Se quiser, vá para a Justiça! Mas não pago honorários…

Os honorários sucumbenciais, pagos pela Fazenda nas questões em que é vencida, despertam incomum controvérsia no Poder Judiciário. Sobretudo depois da estabilização da moeda, que colocou a inflação em níveis aceitáveis e fez com que os precatórios recebidos tivessem de fato alguma significação.

Quando vigorava o Código de Processo Civil de 1973, cujo artigo 20, §4º, permitia a fixação “por equidade”, nas causas em que vencida a Fazenda Pública, não era raro que fossem fixados em patamares arbitrários, sem qualquer fundamentação adicional à mera alusão ao dispositivo de lei. Percentuais inferiores a 10%, ou mesmo valores fixos, desatrelados aos montantes em disputa, mas sempre muito menores que os aplicáveis às demais causas.

Naquele cenário, as Cortes Superiores pouco contribuíam para conferir uniformidade ao tema, pois, conquanto tenham afirmado a validade de percentuais inferiores a 10%, e de valores fixos, em regra entendiam que a revisão deles esbarraria na necessidade de rever fatos e provas, não podendo ser levada a efeito em sede de Recurso Especial, ou Extraordinário. Cabia às instâncias ordinárias aquilatar o trabalho do advogado e definir quanto ele merecia receber.

Com o CPC de 2015, a previsão constante do §3º do seu artigo 85, e o esclarecimento posterior do §8º-A do mesmo artigo, imaginava-se que a polêmica estaria encerrada. Mas não. Assistiu-se a inédita situação em que julgadores passaram a dedicar considerável interesse, tempo e energia para encontrar caminhos que lhes permitissem continuar achatando o valor dos honorários, mas só nas causas em que vencida a Fazenda Pública. Mesmo depois da pacificação da matéria pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), que determinou o respeito ao CPC (Tema 1.076).

Já tratei dessa evolução legislativa, e da inaudita resistência judicial à lei e ao precedente, aqui nesta ConJur (clique aqui). Neste texto, não se pretende voltar a essa controvérsia, sendo inadmissível discutir, por exemplo, comparações — que se ouvem nas sessões de julgamento — entre a remuneração dos próprios julgadores e o valor a ser fixado a título de honorários em determinado processo.

Tivesse esse debate algum cabimento, seria o caso de lembrar que os magistrados, assim como os advogados públicos (que, sim, recebem honorários calculados com amparo no artigo 85 do CPC e ninguém acha “absurdo”!), auferem valores líquidos, dos quais são descontados apenas os tributos e eventuais prestações devidas a associações ou planos de saúde, ao passo que advogados privados precisam manter seus escritórios, com custos adicionais que um servidor público não precisa ter: nos fóruns e nos tribunais, estagiários, motoristas, aluguel do imóvel, energia elétrica, internet, assessores, secretárias, notebooks, computadores, tudo é custeado pela Fazenda, não pelo subsídio que indevidamente é comparado à verba sucumbencial.

Esse debate, contudo, é impertinente. Se cabível, deveria ser travado no Congresso (onde foi), não em uma Corte. Entretanto, a discussão, que se acha hoje empatada no Supremo Tribunal Federal e aguarda o novo ministro para encontrar desfecho, é saber se os critérios previstos no CPC são inconstitucionais, por “irrazoabilidade”, caso o valor da condenação seja elevado e o advogado tenha “trabalhado pouco” para merecê-lo. Em termos mais claros, a discussão reside em saber se o Poder Judiciário deve, ou não, cumprir o que está na lei. Em outras situações, nas quais não se discute o pagamento de honorários, o STF já a resolveu, editando a Súmula Vinculante 10. Mas agora se insiste para que decida de modo diferente.

Quanto ao Recurso Extraordinário em particular, no qual pende essa discussão sobre a possibilidade de se tangenciar o artigo 85, §3º, do CPC, resta claro que ele não possui repercussão geral, dado o caráter excepcionalíssimo das situações nas quais o respeito à lei poderia ser supostamente “irrazoável”. Chega a ser um oximoro defender a repercussão geral da necessidade de julgamento por equidade, o qual, por definição, representa a consideração das particularidades do caso, presentes apenas nele. A questão tampouco é constitucional, havendo incontáveis precedentes do STF no sentido de que em situações assim a ofensa, se existisse, seria meramente reflexa. Se se presumir, ao contrário, que paradoxalmente tais situações peculiares são muito comuns, e em todas elas pode haver a tal irrazoabilidade pelo simples fato de o valor ser “alto” e o advogado ter trabalhado “pouco” para merecê-lo, será o caso de aferir a inconstitucionalidade de todo o artigo 85 do CPC, pois as partes em geral têm honorários fixados tendo 10% como piso inflexível, seja qual for o montante em disputa, e a União, quando é credora, embute na CDA o percentual de 20% a título de encargos legais (que têm natureza de honorários), seja qual for o valor executado, pouco importando se os advogados ou procuradores trabalharam o suficiente para merecer. Diante disso, por que, vencida a Fazenda, um percentual que pode ser bem menor, de 1%, 2% ou 3%, seria inconstitucional por ser “desproporcional”?

Não se espera, mas não se pode descartar que, apesar de tudo isso, o STF conheça do Recurso, considere que a questão é constitucional, e legisle, definindo hipóteses de fixação de honorários por equidade que não constam da lei. Quem sabe chegue a estabelecer os critérios a serem observados, reescrevendo ou regulamentando o artigo 85 e seus §§, para evitar que se retorne à fixação arbitrária que havia com o CPC de 1973. Isso é factualmente possível. Afinal, à Corte cabe a última palavra, não a você, leitora, ou a quem escreve estas linhas. Podemos estar errados. É o caso então de explorar essa possibilidade, à luz do Direito Tributário.

Não é raro, em discussões sobre temas jurídico-tributários, ouvir-se a expressão “melhor deixar que o Judiciário resolva”. Debate-se, por exemplo, a figura do voto de qualidade. Um dos principais argumentos invocados em seu favor é: a decisão, contrária à Fazenda, é definitiva; mas, se contrária ao contribuinte, ainda poderá ser submetida ao Judiciário. Então, na dúvida, que prevaleça a decisão contrária, e o cidadão, querendo, que a submeta à Justiça. O valor de mil salários mínimos, como limite para acesso ao Carf, por igual, foi criticado como levando ao esvaziamento do órgão, que tem autonomia para decidir que normas infralegais editadas pela Administração Tributária são ilegais, ao que se objetou que tais questões poderão ainda ser levadas ao Judiciário, pelo que não haveria inconstitucionalidade na restrição trazida pela MP 1.160…

O mesmo é dito pela Administração Tributária, em cenários diversos, para resistir ao cumprimento de precedentes judiciais. Só quando não tem mais jeito uma decisão do STJ, ou do STF, é cumprida. Enquanto houver caminhos, ou atalhos, para serem desconsideradas, elas o são. Isso se forem contrárias aos interesses arrecadatórios, claro. Se forem favoráveis, mesmo que minoritárias, seu efeito vinculante é imediato, e passam a constar da fundamentação dos próprios autos de infração, que neste caso lhes dão grande valor.

Esses dois assuntos — honorários e respeito à lei e aos precedentes construídos em torno delas — parecem desconectados, mas não são. A Administração Tributária, no Brasil, principalmente em matéria tributária, tem pouco respeito pelos precedentes, quando eles são vistos como obstáculos às suas pretensões arrecadatórias. Também têm pouco respeito à Constituição, e às leis. Não porque as pessoas que integram seus órgãos sejam arbitrárias. De forma alguma. São seres humanos como eu e você. A imensa maioria é bem intencionada, gosta muito do que faz e cumpre fielmente as normas que as vinculam. O problema é que as normas às quais as autoridades fazendárias se consideram vinculadas são as infralegais. Portarias, ordens de serviço, pareceres normativos, soluções de divergência… Quanto mais baixa na hierarquia, maior o poder vinculante sobre os agentes estatais. Se tais normas infralegais forem contrárias à lei, e o Judiciário assim já tiver decidido, mas não houver outra norma infralegal dispensando seu cumprimento ou determinando o respeito ao precedente, a ilegalidade continuará sendo praticada, e o cidadão ouvirá do servidor, que talvez o diga lamentando sinceramente: “Sinto muito, não posso fazer nada porque ‘tenho que me preservar’. Mas você tem razão em seu pleito, vá ao Judiciário!”.

