Governo federal lança o Desenrola Brasil e deve beneficiar cerca de 30 milhões de pessoas

Programa que ajudará endividados inicia com desnegativação de dívidas de até R$ 100 reais e renegociação de dívidas bancárias. A próxima etapa será em setembro com adesão de devedores da Faixa 1 na PlataformaCompartilhe:

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Publicado em 14/07/2023 08h56 Atualizado em 14/07/2023 15h39

Começa na próxima segunda-feira (17/7), o programa Desenrola Brasil, do governo federal, que possibilitará a renegociação de dívidas e tem o potencial de beneficiar até 70 milhões de pessoas. O programa será executado em três etapas. As duas primeiras iniciam nesta próxima segunda: desnegativação de dívidas de até R$ 100 reais e renegociação de dívidas bancárias podendo beneficiar mais de 30 milhões de pessoas. A terceira etapa ocorrerá em setembro com adesão de devedores com renda de até dois salários mínimos ou que estejam inscritos no CadÚnico – Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – e com dívidas financeiras e não financeiras cujos valores de negativação não ultrapassem o valor de R$ 5.000,00.

Confira a Portaria nº 733, de 13 de julho de 2023 que estabelece requisitos, condições e procedimentos para adesão ao Desenrola

Nesse primeiro momento, o Desenrola Brasil contemplará pessoas físicas que têm dívidas bancárias de até R$ 100,00, que serão desnegativadas pelos bancos. Com isso cairão as restrições da situação de negativada e a pessoa poderá, por exemplo, se não tiver outras dívidas negativadas, voltar a pegar crédito ou fazer contrato de aluguel. Com essa operação, o governo federal considera que pode beneficiar cerca de 1,5 milhão de pessoas.

Outro grupo beneficiado nessa fase é o de pessoas físicas com renda de até R$ 20.000,00 e dívidas em banco sem limite de valor – a Faixa 2. Para essa categoria, os bancos oferecerão a possibilidade de renegociação de dívidas diretamente com os clientes, por meio de seus próprios canais.

Estima-se que essa renegociação de dívidas bancárias poderá beneficiar mais de 30 milhões de pessoas. Os créditos presumidos que poderão ser utilizados na renegociação dessas dívidas totalizam, aproximadamente, R$ 50 bilhões. Esse benefício não terá a garantia do Fundo Garantidor de Operações (FGO). Como estímulo às renegociações, o governo oferece às instituições financeiras um incentivo regulatório para que aumente a oferta de crédito. 

Programa

O Desenrola Brasil é um programa emergencial elaborado pelo governo federal, com a Secretaria de Reformas Econômicas do Ministério da Fazenda, para combater a crise de inadimplência que se abateu sobre o país com a pandemia e num cenário em que as taxas de juros mudaram radicalmente de patamar.

Atualmente, o Brasil tem 70 milhões de negativados, potencial de beneficiários que o Programa Desenrola espera atingir no total. O objetivo da iniciativa é ajudar as pessoas que se endividaram nesse contexto. Poderão ser renegociadas as dívidas negativadas nos bureaus de crédito de 2019 até 31/12/2022. A adesão ao programa por credores, beneficiários e bancos é totalmente voluntária.    

Fonte: Governo Federal

https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2023/julho/governo-federal-lanca-o-desenrola-brasil-e-deve-beneficiar-mais-de-30-milhoes-de-pessoas

O dilema do “endividamento ou fome”

O endividamento pode, por um lado, ser uma consequência de escolhas financeiras, para que as pessoas preencham expectativas de conquista de sonhos, como o desenvolvimento empresarial e pessoal, o custeio de formação escolar, a aquisição de imóveis ou mesmo o investimento de produtos na empresa ou negócio. Por outro lado, há o endividamento pela impossibilidade de arcar com as contas mensais de serviços básicos como água, luz, telefone e alimentação, o que caracteriza um enfrentamento cotidiano de boa parte da nossa população.

O primeiro endividamento é uma dívida calculada e potencialmente benéfica, uma vez que é possível colher seus frutos a médio ou longo prazo. Todavia, o segundo endividamento acontece porque, muitas vezes, o rendimento recebido mensalmente é incapaz de suprir as necessidades mais básicas, que garantem a dignidade da pessoa humana. Neste grupo, encontram-se parte dos endividados brasileiros, e as mais atingidas são as mulheres, a população negra e pobre, pois estruturalmente estão com os piores salários.

Com a pandemia da Covid-19 houve aumento do desemprego, e este motivo representa 30% das razões do endividamento. As mulheres, especialmente as negras, já estavam na faixa com os menores rendimentos e em atividades informais. Nesse sentido, este grupo ficou alijado quanto ao acesso aos direitos básicos como educação, saúde e alimentação, pois são direitos que possuem custo, e as mulheres, tanto brancas como negras, têm mais dificuldade de custeá-los.

Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2021) o rendimento do trabalho das pessoas brancas foi, em média, 69% superior ao das pessoas pretas ou pardas. Inclusive, foi constatado que pretos e pardos receberam menos em todos os níveis educacionais, sendo que, no grupo das pessoas com nível superior, o diferencial alcançou 41%. Somente 14,6 % de pessoas em cargos gerenciais de mais alta renda eram pretas ou pardas, ante 84,4% brancas.

O IBGE também apontou que o rendimento médio domiciliar per capita das pessoas por cor ou raça da população em 2021 dividiu-se da seguinte maneira: na população branca era de R$ 1.866, da população preta foi de R$ 956 e da população parda de R$ 945. Isso implica dizer que o rendimento da população branca foi quase duas vezes maior do que da população negra como um todo (incluídos pretos e pardos).

É importante pensar, simultaneamente, na questão do endividamento e nos dados sobre a fome no Brasil. Pesquisa encomendada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, executada pelo Vox Populi e divulgada no final de junho de 2023, que integra o 2º Inquérito Nacional sobre a Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan), aponta que a fome atinge 22% das famílias chefiadas por mulheres negras, mas apenas 8% das famílias chefiadas por homens brancos.

Considerando os domicílios em que a(o) “chefe” da família tinha trabalho remunerado nos três meses anteriores à realização da entrevista, havia segurança alimentar em (1) 59,5% das famílias chefiadas por homens brancos; (2) 48,6%, por mulheres brancas; (3) 41,5%, por homens negros; e apenas (4) 32,1%, por mulheres negras. Para o grupo das mulheres negras, mesmo nos casos em que elas estavam de fato empregadas, quase 20% dos lares passaram fome. Isso impõe pensarmos, novamente, sobre a remuneração dessas mulheres: quanto menor o salário, pior a capacidade de evitar a insegurança alimentar grave.

Desse modo, as mulheres negras, destinadas à margem da sociedade, muitas vezes são, erroneamente, acusadas de não terem educação financeira, praticarem uma má gestão econômica, e algumas até são acusadas de “não gostarem de pagar as contas”. Na verdade, acontece o contrário: frente a esse salário reduzido, para as famílias que de fato possuem remuneração fixa, é importante destacar que o endividamento acontece como última saída à manutenção da própria vida e dignidade.

Os salários das mulheres negras e dos homens negros são destinados, majoritariamente, para a aquisição de alimentos. Como a população negra sofre em todos os setores com a discriminação racial, em que pesem os dados sobre inadimplência aqui mencionados não terem evidenciado o recorte de endividamento por raça e cor, a percepção é que as mulheres negras devem ter um número expressivo de inadimplemento. Frisa-se que as mulheres negras são chefes de família, direcionam o dinheiro para alimentação, transporte e até roupas e cabelo, para evitar violências cotidianas, que podem culminar em ataques discriminatórios. Ou seja, a decisão econômica dessas mulheres é acertada tática de sobrevivência em uma sociedade desigual, conforme o artigo de minha autoria intitulado “Direcionamento do dinheiro das mulheres negras”.

