Férias: pode haver convocação para prestar serviço no período?

Com a chegada do mês de julho, muitas pessoas se programam para usufruir das férias visando ao descanso, à desconexão com o trabalho, ao alívio da fadiga e à recuperação do estresse mental, assim como também para desfrutar do convívio familiar em razão do recesso escolar que acontece nessa mesma época.

Dito isso, por vezes há certa preocupação e sobretudo receio de o(a) trabalhador(a) deixar de atender aos chamados do seu empregador e de clientes durante esse período. Isto ocorre por medo de retaliação, de perder do emprego, de ser substituído(a) por outro(a) profissional, ou, ainda, simplesmente pelo fato de que, por não estar disponível em tal momento, poderia a conduta ser reputada displicente.

Nesse sentido, surgem algumas dúvidas e questionamentos: o(a) trabalhador(a) pode ser convocado(a) para prestar serviços nas férias? Quais seriam as consequências caso isso ocorra? E, mais, quais os cuidados que a empresa deve adotar para que tal direito do(a) trabalhador(a) não seja violado?

Por certo, o assunto é polêmico, tanto que a temática foi indicada por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista eletrônica Consultor Jurídico [1], razão pela qual agradecemos o contato.

De início, impende destacar que, de acordo com um levantamento do Instituto Ipsos, 53% dos trabalhadores apresentaram piora em sua saúde mental nos últimos anos, sendo o Brasil recordista de pessoas com transtornos de ansiedade e depressão [2].

Aliás, segundo os dados da International Stress Management Association, 72% da população brasileira apresenta alguma sequela do estresse, sendo que 32% são acometidos da Síndrome de Burnout [3].

Do ponto de vista normativo, no Brasil, de um lado, a Constituição Federal (CF) em seu artigo 7º, inciso XVII [4], preceitua que as férias são um direito social garantido ao (à) trabalhador(a). Lado outro, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) [5] assegura o direito às férias anuais após cada período de 12 meses de vigência do contrato de trabalho.

Nesse desiderato, oportunos são os ensinamentos do professor Homero Batista Mateus da Silva [6]:

“As férias têm a peculiaridade da natureza híbrida de direito e dever simultaneamente. Que elas correspondem a um direito do trabalhador não resta dúvida, conquistando-as o trabalhador em seu dia a dia de atividades prestadas ao empregador. Sua noção como dever certamente é a mais difícil de enxergar, num conceito que vem sendo esquecido pelas partes.

(…). O período deve compreender a mudança de hábitos e de rotina por parte do trabalhador, alteração de seu metabolismo e em seu ritmo devida, desligamento completo das atividades que acaso deixou pendentes e demais condições para um completo reequilíbrio mental e físico.

No dizer das ciências humanas voltadas ao estudo do equilíbrio do corpo e da mente, férias que mereçam esse nome são aquelas que o trabalhador consegue mudar não somente o ritmo cotidiano, mas também o sonho que povoa sua mente durante a noite”.

Sob essa perspectiva, uma pesquisa publicada no Journal of Nutrition, Health and Aging, em 2018, apontou que pessoas que tiram férias mais curtas apresentam 37% mais riscos de morrer, mesmo que possuam um estilo de vida saudável [7].

Portanto, nesse período de férias, em regra, é vedado à empresa convocar o(a) trabalhador(a) para o exercício de suas atividades, assim como importuná-lo(a) com e-mails, mensagens de aplicativos ou quaisquer outras formas de comunicação acerca de tarefas profissionais, haja vista que a finalidade do instituto é justamente o exercício da desconexão do trabalho e a recomposição da higidez física e mental.

À vista disso, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) já foi provocada a emitir um juízo de valor sobre essa temática, de modo que o entendimento foi no sentido de condenar uma empresa a pagar, em dobro, as férias de um trabalhador que laborou no período destinado ao descanso [8].

Em seu voto, o ministro ponderou o seguinte:

“(…). As férias têm a finalidade de recuperação e implementação das energias do trabalhador e de sua inserção familiar, comunitária e política.