E o que isso guarda de relação com o tema dos honorários? Tudo. Como dito, o problema não está nas pessoas, está nas instituições, e será incrementado por estas se se reduzirem os ônus daquele que litiga sem maior cuidado ou responsabilidade. A sucumbência é, dentre outras coisas, um custo adicional que se impõe ao perdedor de uma demanda judicial. Sua finalidade é desestimular pessoas a procurarem o Judiciário, ou a forçarem outras a provocá-lo contra si, quando souberem que provavelmente o desfecho lhes será desfavorável. Desse modo, caso livre a Fazenda, a maior litigante do país, do artigo 85, §3º, do CPC, o Judiciário não estará apenas contrariando a lei, a separação de poderes e a igualdade, além de seus próprios precedentes sobre o que representa a repercussão geral de uma questão constitucional. Para além de tudo isso, será mais uma contribuição para o excesso de litigiosidade, um estímulo para o incremento de processos que de outro modo seriam desnecessários.

Para reduzir a carga de trabalho das Cortes Superiores, um dos principais problemas do nosso sistema judicial, talvez não seja o caso de coibir o manejo de recursos, criando filtros na legislação ou inventando requisitos na jurisprudência (defensiva), o que equivale a impedir os doentes de entrarem em um hospital para assim resolver o problema da falta de leitos. Melhor seria combater as próprias causas da doença, e a dispensa das consequências de um litígio desnecessário seguramente é uma dessas causas.

Fonte: Conjur – Por Hugo de Brito Machado Segundo

Publicidade de alimentos ultraprocessados e defesa do consumidor

Conforme prognóstico do Atlas Mundial da Obesidade, metade dos habitantes do planeta estará acima do peso em 2035; entre os brasileiros, 41% estarão obesos[1]. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro e a Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda, o consumo de alimentos ultraprocessados[2], ao lado do consumo nocivo do álcool e do uso do tabaco, constitui um dos principais causadores das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) — doenças cardiovasculares, diabetes, doenças respiratórias e câncer[3].

Diante deste fato, que acomete não apenas o Brasil mas também o mundo todo, há hoje uma agenda internacional — liderada pela OMS e pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) — que vem mobilizando diversos segmentos da sociedade e dos governos para o enfrentamento do problema das DCNTs, por meio da identificação dos fatores determinantes sociais e comerciais que impactam no aumento de tais doenças, bem como do desenvolvimento de estratégias, planos de ação e políticas públicas para combatê-las.

Dentre os determinantes comerciais identificados, o marketing e a publicidade dos alimentos ultraprocessados ocupam papel de destaque, na medida em que exercem forte influência nas escolhas das pessoas, elevando o desejo e a aceitação de produtos não saudáveis.

O termo “determinantes comerciais da saúde” refere-se a “estratégias e abordagens utilizadas pelo setor privado para promover produtos e escolhas que são prejudiciais à saúde” e, em linhas gerais, caracterizam-se por práticas corporativas ou comerciais que priorizam a geração de riqueza/lucros em detrimento da geração de saúde[4]. Por meio de altos investimentos em marketing e publicidade, a indústria alimentícia impulsiona as vendas dos seus produtos, em especial os não saudáveis, utilizando estratégias publicitárias destinadas a explorar principalmente as populações mais vulneráveis, manipulando as suas escolhas de consumo[5].

Neste cenário, a liberdade econômica das empresas, por meio da publicidade, conflita com os direitos fundamentais à saúde e à vida dos cidadãos.

A noção de determinantes comerciais da saúde divulgada pela OMS/OPAS, que traz a publicidade como um dos principais fatores de disseminação de DCNTs, não apenas alertou para a necessidade de os países adotarem medidas restritivas específicas à prática da publicidade destes produtos não saudáveis, mas também colocou luz em uma questão que talvez seja pouco debatida no Direito brasileiro: apesar de existirem normas que protegem o consumidor da publicidade enganosa e abusiva no CDC[6] (além de um Código de Autorregulamentação Publicitária, aplicável por meio da atuação do Conar), a prática deste controle não alcança o objetivo almejado.

Em primeiro lugar, por estas normas introduzirem conceitos indeterminados, cabendo ao Poder Judiciário a última palavra para definir se o caso de fato se trata de publicidade enganosa ou abusiva, delimitando o alcance e aplicação destes conceitos à luz das circunstâncias do caso concreto. Isso requer uma ação judicial e todos os custos e complexidades decorrentes do acesso à justiça, inclusive a contratação de advogados e o interesse e esforço para agir, considerando-se as múltiplas funções e, não raras vezes, os recursos limitados dos legitimados ativos para a defesa coletiva dos consumidores. Ainda, uma vez no Judiciário, há pouca previsibilidade quanto ao resultado da ação, o que acaba sendo levado em consideração antes de ajuizá-la.

Esta situação conduz a outra consequência: não há como afirmar com certeza se todos ou a maioria dos casos de publicidade potencialmente abusiva ou enganosa chegam ao Procon ou ao Conar, ou ao Poder Judiciário, na medida em que não há uma fiscalização pelo Poder Público e acaba-se dependendo de denúncia de pessoas lesadas ou potencialmente lesadas.

Neste sistema, caso o próprio consumidor ou uma associação privada de defesa dos consumidores não identifique o potencial enganoso ou abusivo da mensagem publicitária, dificilmente esta mensagem será denunciada, provavelmente passando despercebida e produzindo os efeitos perniciosos da publicidade ilícita na sociedade. Adiciona-se a isso o fato de que, uma vez havendo a denúncia, o processo leva tempo, e a publicidade dificilmente será retirada do ar durante o período previsto para a campanha enquanto se encontra sob análise, não impactando a denúncia e a decisão, desta forma, na sua finalidade junto ao consumidor.

Somado a estes pontos está o fato de a autorregulamentação do Conar ser reconhecida por muitos, inclusive o STF (por exemplo, no caso da ADO 22[7]) como suficiente e efetiva no controle da publicidade no Brasil, o que entendemos não ser exatamente verdade quando se analisa a sua atuação um pouco mais a fundo. Especialmente porque o Conar tem como propósito proteger a atividade publicitária e não o consumidor; as suas decisões não têm efeito mandatório, sendo meras recomendações; e há um conflito de interesses essencial na sua atuação, na medida em que o seu Conselho e Administração são compostos por representantes de grandes corporações privadas que detêm interesses econômicos na atividade publicitária.

O regime do controle da publicidade no Brasil, conforme estas características brevemente resumidas, conduz à questão quanto a se este se mostra inteiramente suficiente para proteger o consumidor dos efeitos de qualquer publicidade abusiva e enganosa, ainda que, em alguns casos, anunciantes venham a ser posteriormente condenados a reparações. No entanto, esta dúvida parece deixar de existir quando os produtos anunciados são alimentos ultraprocessados, que são nocivos à saúde e cujo consumo pode levar a DCNTs.

Nestes casos, os “efeitos danosos à sociedade pela publicidade abusiva ou enganosa” não são puramente materiais ou financeiros (potencialmente reparáveis dependendo do resultado da ação judicial ou administrativa, ou do atendimento às recomendações do Conar), como acontece no caso da publicidade de outros produtos. Ao contrário, podem levar os consumidores a contrair doenças e até mesmo à morte.

 No caso específico da publicidade de alimentos ultraprocessados, conclui-se que a publicidade em si poderia ser considerada abusiva lato sensu, independentemente de serem encontradas mensagens enganosas ou abusivas stricto sensu nos seus materiais publicitários, tendo em vista que (i) não informa adequadamente o consumidor sobre dado essencial do produto — o fato de causarem DCNTs que podem levar à morte; e (ii) visa a persuadir o consumidor a comprar produtos nocivos à sua saúde, induzindo-o a este comportamento, sendo o enunciado do § 2º do art. 37 do CDC suficiente para enquadrar esse tipo de mensagem como abusiva e justificar a proibição ou a restrição da publicidade destes produtos.

Neste contexto, defende-se a possibilidade de se estabelecer medidas restritivas à publicidade de alimentos ultraprocessados previamente à veiculação das campanhas publicitárias[8], por meio de lei específica, já havendo iniciativas no Congresso brasileiro nesse sentido. No que toca à proteção da publicidade amparada pela livre iniciativa, foi identificado o debate quanto a como dever ser interpretado este direito à luz da Constituição, verificando-se correntes distintas: a que lê a livre iniciativa em si como direito fundamental e a corrente que entende que a livre iniciativa deve ser interpretada sob a perspectiva de seus valores sociais, correspondendo o direito fundamental aos valores sociais da livre iniciativa.