Dados do Serasa apontam que, em 2021, as pessoas de baixa renda com acesso ao cartão de crédito utilizaram esse saldo para compra de alimentos, ou seja, o saldo de crédito se torna de fato o complemento do “rendimento mensal”. Assim, para muitas famílias, o salário é utilizado para algumas contas e o cartão de crédito para outras, como para custeio da alimentação.

Porém, como o salário não é suficiente para arcar com todas as despesas mensais, as famílias precisam fazer a opção do pagamento de uma percentagem mínima do cartão de crédito, no lugar da fatura completa, e ainda optar por pagar conta de aluguel, água ou luz. O resultado é uma dívida elevada junto às financeiras, inclusive porque os bancos em geral praticam taxas mais altas de juros, principalmente para a população com acesso precário ao crédito.

Além disso, cerca de 70% das pessoas entrevistadas precisaram optar por qual dívida pagar. Desse total, 76% das mulheres tiveram de fazer essa opção. Portanto, não se trata de mera vontade de não pagar determinada obrigação, mas da ausência de pagamento diante da insuficiência financeira. Não há opção de renegociação da dívida, principalmente quando o salário é baixo.

Os salários mais baixos; a necessidade de suprir os direitos básicos para garantir a dignidade — sua e de sua família; a dificuldade de acesso ao crédito e o contexto estrutural, político e econômico da sociedade brasileira são componentes que, de um modo ou de outro, atingem uma situação temerária para as mulheres do Brasil. Dentro desse grupo, as mulheres negras, conforme os dados apresentados demonstram, são as que enfrentam as maiores dificuldades para se manterem fora do quadro de devedores do país, que só tende a crescer se a estrutura política e a econômica não forem alteradas. Este é o desafio. Educação financeira é extremamente importante, mas ela precisa estar aliada a um movimento em prol da igualdade em todas as relações sociais, especialmente quando se fala em garantir a sobrevivência.


Referências

Serasa. Pesquisa 2021 endividamento. Disponível em: Apresentação do PowerPoint (serasa.com.br). Acesso em: 22 jun. 2023.

UOL. Fome atinge 22% das famílias de mulheres negras e 8%, de homens brancos. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/leonardo-sakamoto/2023/06/26/fome-atinge-38-dos-lares-chefiados-por-pessoas-negras-e-11-por-brancas.htm. Acesso em: 26 jun. 2023.

Fonte: Conjur

Nova Lei de Licitações e Contratos: manutenção do Tema 1.038 do STJ

Nos bancos da graduação aprendemos que “sempre” e “nunca” são advérbios incompatíveis com o Direito.

“Nunca” haverá pena de morte? Haverá em caso de guerra… e assim por diante.

O Tema 1.038 do c. STJ prevê que o poder público não poderá imiscuir-se em taxas de administração dos licitantes, já que haveria invasão às intimidades da livre concorrência, além de indevida limitação do caráter competitivo do certame. Mesmo que isso tenha como objetivo evitar contratos inexequíveis já que existem outras regras licitatórias para tal providência acautelatória, prossegue o STJ.

Assim, decidiu a Corte da Cidadania:

“Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei nº 8.666/1993.” (grifos nossos).

A regra licitatória da moribunda lei 8.666/93 prevista no tema 1.038 prevê:

“Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará, obrigatoriamente, o seguinte:
(…)
X – o critério de aceitabilidade dos preços unitário e global, conforme o caso, permitida a fixação de preços máximos e vedados a fixação de preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em relação a preços de referência, ressalvado o disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 48;”

O novo Códex licitatório não tem regra literalmente idêntica e não cria limitação quanto a preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em relação a preços de referência.

Ainda assim, ousamos afirmar que o Tema 1.038 permanece hígido e válido em relação à nova lei de licitações como regra geral, mesmo não havendo regra escancaradamente idêntica àquela do artigo 40, X da Lei 8.666/93.

A principiologia do precedente da Corte da Cidadania é a garantia do caráter competitivo e o resguardo da responsabilidade da administração com a exigência de garantias tais como caução, capital mínimo, etc. Tais garantias tem previsão na Nova Lei a exemplo daquelas previstas no artigo 96.

O Tema 1.038 do c. STJ tem relação umbilical com a precaução contra preços inexequíveis e a responsabilização da Administração nos termos da Súmula 331 do c. TST.

Tais preocupações continuam presentes na NLLC e, ainda que não haja reprodução literal da proibição de preços mínimos há preceitos para vedação de preços inexequíveis e aplicação da competitividade, mantendo-se a principiologia básica que fundamentou o Tema 1.038.

Nesse sentido, prevê o artigo 11 da NLLC:

“Art. 11. O processo licitatório tem por objetivos:
I – assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto;
II – assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição;
III – evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos;”

Prossegue a NLLC:

“Art. 59. Serão desclassificadas as propostas que:
I – contiverem vícios insanáveis;
II – não obedecerem às especificações técnicas pormenorizadas no edital;
III – apresentarem preços inexequíveis ou permanecerem acima do orçamento estimado para a contratação;”

No mesmo artigo 59 o novo códex licitatório delimita de forma mais objetiva a inexequibilidade na área de engenharia. Assim:

“§ 4º. No caso de obras e serviços de engenharia, serão consideradas inexequíveis as propostas cujos valores forem inferiores a 75% (setenta e cinco por cento) do valor orçado pela Administração.”

O princípio da competitividade foi albergado expressamente pela NLLC. Assim:

“Art. 5º Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade, da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa, da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da economicidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).”

Portanto, ainda que não tenha “desenhado” na nova lei, o binômio “competitividade-exequibilidade”, referido binômio continua presente na Nova Lei e, portanto, o Tema 1038 do c. STJ continua valendo.

Mas voltando aos advérbios “nunca” e “sempre” do início do texto, há uma hipótese em que o Tema 1.038 do c. STJ NÃO será aplicado.

Em nosso modesto entendimento, seja qual for a Lei de Licitações (8.666/93 ou 14.133/21) o Tema 1.038 do c. STJ NÃO se aplica às hipóteses de licitação para seleção de cartão/vale alimentação em razão de lei específica sobre o tema.

A lei federal nº 14.442/2022 PROÍBE taxas negativas de administração. Assim:

“Art. 3º O empregador, ao contratar pessoa jurídica para o fornecimento do auxílio-alimentação de que trata o art. 2º desta Lei, não poderá exigir ou receber:
I – qualquer tipo de deságio ou imposição de descontos sobre o valor contratado;
II – prazos de repasse ou pagamento que descaracterizem a natureza pré-paga dos valores a serem disponibilizados aos empregados; ou
III – outras verbas e benefícios diretos ou indiretos de qualquer natureza não vinculados diretamente à promoção de saúde e segurança alimentar do empregado, no âmbito de contratos firmados com empresas emissoras de instrumentos de pagamento de auxílio-alimentação.”

A Confederação Nacional do Transporte questionou a constitucionalidade da regra na ADI 7.248 com fulcro no princípio da livre concorrência.

Mencionada ADI não teve decisão liminar tampouco decisão de mérito, mantendo-se a presunção de legitimidade e a higidez da Lei federal nº 14.442/2022 em face do sistema jurídico brasileiro.

