminalidade ou mesmo das penas. A bem da verdade: “a má notícia é que, sem dúvida, acabar com a criminalidade é impossível, uma vez que a tipificação penal é também ato político, e nenhuma sociedade esteve, até hoje, isenta de alguma forma de violência” (FALAVIGNO, 2020).

Sem minimamente levar em conta tais diretas e singelas advertências, recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei n° 3.780 de 2023 que visa alterar o Código Penal a fim de majorar as penas previstas para os crimes de furto, roubo, receptação, receptação de animal e interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública, bem como para tipificar os crimes de recepção de animal doméstico e de fraude bancária. É sobre este Projeto que nos debruçamos neste breve ensaio crítico a propósito de seus despropósitos e escancarada seletividade.

Primeiramente, não se pode olvidar que toda criminalização — e, mais sensivelmente, no campo dos crimes patrimoniais, dentre os maiores responsáveis pelo superencarceramento brasileiro — acarreta consequências no âmbito do processo de execução penal, que, representado pelo sistema carcerário, garante a matriz das desigualdades sociais e reproduz a marginalização social (SANTOS, 2022).

Nesse sentido, deve-se também considerar o baixo investimento para infraestrutura e serviços básicos, que prejudica a reintegração das pessoas presas e que o principal custo prisional é relativo aos gastos de manutenção, sendo a maior parcela para o pagamento de funcionários e que de 11 estados que informaram dados com alimentação, dez possuem um gasto mensal abaixo do valor da cesta básica total (CNJ, 2021).

Inobstante, segundo relatório recente elaborado pelo CNJ, em 2022 ingressaram, 3,7 milhões de novos casos criminais, sendo iniciadas, pelo menos 585.000 execuções penais, e, ainda, chama atenção o fato de que um dos assuntos mais demandados nos Tribunais Superiores são referentes à prisão preventiva e de pena privativa de liberdade (CNJ, 2023).

Não bastasse a realidade no mínimo problemática do sistema penal brasileiro acima muito brevemente exposta, vale relembrar que, em 2019, com o advento do “pacote anticrime”, já foram promovidas mudanças significativas quanto aos crimes patrimoniais sob comento: (i) o furto de caixa eletrônico com explosivo foi considerado crime hediondo; (ii) ao incluir o §5° ao art. 171 do Código Penal, alterou-se a natureza da ação penal do crime de estelionato para pública condicionada à representação; e (iii) incluiu o §2°-B no artigo 157 do Código Penal — tornando qualificado o roubo perpetrado com arma de uso restrito ou proibido e dobrou a pena que antes era de 4 a 10 anos para 8 a 20, tão hediondo quanto o roubo com emprego de arma de fogo (artigo 157, §2º-A, I), que conta com aumento de pena de 2/3. Esse cenário revela que exigir representação, como condição de procedibilidade,  apenas quanto ao crime de estelionato, tende a reforçar a seletividade penal, já que, se nem o furto simples conta com a mesma exigência, legitima-se e, quiçá, institucionaliza-se a marginalização.

Assim, aumentar a pena de crimes patrimoniais certamente implicará no aumento da população carcerária, reforço do racismo institucional e aporofobia que permeia sistema carcerário brasileiro já considerado em estado de coisas inconstitucional pelo STF (ADPF 347), isso porque os dados de encarceramento demonstram a naturalização de práticas racistas pelos poderes constituídos que impactam no próprio enviesamento das instituições punitivas (CARVALHO, 2015).

Por outro lado, dados apontados pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023) indicam uma tendência de queda da criminalidade patrimonial violenta, que parece ter se deslocado, de modo aparentemente mais rentável, para o campo das fraudes e das ocorrências que exploram o fenômeno da migração da vida social para o ambiente híbrido que conecta o físico e virtual.

Seletividade às claras, com a chancela do legislador e que apenas retroalimenta o próprio poder punitivo: o Projeto de Lei nº 3.780/2023 reforça o sofisma punitivista de que o Direito Penal protegeria os bens jurídicos mais importantes e que bens jurídicos mais importantes seriam aqueles protegidos pelo Direito Penal (TANGERINO, 2016), naturalizando a criminalização e o constante aumento de penas como método “mais adequado” , “proporcional”, “razoável” e “equilibrado” para “cessar” a criminalidade.