Já sob o enfoque da liberdade de expressão, verificou-se debate mais amplo. Parte da doutrina entende que o direito à publicidade não estaria protegido pelo direito fundamental à liberdade de expressão, pois que a informação veiculada se trata de instrumento de persuasão e não estaria inserida dentro do conceito de livre manifestação do pensamento. Outra corrente entende que o direito à publicidade está protegido como direito fundamental por força da liberdade de comunicação das empresas, prevista no art. 220 da CF.

O STF ainda não se posicionou quanto à definição da proteção da publicidade no Brasil, tendo sido identificada uma tendência, por meio de aproximações dos ministros em decisões que envolvem o tema, ao reconhecimento da proteção pela liberdade de expressão, embora não tenha ainda se posicionado quanto aos contornos desta proteção — se há uma liberdade de expressão do discurso comercial que se difere da, e apresenta grau de proteção menor do que, a liberdade de expressão que protege o discurso não comercial, a exemplo do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos.

Aos que advogam pela autorregulação e a não intervenção estatal nessa temática, é importante salientar que a ausência de regulação estatal é uma forma de calar a voz dos consumidores, especialmente os mais vulneráveis. Ao assumir-se a possibilidade de que o Estado não possa limitar a expressão comercial, ou que o possa apenas em excepcionalíssimas hipóteses e somente em nível federal, mais uma vez cala-se a voz do consumidor para se ouvir apenas a do mercado.  Reforçamos que a Política Nacional das Relações de Consumo, expressa em nosso CDC (artigo 4º), tem por objetivo “o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (…) II – ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor (…)”. É nesse sentido que se enaltece, dentre outras importantes decisões, a decisão do STF na ADI 5.631, que julgou constitucional a Lei nº 13.582/16 do estado da Bahia, que proíbe a comunicação mercadológica dirigida a crianças nos estabelecimentos públicos e privados de educação básica.

[1] Disponível em: https://www.worldobesityday.org/resources/entry/world-obesity-atlas-2023. Acesso em 29 de maio de 2023.

[2] No Brasil, aproximadamente 57 mil pessoas morrem por ano devido ao seu consumo, conforme dados de 2019. Esse número é mais do que o total de homicídios no país no mesmo período – foram 45,5 mil em 2019, segundo o Atlas da Violência. O estudo foi publicado no American Journal of Preventive Medicine. Veja-se: https://actbr.org.br/post/brasil-tem-57-mil-mortes-por-ano-devido-ao-consumo-de-ultraprocessados-estima-pesquisa/19441/. Acesso em 28 de maio de 2023.

[3] World Health Organization. (‎2004)‎. Global strategy on diet, physical activity and health. World Health Organization. Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/43035. Acesso em 28 de maio de 2023.

[4] KICKBUSCH, Ilona et al. The Commercial Determinants of Health. The Lancet, vol. 4, dez. 2016.

[5] MAIA, E. G. et al. Análise da publicidade televisiva de alimentos no contexto das recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira. Cad. Saúde Pública, 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/jVVs3FnFCKvpy6byHNC4QYj/?format=pdf&lang=pt. Acesso em 29 de maio de 2023.

[6] Em especial, arts. 6º, IV, 36, 37 e 38 da Lei nº 8.078/90 (CDC).

[7] A ADO 22 julgou improcedente a alegada omissão legislativa parcial ou insuficiência da Lei 9.294/96, que apenas restringiu a propaganda de bebidas alcóolicas com teor alcóolico superior a treze graus Gay Lussac (13º GL). Em seu voto, a Min. Carmen Lúcia afirma que, reconhecer a insuficiência da Lei 9.294/96 nos termos postos pelo requerente significaria “ultrapassar a barreira que fundamenta o princípio da separação dos poderes (…) e, ainda, desconsiderar a validade também das normas criadas pelo CONAR”.

[8] Tese defendida em livro recentemente publicado: PEREIRA, Carla da Silva de Britto. Regime Jurídico da Publicidade de Alimentos Ultraprocessados no Brasil: uma perspectiva crítica à luz dos determinantes comerciais da saúde. Porto Alegre: Arquipélago, 2023.

Fonte: Conjur – Por Carla da Silva de Britto Pereira e Fernanda Nunes Barbosa

É cabível a suspensão do cumprimento de sentença em caso de intervenção em entidade de previdência complementar

A Terceira Turma deu parcial provimento ao recurso de uma entidade de previdência que buscava suspender o cumprimento de sentença em ação de cobrança movida por um credor.

Para a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), nas hipóteses de intervenção em entidade de previdência complementar, é cabível a suspensão do cumprimento de sentença pelo período de duração da medida interventiva, aplicando-se as diretrizes da Lei 6.024/1974.

Com base nesse entendimento, por unanimidade, a Turma deu parcial provimento ao recurso especial de uma entidade de previdência complementar que, em fase de cumprimento de sentença, buscou suspender a execução de uma ação de cobrança de um credor. 

O pedido da entidade foi rejeitado em primeira e segunda instâncias com os fundamentos de que a entidade da previdência complementar não se confunde com instituição financeira e, portanto, não poderia se beneficiar de dispositivos da Lei 6.024/1974, como a suspensão das execuções (artigo 6º).

Aplicação subsidiária da Lei 6.024/74 permite a suspensão da execução

Ao analisar o caso, a relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, destacou pontos da Lei Complementar 109/2001, que disciplina os planos de previdência complementar. Entre os dispositivos, ela citou a regra do artigo 62 que possibilita a aplicação subsidiária da legislação sobre intervenção e liquidação extrajudicial das instituições financeiras (Lei 6.024/1974) nos casos de liquidação e intervenção das entidades de previdência complementar.

Além disso, a ministra lembrou que nas hipóteses de liquidação extrajudicial das entidades de previdência complementar, a LC 109/2001 já prevê a suspensão de ações e execuções iniciadas sobre direitos e interesses relativos ao acervo da entidade liquidanda (artigo 49, inciso I).

“Mister reconhecer que tal efeito deve ser estendido às hipóteses de intervenção na entidade, também em virtude da própria interpretação teleológica e sistemática do regramento específico”, afirmou Nancy Andrighi.

Por outro lado, a ministra rejeitou a aplicação de regras da Lei 6.024/1974 para limitar o prazo de suspensão das ações, conforme define o artigo 4º, pois a LC 109/2001 é expressa quanto ao assunto no artigo 45. “Nessa hipótese, havendo regramento expresso, não há razão para aplicar outra legislação”, declarou a magistrada.

Levantamento dos valores previamente bloqueados não é efeito automático

Por fim, a ministra esclareceu que o levantamento dos valores previamente bloqueados não é efeito automático da ordem de suspensão da execução, até porque a sua manutenção não afeta o tratamento igualitário dos credores.

De acordo com Nancy Andrighi, o regime geral de suspensão da execução é aquele previsto no artigo 923 do Código de Processo Civil (CPC), segundo o qual suspensa a execução, não serão praticados atos processuais, podendo o juiz, entretanto, salvo no caso de arguição de impedimento ou de suspeição, ordenar providências urgentes.

“Cabe à entidade demonstrar, concretamente, a necessidade e a urgência da liberação dos valores bloqueados, não se prestando para tanto a mera referência à situação financeira deficitária que deu causa a sua própria intervenção”, concluiu a relatora.