O fato de haver decisão em recurso repetitivo junto ao c. STJ (Tema 1.038) não foi o suficiente para convencer o relator da Corte Suprema da inconstitucionalidade já que referida decisão do STJ foi proferida antes da Lei federal nº 14.442/2022. Aliás, ousamos apostar na improcedência de tal ADI.

A regra não é uma cautela quanto a propostas inexequíveis mas garantia da qualidade mínima do serviço prestado ao servidor público, pois as taxas negativas acabam por forçar a atuação predatória do contratado junto aos estabelecimentos credenciados e consequente depreciação da qualidade dos produtos adquiridos com o vale/cartão alimentação.

Razões distintas e de valor axiológico ligados ao direito à vida e à dignidade serviram de supedâneo axiológico à proibição da lei 14.442/2.022.

Portanto, como o Tema 1.038 do c. STJ trata da exequibilidade do contrato administrativo, a Lei 14.442/22 é posterior ao tema e trata de tema distinto (saúde do trabalhador) não se aplica o tema do STJ às licitações sobre cartão/vale alimentação seja qual for a lei licitatória utilizada.

Fonte: Conjur

Primeira Seção define em repetitivo que regra da irretratabilidade da CPRB não se aplica à administração

O colegiado entendeu também que a revogação da opção pela Contribuição Previdenciária sobre Receita Bruta, trazida pela Lei 13.670/2018, não feriu direitos do contribuinte.

Em julgamento sob o rito dos repetitivos (Tema 1.184), a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que “1) a regra da irretratabilidade da opção pela Contribuição Previdenciária sobre Receita Bruta (CPRB), prevista no parágrafo 13 do artigo 9º da Lei 12.546/2011, destina-se apenas ao beneficiário do regime, e não à administração; 2) a revogação da escolha de tributação da contribuição previdenciária pelo sistema da CPRB, trazida pela Lei 13.670/2018, não feriu direitos do contribuinte, tendo em vista que foi respeitada a anterioridade nonagesimal”.

Segundo o relator, ministro Herman Benjamin, a contribuição previdenciária das empresas – estabelecida pelo artigo 22, I, da Lei 8.212/1991 – incidia originalmente sobre a folha de salários. Essa previsão, explicou, foi modificada pela Medida Provisória 540/11, convertida na Lei 12.546/2011, que substituiu a base de cálculo do recolhimento pela receita bruta (CPRB), ao passo que, com a edição da Lei 13.161/2015, tais regimes passaram a coexistir, sendo facultado àqueles que contribuem a escolha do regime de tributação sobre a folha de salários ou sobre a receita bruta.

“Verifica-se que a CPRB é contribuição substitutiva, facultativa, em benefício do contribuinte, instituída como medida de política fiscal para incentivar a atividade econômica, cuja renúncia fiscal é expressiva, da ordem de R$ 83 bilhões de reais no período de 2012 a julho de 2017. Contudo, não há direito adquirido à desoneração fiscal, a qual se constitui, no presente caso, como uma liberalidade”, disse.

Regra da irretratabilidade da CPRB respeitou anterioridade nonagesimal

Para o ministro, o mesmo raciocínio deve ser aplicado à desoneração por lei ordinária. Herman Benjamin esclareceu que a desoneração prevista na Lei 12.546/2011 não era condicional nem por prazo certo, sendo que a sua revogação poderia ser feita a qualquer tempo, respeitando-se a anterioridade nonagesimal –  o que ocorreu, pois a Lei 13.670/2018 foi publicada em 30 de maio de 2018 e seus efeitos apenas começaram a ser produzidos em setembro de 2018.

Na sua avaliação, não prospera a alegação de que a irretratabilidade da opção pelo regime da CPRB também se aplicaria à administração. “Isso porque seria aceitar que o legislador ordinário pudesse estabelecer limites à competência legislativa futura do próprio legislador ordinário, o que não encontra respaldo no ordenamento jurídico, seja na Constituição Federal, seja nas leis ordinárias”, afirmou.

O relator ressaltou que a alteração promovida pela Lei 13.670/2018 não caracteriza violação à segurança jurídica, mas sim a exclusão de uma das opções de regime de tributação que a lei disponibilizava aos que contribuem.

“A regra da irretratabilidade da opção pela CPRB disposta no parágrafo 13 do artigo 9º da Lei 12.546/2011 destina-se apenas ao beneficiário do regime, não à administração, e tampouco fere direitos do contribuinte, pois foi respeitada a anterioridade nonagesimal”, concluiu.

Fonte: STJ

Impenhorabilidade de salário pode ser afastada para quitar dívida

É possível modular o princípio da impenhorabilidade de vencimentos para além das hipóteses previstas em lei, desde que haja um estudo minucioso do caso e seja preservado o mínimo existencial, para resguardar a dignidade do devedor e de sua família.

Esse foi o entendimento utilizado pela 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná para manter a decisão da 3ª Vara Cível de Curitiba que autorizou a penhora de 20% do salário de um devedor.

A decisão foi tomada no bojo de uma ação de despejo, em fase de cumprimento de sentença, em que ocorreram diversas tentativas frustradas de satisfação do crédito, inclusive com a utilização dos sistemas BancenJud, Renajud e Infojud.

Ao analisar o caso, a relatora, desembargadora Denise Kruger Pereira, concluiu que o salário do recorrente, de R$ 9.927,82, é considerável, se comparado ao que ganha a maioria da população. 

“Não se pode olvidar, ainda, que as quantias repassadas pela empregadora do agravante serão depositadas em conta judicial, sendo certo que o levantamento somente ocorrerá em momento futuro”, registrou a desembargadora. O entendimento foi unânime. 

Fonte: Conjur

Crédito e fato gerador: o artigo 49 da Lei de Recuperação

Nem sempre o legislador é preciso na redação da lei. E, não raro, a imprecisão do texto legal acaba contaminando a exegese jurisprudencial.

Dispõe o artigo 49, caput, da Lei nº 11.101/05, que: “Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos“.

Partindo-se dessa regra, parece evidente ser impossível habilitação de crédito lastreada em sentença provisória sujeita a recurso, simplesmente porque não há título judicial definitivo. A habilitação de crédito na recuperação judicial, aparelhada com decisão condenatória, pressupõe, por óbvio, a estabilização do montante do débito e sua respectiva exigibilidade.

E isso porque no âmbito do direito concursal não se viabiliza habilitação de crédito “provisória”, diferentemente do que preceitua o artigo 520 do Código de Processo Civil, que autoriza o cumprimento provisório da sentença impugnada por recurso despido de efeito suspensivo.

Na verdade, a teor do disposto no inciso IV do artigo 7º-A da Lei de Recuperação e Falência: “os créditos incontroversos, desde que exigíveis, serão imediatamente incluídos no quadro-geral de credores, observada a sua classificação…”.

Assim, a sentença condenatória impugnada não ostenta, ainda, o requisito da exigibilidade. Aliás, nesse particular, é clássica a lição de Francesco Carnelutti, no sentido de que a sentença sujeita a recurso, além de ineficaz, não passa de um documento público, nada mais, porquanto, ainda que confirmada em segundo ou superior grau, será inexoravelmente substituída pelo acórdão superveniente (Riflessioni sulla condizione giuridica della sentenza soggetta alla impugnazione, Rivista di diritto processuale civile, 1928, pág. 193).

Não obstante, diante de acentuada divergência de interpretações quanto ao disposto o artigo 49, caput, da Lei nº 11.101/05, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por bem submeter a questão ao regime de recursos repetitivos, tendo sido firmado o entendimento, ao ensejo do julgamento da 2ª Seção, no Recurso Especial nº 1.840.531/RS, da relatoria do ministro Ricardo Villas Boas Cuêva, de que: “para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador” (Tema 1.051).