Por todo o exposto, e em sentido completamente avesso ao PL nº 3.780/2023, a criminalização deveria ser tratada sem qualquer sensacionalismo ou soluções fáceis, com foco em suas potenciais consequências e impactos, para que seja efetivamente possível diminuir a população carcerária e otimizar recursos públicos empregados na persecução e execução penal. Sobretudo quando se trata de crimes patrimoniais, pelos quais encontram-se presas  832.295 pessoas (FBSP, 2023). Por isso, repudiar o mencionado PL se mostra necessário e urgente. 

Fonte: Consultor Jurídico

Lei nº 11.445: prestação direta de serviços de saneamento com auxílio de particulares

Tivemos notícia do lançamento de uma série de editais de licitação contemplando o repasse a operadores privados da responsabilidade pela prestação dos serviços de saneamento previstos no artigo 3º da Lei nº 11.445/07. Embora isso seja permitido, e até mesmo incentivado pelo novo Marco Legal do Saneamento Básico (Lei nº 14.026/20), que tem dentre os seus objetivos fundamentais o incremento da competitividade no setor, há a condicionante de que qualquer delegação deve ser precedida da celebração de contrato de concessão.

Muitas dessas licitações, contudo, preveem ao fim a celebração de contratos ordinários de prestação de serviços, regulados pelas Leis Gerais de Licitação (Lei nº 8.666/93 ou Lei nº 14.133/21). Esse modelo geralmente tem por fundamento a diferenciação entre os regimes de prestação indireta via delegação (que exigiria concessão) e de prestação direta com auxílio de particular (dispensaria concessão). Sob tal pretexto, a execução da integralidade dos serviços de saneamento pertinentes a uma determinada localidade poderia ser transferida à exploração privada por meio de contrato ordinário de prestação de serviço, desde que a “gestão” desses serviços continuasse a cargo da administração.

Nos opomos a esse entendimento, e entendemos que, como regra, o repasse da execução da integralidade das atividades pertinentes à prestação de serviços públicos de saneamento somente pode ocorrer mediante a instrumentalização de contrato de concessão de serviços públicos.

Nos termos dos artigos 9º, inciso II, e 10, da Lei nº 11.445/07, a prestação dos serviços previstos em seu artigo 3º pode se dar de duas formas: direta ou indireta. A direta é executada pelo próprio poder concedente, por meio de órgão ou entidade que integre a sua administração. A indireta pressupõe seu transpasse a particular, por meio, necessariamente, de contrato de concessão. Não há terceira opção.

O debate acerca dos limites da terceirização de serviços pela administração pública (que envolve conceitos muito disseminados e pouco criticados, como os de “atividades-fim” e “atividades-meio” do Estado), é uma grande zona de incerteza jurídica.

Mas em meio a esse deserto, é possível encontrar um oásis de certeza jurídica no qual devemos instalar o tema: como regra, o poder público não pode meramente terceirizar a execução da integralidade de serviços públicos. Quem o diz é o artigo 175 da Constituição, segundo o qual incumbe ao poder público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

No caso dos serviços públicos de saneamento básico, esse entendimento é reforçado pelo artigo 10 da Lei nº 11.445/07, o qual prevê que “a prestação dos serviços públicos de saneamento básico por entidade que não integre a administração do titular depende da celebração de contrato de concessão”. Portanto, o trespasse da integralidade de serviços previstos no artigo 3º da Lei nº 11.445/07, mediante a formalização de alguma modalidade de contratação, não pode ser considerada prestação direta.

Logo, não existe prestação direta de serviços públicos de saneamento que seja repassada a particular por intermédio de contrato.

Por outro lado, acaso se deseje providenciar a prestação indireta do serviço público de saneamento, a única modalidade contratual admitida é a concessão de serviços públicos. Cuida-se de contrato típico, regido por normas próprias, e que não pode ser confundido ou transmutado em mera prestação de serviços ordinários.