Fonte: STJ

Reconhecimento facial pela IA no CPP brasileiro

O verbo “reconhecer” remonta suas raízes etimológicas ao latim recognoscere: conhecer novamente, retomar o significado, trazer mais uma vez à mente. Não por outro motivo, o reconhecimento — seja de coisas ou de pessoas — adota uma posição central em um processo penal compreendido justamente como um ato (re)cognitivo, ou seja, de “reconstrução aproximativa de um determinado fato histórico” [1]. E, sob esta perspectiva, deve ser tratado com cautela, sob pena de macular a formação de convencimento do julgador na atividade de conhecer (novamente) do fato apurado. Assim, torna-se pleonasmo afirmar que se faz necessário regulamentar estritamente o procedimento de reconhecimento no bojo da persecução penal, na mesma esteira do que vem entendendo o Superior Tribunal de Justiça desde a mudança de paradigma firmada no Habeas Corpus nº 598.886/SC. Fernando Frazão/Agência Brasil Entretanto, a despeito do novo entendimento da obrigatoriedade de observância das disposições do artigo 226 do Código de Processo Penal na produção probatória, é certo que a legislação processual penal não se estende para abranger um problema trazido pelo panorama da quarta revolução industrial: o impacto da inteligência artificial no procedimento de reconhecimento de pessoas. E isto não é surpreendente — afinal, o Código de Processo Penal data de 1941 e, apesar das inúmeras reformas parciais às quais esteve sujeito nestas décadas (e que mantiveram o espírito inquisitorial do processo penal brasileiro, não compatível com a Constituição de 1988 [2]), ainda peca em trazer qualquer disposição sobre a prova digital. Neste ponto, especificamente, são inúmeras as discussões sobre o cabimento e os riscos sociais das tecnologias de digital surveillance, das quais estas breves considerações irão se eximir. Sem embargo, basta compreender que o clássico modelo do panóptico — uma prisão circular com celas escuras e uma torre de vigia no centro [3], para gerar um senso de autovigilância e controle comportamental [4] — foi meramente mais um dos processos automatizados no século 21, gerando o panóptico digital [5]. Hoje, já não se pode mais precisar o alcance das tecnologias (e de como estas são utilizadas para angariar informações para fins de surveillance) no cotidiano. Desde o reconhecimento facial para desbloquear a tela do smartphone até o uso de biometria em terminais de autoatendimento bancários: tudo compõe um grupo massivo de informações interligadas conhecido como Big Data, que irá alimentar os algoritmos de inteligência artificial para os mais diversos objetivos — inclusive o de docilizar o comportamento social e proporcionar a vigilância e a punição dos transgressores. A empresa Surfshark, que atua no setor de segurança cibernética, realizou um levantamento que aponta que 109 países empregam ou aprovaram o emprego a ser implementado de alguma forma de tecnologia de reconhecimento facial para fins de segurança, do total de 194 países mapeados [6]. Nas festividades de Carnaval da Bahia, em 2023, quase 80 foragidos foram presos com o auxílio de câmeras de reconhecimento facial [7]. Embora estes casos digam respeito à mera localização de pessoas contra as quais haja mandado de prisão ativo e, a partir da semelhança, notifique a polícia, não parece distante cogitar que estas mesmas câmeras possam identificar um indivíduo em flagrante delito — e, justamente por isso, tornarem-se meio de prova no processo penal. Em cotejo com o artigo 226 do Código de Processo Penal e com o Habeas Corpus nº 598.886/SC, ainda, é possível afirmar que, hoje, um reconhecimento pessoal realizado por uma inteligência artificial tecnicamente poderia ser admitido como prova. Não seria difícil pedir ao algoritmo que descrevesse a pessoa a ser reconhecida, a partir de um comando básico de transposição da imagem em texto (inciso I). No mesmo sentido, o posicionamento do sujeito ao lado de outras pessoas com quem possua semelhança para que seja efetuado o reconhecimento também parte do funcionamento básico da máquina: a comparação de informações (inciso II). E, em se tratando de uma inteligência artificial, ao menos em tese, não haveria o risco de intimidação ou influência (inciso III). Todavia, ser tecnicamente possível observar as determinações do artigo 226 do CPP não significa dizer que a prova deva ser, de fato, admitida ao processo penal. Não se desconhece que as análises produzidas por algoritmos são tidas como objetivas e, portanto, imunes a qualquer questionamento, até mesmo porque a maior parte da população não tem o conhecimento matemático para impugná-las [8]. Este é o efeito black box dos algoritmos — pela complexidade inerente a este tipo de tecnologia, não há transparência em seu funcionamento, que atua de maneira opaca, tal qual a caixa-preta de um avião [9]. E não é só: para além da falta de opacidade nas inteligências artificiais, o eventual uso do reconhecimento facial algorítmico como prova no processo penal ainda esbarra em, pelo menos, dois outros questionamentos: a proteção dos dados utilizados para o processo de aprendizado de máquina e a existência comprovada de vieses raciais que prejudicam seu funcionamento. O reconhecimento facial digital funciona a partir do mapeamento de pontos do rosto do indivíduo cuja imagem é capturada e da comparação destes dados biométricos com informações preexistentes em um banco de dados [10] — que, no caso do uso desta tecnologia pelos órgãos de segurança pública, pode ser composto pelas fotografias dos documentos de identidade (RG) ou da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). É evidente que isto gera um gravoso problema justamente quanto à esfera pessoal dos titulares destes dados; afinal, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/18) especificamente exclui de sua proteção o tratamento de dados pessoais para fins de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado, e de investigação e repressão de infrações penais (artigo 4º, III). E mais: seria possível garantir a cadeia de custódia de uma prova produzida com base nestes dados? Afinal, qual sua fiabilidade, quando inúmeros são de falsidades ideológicas que levam à geração de documentos falsos? Em outro giro, ainda, o reconhecimento pessoa pela inteligência artificial também padece de outro conhecido vício. Em 2019, um estudo tecido pelo National Institute of Standards and Technology, parte integrante do U.S. Department of Commerce, demonstrou que algoritmos de identificação facial são mais propensos a resultar em falsos positivos quando o alvo compõe algum grupo racializado, especialmente negros e asiáticos, e também quando se trata de mulheres, crianças ou idosos [11]. Noutras palavras: o reconhecimento facial é confiável, mas apenas para o homem branco adulto. É de se recordar que, em 2021, menos da metade da população brasileira (43%) se declarou branca [12]. Assim, mais uma vez, questiona-se: é possível conferir valor probatório efetivo a uma prova produzida com base em um banco de dados que não corresponde com a realidade? Em apertada síntese, o que se observa é que, embora o Código de Processo Penal seja defasado em relação às novas metodologias de investigação digital, o reconhecimento facial algorítmico não violaria frontalmente o artigo 226 em uma primeira leitura. Entretanto, as peculiaridades do funcionamento deste tipo de modelo matemático computacional exigem que, ao menos, sejam sopesadas as delicadas questões que surgem, sob pena de deixar-se de observar direitos processuais mínimos que devem ser assegurados ao indivíduo – seja em tempos de processo penal digital ou analógico. Independentemente da (in)admissibilidade do reconhecimento pessoal produzido por uma inteligência artificial, parece que a mera existência de tecnologias de controle tão precisas e tão presentes no cotidiano resguarda uma assustadora semelhança com a distopia orwelliana descrita na obra 1984: um big brother apto a assistir, onipresente e onisciente, a todos os movimentos da sociedade. [1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020. p. 556. [2] GIACOMOLLI, Nereu José. Algumas marcas inquisitoriais do Código de Processo Penal brasileiro e a resistência às reformas. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, vol. 1, nº 1, p. 143-165, 2015. p. 144. [3] BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 20. [4] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983. p. 177. [5] HAN, Byung Chul. No Enxame: perspectivas do digital. Edição Digital. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 66. [6] Disponível em: <https://surfshark.com/facial-recognition-map>. Acesso em: 09 jun. 2020. [7] Disponível em: <https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2023/02/26/com-ajuda-de-cameras-de-reconhecimento-facial-77-foragidos-da-policia-sao-presos-no-carnaval-da-bahia.ghtml>. Acesso em: 09 jun. 2023. [8] O’NEIL, Cathy. Algoritmos de Destruição em Massa: como o Big Data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Tradução de Rafael Abraham. Santo André, SP: Editora Rua do Sabão, 2020. p. 07/08. [9] “In computing, a ‘black box’ is a system for which we know the inputs and outputs but can’t see the process by which it turns the former into the latter. Somewhat confusingly, airplane flight recorders are also referred to as black boxes; when an artificially intelligent system is indecipherable, it is like an airplane black box for which we have no key” (MICHEL, Arthur Holland. The Black Box, Unlocked: predictability and understandability in military AI. Genebra: United Nations Institute for Disarmament Research (UNIDIR), 2020. p. 03). [10] NEGRI, Sergio Marcos Carvalho de Ávila; OLIVEIRA, Samuel Rodrigues de; COSTA, Ramon Silva. O Uso de Tecnologias de Reconhecimento Facial Baseadas em Inteligência Artificial e o Direito à Proteção de Dados. RDP, Brasília, Volume 17, n. 93, 82-103, maio/jun. 2020. p. 86. [11] GROTHER, Patrick. NGAN, Mei; HANAOKA, Kayee. Face Recognition Vendor Test (FRVT). Part 3: Demographic Effects. NISTIR 8280. [S.l.]: U.S. Department of Commerce, National Institute of Standards and Technology, 2019. Disponível em: <https://doi.org/10.6028/NIST.IR.8280>. Acesso em: 09 jun. 2023. [12] INSTITUTO Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012/2021. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/images/educa/jovens/populacao/22_pnadAtualizacao_jovens_003_corERaca.jpg>. Acesso em: 09 jun. 2023. Fonte: Conjur – Gabrielle Casagrande Cenci

Após precedente do STF, juiz pode proferir nova decisão em inventário não concluído para ajustar questão sucessória

Após precedente do STF, juiz pode proferir nova decisão em inventário não concluído para ajustar questão sucessória

​Ao negar o pedido de reconhecimento do direito à meação para a ex-companheira de um homem falecido que iniciou a união estável após ter completado 70 anos de idade, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou que, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Tema 809 – a qual declarou inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil –, o juiz pode proferir nova decisão em inventário não concluído para ajustar a questão sucessória.