No que concerne aos honorários de sucumbência, restou ainda assentado, com lastro em precedente da Corte Especial (EAREsp nº 1.255.986/PR) que:

“Vale destacar, ainda, a questão dos honorários advocatícios sucumbenciais.

O direito à percepção dos honorários nasce com a sentença ou ato jurisdicional equivalente (fato gerador)…

Se a sentença que fixou os honorários foi proferida em momento posterior ao pedido de recuperação judicial, o crédito que dela decorre deve ser caracterizado como extraconcursal (não se sujeita aos efeitos da recuperação), conclusão que se amolda ao entendimento ora esposado de que é o fato gerador que define se o crédito é concursal ou extraconcursal.

Em atenção ao disposto no artigo 1.040 do Código de Processo Civil de 2015, fixa-se a seguinte tese: ‘Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador’…”.

Ao analisar esta conclusão a que chegou a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, entendo que, do ponto de vista prático, dificilmente encontra ela consistência na prática forense.

E isso, porque, num caso concreto sob meu patrocínio, no qual a sentença, que fixou a verba honorária de sucumbência no percentual de 10% do valor da condenação, foi proferida antes do pedido de recuperação judicial. Contra tal ato decisório foi interposto recurso de apelação. No julgamento pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, ocorrido após o pleito de recuperação judicial, os honorários advocatícios foram majorados para 18% e, ainda, no Superior Tribunal de Justiça, fixados em 20%.

Este exemplo bem evidencia, de um lado, a instabilidade do crédito reconhecido na sentença de primeiro grau, sobretudo com os acréscimos posteriores, e, de outro lado, a inequívoca ausência de exigibilidade.

Ora, nesta hipótese, dada a evidente impossibilidade de habilitação do crédito certificado na sentença (porque inexigível), o respectivo “fato gerador” somente pode ser a decisão monocrática ou o acórdão proveniente do Superior Tribunal de Justiça, independentemente do trânsito em julgado. É em tal sede, como se observa, que a condenação em honorários de sucumbência se estabiliza, tornando o título executivo judicial, certo, líquido e exigível, reunindo, pois, os requisitos que ensejam ao credor: a) a habilitação de crédito se o pedido de recuperação ainda não foi deferido; ou, b) caso já pendente o processo concursal, o cumprimento definitivo da sentença.

No caso que tive de enfrentar, partindo desta cronologia, somente com a decisão monocrática proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, aumentando a verba honorária, é que o título executivo judicial do meu cliente se estabilizou, visto que substituiu o acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Foi então a partir daquele momento que o título executivo judicial reuniu os seus três requisitos: certeza, liquidez e exigibilidade (“fato gerador”). Todavia, nesta data, já não era mais possível submetê-lo à recuperação judicial, uma vez que formado após o deferimento da recuperação.

Tanto isso é exato que em caso análogo e julgado após a fixação do Tema 1.051 (22/9/21), a 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça bandeirante, no julgamento do Agravo de instrumento n. 2096743-77.2019.8.26.0000, deixou patenteado que os honorários de sucumbência, arbitrados em recurso julgado em data posterior à aprovação do plano de recuperação possui natureza extraconcursal.

Com efeito, colhe-se desse importante precedente, relatado pelo Desembargador Cesar Ciampolini, que:

“Crédito consistente em verba honorária advocatícia sucumbencial arbitrada em sede de apelação julgada em momento posterior ao ajuizamento da recuperação judicial. (…)

Tema repetitivo 1.051, firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.843.332: ‘Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador’.

Novo julgamento do recurso, consoante o artigo 1.030, inciso II, do Código de Processo Civil, determinado pela Corte Superior, observando-se o que foi por ela assentado.

Caso a que se há de aplicar a tese firmada, uma vez que o fato gerador do crédito da agravante, qual seja, o julgamento do recurso em que se deu a fixação dos honorários sucumbenciais, deu-se posteriormente à recuperação. Extraconcursalidade, dessa forma, que deve ser proclamada”.

Pois bem, retornando ao caso acima mencionado, com a baixa dos autos à vara de origem, dei início ao cumprimento de sentença, visando à cobrança dos honorários definitivamente fixados pelo Superior Tribunal de Justiça; em seguida, devidamente intimado, o executado ofereceu impugnação, argumentando que o crédito havia sido constituído (sentença) antes do deferimento do pedido de recuperação judicial e, portanto, deveria ser considerado crédito concursal.

Para minha surpresa, tal tese foi acolhida na sentença que julgou procedente a mencionada impugnação.

Interposto recurso de apelação (nº 0001714-78.2020.8.26.0362), foi ele integralmente provido pela 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, com voto condutor do Desembargador Arantes Theodoro, valendo transcrever o seguinte trecho:

“Ora, no caso presente a sociedade de advogados não estava reclamando os honorários fixados na sentença, que eram de 10% do valor da condenação.

Ela cobrava, sim, os honorários que ao final da fase recursal lhe haviam sido deferidos pela Corte local (18%) agora com o agravamento de 15% sobre o valor acumulado concedido pelo Superior Tribunal de Justiça, verba que ante a limitação prevista no artigo 85 do Código de Processo Civil perfazia 20% do valor da condenação.

Logo, o caso era de se reconhecer que o crédito por aqueles honorários só se formou quando foi fixada a aludida remuneração, o que ocorreu em 22 de agosto de 2019, com o julgamento do derradeiro recurso.

Pois tendo o pedido de recuperação judicial sido apresentado em 25 de setembro de 2017 e deferido pelo Juiz em outubro seguinte, restava concluir que àquele regime não se submetia o aludido crédito, já que formado posteriormente.

Realmente, se até aquele momento inexistia o crédito pelos honorários de 20% do valor da condenação, não se haveria mesmo de sujeitá-lo ao regime concursal, até porque nem seria materialmente possível à credora naquela ocasião habilitá-lo no juízo da recuperação.


Note-se que outra seria a conclusão se as instâncias recursais tivessem apenas confirmado quantitativamente a condenação em honorários imposta pela sentença, o que como se viu aqui não ocorreu” (grifei).

Diante desse contexto, acerca desta relevante questão, concluo reafirmando que:

(1) no julgamento do Tema repetitivo 1.051 pelo Superior Tribunal de Justiça restou firmada a tese de que “o direito à percepção dos honorários nasce com a sentença ou ato jurisdicional equivalente“;

(2) o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, e, sobretudo, a decisão monocrática exarada pelo Superior Tribunal de Justiça, que, sucessivamente, substituíram a sentença de primeiro grau, majoraram a verba honorária, deve (a última delas) ser reputada como “ato jurisdicional equivalente”, pois a reformou para aumentar o valor da verba honorária de sucumbência;

(3) não se viabiliza a habilitação de crédito “provisória”, aparelhada com título ainda inexigível (artigo 7º-A, inciso IV, da Lei n. 11.101/05);

(4) o artigo 1.008 do Código de Processo Civil estatui que o acórdão proferido pelo tribunal em sede de recurso substitui a decisão recorrida; e, por fim,

(5) o título executivo judicial cuja exigibilidade é alcançada em momento posterior à decisão que aprova o processamento da recuperação judicial representa crédito extraconcursal.

Fonte: Conjur

Correção de créditos na recuperação judicial pode ter critério diverso da lei, desde que expresso no plano

Como o plano nada dizia sobre a data-limite para a correção dos créditos trabalhistas, a Terceira Turma entendeu ser aplicável o parâmetro legal, ou seja, a data do pedido de recuperação.