Respeitosamente, o argumento de que a concessão seria desnecessária, uma vez que os serviços seguiriam sendo prestados diretamente pelo poder público (ainda que com “auxílio” de particulares), aplicando-se a exceção do artigo 10, não procede.

Atividades de gestão de contratos públicos nada mais são do que uma qualificação das atividades de fiscalização. Quem gere contratos públicos vai além da fiscalização de aspectos meramente operacionais do contrato; fiscaliza também questões de cunho administrativo, financeiro, e até estratégico. Mas a essência permanece a mesma: quem gere, fiscaliza.

Sob essa perspectiva, a pretensa prestação direta de serviços públicos de saneamento, “auxiliada” por particular, nada mais é do que a instrumentalização de modelo por meio do qual a iniciativa privada presta a integralidade dos referidos serviços, sob fiscalização (qualificada, é verdade), da administração pública. Exatamente aquilo que deve ocorrer na hipótese de prestação indireta.

Além disso, a diferença entre “transferência da gestão” e “transferência da execução”, levantada por aqueles que defendem o modelo, não encontra lastro na Lei.

Assim, a modalidade de prestação direta de serviços, prevista no novo Marco Legal do Saneamento, quando lida à luz da Constituição, pressupõe, quando menos, que a administração pública realize não apenas a gestão (leia-se, fiscalização qualificada e mais ampla) dos serviços públicos de saneamento, mas também a execução direta de um núcleo duro de atividades que o compõem.

Em resumo: para os fins da lei, prestação direta é aquela feita por ente que integra a administração do titular, que pessoalmente toma as providências essenciais para garantir que a população frua serviços públicos de saneamento.

Não há jogo de palavras capaz de alterar o fato de que a tese encampada por esses municípios pretende repassar integralmente a prestação de serviços públicos de saneamento para particulares, sem a prévia celebração de contratos de concessão. E isso, reputamos nós, é contrário à Lei n. 11.445/07.

A prestação de serviços de saneamento por sujeito que não integre a administração municipal exige o planejamento, a licitação e formalização de contratos de concessão.

Fonte: Consultor Jurídico

Leis municipais, retrofit e reabilitação dos centros históricos

Em um artigo anterior, abordamos a aplicação do conceito de desenvolvimento sustentável ao meio ambiente cultural material. Naquela ocasião, indicamos que o termo é abrangente, e envolve técnicas de conservação, proteção à natureza, geração de impactos econômicos positivos e desenvolvimento econômico.

Diversas iniciativas implementadas pelos municípios visam promover a sustentabilidade cultural do patrimônio edificado, especialmente ao lidarem com a reabilitação de áreas degradadas, notadamente os centros históricos.

O retrofit, também denominado reconversão, destaca-se dentre as técnicas que podem ser utilizadas para reabilitar essas áreas, pois proporciona a restauração de imóveis antigos, adaptando-os para atender às demandas contemporâneas do mercado imobiliário, possibilitando o investimento para usos tanto comerciais quanto habitacionais.

Ao conferir novas funções à edifícios antigos, existe uma grande economia de insumos, pois há o reaproveitamento dos recursos já utilizados anteriormente na construção da edificação.

Surge, ainda, a oportunidade para introduzir equipamentos de segurança e acessibilidade nesses prédios, além de introduzir novas tecnologias benéficas ao meio ambiente natural, como, por exemplo, o reaproveitamento de água da chuva e o uso de energia solar.

Os benefícios não se limitam às construções individualmente consideradas, há ainda ganhos no aspecto urbanístico. As intervenções propiciam um melhor aproveitamento dos equipamentos urbanos já instalados nos centros, como, por exemplo, a infraestrutura de transporte e de fornecimento de água e de energia elétrica.

O modelo tradicional de oferta de novas áreas edificáveis nas cidades acarreta diversos impactos negativos, os quais podem ser mitigados através do incentivo à ocupação dos centros históricos. Além do impacto ambiental, a expansão territorial urbana onera demasiadamente o erário, pois diversos equipamentos precisam ser instalados nessas novas áreas, sendo que os centros já contam com essa infraestrutura.