O entendimento foi aplicado no julgamento de recurso especial em que a ex-companheira alegou que a questão da meação estaria preclusa no inventário, porque o magistrado, em decisão anterior, teria reconhecido a ela esse direito. Após o julgamento do STF no Tema 809, contudo, o juiz proferiu nova decisão para negar à ex-companheira o direito de meação dos bens adquiridos durante a união estável e de concorrer com as filhas do falecido na partilha dos bens particulares deixados por ele.

A segunda decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP). Além de considerar aplicável ao caso o regime da separação obrigatória de bens, o TJSP concluiu que não houve demonstração de que a ex-companheira tenha contribuído para a aquisição do patrimônio sobre o qual pretendia que incidisse a meação.

Por meio de recurso especial, a ex-companheira alegou que o artigo 1.641, inciso II, do Código Civil não se aplicaria à união estável, motivo pelo qual deveria ser considerado o artigo 1.725, em razão da ausência de contrato escrito de união estável. Ela também apontou violação dos artigos 505 e 507 do Código de Processo Civil, sob o fundamento de que estaria preclusa a decisão que reconheceu o direito à meação.

STF modulou efeitos do Tema 809 para aplicá-lo a inventários ainda não finalizados

A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, destacou que, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do Código Civil, o STF modulou a aplicação da tese para abarcar apenas os processos judiciais em que ainda não tivesse havido o trânsito em julgado da sentença de partilha.

Em razão desse novo cenário normativo, a relatora lembrou que, no julgamento do REsp 1.904.374, a Terceira Turma entendeu ser lícito ao juiz proferir nova decisão para ajustar questão sucessória em inventário ainda não concluído, com base na decisão vinculante do STF no Tema 809.

“Ainda que se considere que a decisão interlocutória alegadamente preclusa teria estabelecido determinado regime patrimonial e teria concedido os reclamados direitos sucessórios à recorrente, à luz do artigo 1.790 do CC/2002 (o que, aliás, é fato controvertido), poderia o juiz proferir nova decisão interlocutória, de modo a amoldar a resolução da questão ao artigo 1.829, inciso I, do CC/2002, após o julgamento do tema 809/STF, desde que o inventário estivesse pendente, como de fato ainda está”, apontou.

Para TJSP, ex-companheira não provou contribuição para aquisição dos bens inventariados

A relatora também citou precedentes do STJ no sentido de estender à união estável dispositivos do Código Civil previstos para o casamento, entre eles a imposição do regime da separação obrigatória para pessoas maiores de 70 anos (artigo 1.641, inciso II, do Código Civil). Os precedentes, inclusive, deram origem à Súmula 655 do STJ.

No caso dos autos, Nancy Andrighi lembrou que, segundo o TJSP, não houve a produção de qualquer prova, nem mesmo na fase recursal, a respeito da contribuição da ex-companheira para a aquisição dos bens indicados no inventário.

“Sublinhe-se que a ação de inventário é um ambiente naturalmente árido à ampla instrução probatória, sobretudo por força das restrições cognitivas estabelecidas em relação à matéria fática e da necessidade de seu exame nas vias ordinárias (artigo 984 do CPC/1973 e artigo 612 do CPC/2015), de modo que as conclusões do acórdão recorrido, a respeito da inexistência de prova sequer indiciária do esforço comum, devem ser consideradas à luz desse contexto”, concluiu a ministra ao negar o recurso.

Fonte: STJ

Audiências de custódia não cumprem função de enfrentamento à violência

As audiências de custódia não têm cumprido seu papel como instrumento para coibir violações de agentes do Estado e enfrentar a violência institucional em São Paulo. Avaliação é de entidades de direitos humanos que atuam na área de Justiça. O debate veio à tona após imagens divulgadas em rede social de um homem carregado por policiais militares, com mãos e pés amarrados, na capital paulista.

O desembargador Edson Tetsuzo Namba, do Tribunal Justiça de São Paulo (TJSP), manteve a prisão preventiva do rapaz no último sábado (10), após pedido de habeas corpus pela defesa. Ele manteve decisão da juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, proferida após realização da audiência de custódia em 5 de junho, na qual a prisão em flagrante foi convertida em preventiva. Na ocasião, ela entendeu ainda que não houve tortura nem maus-tratos contra o suspeito.

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Segundo o TJSP, a juíza não teve acesso às imagens que foram veiculadas posteriormente e se espalharam por redes sociais. No entanto, o boletim de ocorrência da prisão do rapaz já trazia a informação de que ele havia sido imobilizado com uma corda pelos policiais, conforme informações da Secretaria de Segurança Pública (SSP).

Em 2017, a organização não governamental (ONG) Conectas Direitos Humanos apresentou denúncia ao TJSP, ao Ministério Público (MP) do estado e à Defensoria Pública com base no relatório Tortura Blindada: como as Instituições do Sistema de Justiça Perpetuam a Violência nas Audiências de Custódia, produzido pela entidade.

Na ocasião, a conclusão era de que havia perpetuação da violência policial no sistema de Justiça, já que não era dado nenhum encaminhamento às denúncias de tortura e maus-tratos feitas durante as audiências de custódia ou eram encaminhamentos meramente protocolares.

Cinco anos depois da divulgação do resultado, a advogada Carolina Diniz avalia que pouco se avançou nas práticas adotadas pelo sistema de Justiça. Ela concluiu que a forma com que as instituições do sistema atuaram nesse caso recente remonta ao que acontecia em 2015, período da amostra utilizada para o relatório Tortura Blindada. Carolina Diniz é coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas.

“O que acontecia em 2015, quando as audiências foram instaladas, segue acontecendo até hoje, que é um despreparo do sistema de Justiça para enfrentar a violência institucional praticada pelo Estado brasileiro”, avaliou. Ela ressalta que, se as imagens não tivessem sido amplamente divulgadas, não haveria pedido de apuração nem desdobramento sobre violações cometidas pelos agentes do Estado na ocorrência do rapaz amarrado.

Na audiência de custódia, o juiz não avalia inocência ou culpa, mas os elementos processuais sobre a prisão em flagrante, além das eventuais ocorrências de tortura e maus-tratos. Após manifestação do MP e da Defensoria – ou do advogado –, o juiz decide se o acusado terá a prisão em flagrante convertida em preventiva; se responderá ao processo em liberdade; ou se não responderá a processo penal, caso considere o flagrante ilegal. O juiz pode determinar também a realização de perícia e exame de corpo de delito para apuração de suspeita de abuso no momento da prisão, além de instaurar investigação criminal ou administrativa contra o policial acusado.

A advogada lembra que a principal crítica, no relatório, era que na maioria dos casos o suspeito sequer era perguntado sobre situações de violência, e que os elementos que já estavam muitas vezes presentes no auto de prisão em flagrante eram completamente desconsiderados em audiência de custódia. “Assim, se perdia uma grande oportunidade que era essa primeira escuta de uma autoridade judicial, da Defensoria Pública e do Ministério Público em de fato apurar o que que aconteceu naquela abordagem policial.”

Em relação ao caso recente do rapaz amarrado, Carolina Diniz avalia que não existe nenhum cenário em que aquela conduta poderia ser justificada e que isso mostra o completo despreparo da Polícia Militar para lidar com pessoas em situação de rua e daquelas que fazem uso de álcool e outras drogas. “O que remonta essas imagens é o cenário do período escravocrata aqui no Brasil. Tirando isso, não existe nenhum contexto em que a gente poderia imaginar que isso acontecesse aqui no Brasil, mas o fato é que tem acontecido, e esse caso não é um caso isolado.”

