Quando vigorava o Código de Processo Civil de 1973, cujo artigo 20, §4º, permitia a fixação “por equidade”, nas causas em que vencida a Fazenda Pública, não era raro que fossem fixados em patamares arbitrários, sem qualquer fundamentação adicional à mera alusão ao dispositivo de lei. Percentuais inferiores a 10%, ou mesmo valores fixos, desatrelados aos montantes em disputa, mas sempre muito menores que os aplicáveis às demais causas.
Naquele cenário, as Cortes Superiores pouco contribuíam para conferir uniformidade ao tema, pois, conquanto tenham afirmado a validade de percentuais inferiores a 10%, e de valores fixos, em regra entendiam que a revisão deles esbarraria na necessidade de rever fatos e provas, não podendo ser levada a efeito em sede de Recurso Especial, ou Extraordinário. Cabia às instâncias ordinárias aquilatar o trabalho do advogado e definir quanto ele merecia receber.
Com o CPC de 2015, a previsão constante do §3º do seu artigo 85, e o esclarecimento posterior do §8º-A do mesmo artigo, imaginava-se que a polêmica estaria encerrada. Mas não. Assistiu-se a inédita situação em que julgadores passaram a dedicar considerável interesse, tempo e energia para encontrar caminhos que lhes permitissem continuar achatando o valor dos honorários, mas só nas causas em que vencida a Fazenda Pública. Mesmo depois da pacificação da matéria pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), que determinou o respeito ao CPC (Tema 1.076).
Já tratei dessa evolução legislativa, e da inaudita resistência judicial à lei e ao precedente, aqui nesta ConJur (clique aqui). Neste texto, não se pretende voltar a essa controvérsia, sendo inadmissível discutir, por exemplo, comparações — que se ouvem nas sessões de julgamento — entre a remuneração dos próprios julgadores e o valor a ser fixado a título de honorários em determinado processo.
Tivesse esse debate algum cabimento, seria o caso de lembrar que os magistrados, assim como os advogados públicos (que, sim, recebem honorários calculados com amparo no artigo 85 do CPC e ninguém acha “absurdo”!), auferem valores líquidos, dos quais são descontados apenas os tributos e eventuais prestações devidas a associações ou planos de saúde, ao passo que advogados privados precisam manter seus escritórios, com custos adicionais que um servidor público não precisa ter: nos fóruns e nos tribunais, estagiários, motoristas, aluguel do imóvel, energia elétrica, internet, assessores, secretárias, notebooks, computadores, tudo é custeado pela Fazenda, não pelo subsídio que indevidamente é comparado à verba sucumbencial.
Esse debate, contudo, é impertinente. Se cabível, deveria ser travado no Congresso (onde foi), não em uma Corte. Entretanto, a discussão, que se acha hoje empatada no Supremo Tribunal Federal e aguarda o novo ministro para encontrar desfecho, é saber se os critérios previstos no CPC são inconstitucionais, por “irrazoabilidade”, caso o valor da condenação seja elevado e o advogado tenha “trabalhado pouco” para merecê-lo. Em termos mais claros, a discussão reside em saber se o Poder Judiciário deve, ou não, cumprir o que está na lei. Em outras situações, nas quais não se discute o pagamento de honorários, o STF já a resolveu, editando a Súmula Vinculante 10. Mas agora se insiste para que decida de modo diferente.
Quanto ao Recurso Extraordinário em particular, no qual pende essa discussão sobre a possibilidade de se tangenciar o artigo 85, §3º, do CPC, resta claro que ele não possui repercussão geral, dado o caráter excepcionalíssimo das situações nas quais o respeito à lei poderia ser supostamente “irrazoável”. Chega a ser um oximoro defender a repercussão geral da necessidade de julgamento por equidade, o qual, por definição, representa a consideração das particularidades do caso, presentes apenas nele. A questão tampouco é constitucional, havendo incontáveis precedentes do STF no sentido de que em situações assim a ofensa, se existisse, seria meramente reflexa. Se se presumir, ao contrário, que paradoxalmente tais situações peculiares são muito comuns, e em todas elas pode haver a tal irrazoabilidade pelo simples fato de o valor ser “alto” e o advogado ter trabalhado “pouco” para merecê-lo, será o caso de aferir a inconstitucionalidade de todo o artigo 85 do CPC, pois as partes em geral têm honorários fixados tendo 10% como piso inflexível, seja qual for o montante em disputa, e a União, quando é credora, embute na CDA o percentual de 20% a título de encargos legais (que têm natureza de honorários), seja qual for o valor executado, pouco importando se os advogados ou procuradores trabalharam o suficiente para merecer. Diante disso, por que, vencida a Fazenda, um percentual que pode ser bem menor, de 1%, 2% ou 3%, seria inconstitucional por ser “desproporcional”?