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a assembleia geral de credores pode definir um critério de atualização dos créditos diferente daquele previsto no artigo 9º, inciso II, da Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101/2005), desde que isso conste de forma expressa no plano de recuperação judicial.

Com base nesse entendimento, o colegiado deu provimento ao recurso de uma empresa em recuperação para reconhecer que seu plano não tinha nenhuma informação sobre a data-limite para a correção do valor dos créditos trabalhistas, impondo-se, nesse caso, a utilização do parâmetro legal – ou seja, a data do pedido de recuperação.

Na origem do processo, o juízo de primeiro grau reconheceu a existência de crédito decorrente de reclamação trabalhista, com valor atualizado até a data da distribuição do pedido de recuperação, conforme a previsão da Lei 11.101/2005.

O credor recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), alegando que a atualização do crédito não deveria ser limitada pela data do pedido de recuperação, pois uma cláusula do plano definia que o pagamento dos créditos trabalhistas obedeceria ao valor fixado na sentença da Justiça do Trabalho, a qual continha previsão de correção mensal pelo Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M), calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV IBRE).

O TJSP entendeu que a recuperanda não poderia desconsiderar a regra que ela livremente estipulou no plano e determinou que o crédito fosse corrigido na forma do título trabalhista.

No recurso ao STJ, a empresa devedora defendeu que a atualização do valor só poderia ocorrer até a data do pedido da recuperação.

Previsão legal é parâmetro mínimo para atualização de créditos

De acordo com o relator, ministro Marco Aurélio Bellizze, a atualização do crédito habilitado no plano de soerguimento, mediante incidência de juros de mora e correção monetária, é limitada, em regra, à data do pedido de recuperação. Esse posicionamento está amparado pela jurisprudência do STJ, que reflete a norma expressa do artigo 9º, II, da Lei 11.101/2005.

Por outro lado, Bellizze observou que é perfeitamente possível que o plano estabeleça, em relação à atualização dos créditos, norma diversa daquela prevista em lei, “sobretudo pelo caráter contratual da recuperação judicial, tanto que o respectivo plano implica novação da dívida, podendo o devedor e o credor renegociar o crédito livremente”.

Ainda assim, o relator alertou que a previsão legal representa parâmetros mínimos para atualização dos créditos habilitados, sendo eles a data da decretação da falência ou a do pedido de recuperação judicial.

“Em outras palavras, a assembleia geral de credores tem liberdade para estabelecer um novo limite de atualização dos créditos, desde que seja para beneficiar os credores, não podendo fixar uma data anterior ao pedido de recuperação”, explicou.

Cláusula não afastou, de forma expressa, a regra legal

Ainda segundo o ministro, deve ser expressa a cláusula do plano de soerguimento que afaste a regra prevista em lei e estabeleça, por exemplo, que a atualização do crédito ocorrerá em momento posterior à data do pedido de recuperação. Caso não haja previsão no plano, deve prevalecer o disposto no artigo 9º, II, da Lei 11.101/2005.

Ao contrário do que entendeu o TJSP, o magistrado apontou que a cláusula que está no centro da controvérsia não afastou expressamente a regra prevista na lei.

Para Bellizze, o plano estabeleceu que os credores trabalhistas teriam seus créditos habilitados pelo valor da certidão da Justiça do Trabalho, conforme reconhecido em decisão transitada em julgado, “sem dizer absolutamente nada acerca da data-limite de atualização dos respectivos valores, razão pela qual deverá prevalecer o disposto na norma legal”.

Fonte: STJ

Entender Direito discute medidas protetivas da Lei Maria da Penha

Em mais um programa voltado para os direitos das mulheres, Entender Direito trouxe a debate as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006). Participaram dessa edição a juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Amini Haddad e o promotor do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) Thiago Pierobom.

Na conversa com a jornalista Fátima Uchôa, os entrevistados destacaram, entre outros pontos, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a aplicação das medidas protetivas, como a decisão de estender a proteção da Lei Maria da Penha para as mulheres transgênero vítimas de violência doméstica ou familiar.

Sexta Turma estendeu proteção da Lei Maria da Penha para mulheres trans

No primeiro semestre de 2022, uma decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) também deve ser aplicada aos casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgênero. O relator do recurso, ministro Rogerio Schietti Cruz, considerou que, por se tratar de vítima mulher, independentemente do seu sexo biológico, e tendo ocorrido a violência em ambiente familiar – no caso dos autos, o pai agrediu a própria filha trans –, deveria ser aplicada a legislação especial.

Com base na doutrina jurídica, Schietti afirmou que o elemento diferenciador da abrangência da Lei Maria da Penha é o gênero feminino, o qual nem sempre coincide com o sexo biológico. O objetivo da lei, segundo ele, é prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar que se pratica contra a mulher por causa do gênero, e não em virtude do sexo.

Veja, no vídeo abaixo, o depoimento da estudante Luana Fernandes sobre a situação de violência doméstica vivenciada por ela:

A decisão da Sexta Turma é especialmente importante em um país que lidera o ranking mundial de violência contra travestis e transexuais. Segundo dossiê divulgado na semana passada pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram 131 vítimas fatais em 2022, o que mantém o Brasil nessa triste liderança pelo 14º ano consecutivo.

Embora recente, o precedente do STJ já produziu efeitos que podem ser percebidos em órgãos diretamente incumbidos das questões relacionadas à violência contra a mulher, como as delegacias, o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Delegacias de polícia passaram a adotar atendimento especializado às vítimas trans

A delegacia de polícia é, muitas vezes, o primeiro lugar procurado pela mulher após sofrer agressão em casa. Por isso, as unidades da Polícia Civil costumam ter atendimento especial para essas vítimas, inclusive para as mulheres trans – procedimento que já acontece em algumas unidades da Federação.

Em agosto de 2022, após o precedente fixado pelo STJ, a Polícia Civil de Minas Gerais publicou a Resolução 8.225 para, alterando resolução anterior, estabelecer que mulheres transexuais e travestis, vítimas de violência doméstica ou familiar baseada no gênero, fossem atendidas em delegacia especializada, independentemente de mudança do nome no registro civil ou da realização de cirurgia de redesignação sexual.

Entre os anos de 2020 e 2022, a Polícia Civil de Minas contabilizou o atendimento de 224 mulheres transexuais vítimas de violência doméstica.

No caso da Polícia Civil de São Paulo, a delegada Jamila Jorge Ferrari explica que, atualmente, as Delegacias de Defesa da Mulher têm a atribuição de investigar infrações penais relativas à violência doméstica ou familiar e crimes contra a dignidade sexual que tenham como vítimas pessoas com identidade de gênero feminina, sejam elas mulheres cisgênero, trans ou travestis. Segundo a delegada, em 2022, 140 mulheres trans e travestis foram atendidas pela Polícia Civil de São Paulo em casos de violência doméstica ou familiar.

Jamila Ferrari acrescenta que, também em 2022, a instituição policial editou a Portaria DGP 08/2022, que dispõe sobre o tratamento específico a travestis e transexuais nas delegacias do estado, garantindo, entre outros direitos, o respeito ao nome social, o qual deve ser observado por todos os servidores.

A participação do MP no combate à violência doméstica contra pessoas trans

A necessidade de atenção especial às violações de direitos das mulheres trans também é observada pela representante da Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Silvia Chakian. Segundo a promotora de justiça, “a violência de gênero decorre das relações de poder construídas e reforçadas historicamente na nossa sociedade, reservando maior vulnerabilidade ao gênero feminino e não ao sexo biológico”.

No caso da Lei Maria da Penha, a promotora aponta que o MPSP, no intuito de ampliar a compreensão sobre a essência e o alcance da lei especial, promoveu vários seminários, cursos e debates abrangendo questões de gênero.