Carolina Diniz teve acesso à gravação da audiência de custódia, realizada no último dia 5, e destacou que, embora todos esses elementos envolvidos na prisão – amarração com corda e registro em vídeo – tenham sido levados à audiência porque constavam já no boletim de ocorrência, nem a Defensoria Pública nem o Ministério Público nem a magistrada fizeram qualquer tipo de pergunta ao rapaz sobre o fato de ele ter sido amarrado.

“A juíza, pelo contrário, na ata da custódia, na sua decisão, ela disse que o flagrante está em perfeita ordem, e que não existe nenhum elemento que possa indicar a prática de tortura ou outras violências policiais naquele flagrante. E aí converte a prisão preventiva daquele indivíduo que, ao final das contas, tinha sido pego com dois pacotes de chocolate”, disse.

Vídeo da abordagem circula nas redes sociais mostrando o homem com as mãos amarradas aos pés, de forma que não permitia que ele andasse, sendo carregado por dois policiais militares. Os agentes carregam o rapaz segurando pela corda e pela camiseta. Ainda amarrado, ele é colocado no porta-malas de uma viatura. A situação ocorreu dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).

Na semana passada, a Polícia Militar de São Paulo (PM) informou que afastou das atividades operacionais seis policiais que carregaram o homem amarrado. Segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP), o homem foi preso em flagrante por furto em um supermercado da Vila Mariana. Um inquérito foi instaurado para apurar as circunstâncias relativas às ações dos agentes envolvidos no episódio, segundo a SSP.

Melhoria das audiências de custódia

Para que as audiências de custódia possam ser aprimoradas, a advogada aponta que um primeiro passo seria retomar sua realização em todo o país de forma presencial.

“A gente vinha num processo de implantação tardio de audiências de custódia no Brasil e, com a pandemia, retrocedemos para um momento em que ou não se tinha audiência de custódia ou ela passou a ser realizada de forma virtual, e essa ainda é uma realidade no Brasil todo.”

Além disso, ela destaca a importância de se garantir um atendimento anterior da Defensoria Pública ou do advogado particular de forma reservada com a pessoa que está presa e que os magistrados, o Ministério Público e a Defensoria sejam obrigados a perguntar sobre a ocorrência de violência policial.

“E que o exame de corpo de delito seja feito em todos os casos, respeitando o Protocolo de Istambul, o Brasil é signatário do protocolo, se comprometeu na implementação, mas até hoje o Instituto Médico Legal não tem a menor estrutura para fornecer um exame de corpo de delito que respeite os padrões internacionais e seja capaz de identificar e documentar práticas de tortura e outras violências. Acho que isso é um começo”, acrescentou Carolina Diniz sobre formas de melhorar as práticas de combate a violações do Estado.

O advogado criminal e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Alexandre Daiuto Noal, avalia que os procedimentos para apuração de tortura e maus-tratos precisam ser aprimorados, e que as audiências de custódia também não têm cumprido a função de enfrentamento à violência institucional, inclusive no caso recente do homem amarrado com cordas.

“Infelizmente, o que a gente tem visto ao longo dos anos é que as audiências de custódia precisam ser muito aprimoradas”, avaliou. Segundo ele, um relatório conjunto do IDDD e da Conectas constatou ainda ineficiência na apuração e na investigação das denúncias sobre violência policial feitas em audiências de custódia. Um dos elementos para isso é que, após 2017, a apuração deixou de ficar a cargo da Polícia Civil e passou para a Justiça Militar.

“O ideal seria que houvesse um órgão com a necessária a imparcialidade e independência, com a participação do Ministério Público, da Defensoria Pública, de entidades da sociedade civil, que seguisse adiante com essa apuração, que acompanhasse essa apuração para que houvesse uma produção imparcial de prova e eventual punição dos policiais envolvidos”, disse Noal.

Segundo ele, o que ocorre atualmente é “um automatismo, um cumprimento burocrático, do que está previsto na lei sem um aprofundamento, sem um olhar adequado para essa questão da violência policial que infelizmente assola o nosso dia a dia.”

Posicionamento do sistema de Justiça

O Ministério Público de São Paulo (MPSP) informou que o relatório Tortura Blindada foi analisado e considerado pelo órgão. “Embora tenha feito diversas generalizações e tenha considerado período em que a audiência de custódia experimentava período inicial, quase um plano piloto, o MPSP aprimorou sua atuação nas audiências de custódias”, diz nota da instituição.

“Foi formada uma equipe permanente para essa missão e nos casos importantes e sempre que vislumbrada alguma chance de abuso de autoridade, tortura, ou desvio de finalidade, o MPSP assume a investigação dos fatos, ou acompanha de perto a apuração policial”, finalizou.

A Defensoria Pública informou que o relatório foi encaminhado para conhecimento de defensores públicos atuantes em audiências de custódia, bem como para os núcleos especializados com atuação direta na matéria. “Também foi utilizado para capacitação interna e elaboração de pesquisas e pareceres da instituição, visando uma atuação mais efetiva na prevenção de torturas e maus tratos contra pessoas presas”, disse, em nota.

Dentre as recomendações do relatório, o órgão afirma que houve os seguintes aprimoramentos nas audiências de custódia, com seu cumprimento no que se refere à Defensoria Pública: “Os defensores públicos devem dispor de um espaço adequado para a entrevista prévia, em que devem questionar, obrigatoriamente, se a pessoa foi vítima de tortura e maus-tratos” e “a Defensoria deve tabular todas as denúncias relatadas na entrevista prévia, mesmo que a pessoa opte por não as mencionar na audiência, a fim de produzir dados para subsidiar políticas públicas de prevenção e combate à tortura.”

“Todas as informações a respeito de relato de violência policial em audiência de custódia são inseridas no sistema Defensoria online (DOL). Além disso, a Defensoria Pública de SP realiza entrevista com todos os presos em Centros de Detenção Provisória, havendo campo próprio para relatos de violência no relatório preenchido”, acrescenta a nota.

Além disso, o órgão informou que há projeto em desenvolvimento do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos para a criação de uma unidade de registros dos casos de violência nas prisões, e que foi realizada, em 2022, uma pesquisa para mapeamento das situações de violência narradas em audiência de custódia.

A Agência Brasil solicitou posicionamento ao Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a denúncia enviada pela Conectas em 2017 e questionou se, desde então, foram adotadas medidas para aprimorar as audiências de custódia, mas não teve retorno até a conclusão da reportagem.

Fonte: Logo Agência Brasil

Valor da causa na ação anulatória de testamento deve ser baseado no patrimônio deixado pelo testador

Valor da causa na ação anulatória de testamento deve ser baseado no patrimônio deixado pelo testador

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, decidiu que na ação anulatória de testamento o valor da causa pode ser fixado tendo como base o valor líquido do acervo patrimonial apurado a partir das primeiras declarações prestadas na ação de inventário dos bens deixados pelo testador, sendo vedada a fixação do valor da causa em quantia muito inferior àquela desde logo estimável.

Segundo o colegiado, ainda que a fixação por estimativa seja amplamente aceita pela jurisprudência do STJ, em especial nas hipóteses em que é incerto o proveito econômico pretendido com a ação, esse tipo de atribuição não significa discricionariedade ou arbitrariedade das partes em conferir à causa qualquer valor.

“O fato de o testamento não ter conteúdo econômico imediatamente aferível ou quantificável, dificultando a identificação sobre o exato valor desse negócio jurídico e, consequentemente, do exato valor da causa na ação que se pretende anulá-lo, não dispensa as partes do dever de atribuir à causa valor certo, ainda que baseado apenas em estimativa”, afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi.

Valor da causa que variou de mil a mais de um milhão de reais

No caso analisado, oito pessoas ajuizaram a ação anulatória de testamento, atribuindo à causa, sem que fosse especificado nenhum critério para a estimativa, o valor de mil reais. Após o juízo de primeiro grau ajustar este valor para R$ 1,6 milhão, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) o reduziu para R$ 1,3 milhão. Para o TJAL, este valor corresponderia à estimativa do valor líquido do acervo patrimonial deixado pelo testador.

No recurso dirigido ao STJ, os autores alegaram que, como não haveria conteúdo econômico imediato na ação anulatória de testamento, seria incabível a atribuição do valor da causa nos moldes feitos tanto pela primeira quanto pela segunda instância.

Contestaram, também, a aplicação de multa pela ausência de recolhimento de custas processuais na hipótese em que não houve deferimento da gratuidade judiciária e tampouco incidente de impugnação à gratuidade judiciária.