Partindo-se desse objetivo, tem fundamento o questionamento suscitado pelo Reclamante no sentido de que o trabalho realizado em parte das férias desvirtuaria sua própria finalidade, razão pela qual deveria haver o pagamento em dobro não apenas dos dias indevidamente laborados, mas de todo o período de férias correspondente.

Ora, tendo o empregado sido convocado ao trabalho, mesmo por somente três dias, durante o prazo de gozo das férias, o instituto tem frustrada sua regular fruição, ensejando o correspondente novo pagamento da verba, no montante do total das férias fruídas e não somente dos dias laborados irregularmente”.

De igual modo, idêntico foi o entendimento da 2ª Turma do TST ao condenar uma empresa ao pagamento, em dobro, do período integral das férias, e não apenas dos dias laborados, haja vista a frustração do instituto [9].

Frise-se, por oportuno, que conquanto o período laborado nas férias possa ser compensado posteriormente, poderá haver a condenação do pagamento em dobro de acordo com a jurisprudência da Corte Superior Trabalhista, a qual interpreta de forma sistemática dos dispositivos legais [10].

Noutro giro, vale destacar que o lapso de férias não se trata apenas de um direito trabalhista, mas sim de um instituto que visa proporcionar o equilíbrio da saúde física e mental do(a) trabalhador(a) e um meio ambiente laboral saudável. Bem por isso, é forçoso lembrar que a ausência desse descanso irá trazer reflexos negativos na produtividade no trabalho e, quiçá, afastamentos médicos em razão do estresse e doenças mentais.

Outrossim, existem estudos acerca da importância das férias e os seus reflexos para a saúde do(a) trabalhador(a), inclusive no sentido de redução dos casos de depressão daquelas pessoas que gozam das férias e se desconectam do ambiente laboral [11].

Neste contexto, uma empresa indiana optou por multar os funcionários que atrapalhem as férias de seus colegas, independentemente do nível hierárquico, para que tal direito possa ser usufruído plenamente. Ainda, no caso em análise, a empresa realizou o bloqueio do trabalhador junto ao sistema da empresa e vedou o acesso ao e-mail e telefone corporativos [12].

Não há dúvidas de que havendo o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, assim como um tempo destinado para a recomposição da saúde física e mental, os reflexos positivos no trabalho serão visíveis.

Em arremate, o trabalho excessivo, sem pausas e férias, ao invés de aumentar a produtividade, poderá acarretar num ambiente tóxico e, por conseguinte, improdutivo. É forçoso destacar que a desconexão completa nesse período trará benefícios não só ao(à) trabalhador(a), mas também à empresa e à sociedade, já que a sobrecarga de trabalho aumenta o adoecimento físico e mental, afrontando direitos e garantias fundamentais.

[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] Disponível em https://exame.com/bussola/ferias-sao-mais-que-descanso-uma-pausa-para-recuperar-saude-mental/. Acesso em 4.7.2023.

[3] Disponível em https://www.segs.com.br/demais/366665-especialista-explica-a-importancia-do-recesso-e-das-ferias#:~:text=O%20per%C3%ADodo%20de%20f%C3%A9rias%20simboliza,sofre%20alguma%20sequela%20do%20estresse. Acesso em 4.7.2023.

[4] Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…). XVII – gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal;

[5] Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm. Acesso em 7.7.2023.

[6] Direito do trabalho aplicado: Direito Individual do Trabalho – São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021 – (Coleção Direito do Trabalho Aplicado; volume 2). Página 293 e 294.

[7] Disponível em https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2022/05/25/faz-mal-para-a-saude-nao-tirar-ferias.htm. Acesso em 4.7.2023.

[8]Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=92500&digitoTst=93&anoTst=2006&orgaoTst=5&tribunalTst=01&varaTst=0011&submit=Consultar. Acesso em 4.7.2023.

[9] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=684&digitoTst=94&anoTst=2012&orgaoTst=5&tribunalTst=04&v.araTst=0024&submit=Consultar. Acesso em 4.7.2023.