“Ao longo dos anos, foram muitos os episódios de resistência, inclusive por parte do Judiciário de primeiro grau, o que levou o MPSP a interpor diversos recursos a fim de garantir a aplicação da lei para as mulheres trans no tribunal de justiça”, enfatiza.

Silvia Chakian destaca que o precedente do STJ teve ampla divulgação interna no MP, inclusive com a publicação de uma tese pelo órgão ministerial.

A prestação de assistência jurídica pela Defensoria Pública

No âmbito da Defensoria Pública do Distrito Federal, a defensora e representante do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, Juliana Braga, destaca que, apesar de alguns juízes do DF já aplicarem a Lei Maria da Penha antes mesmo da decisão do STJ, o precedente do Tribunal da Cidadania fortaleceu a rede de assistência social e a conscientização deste público quanto à questão da violência de gênero.

“A decisão evidencia o direito assegurado à liberdade da identidade de gênero de qualquer ser humano, constitucionalmente e internacionalmente garantido”, enfatiza.

Segundo a defensora pública, as mulheres trans vítimas de violência doméstica recebem, na Defensoria, atendimento jurídico integral e, quando necessário, são apresentados à Justiça requerimentos das medidas protetivas de urgências previstas na Lei Maria da Penha.

Projetos para inclusão da mulher trans não foram votados

A interpretação dada pela Sexta Turma do STJ no julgamento do ano passado está na mesma direção de pelo menos duas propostas de alteração legislativa que já haviam sido apresentadas no Congresso Nacional, mas não foram votadas.

Na Câmara dos Deputados, desde 2014, tramita o PL 8.032, para incluir a proteção de transexuais e transgêneros na Lei 11.340/2006. O projeto está atualmente na Comissão de Direitos Humanos e Minorias, onde aguarda o parecer do relator.

Em 2017, começou a tramitar no Senado o PLS 191, também com o objetivo de assegurar a proteção legal a todas as mulheres, independentemente do sexo biológico, mas a proposição foi arquivada.

Criminalistas repudiam possível limitação de quesito genérico do Júri

Instituído no Brasil há 200 anos e recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o Tribunal do Júri pode ter um dos seus pilares modificados pelo Supremo Tribunal Federal no próximo dia 1º de agosto. Na ocasião, o STF irá começar a analisar e julgar o Tema 1087, que trata da possibilidade do tribunal de 2º grau, diante da soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, determinar a realização de novo júri em julgamento de recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos do processo.

Criminalistas repudiam possibilidade de limitar quesito genérico do JúriTJ-RJ

Criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico são uníssonos em repelir a possibilidade. O jurista Lenio Streck, por exemplo, é enfático: “Enquanto o júri mantiver a íntima convicção e esse tipo de quesitação, é impossível questionar as razões pelas quais os jurados absolvem. A íntima convicção não se questiona. Filosoficamente impossível. Mas penso que o STF dirá o contrário. Aliás, se há soberania dos veredictos, como questionar um veredicto ditado pela íntima convicção dos jurados? Seria uma contradição lógica”, sustenta.

O experiente criminalista Mário de Oliveira Filho entoa o coro contra a possibilidade. “O Tribunal do Júri vem sofrendo incontáveis ataques contra a sua soberania e contra a sua própria existência. São necessárias algumas modificações na sua estrutura e na sua ritualística. Faz parte da soberania dos veredictos a possibilidade dos jurados absolverem o acusado até mesmo por clemência”, defende.

Ele explica que, na sistemática do júri brasileiro, o jurado vota conforme sua consciência e faz o juramento de assim votar.

“Tribunal do júri é um tribunal diferente onde há um sentimento de justiça diferenciado, porque manifestado na experiência pessoal de cada um dos componentes do corpo de jurados. Tolher essa liberdade consagrada pela própria Constituição Federal ao Conselho de jurados é macular a essência de um tribunal popular”, defende.

Autor do livro “Manual do Tribunal do Júri”, o pós-doutor em Direito e advogado criminalista Rodrigo Faucz explica que a soberania das decisões absolutórias do Júri está bem sedimentada internacionalmente, pois viola o princípio do ne bis in idem — do Direito Romano, preconiza não julgar duas vezes alguém pela mesma falta.

“Considerando a primazia aos princípios da soberania dos veredictos do Conselho de Sentença e da plenitude de defesa, bem como ao modelo da íntima convicção dos jurados e da sigilosidade das votações, entendemos que não deve ser sequer conhecida a apelação interposta pela acusação, quando atrelada ao disposto no art. 593, III, ‘d’, do CPP”, sustenta.

Instituto questionado
Apesar da defesa veemente de criminalistas, o Tribunal do Júri vem sendo cada vez mais questionado no Brasil. Durante julgamento no STF que declarou que a tese da legítima defesa da honra, ainda usada por acusados de feminicídio, não é, tecnicamente, legítima defesa, o ministro Dias Toffoli fez um apelo ao Congresso para acabar com o instituto no Brasil.

“A frente parlamentar feminina deveria propor uma Emenda Constitucional para extinguir o tribunal do júri. Já é chegada a hora do Congresso Nacional extinguir o júri. Eu tenho dito isso na turma e no plenário, e aqui tomo a liberdade de dizer às senadoras e deputadas: tomem a frente disso, proponham a extinção do tribunal do júri”, disse o ministro na ocasião.

declaração foi repudiada por meio de nota assinada por entidades, associações e núcleos de pesquisa. “O  júri está previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, constituindo, portanto, um direito e garantia fundamental do cidadão, verdadeira cláusula pétrea, insuscetível de exclusão por emenda constitucional, conforme disposição expressa do art. 60, § 4º, IV da Carta Magna”, diz trecho da nota.

Fato é que, do modo em que está previsto no nosso ordenamento jurídico, a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri deve prevalecer. Ao menos na opinião do advogado e professor de Direito Penal do IDP, Luís Henrique Machado.

“A soberania do júri deve prevalecer ante a formulação de quesito genérico, mesmo na hipótese de decisão contrária à prova dos autos. O quesito é genérico justamente com o fim de ampliar o campo decisório do jurado para que ele possa levar em consideração toda a matéria fática e probatória no momento do julgamento, ou seja, sem imposição de restrições.”

“Não faz qualquer sentido o legislador ampliar a moldura da norma delegando ao jurado um campo maior de análise e o magistrado togado adentrar nesta esfera avaliativa, mormente em caso de absolvição do acusado. Caso prevaleça o entendimento de realização de novo júri, toda a razão da lei estará, infelizmente, comprometida”, argumenta.

Garantia do acusado
O criminalista Welington Arruda explica que o veredicto proferido por um Conselho de Sentença imparcial, independente e livre representa a mais ampla garantia fundamental do acusado.

“Isso não significa que o veredicto do Conselho de Sentença é absoluto ou definitivo. Por trás dele tem um sistema constitucional que assegura a harmonia das regras jurídicas em consonância com a presunção de inocência e com o direito de recurso, sendo a sentença proveniente do Tribunal do Júri cindível do ponto de vista recursal e, em última análise, possível de ser modificada até o trânsito em julgado”, explica.

Arruda aponta que o artigo 593, inciso III, alínea “d” do Código de Processo Penal, que faz alusão à decisão manifestamente contrária à prova dos autos, é uma hipótese reservada apenas à decisão condenatória contra prova dos autos.