Valor extraído a partir das primeiras declarações na ação de inventário se aproxima do valor da causa

Ao analisar o caso, a ministra Nancy Andrighi lembrou que o testamento é um negócio jurídico unilateral por meio do qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, de modo que a ação que pretenda anulá-lo terá como valor da causa, em regra, o valor do próprio negócio jurídico, à luz do artigo 259, V, do Código de Processo Civil (CPC) de 1973 (atual artigo 292, inciso II, do CPC/15).

Em seu voto,  Nancy Andrighi rejeitou o recurso. A ministra explicou que, “embora o valor extraído a partir das primeiras declarações na ação de inventário de bens deixados pelo testador seja provisório e possa não representar, integralmente, o conteúdo econômico da ação anulatória de testamento, é ele que, do ponto de vista da indispensável necessidade de uma estimativa razoável, melhor representa o valor da causa na referida ação, especialmente diante do ínfimo, abusivo e desarrazoado valor atribuído à causa pelos autores da ação anulatória”.

Nancy Andrighi destacou, ainda, que os recorrentes tinham “inequívoco conhecimento” a respeito de um patrimônio considerável a ser partilhado, caso o testamento fosse anulado, “razão pela qual a estimativa do valor da causa em apenas R$ 1.000,00 revela-se desarrazoada, abusiva e desprovida de qualquer aderência em relação à hipótese”.

Multa prevista na Lei 1.060/1950 pressupõe indeferimento da gratuidade e má-fé

Quanto à imposição de multa pela ausência de recolhimento de custas processuais diante da ausência de deferimento de gratuidade e de impugnação à gratuidade formulada, a ministra Nancy Andrighi observou que “o prévio deferimento da gratuidade judiciária é, no CPC/15, um pressuposto indispensável para a incidência da referida penalidade”.

Ocorre que a multa aplicada no caso em julgamento, inicialmente em dez vezes o valor das custas e posteriormente reduzida para cinco vezes, foi arbitrada em sentença proferida em 4/12/2015, isto é, antes da entrada em vigor da nova legislação processual, quando a matéria era regulada pela Lei 1.060/50.

“A regra do artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei 1.060/1950, revogada, mas vigente ao tempo da aplicação da penalidade, não condicionava a sua incidência ao prévio deferimento da gratuidade judiciária, de modo que poderia o juiz aplicá-la na revogação do benefício ou, desde logo, ao indeferir o benefício”, afirmou a ministra.

A relatora, por fim, destacou que o TJAL verificou, na hipótese, a existência de intenção dos autores de induzir o Poder Judiciário em erro, pleiteando o benefício de má-fé, pois os autores apresentam patrimônio incompatível com a afirmada “pobreza/necessidade” e sabiam-se capazes de arcar com os custos da demanda, contrariando frontalmente o que se provém de seu retrato social.

Fonte: STJ

STF cassa decisão da Justiça do Trabalho sobre vínculo de emprego de motorista de aplicativo

Segundo o ministro Alexandre de Moraes, o STF admite contratos distintos da relação de emprego regida pela CLT.

O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), cassou decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3), sediado em Belo Horizonte (MG), que havia reconhecido o vínculo de emprego de um motorista com a plataforma Cabify Agência de Serviços de Transporte de Passageiros Ltda. A decisão determina, ainda, a remessa do caso à Justiça Comum.

Segundo a Cabify, o trabalho realizado por meio de sua plataforma tecnológica não deve ser enquadrado nos critérios definidos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pois o motorista pode decidir quando e se prestará serviço de transporte para os usuários cadastrados. Entre outros pontos, argumentou que não há exigência mínima de trabalho, de faturamento ou de número de viagens nem fiscalização ou punição pela decisão do motorista.

Contratos distintos

Ao julgar procedente o pedido formulado pela plataforma na Reclamação (RCL) 59795, o relator considerou que a decisão do TRT-3 desrespeitou o entendimento do STF, firmado em diversos precedentes, que permite outros tipos de contratos distintos da estrutura tradicional da relação de emprego regida pela CLT. Essa posição foi definida na Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 48, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5835 e nos Recursos Extraordinários (REs) 958252 e 688223, com repercussão geral.

Transporte autônomo

Segundo o ministro, o vínculo entre o motorista de aplicativo e a plataforma mais se assemelha à situação prevista na Lei 11.442/2007, que trata do transportador autônomo, proprietário de vínculo próprio, cuja relação é de natureza comercial. Portanto, as controvérsias sobre essas situações jurídicas devem ser analisadas pela Justiça Comum, e não pela Justiça do Trabalho.

Leia a íntegra da decisão.

FONTE: STF

Penhora pode recair sobre direitos aquisitivos de contrato de promessa de compra e venda não registrado

Penhora pode recair sobre direitos aquisitivos de contrato de promessa de compra e venda não registrado

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a penhora pode recair sobre direitos aquisitivos decorrentes do contrato de promessa de compra e venda, mesmo quando ausente o registro do contrato e na hipótese de o exequente ser proprietário e vendedor do imóvel objeto da penhora.

O caso diz respeito a um contrato de venda de imóvel. Após o não pagamento de duas promissórias oriundas do contrato, a vendedora buscou judicialmente a penhora dos direitos da compradora sobre o imóvel.

O juízo de primeiro grau negou o pedido sob o entendimento de que não houve averbação do contrato na matrícula do imóvel e que o bem ainda estaria inscrito em nome da vendedora. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG).

No recurso especial, a vendedora defendeu a desnecessidade do registro do contrato de compra e venda e a irrelevância do imóvel ainda estar em seu nome para fins da penhora.

Não há impedimento legal para o pedido feito

A relatora do recurso no STJ, ministra Nancy Andrighi, destacou que não há, em tese, restrição legal para a penhora dos direitos aquisitivos decorrentes de contrato de promessa de compra e venda, ainda que o exequente seja promitente vendedor ou proprietário do imóvel e que o contrato não tenha sido registrado.

A ministra destacou uma inovação do atual Código de Processo Civil, que prevê, no inciso XII do artigo 835, a penhora dos direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia. Ela lembrou que, nestes casos, a penhora não recai sobre a propriedade do imóvel, mas sim sobre os direitos que derivam da relação obrigacional firmada – promessa de compra e venda.

“A penhora sobre os direitos aquisitivos, portanto, incide sobre os direitos de caráter patrimonial decorrentes da relação obrigacional (promessa de compra e venda) e não sobre a propriedade do imóvel”, resumiu Nancy Andrighi.

Ausência de registro também não é impeditivo

A relatora observou que a medida buscada com o recurso pode recair sobre quaisquer direitos de natureza patrimonial, sem qualquer ressalva legal ou exigência especial em relação aos direitos aquisitivos derivados da promessa de compra e venda.

A ministra afirmou que o direito real de aquisição surge com o registro do contrato, mas antes dessa etapa já existe o direito pessoal derivado da relação contratual, cujo pagamento pode ser exigido entre as partes. Nancy Andrighi lembrou a Súmula 239 do STJ, que consolida esse entendimento.

“Desse modo, tem-se que o credor dos direitos aquisitivos penhorados os adquirirá no estado em que se encontrarem, sejam de caráter pessoal, sejam de caráter real. Não obstante, a conclusão que se impõe é que a mera ausência do registro do negócio jurídico não impede o exercício da penhora”, concluiu a relatora.

Peculiaridade da propriedade do imóvel

A relatora destacou que, na penhora dos direitos aquisitivos do executado, não tendo ele oferecido embargos ou sendo estes rejeitados, o artigo 857 do CPC/15 estabelece que o exequente ficará sub-rogado nos direitos do executado até a concorrência de seu crédito.

Nesse contexto, na hipótese de o executado ser o titular dos direitos de aquisição de imóvel e o exequente ser o proprietário desse mesmo bem, poderá ocorrer tanto a sub-rogação, com a consequente confusão, na mesma pessoa, da figura de promitente comprador e vendedor, ou, alternativamente, a alienação judicial do título, com os trâmites pertinentes à consecução do valor equivalente, de acordo com artigo 879 e seguintes do CPC/15.

No mais, a ministra enfatizou que não permitir a penhora sobre os direitos aquisitivos pode colocar o exequente/promitente vendedor em desvantagem em relação aos demais credores, uma vez que é com o ato de constrição que nasce o direito de preferência na execução, nos termos do artigo 797 do CPC.