Portanto, o retrofit é uma técnica que pode contribuir com a sustentabilidade do patrimônio cultural material, pois permite o uso mais eficiente dos imóveis e da infraestrutura localizados nos centros urbanos.

Nesse sentido, muitos municípios têm concedido benefícios fiscais para aqueles que adquirem e reformam imóveis nos centros históricos, buscando tornar essas áreas atrativas para investimentos privados, pois o poder público não possui recursos para arcar com todos os custos envolvidos na reabilitação dessas áreas.

Através da lei municipal nº 9.767/2023, o município de Salvador lançou o “Renova Centro”, que é um programa de incentivo a empreendimentos e moradias, através, por exemplo, da concessão de isenção do ITIV, e de IPTU pelo adquirente de imóvel edificado no âmbito do programa por um prazo de 10 anos contados da aquisição do imóvel.

Adicionalmente, através do Decreto nº 36.870/23, foi criado o Distrito Cultural do Centro Histórico e Comércio de Salvador, que busca a centralização, organização e governança dos serviços públicos na região.

No caso do município de São Paulo, foi publicada a lei 17.577/2021, que ficou conhecida como “Lei do Retrofit”. Tal norma, que foi regulamentada pelo Decreto nº 61.311/2022, faz parte do “Programa Municipal Requalifica Centro”. Esse programa estabelece incentivos à prática do retrofit, como a remissão dos créditos de IPTU, redução para 2% da alíquota de ISS para os serviços relativos à obra de requalificação, Isenção de ITBI aos imóveis objetos de requalificação e Isenção de taxas municipais para instalação e funcionamento por cinco anos.

Em Recife, a lei municipal nº 18.869/21, regulamentada pelo Decreto nº 35.876/22, instituiu o “Recentro”, que é um plano de incentivos fiscais para fomentar as obras destinadas à recuperação, renovação, reparo ou manutenção de imóveis localizados nos sítios históricos do município.

Dentre os incentivos fiscais concedidos pela legislação do município pernambucano, destaca-se a isenção de até 100% do IPTU, restituição do ITBI, redução da alíquota do ISS para prestação de serviços de construção, recuperação, renovação, reparo ou manutenção de imóveis nas áreas selecionadas.

No Rio de Janeiro, destaca-se o programa “Reviver Centro”, que estabelece diretrizes para a requalificação urbana da área central do município através de incentivos ao retrofit e conservação das edificações existentes, aproveitando-as para a produção de unidades residenciais (artigo 1º da Lei Complementar nº 229/21).

Portanto, os municípios têm reconhecido o retrofit como uma alternativa viável para reabilitar seus centros históricos, tanto é que têm concedido isenções e benefícios fiscais para os empreendedores interessados em investir nessas regiões. O uso dessa técnica, aliada aos benefícios fiscais apontados anteriormente, podem servir como um importante estímulo para o investimento e aprimoramento do uso dessas áreas, contribuindo assim para a preservação do patrimônio cultural brasileiro.

Fonte: Consultor Jurídico

Declaração Universal dos Direitos Humanos: um novo direito

O processo que levou à reação jurídica ao mal por meio da plena internacionalização dos direitos humanos tem, entre seus marcos, o discurso do presidente Roosevelt, dos Estados Unidos, de 6 de janeiro de 1941. Neste discurso, pronunciado perante o Congresso do seu país, Roosevelt afirmou a importância, para o futuro, de um mundo fundado em quatro liberdades: a liberdade da palavra e de expressão; a liberdade de religião, a liberdade de viver ao abrigo da necessidade e a liberdade de viver sem medo. Estas duas últimas foram reiteradas na Carta do Atlântico de agosto de 1941, aprovada por Churchill e Roosevelt, que indicava, em plena Segunda Guerra Mundial, uma visão de futuro para o mundo.