[10] Disponível em https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?consulta=Consultar&conscsjt=&numeroTst=136740&digitoTst=23&anoTst=2009&orgaoTst=5&tribunalTst=03&varaTst=0007&submit=Consultar. Acesso em 7.7.2023

[11] Disponível em https://www.anamt.org.br/portal/2017/07/14/como-as-ferias-picadas-podem-afetar-o-seu-descanso/. Acesso em 4.7.2023.

[12] Disponível em https://rhpravoce.com.br/redacao/empresa-multara-funcionarios-que-atrapalharem-as-ferias-dos-colegas/. Acesso em 4.7.2023.

Fonte: Conjur

Juiz das garantias e interpretação desconforme com a Constituição

A soberania do júri não pode se sobrepor à presunção de inocência. Dessa maneira, não é possível que a pena imposta pelos jurados seja executada imediatamente, mas apenas após o trânsito em julgado, como ocorre em todas as condenações penais. Essa é a opinião de especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Condenação imposta pelo júri não pode ser executada de imediato, dizem especialistas
TJ-RJ

O Supremo Tribunal Federal começou a julgar na última sexta-feira (30/6) se a condenação no tribunal do júri deve ser executada imediatamente. O julgamento, que ocorre no Plenário Virtual, está marcado para ser concluído em 7 de agosto. Até o momento, há cinco votos pela execução imediata da pena e três para aguardar o trânsito em julgado da sentença condenatória.

No caso julgado, o Superior Tribunal de Justiça permitiu ao réu recorrer em liberdade, com base no entendimento do STF de que a pena só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença condenatória (ADCs 43 e 44). O Ministério Público recorreu ao Supremo.

Em seu voto, o relator do caso, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que a soberania do júri prevalece sobre a presunção de inocência. Segundo Barroso, a presunção de inocência, por ser princípio, e não regra, pode ser “aplicada com maior ou menor intensidade, quando ponderada com outros princípios ou bens jurídicos constitucionais colidentes”.

Assim, para o ministro, não há violação da presunção de inocência com o imediato cumprimento da pena de réu condenado pelo júri. Ele também fez uma interpretação conforme a Constituição da lei “anticrime” (Lei 13.964/2019), que permitiu a execução provisória de pena superior a 15 anos imposta pelo júri.

Barroso propôs a seguinte tese de repercussão geral: “A soberania dos veredictos do tribunal do júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”.

O voto do relator foi seguido, até o momento, pelos ministros Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e André Mendonça. Os ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, presidente da corte, e Ricardo Lewandowski (aposentado) divergiram, entendendo que a pena só pode ser executada ao fim do processo. Faltam os votos dos ministros Kassio Nunes Marques, Edson Fachin e Luiz Fux.

Críticas ao ministro
Em artigo publicado na ConJur, o jurista Lenio Streck contestou o voto de Barroso. Streck afirmou que, se Barroso aplicasse corretamente a ponderação do jurista alemão Robert Alexy, chegaria à conclusão de que a presunção de inocência prevalece sobre a soberania do júri, uma vez que restringe a liberdade de acusados. Portanto, a pena decorrente de condenação do júri só poderia ser aplicada após o trânsito em julgado.

Lenio Streck afirma que Barroso
errou na ponderação de princípios
Reprodução/Twitter

O jurista também criticou o uso de estatísticas por Barroso, que deu a entender que é função do Judiciário combater crimes. Com isso, o ministro transforma o Direito em consequencialismo, algo que não pode ser admitido, segundo Lenio, que é professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

O constitucionalista ressaltou que nunca foi proibido prender depois de decisão de segundo grau. “Nem a liberdade é automática para recorrer e nem a prisão pode ser obrigatória-automática. O voto do ministro dá ares de automaticidade à prisão se a decisão vier do júri. E isso fere o precedente vinculante” (ADCs 43 e 44).