“Isso acontece porque o Código de Processo Penal, no âmbito do Júri, tem o quesito obrigatório genérico de absolvição após quesitos sobre autoria e materialidade. Logo, se o quesito absolutório é obrigatório, devendo ser respondido mesmo após o reconhecimento da autoria e materialidade delitivas, demonstra-se que o jurado está autorizado a responder positivamente ao questionamento, independentemente de suas motivações e mesmo em contradição à prova dos autos. Ou seja, o que o direito condenaria, pode o jurado absolver. Por outro lado, resta evidente que aquilo que o direito absolveria, não pode o jurado condenar”, argumenta.

O  professor da FGV-SP e sócio da área penal do Mattos Filho, Rogério Fernando Taffarello, lembra que o quesito genérico foi tema de alteração recente na reforma do CPP de 2008, com a edição da Lei 11.689 que alterou alguns procedimentos, entre eles o do Tribunal do Júri. “O legislador fez isso para dar mais segurança jurídica na quesitação, que sempre foi um tema de muita discussão e controvérsia nos tribunais. A ideia era simplificar o procedimento em relação ao fato de os jurados condenarem ou absolverem o acusado”, explica.

Nesse contexto, a fundamentação do veredicto nada mais é do que a íntima convicção do acusado. “O quesito textual da lei sobre condenação ou absolvição do acusado não faz menção a nenhuma prova. Ele diz respeito ao sentimento do jurado que vai decidir com base no que ele viu no julgamento.”

Por fim, o advogado, doutor em Direito Processual Penal, professor titular no Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS, Aury Lopes Jr., explica que, após a reforma de 2008, o Ministério Público não pode recorrer contra a decisão.

“No momento que o legislador autoriza que o jurado pode absolver com base no quesito genérico contra a prova dos autos. Isso está legitimado pela opção do legislador que permite absolvição por motivos humanitários, clemência etc”, finaliza.

Fonte: Conjur

Debates sobre reforma tributária: foco no imposto seletivo

Na semana passada foi aprovado, em dois turnos, pela Câmara dos Deputados, o texto proposto para reforma da tributação sobre o consumo de bens e serviços, nos termos divulgados no Parecer do Plenário da Comissão Especial, constituída para examinar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45-A, de 2019, PRLP nº 2, de 5/7/2023, e respectivo substitutivo, remanescendo alguns destaques ainda a serem votados.

Com isso, a PEC nº 45-A será encaminhada ao Senado, ali passando também por dois turnos. No início do mês de junho o relator do substitutivo à PEC havia levado a público, de forma resumida, o fruto dos debates do Grupo de Trabalho constituído para analisar e discutir a dita proposta.

Se aprovada a PEC 45-A, as mudanças na tributação do consumo são muito grandes, como vem sendo divulgado, invertendo-se um modelo de mais de 60 anos, especialmente a  tributação no local de origem dos bens e serviços, para a tributação no local de destino. É prematuro comemorar o resultado obtido na Câmara, pois ainda há um longo caminho a ser trilhado, já que afora as aprovações no Senado, a sua implementação é bastante complexa, pois ela em sua maior parte depende de leis complementares.

Convém destacar que ainda hoje pendem de elaboração muitas leis complementares à Constituição, de 1988, como é o caso da lei complementar do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD). Por fim, se o Senado alterar o texto, a PEC 45-A deverá retornar à Câmara, para nova apreciação. Com tudo isso é certo que, de imediato, nada irá se modificar.

 Em resumo, os Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI), Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), Prestação de Serviços (ISS) e as Contribuições Sociais que incidem sobre o faturamento, o Programa de Integração Social (PIS) e o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), serão substituídos por um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de competência estadual e por uma contribuição social, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, assim ficando conformada a tributação dual sobre o valor agregado, nos termos do que se concluiu seria o melhor modelo de tributação do consumo para o país.

Com o fim de dar tratamento diferenciado para certos itens de consumo, foi introduzido o Imposto sobre a Produção, Comercialização ou Importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, designado como imposto seletivo no relatório da PEC 45-A. Dada a vastidão do tema voltado à tributação do consumo, e seus problemas, permitimo-nos eleger para análise preliminar, apenas uma parcela do todo, o imposto seletivo, nos moldes em que hoje se apresenta, que passará a integrar o rol de impostos federais e que nas discussões e no relatório da PEC 45-A é tratado como seletivo, porém usado no plural, impostos seletivos, o que permite entender que ele poderá ser objeto de regulação à medida que possam surgir  itens ou grupos de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

O imposto seletivo, como tributo de competência federal, foi inserido no artigo 153, da Constituição, sob novo inciso, VIII, sendo que os bens e serviços cuja produção e comercialização são oneradas, serão definidos em lei complementar. É interessante observar que embora o artigo 153, VIII faça referência a bens e serviços, o relatório da PEC 45-A acrescenta direitos o que, por certo, não foi objeto da alteração constitucional proposta.

O § 1º do artigo 153 está sendo modificado para facultar ao Poder Executivo, na forma das disposições legais aplicáveis, alterar suas alíquotas, observando-se, apenas, o princípio da legalidade, de vez que tais alterações são aplicáveis no mesmo exercício financeiro.

A proposta de um imposto seletivo exclusivamente para onerar bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente é nova, no cenário brasileiro, e relevante no contexto de boas práticas em matéria tributária, porém muito bem vinda, razão pela qual sua introdução deve contar com aprovação da sociedade. Tanto a saúde como o meio ambiente desfrutam de proteção constitucional, inserindo-se a saúde dentre os direitos sociais e o cuidado do meio ambiente como obrigação dos entes federados. Hoje o IPI exerce em pequena proporção essa tarefa, onerando com alíquotas mais gravosas certos produtos que são tidos como não essenciais e vinculados a comportamentos não desejáveis.

O relatório indica que a PEC 45-A inspirou-se nas Diretivas nº 92/12/CEE e 2003/96/CEE, afirmando que é comum, internacionalmente, introduzir impostos especiais sobre o consumo, devidos em razão de efeitos danosos de certos itens.

A oneração tributária do consumo de bens que causam danos à sociedade e ao meio ambiente funda-se em atributos denominados externalidades negativas, conceito oriundo da economia. O termo externalidade, negativa ou positiva, foi cunhado no início do século 20 e ganhou contornos definitivos nas décadas de 1940 e 1950 em decorrência dos princípios que orientam a Teoria Neo Clássica da Economia, também conhecida como economia do bem estar.

Nesse contexto teórico produção e consumo teriam efeitos diretos apenas para as pessoas que produzem e consomem, contudo, quando se encontra um efeito que extrapola daqueles que participaram dessa decisão, no caso produtor e consumidor, nasce uma externalidade não esperada e que afeta terceiros. Nessa situação, cabe ao Estado impedir ou inibir tais externalidades, visto que elas podem afetar toda ou parte significativa da coletividade, havendo diversos instrumentos propostos pela própria Economia para lidar com esse fenômeno como a sua tributação, a criação de sanções legais e, ainda, a concessão de incentivos (renúncia fiscal e subsídios) para proteger  pessoas e ambiente.[1]

Considerando-se o tratamento dado pela PEC 45-A ao imposto seletivo, observa-se que ele deverá onerar itens, que hoje estão tributados pelo IPI, mas que deixarão de sê-lo dadas suas características de afetarem a saúde e o meio ambiente. A tributação dos serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente é novidade no país, visto que os tributos que incidem sobre serviços não legislam sobre tais externalidades.

De acordo com o artigo 17, da PEC 45-A, o imposto seletivo entra em vigor na data de publicação da emenda, embora a cobrança do IPI, conforme o seu artigo 16, deva extinguir-se em 2033. Com isso, o imposto seletivo conviverá com o IPI, razão pela qual durante o período de transição (entre a data da publicação e o ano de 2033), fica vedada a incidência do IPI sobre os produtos sujeitos ao imposto seletivo. Além disso, esse tributo não incidirá sobre as exportações, integrando, porém, a base de cálculo do ICMS, do ISS, do IBS e da CBS.