A Declaração das Nações Unidas, assinada em 1 de janeiro de 1942 pelos representantes dos 26 países em guerra com as potencias do Eixo, ao secundar a Carta do Atlântico, expressa convicções sobre a preservação dos direitos humanos nos seus respectivos países, bem como em outros. No mesmo sentido, a Declaração de Filadélfia de 1944, que emanou da Conferencia Internacional do Trabalho da OIT e que tratou dos objetivos desta organização, ao traçar os princípios do Direito Internacional do Trabalho, proclamou a relevância dos direitos humanos ao afirmar: “Todos os seres humanos de qualquer raça, crença ou sexo, têm o direito de assegurar o bem estar material e o desenvolvimento espiritual dentro da
liberdade e da dignidade, da tranquilidade económica e com as mesmas possibilidades”.

Esta sensibilidade em relação à internacionalização dos direitos humanos não transparece com tanta clareza nas propostas para o estabelecimento de uma organização internacional geral, que emanaram da Conferência de Dumbarton Oaks de 1944, da qual participaram representantes dos EUA, da Grã-Bretanha e subsequentemente da União Soviética e da China e que serviram de base para a negociação do texto da Carta das Nações Unidas. Foi na sua negociação conclusiva, na Conferência de São Francisco de 1945, que ocorreu a efetiva inserção dos direitos humanos no que veio a ser o texto da Carta da ONU.

A cautela, em Dumbarton Oaks, dos que, na condição de potências vitoriosas, depois passariam a integrar o Conselho de Segurança como membros permanentes, explica-se, pois eles tinham, na época, suas próprias vulnerabilidades no campo dos direitos humanos. Os EUA viviam ainda os problemas da discriminação racial legalizada que, sobretudo no Sul do país, vitimava a população negra; a Grã-Bretanha ainda era um império colonial e a União Soviética de Stalin carregava a sombria realidade dos seus Gulags (campos de prisioneiros) (1).

A inserção mais abrangente dos direitos humanos na Carta da ONU ocorreu na Conferência de São Francisco. Deve-se em grande medida aos países que não eram tidos como grandes potências e, em especial, aos países latino-americanos que, na Conferência de Chapultepec (21/2 a 8/3/45) sobre os problemas da guerra e da paz, que a antecedeu, manifestaram a sua intenção de aperfeiçoar as propostas do projeto de Dumbarton Oaks. Tambem no item 12 da Declaração do México, em oposição ao magma da negatividade vigente no período entre as duas guerras, afirmaram: “A finalidade do Estado é a felicidade do ser humano dentro da sociedade. Os interesses da coletividade e os direitos do indivíduo devem ser harmonizados. O homem americano não concebe viver sem justiça, nem tampouco viver sem liberdade”.

Daí iniciativas do Brasil, do México, do Chile, do Panamá, da República Dominicana, do Uruguai na Conferência de São Francisco, que acabaram contribuindo — também com o trabalho de organizações não governamentais que atuaram como consultoras da Delegação norte-americana — para que a Carta da ONU inserisse, de forma abrangente, a temática dos direitos humanos (2).

A Carta da ONU, como a expressão de um novo pactum societatis distinto do Pacto da Sociedade das Nações, trata dos direitos humanos em várias partes. No preâmbulo, “refere-se à fé nos direitos fundamentais do homem, da dignidade, e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres”. No artigo 1º, 3, inclui nos propósitos da ONU conseguir uma cooperação internacional “para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. O artigo 13, 1, b, dá à Assembleia Geral competência para proceder a estudos e recomendações e promover a cooperação internacional favorecedora do “pleno gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção
de raça, língua ou religião”.

O artigo 55, c, no trato da cooperação internacional, registra que uma de suas funções é a de criar condições para favorecer “o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. O artigo 62, 2, diz que, entre as atribuições do Conselho Econômico e Social, estão as de “fazer recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos”.

O artigo 68 dá ao Conselho Econômico e Social a competência para criar comissões destinadas, inclusive, à proteção dos direitos humanos. Esta foi a base jurídica da Comissão de Direitos Humanos, no âmbito da
qual foi elaborada a Declaração Universal.