Além disso, ele destacou que é inconstitucional o dispositivo da lei “anticrime” que retira o efeito suspensivo das apelações contra condenações a penas superiores a 15 anos pelo tribunal do júri. Afinal, para Streck, isso igualmente viola o princípio da presunção de inocência.

“Não devemos perder a oportunidade de debater, para além da prisão automática e sua afronta à presunção da inocência, qual é o papel da doutrina no Direito brasileiro. Por qual razão a doutrina se transformou em caudatária da jurisprudência? Por qual razão um voto como o do ministro Barroso não tem maior repercussão e não gera uma posição mais crítica da doutrina? Ou a doutrina concorda que se pode usar a tese da ponderação de Alexy desse modo? Ou que precedentes da própria Corte Maior podem ser ignorados?”, questionou ele à ConJur.

Presunção de inocência
Especialistas em Direito Processual Penal concordam com a crítica ao voto de Luís Roberto Barroso, ressaltando que o princípio da soberania do júri não pode se sobrepor à presunção de inocência.

Aury Lopes Jr., professor de Direito Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, afirma que o voto de Barroso “é um grave erro, que desconsidera a presunção de inocência até o trânsito em julgado, enquanto dever de tratamento, reafirmada pelo próprio STF”.

“A soberania dos veredictos não tem, absolutamente, nada que ver com execução antecipada da pena ou ponderação da presunção de inocência”, avaliou. Conforme Lopes Jr., a soberania está vinculada ao ato de julgar, à definição de fatos, ao julgamento feito pelos jurados por meio dos quesitos, não à prisão automática como consequência do julgamento.

A proposta de Barroso não é uma interpretação conforme a Constituição, é “simplesmente reescrever um artigo de lei e suprimir — sem justificativa legítima — o limite de pena ali estabelecido (os tais 15 anos, que também é um ‘limite’ ilógico, irracional e inconstitucional)”, declarou Lopes Jr.

“Enfim, nada justifica tamanho retrocesso, ainda mais se considerarmos que sempre cabe a prisão preventiva, em qualquer fase, se houver uma necessidade cautelar. O que não cabe é prisão automática em primeiro grau, com ampla possibilidade de recurso de apelação, em flagrante violação da presunção de inocência”, opinou o docente da PUC-RS.

Não é possível pensar em ponderação no caso porque a previsão de soberania do júri é regra, portanto, não está sujeita a tal forma de análise, ressaltou Antonio Eduardo Ramires Santoro, professor de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

“Além disso, é absolutamente paradoxal estabelecer a prevalência da regra da soberania do júri sobre a presunção de inocência, uma garantia estruturante do sistema penal brasileiro. Um sistema fundado nos direitos humanos não pode transigir com regras específicas, como as que se dirigem ao tribunal do júri”, destacou Santoro.

Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo, aponta que não há o que sopesar na ação, pois não há colisão entre a soberania dos vereditos do júri e a presunção de inocência.

“A presunção de inocência, enquanto regra de tratamento do acusado que não pode ser tratado como se fosse culpado antes do trânsito em julgado da condenação penal — o que inclui a execução provisória da pena —, não colide com a soberania dos veredictos, enquanto atributo dos jurados de dar a última palavra sobre os temas que são de sua competência na sentença subjetivamente complexa do júri, não podendo ser substituídos, em suas decisões, por um magistrado togado”, analisou Badaró.

O professor da USP também ressaltou o perigo de usar estatísticas para fundamentar restrições de direitos fundamentais. Barroso, em seu voto, lançou mão do argumento do “inexpressivo percentual de modificação das decisões condenatórias do júri”.

“O voto desenvolve o seguinte argumento estatístico: ‘E todas as decisões proferidas pelo júri, em apenas 1,97% dos casos houve a intervenção do tribunal de segundo grau para, a pedido do réu, devolver a matéria para a análise do júri’. Isso significa, em grandes números, que para o ministro Roberto Barroso não há problemas de, a cada cem pessoas, duas delas terem a sua liberdade irreparavelmente lesada.”