Não se espera, mas não se pode descartar que, apesar de tudo isso, o STF conheça do Recurso, considere que a questão é constitucional, e legisle, definindo hipóteses de fixação de honorários por equidade que não constam da lei. Quem sabe chegue a estabelecer os critérios a serem observados, reescrevendo ou regulamentando o artigo 85 e seus §§, para evitar que se retorne à fixação arbitrária que havia com o CPC de 1973. Isso é factualmente possível. Afinal, à Corte cabe a última palavra, não a você, leitora, ou a quem escreve estas linhas. Podemos estar errados. É o caso então de explorar essa possibilidade, à luz do Direito Tributário.
Não é raro, em discussões sobre temas jurídico-tributários, ouvir-se a expressão “melhor deixar que o Judiciário resolva”. Debate-se, por exemplo, a figura do voto de qualidade. Um dos principais argumentos invocados em seu favor é: a decisão, contrária à Fazenda, é definitiva; mas, se contrária ao contribuinte, ainda poderá ser submetida ao Judiciário. Então, na dúvida, que prevaleça a decisão contrária, e o cidadão, querendo, que a submeta à Justiça. O valor de mil salários mínimos, como limite para acesso ao Carf, por igual, foi criticado como levando ao esvaziamento do órgão, que tem autonomia para decidir que normas infralegais editadas pela Administração Tributária são ilegais, ao que se objetou que tais questões poderão ainda ser levadas ao Judiciário, pelo que não haveria inconstitucionalidade na restrição trazida pela MP 1.160…
O mesmo é dito pela Administração Tributária, em cenários diversos, para resistir ao cumprimento de precedentes judiciais. Só quando não tem mais jeito uma decisão do STJ, ou do STF, é cumprida. Enquanto houver caminhos, ou atalhos, para serem desconsideradas, elas o são. Isso se forem contrárias aos interesses arrecadatórios, claro. Se forem favoráveis, mesmo que minoritárias, seu efeito vinculante é imediato, e passam a constar da fundamentação dos próprios autos de infração, que neste caso lhes dão grande valor.
Esses dois assuntos — honorários e respeito à lei e aos precedentes construídos em torno delas — parecem desconectados, mas não são. A Administração Tributária, no Brasil, principalmente em matéria tributária, tem pouco respeito pelos precedentes, quando eles são vistos como obstáculos às suas pretensões arrecadatórias. Também têm pouco respeito à Constituição, e às leis. Não porque as pessoas que integram seus órgãos sejam arbitrárias. De forma alguma. São seres humanos como eu e você. A imensa maioria é bem intencionada, gosta muito do que faz e cumpre fielmente as normas que as vinculam. O problema é que as normas às quais as autoridades fazendárias se consideram vinculadas são as infralegais. Portarias, ordens de serviço, pareceres normativos, soluções de divergência… Quanto mais baixa na hierarquia, maior o poder vinculante sobre os agentes estatais. Se tais normas infralegais forem contrárias à lei, e o Judiciário assim já tiver decidido, mas não houver outra norma infralegal dispensando seu cumprimento ou determinando o respeito ao precedente, a ilegalidade continuará sendo praticada, e o cidadão ouvirá do servidor, que talvez o diga lamentando sinceramente: “Sinto muito, não posso fazer nada porque ‘tenho que me preservar’. Mas você tem razão em seu pleito, vá ao Judiciário!”.
E o que isso guarda de relação com o tema dos honorários? Tudo. Como dito, o problema não está nas pessoas, está nas instituições, e será incrementado por estas se se reduzirem os ônus daquele que litiga sem maior cuidado ou responsabilidade. A sucumbência é, dentre outras coisas, um custo adicional que se impõe ao perdedor de uma demanda judicial. Sua finalidade é desestimular pessoas a procurarem o Judiciário, ou a forçarem outras a provocá-lo contra si, quando souberem que provavelmente o desfecho lhes será desfavorável. Desse modo, caso livre a Fazenda, a maior litigante do país, do artigo 85, §3º, do CPC, o Judiciário não estará apenas contrariando a lei, a separação de poderes e a igualdade, além de seus próprios precedentes sobre o que representa a repercussão geral de uma questão constitucional. Para além de tudo isso, será mais uma contribuição para o excesso de litigiosidade, um estímulo para o incremento de processos que de outro modo seriam desnecessários.
Para reduzir a carga de trabalho das Cortes Superiores, um dos principais problemas do nosso sistema judicial, talvez não seja o caso de coibir o manejo de recursos, criando filtros na legislação ou inventando requisitos na jurisprudência (defensiva), o que equivale a impedir os doentes de entrarem em um hospital para assim resolver o problema da falta de leitos. Melhor seria combater as próprias causas da doença, e a dispensa das consequências de um litígio desnecessário seguramente é uma dessas causas.
Fonte: Conjur – Por Hugo de Brito Machado Segundo