Como se vê, sob o impacto das fontes materiais descritas no correr deste texto, a Carta da ONU tem, em matéria de direitos humanos, referências de amplitude. Estas são, no plano do Direito Internacional Público, a expressão de um “direito novo”, axiologicamente sensível a uma visão kantiana, seja na sua abertura a uma razão abrangente da humanidade, seja por desenhar a possibilidade de efetivar um jus cosmopoliticum ao conjeturar uma contenção da prévia discricionariedade da “razão de Estado” das soberanias, impeditivas de uma ampla tutela jurídica internacional da pessoa humana.

A Carta da ONU é um pactum societatis de vocação universal, com características constitucionais, que não têm um enunciado de direitos na forma de uma Declaração, como é usual nas constituições. É certo, no entanto, que o princípio de igualdade e da não discriminação, ponto de partida da generalização dos direitos humanos, nela foi claramente afirmado nos dispositivos acima mencionados. Promover e estimular universalmente o respeito aos direitos humanos em cooperação com as Nações Unidas é a obrigação jurídica interestatal prevista na Carta da ONU. É a esta obrigação que o sexto considerando da
Declaração explicitamente se refere, agregando, no sétimo e último considerando, “que uma
compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno
cumprimento desse compromisso”.

Em síntese, a Carta da ONU inova ao relativizar o clássico princípio da soberania em relação àqueles que vivem no âmbito da sua soberana competência territorial, ao estipular a cooperação entre os seus Estados-membros voltada para o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais. Neste sentido, o que a Carta da ONU de 1945 foi a vis directiva da função promocional do Direito Internacional Público no campo dos direitos humanos, que teria como locus a própria ONU, como “um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução de objetivos comuns”. A Declaração Universal de 1948 é a primeira e admirável expressão desta vis directiva, harmonizada no seio da ONU.

A Declaração Universal foi elaborada no âmbito da Comissão de Direitos Humanos da ONU, tendo como base o mandato a ela atribuído na primeira sessão do Conselho Econômico e Social por resolução de 16 de fevereiro de 1946. O mandato era mais amplo e contemplava a elaboração de outros textos, mas a Comissão logo se deu conta, à luz das tensões internacionais da época, inclusive o início da Guerra Fria e de sua confrontação ideológica, que o foco apropriado era o de concentrar o trabalho na elaboração de uma Declaração que proclamasse os direitos humanos de maior relevância.

A elaboração da Declaração teve início na primeira sessão plenária da Comissão em janeiro/fevereiro de 1947, tendo como método de trabalho um comitê de redação de oito membros escolhidos com base de representação geográfica (Austrália, Chile, China, EUA, França, Líbano, Reino Unido e União Soviética) incumbidos de redigir uma minuta com base num modelo proposto pelo secretariado. Na segunda sessão, em dezembro de 1947, a Comissão produziu uma minuta da Declaração que foi submetida aos Estados-membros para comentários. Em maio de 1948, o comitê de redação reviu a minuta à luz dos comentários recebidos. De 24 de maio a 16 de junho de 1948, fez novas revisões da minuta antes de
submetê-la ao Conselho Econômico e Social que, em agosto de 1948, a encaminhou à Assembleia Geral da ONU.

A Assembleia Geral da ONU, na sua terceira sessão, realizada em Paris (setembro a dezembro de 1948) examinou minuciosamente o texto, no âmbito de sua terceira comissão, votando cada um dos seus dispositivos num processo que requereu 1.400 votações. Em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral proclamou a versão final da Declaração dos Direitos Humanos por 48 votos, nenhum contra e oito abstenções (Arábia Saudita, Bielo-Rússia, Tchecoslováquia, Polônia, Ucrânia, União Sul Africana, União Soviética e Iugoslávia). Duas delegações (Honduras e Iêmen) não participaram da votação e por isso os seus votos não foram computados (3).