O imposto seletivo representa custo do produtor/importador/prestador, integrando a base de cálculo de outros tributos, pois dessa forma se pode neutralizar seus efeitos na cadeia econômica, além de não integrar a própria base, visto que não mais teremos tributos por dentro.

  O atributo da seletividade, no caso do imposto seletivo, está associado a características negativas de bens e serviços vinculando-os a prejuízos à saúde e ao meio ambiente, a já comentada externalidade negativa. Esse critério é absolutamente diverso do uso da seletividade que orienta a tributação pelo IPI, no caso voltada à essencialidade do bem, praticamente vinculando-o com o princípio do mínimo essencial.

A par disso, não se olvide que o IPI sempre se prestou a ser objeto de regulação do consumo quando há interesse público no produto envolvido, inclusive como instrumento de incentivo, ou não, desse mesmo consumo, sob o argumento de movimentar a economia. O imposto seletivo, porém, afasta-se do critério da essencialidade do produto/serviço, para o cidadão, assentando-se nos prejuízos por ele causados às pessoas e ao meio ambiente.

Com esses detalhes se tem o perfil do imposto seletivo, como desenhado para fins constitucionais, até agora, sendo que o primeiro tema que deve ser considerado, a nosso ver, diz respeito ao que se há de entender por prejudicial, aquilo que, comprovadamente, causa danos e compromete a sobrevivência do ser humano e do meio ambiente e em que grau, para que o Estado não utilize da competência tributária que lhe foi outorgada de forma a taxar, sem qualquer maior fundamento, apenas com o fito de arrecadar.

A expressão “bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, como se observa, permite muitas interpretações e, claramente, necessita de lei específica, que já está prevista na PEC 45-A, que lhe dê os devidos contornos, pois esses atributos podem variar de pessoa para pessoa, bem como em função dos usos e costumes e, ainda assim, parece-nos muito difícil definir uma relação inclusiva e atualizada deles.

O melhor caminho a ser adotado a nosso ver, seria fixar uma lista taxativa, suscetível de alteração no tempo, no mesmo modelo da Lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003, que trata dos serviços sujeitos ao ISS.

A experiência internacional demonstra que certos itens como bebidas alcoólicas destiladas, tabaco, alimentos doces e outros têm sido alvo de tributação diferenciada em muitos países pois considerados, em definitivo, como vinculados a males os quais, hoje, a sociedade busca evitar.

Alguns países da Europa já implementaram esse tipo de tributação, há algum tempo, buscando desestimular o consumo excessivo de tais itens. Cite-se, ainda, como exemplo, que diversamente de agravar o ônus tributário sobre as bebidas alcoólicas, os países da União Europeia adotaram incentivos para a redução ou isenção de sua tributação, através dos chamados impostos especiais sobre o consumo de álcool e bebidas alcoolicas (Directiva nº 92/83/CEE, do Conselho, atualizada em sua versão de 2022). Entram na categoria de produtos que podem valer-se desses incentivos, as bebidas fermentadas de baixo teor alcoólico, dentre outros.

Com isso é possível afirmar-se que há dois diferentes caminhos para aplicar o imposto seletivo: exacerbar sua alíquota ou incentivar o consumo de itens menos danosos com isenções e alíquotas reduzidas que a lei complementar sobre a matéria poderá colher. A experiência internacional é rica de bons exemplos e, certamente, esse movimento no sentido de adotar tributo que, de alguma forma, crie tratamento diferenciado para tais itens, será bem visto pela comunidade internacional, servindo como elemento adicional na captura de investidores.

De outro lado, a introdução de um imposto seletivo estreitamente relacionado à proteção do meio ambiente alinha o Brasil com padrões internacionais propostos pelas Nações Unidas, em 2015, voltados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável — ODS, os quais congregam a comunidade global para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima. Tais objetivos devem estar concretizados, espera-se, em 2030.

Como regra, os países envolvidos com os ODS procuram introduzir tributos chamados verdes, “green taxes”, assim entendidos os tributos que incidem sobre a poluição, emissões de carbono, descarte de materiais, veículos usados no transporte e outros bens ou serviços que podem resultar em danos ao ambiente. Muitas vezes são outorgadas deduções que devem ser investidas em atividades de proteção ao meio ambiente.  A par disso, entram nessa categoria os incentivos fiscais-financeiros voltados à redução de tributos para aqueles que deixam de prejudicar o meio ambiente e que recebem verbas para investir em melhorias como é o caso da energia, do transporte, da poluição e dos recursos naturais.

Os tributos sobre a energia capturam o petróleo, a eletricidade em transportes, o gás natural, o carvão e outros elementos da natureza que trazem, atrás de si, de acordo com o uso que deles se faz, danos ao meio ambiente. O objetivo é desestimular esse consumo e operar no sentido de que novas matrizes energéticas sejam desenvolvidas. Um bom exemplo de adoção de tributos verdes é o projeto de reforma tributária proposto na Espanha, conhecido como Libro Blanco Sobre La Reforma Tributária,  de 2022[2].

No Brasil, a visão de que a atividade econômica pode gerar danos ao cidadão e ao ambiente foi capturada, bem antes do ora pretendido imposto seletivo, pelos agentes econômicos, a partir da visão de que uma organização pode gerar valor para a sociedade e para o ambiente. Esse tema é objeto de análise e divulgação sob o foco ESG, (environmental, social and governance), sigla inglesa que resume as principais práticas nos negócios adotadas pelas administrações das entidades e seus reflexos, as quais devem ser levadas a conhecimento para todos os interessados nessa entidade, os stakeholders, conforme Resolução 14/20, da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que introduziu o relato integrado o qual evidencia o quanto de valor a entidade agregou. A própria Bolsa de Valores categoriza as companhias abertas em função de suas práticas ESG.

Ou seja, havendo ou não normas protetivas de ESG emanadas do Poder Público, o administrador deve adotar as melhores práticas, sob pena de afastar os investidores por conta de danos que possa causar ao meio ambiente, à sociedade e à própria entidade.

A nosso ver, o tema abarcado pelo ESG já está amplamente tratado, no Brasil, para as empresas, de tal sorte que o Poder Público, ao editar a lei complementar sobre o imposto seletivo pode incluir, preferencialmente à exacerbação de tributação, os mecanismos indicados pela economia para tratar do tema (isenção, incentivos fiscais-financeiros, etc.), bem como um tratamento diferenciado para as entidades que já vêm mitigando riscos na observância das recomendações ESG.

De toda sorte, independentemente do que possa ocorrer em relação à PEC 45-A, até a conclusão do processo legislativo, parece-nos oportuna, sem deixar de ser tardia, a adoção de tributos nos moldes do imposto seletivo. Com isso, o Brasil insere-se na modernidade tributária que não mais convive com situações de desrespeito ao cidadão e ao meio ambiente.  Observe-se que diversos dispositivos constitucionais também estão sendo alterados para incluir a preservação do meio ambiente como princípio que deve orientar a tributação, em absoluta coerência com a criação do imposto seletivo. Entendemos que tais novidades são muitos boas. Aguardemos sua regulação.

[1] Veja-se  E.K.Hunt, História do Pensamento Econômico. 7ªed. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1981, pp.400-425.

[2] https://www.ief.es/docs/investigacion/comiteexpertos/LibroBlancoReformaTributaria_2022.pdf

Fonte: Conjur