O especialista em processo penal cita um exemplo para demonstrar a inadequação das estatísticas para restringir direitos fundamentais. Em 2021, tramitaram 94 casos de foro por prerrogativa de função no STF. No mesmo ano, tramitaram 7,8 milhões de processos criminais no Brasil.

“Logo, os casos de foro por prerrogativa de função, no total de processos penais brasileiros, correspondem a um percentual muito inferior a 1,97%, de aproximadamente 0,00001%. Creio que os ministros concordarão que, nem por isso, devemos acabar com o foro por prerrogativa de função, inclusive para magistrados do STF”, destacou ele.

“A estatística é um mau argumento quando se trata de restringir direitos fundamentais. Até porque os direitos fundamentais, exatamente por esse caráter, devem estar a salvo até mesmo da vontade das maiorias momentâneas. Isso é Estado democrático de Direito”, disse Badaró.

Crimes contra a democracia estão entre os temas de destaque do Entender Direito em 2023

Crimes contra

O programa Entender Direito abriu o ano judiciário de 2023 com um debate sobre a Lei 14.197/2021, que tipificou uma série de crimes contra o Estado Democrático de Direito. A conversa com especialistas, conduzida pela jornalista Fátima Uchôa, girou em torno das repercussões jurídicas dos ataques contra as sedes dos três poderes no dia 8 de janeiro.

Entre as condutas criminosas fixadas na nova lei, estão o golpe de Estado e a interrupção do processo eleitoral, com penas que chegam a 15 anos de reclusão. O normativo também revogou a Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/1983).

Foram entrevistados o professor e promotor de Justiça do Ministério Público de Mato Grosso Renee Souza e o professor e promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo Ricardo Silvares.

Grandes temas do direito em debate

Entender Direito é um programa quinzenal que aborda discussões relevantes no meio jurídico e acadêmico, com a participação de juristas e operadores do direito debatendo cada tema à luz da legislação e da jurisprudência do STJ. Durante as férias coletivas dos ministros, em julho, o programa é reprisado na TV e na Rádio Justiça.

Confira a entrevista na TV Justiça, às quartas-feiras, às 10h, com reprises aos sábados, às 14h, e às terças, às 22h. Também está disponível no canal do STJ no YouTube. Na Rádio Justiça (104,7 FM – Brasília), o programa é apresentado de forma inédita aos sábados, às 7h, com reprise aos domingos, às 23h.

a democracia estão entre os temas de destaque do Entender Direito em 2023

Consumidores com autismo e as práticas abusivas dos planos

A estatística mais recente do Center for Disease Control, divulgada em março de 2023, estima que uma em cada 34 crianças nos Estados Unidos apresentam autismo [1]. Já a estatística global utilizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), atualizada em maio de 2022, estima a presença de pelo menos uma pessoa com TEA em cada grupo de cem [2]. No Brasil, não há dados seguros acerca da quantidade de pessoas com autismo, porém se estima — com base nas referências internacionais indicadas — a existência de algo entre dois e seis milhões de pessoas com TEA no país [3].

De fato, o transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades de comunicação e interação social, bem como pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. Tais sintomas configuram o núcleo do transtorno, podendo a gravidade de sua apresentação variar de indivíduo para indivíduo. Trata-se de um transtorno permanente, para o qual não há cura, sendo o diagnóstico e intervenção precoces com realização de terapias de alta intensidade e longa duração por equipe multiprofissional — envolvendo a atuação de profissionais de psicologia, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, dentre outros — a principal forma de assegurar o melhor desenvolvimento e qualidade de vida à pessoa com TEA [4].

Diante da enorme importância do tema, verifica-se que os direitos da pessoa com TEA são assegurados por diferentes diplomas normativos no Brasil, merecendo destaque a Lei 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) a qual instituiu a Política Nacional dos Direitos da Pessoa com TEA, reconhecendo o autismo como uma deficiência para todos os efeitos legais e destacando os direitos ao diagnóstico precoce e atendimento terapêutico multiprofissional. Ainda, desde 2020, com o advento da Lei 13.977 (Lei Romeo Mion) foram instituídas a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea) e a fita quebra-cabeça como símbolo do TEA, tudo isso com o intuito de assegurar às pessoas com TEA atenção integral, pronto atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados.