A Declaração logrou um surpreendente consenso interestatal sobre a relevância dos direitos humanos, considerando a diversidade dos regimes políticos, dos sistemas filosóficos e religiosos e das tradições culturais dos Estados-membros da ONU que a proclamaram na Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral. Na sessão de aprovação realizada em 10 de dezembro de 1948, o delegado brasileiro Austregésilo de Athayde, na qualidade de orador escolhido por seus pares, ressaltou que a Declaração era o produto de uma cooperação intelectual e moral das nações. Não resultara da imposição de “pontos de vista particulares de um povo ou de um grupo de povos, nem doutrinas políticas ou sistemas de filosofia”.

Sublinhou que “a sua força vem precisamente da diversidade de pensamento, de cultura e de concepção de vida de cada representante. Unidos, formamos a grande comunidade do mundo e é exatamente dessa união que decorre a nossa autoridade moral e política” (4).

Fonte: Consultor Jurídico

13ª Vara Federal de Curitiba vai virar juizado de garantias

A 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável pelos processos remanescentes da “lava jato”, vai virar um juizado de garantias. Com isso, perderá o poder de condenar, mas seguirá responsável por todas as medidas cautelares na fase de investigação.

Fontes ligadas à Justiça Federal da 4ª Região afirmaram à revista eletrônica Consultor Jurídico que o Conselho de Administratação do TRF-4 já bateu o martelo sobre a nova competência da 13ª Vara. Ainda não se sabe, no entanto, quem passará a ser responsável por decidir depois que encerrada a fase de investigação nem o alcance da nova competência.

Segundo a decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou constitucional o juiz das garantias e estipulou prazo para a implementação, ações penais já em tramitação quando da criação do juiz das garantias não serão afetadas e não precisarão se adequar ao novo modelo. Ou seja, na prática, Danilo Pereira Júnior, novo titular da 13ª Vara, poderá decidir nos processos remanescentes da “lava jato”. A 13ª Vara passaria a funcionar como juízo de garantias só quanto a novas ações penais.

“Ironias do destino”, comentou em reserva um juiz ao falar da decisão do TRF-4. “Parece até piada. Que é engraçado é”, brincou um advogado que atua em Curitiba.

O novo titular da 13ª Vara é próximo do ex-juiz Sergio Moro e era o favorito entre os procuradores de Curitiba para suceder o antigo titular. Danilo chegou a trocar mensagens com Deltan Dallagnol, coordenador da “lava jato” de Curitiba, sobre a possibilidade de assumir o posto de Moro em 2019, quando o então juiz deixou o posto para virar ministro da Justiça de Jair Bolsonaro.

Ele acabou, no entanto, tropeçando em uma questão burocrática: o Regimento Interno do TRF-4 impede a transferência de juízes entre varas com a mesma especialidade. Como já tocava uma vara criminal, ele não podia se transferir para outra.

Regimentos e normas, porém, nunca frearam a “lava jato”, e os procuradores tentaram convencer o TRF-4 a fazer vista grossa sobre o impedimento. “O ideal seria tentar reverter isso na conversa com o presidente (do TRF-4), dizendo que ele (Danilo) é de todos quem mais tem perfil (de chefiar a 13ª Vara)“, disse Dallagnol a colegas. O procurador também compartilhou uma mensagem do juiz em que Danilo dizia que tentaria descobrir se de fato estava impedido de suceder Moro.

No fim das contas, a empreitada de 2019 não deu certo e Luiz Antonio Bonat, visto como uma boa opção pelos procuradores, passou a chefiar a 13ª Vara. Quase cinco anos depois dessa primeira tentativa, no entanto, o TRF-4 acabou aprovando a transferência de Danilo para a Vara antes comandada por Moro. A decisão do tribunal é de novembro deste ano.

A criação do juiz das garantias está prevista na lei “anticrime” e foi recentemente considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. A corte determinou que a figura seja implementada em todo o Brasil de forma obrigatória em até 12 meses, com a possibilidade de prorrogação do prazo por igual período, desde que haja justificação.

Ao criar o juiz das garantias, a lei “anticrime” buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, esse magistrado fica responsável pela fase investigatória. Entre as suas atribuições está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada.

Fonte: Consultor Jurídico