Fonte: STJ

Arbitragem e produção antecipada de prova sem urgência

De há muito o nosso sistema processual admitia a possibilidade de ajuizamento de demandas formalmente judiciais, voltadas exclusivamente à produção de conteúdo probatório e em caráter antecedente à regular fase instrutória do procedimento comum (v., a propósito, Flávio Luiz Yarshel, Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, São Paulo, Malheiros, 2009).

Para não haver dúvida, o vigente Código de Processo Civil regrou expressamente a produção de provas despida dos pressupostos — urgência e risco de perecimento — que, no passado, possibilitavam a excepcional colheita da prova ad perpetuam rei memoriam. É o que se infere, com todas as letras, do disposto no artigo 381: “A produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: …II – a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito;  III – o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação”.

Verifica-se, assim, sem qualquer dificuldade, que o nosso diploma processual, estabeleceu a tutela de um direito de natureza autônoma, facultando expressamente a produção antecipada em situação que não tem natureza cautelar e, portanto, sem urgência, destacando-se, entre as hipóteses possíveis, aquela cuja precípua finalidade é a de diagnosticar a viabilidade de uma possível e futura ação judicial.

Assegurado o contraditório, visa assim a ensejar a produção voluntária da prova desejada pelo requerente, como também por eventuais interessados, desde que guarde relação aos mesmos fatos. Não se admite, por outro lado, discussão, no bojo do procedimento, do conteúdo (ou falta dele) da prova apresentada, ou das consequências e ônus, a serem suportados pela parte requerida, na hipótese de sua não apresentação.

E tal meio processual não se confunde, por certo, com a ação de natureza cautelar — antecedente ou incidental — de exibição de documento ou coisa, prevista no artigo 396 e seguintes do Código de Processo Civil.

Trata-se, portanto, de expediente processual apto a constituir prova para eventualmente, no futuro, ser incorporada em outro processo e, sendo admitida, produzir a prova desse fato nesta sucessiva demanda.

Com efeito, como procedimento de natureza não contenciosa, em que não há litígio propriamente dito, não se espera nenhuma apreciação de mérito da prova colhida, mas tão somente a observância da regularidade do seu procedimento de obtenção, sob o crivo do contraditório.

Nesse sentido, ao permitir o ajuizamento da ação antecipada de produção de provas, o Código de Processo Civil de 2015 garante o direito constitucional e autônomo à sua obtenção, assegurando às partes os fundamentos necessários a uma melhor delimitação de sua pretensão.

No âmbito deste específico contexto, bem é de ver que a ação de produção antecipada de provas não pode ser confundida, em hipótese alguma, com a ação ou medida cautelar pré-arbitral.

Infere-se, com efeito, da redação do artigo 22-A da Lei de Arbitragem que: “Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência”.

Não obstante, constata-se que a jurisprudência dos nossos tribunais apresenta atualmente clara divergência quanto à competência para processar a ação de produção antecipada de provas sem o requisito da urgência.

Antes de instaurada a arbitragem, a orientação que prevalece no Tribunal de Justiça de São Paulo firma-se no sentido de reconhecer o cabimento da ação de produção antecipada de provas perante o Poder Judiciário, a despeito da existência de cláusula compromissória, sendo prescindível o requisito de urgência, pois tal medida não se confunde com a cautelar pré-arbitral do artigo 22-A da Lei de Arbitragem.

Tais acórdãos, proferidos por unanimidade de votos, em particular, pela 1ª Câmara Especializada de Direito Empresarial, invocam a inafastabilidade da jurisdição, com assento constitucional no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, sendo pertinente destacar os seguintes precedentes:

“(…) A cláusula compromissória, mesmo se não fosse o caso de urgência, não afastaria a competência estatal para a produção antecipada de provas. Doutrina de Mazzola e Assis Torres. Nesta demanda, o juiz não se pronunciará ‘sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas’ (artigo 382, parágrafo 2º); não é possível saber, de antemão, quem irá se beneficiar da respectiva prova; e, sob o prisma da análise econômica do direito e da eficiência processual — norma estruturante do processo civil (artigo 8º do CPC/15) —, a medida é fundamental para reduzir os notórios e elevados custos de procedimento arbitral” (Apelação nº 1086219-29.2019.8.26.0100, relator desembargador Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. em 28/07/2021);

“Existência de compromisso arbitral. Possibilidade de ajuizamento perante o Poder Judiciário de ação de produção antecipada de provas, ainda que as partes tenham convencionado a resolução de conflitos por meio de arbitragem. Inteligência do artigo 381 do CPC. Constituição do Tribunal Arbitral, durante a tramitação do presente recurso. Deslocamento da cognição exauriente para o foro eleito pelas partes” (Apelação nº 1064959-90.2019.8.26.0100, relator desembargador Azuma Nishi, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. em 30/06/2021).

Sufragando divergente entendimento, recente julgamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº 2.023.615/SP, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, decidiu que, estabelecida entre as partes cláusula compromissória arbitral, nas hipóteses contempladas no artigo 381, incisos I e II, do Código de Processo Civil, a parte interessada na produção da prova deve aguardar a constituição do tribunal arbitral, para, em tal sede, pleitear a produção antecipada, in verbis:

“Esta compreensão apresenta-se mais consentânea com a articulação  e mesmo com a divisão de competências legais  existente entre as jurisdições arbitral e estatal, reservando-se a esta última, em cooperação àquela, enquanto não instaurada a arbitragem, preservar o direito à prova da parte postulante que se encontra em situação de risco, com o escopo único de assegurar o resultado útil de futura arbitragem. Ausente esta situação de urgência, única capaz de autorizar a atuação provisória da Justiça estatal em cooperação, nos termos do artigo 22-A da Lei de Arbitragem, toda e qualquer pretensão  até mesmo a relacionada ao direito autônomo à prova, instrumentalizada pela ação de produção antecipada de provas, fundada nos incisos I e II do artigo 381 do Código de Processo Civil  deve ser submetida ao Tribunal arbitral, segundo a vontade externada pelas partes contratantes.

Em sendo a pretensão afeta ao direito à prova indiscutivelmente relacionada à relação jurídica contratual estabelecida entre as partes, cujos litígios e controvérsias dela advindos foram, sem exceção, voluntariamente atribuídos à arbitragem para solvê-los, dúvidas não remanescem a respeito da competência exclusiva dos árbitros para conhecer a correlata ação probatória desvinculada de urgência. Não cabe, pois, ao intérprete restringi-la, se as partes contratantes não o fizeram expressamente.”

Todavia, com o escopo único de viabilizar o acesso à Justiça, na hipótese de que a arbitragem, por alguma razão, ainda não tenha sido instaurada, eventual medida de urgência deverá ser intentada perante o Poder Judiciário, para preservar direito sob situação de risco da parte postulante e, principalmente, assegurar o resultado útil da futura arbitragem. Resulta, pois, evidenciada, em tal situação, a indispensável cooperação entre as jurisdições arbitral e estatal. Ademais, após a constituição do tribunal arbitral, dúvida não remanesce a respeito da competência exclusiva dos árbitros para conhecer a correlata ação probatória desvinculada de urgência.

Ora, isso significa que a parte que pretende ajuizar ação de produção antecipada de prova, com fundamento numa das hipóteses dos incisos II e III do artigo 381 do Código de Processo Civil, vale dizer, sem urgência, deve aguardar a instituição do tribunal arbitral para ser perante este ajuizada.

Saliente-se, por outro lado, que o árbitro não dispõe de poder coercitivo para impor medidas de força, como, e. g., busca e apreensão e arrombamento.

Em tais casos, em consonância com importante precedente da 3ª Turma do STJ , no julgamento do Recurso Especial nº 1.717.677/PR, com voto condutor da ministra Nancy Andrighi, as partes têm a faculdade de buscar tutela jurisdicional, antecedente ou incidental, perante o tribunal estatal, “ante a falta de coercividade das decisões exaradas pelos árbitros”.

No entanto, considerando a divergência da orientação pretoriana acerca desta questão, prevalece, no meu entender, a tese de que o processamento da ação de produção antecipada da prova, de conformidade com a regra do artigo 381, incisos II e III, do Código de Processo Civil, sem o requisito da urgência, é da competência da jurisdição arbitral.

Havendo necessidade do emprego de medidas coercitivas, o tribunal arbitral poderá valer-se da carta arbitral, contemplada no artigo 22-C da Lei de Arbitragem, para tornar eficazes, no plano substancial, “na área de sua competência territorial”, eventuais determinações proferidas pelos árbitros, como, por exemplo, a busca e apreensão de documentos.

Fonte: Conjur