De outro lado, porém, a realidade vivida pelas pessoas com TEA e por seus núcleos familiares está longe da prevista na ordem jurídica. Falta acesso aos serviços de saúde que assegurem o diagnóstico precoce e o atendimento terapêutico multiprofissional, tanto na rede pública quanto privada. Ademais, os custos adicionais necessários ao atendimento dessas necessidades num contexto de carência de coberturas públicas e privadas sobrecarregam e hipervulnerabilizam economicamente essas pessoas [5].

Especificamente no que pertine a relação estabelecida entre usuários de planos de saúde com autismo e as respectivas operadoras de planos de saúde a questão se reveste de aspectos dramáticos, especialmente no que diz respeito à negativa e/ou limitação dos tratamentos terapêuticos de que esses pacientes necessitam.

De fato, a atividade das operadoras de planos de saúde encontra seu regramento legal especificado na Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, conhecida como Lei dos Planos de Saúde e, também nas normas regulamentadoras expedidas pelo órgão regulatório responsável pelo setor, notadamente, a Agência Nacional de Saúde Suplementar [6].

Ocorre que as operadoras de planos de saúde são pessoas jurídicas que desenvolvem uma atividade econômica que envolve a ligação de uma cadeia de atividades — fornecedores de materiais médicos, equipamentos e medicamentos, prestadores de serviços de saúde, entre outros — e seus usuários finais [7], que são pessoas físicas que aderem ao contrato referente aos serviços de seguridade e assistência à saúde das operadoras de planos de saúde. Nesse sentido, é facilmente perceptível que a relação estabelecida entre as operadoras de planos de saúde e seus usuários se amolda perfeitamente ao conceito legal de relação jurídica de consumo [8], pelo que incidente o regramento do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

De fato, o tema foi objeto de significativa controvérsia resultando na edição, em 2018, pelo Superior Tribunal de Justiça do enunciado sumular nº 608, conforme o qual: “aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão”.

De outro lado, a recente Lei nº 14.454/2022, de 21 de setembro de 2022 — a qual alterou a Lei dos Planos de Saúde para estabelecer critérios que permitam a cobertura de tratamentos que não estão incluídos no rol de procedimentos da ANS — inseriu uma importante alteração no artigo 1º da Lei nº 9.656/1998 que passou a vigorar com a seguinte redação:

“Art. 1º — Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições:”

Nesse sentir, passou a constar expressamente no artigo 1º da Lei dos Planos de Saúde que as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde se submetem não somente à lei de regência de sua atividade e às regulamentações da ANS, como também, e simultaneamente, às disposições do CDC.

Trata-se de alteração legislativa recente e de enorme significância, tendo em vista que não somente restou materializado no texto legal o consolidado entendimento acerca da aplicabilidade do CDC às relações entre usuários e operadoras de planos de saúde. Para além disso, a alteração legislativa trouxe um novo marco legislativo sobre a aplicação do microssistema consumerista relativamente às entidades de autogestão [9] — pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos que operam planos coletivos voltados a determinados indivíduos vinculados a uma entidade pública ou privada (p.e. Ipergs-Saúde, Plan Assiste MPU) — que operam planos de saúde, visto que estas encontram sua regulação legal na mesma Lei nº 9.656/1998 e, portanto, em relação a elas também se aplicam as disposições do CDC. Supera-se, pois, a restrição consignada no enunciado nº 608 do STJ.

Por outro aspecto, retomando a análise da relação entre os consumidores-usuários de planos de saúde e suas fornecedoras, as entidades privadas de assistência à saúde, cumpre atentar para as peculiaridades dessa relação. De fato, no âmbito desta relação jurídica, destaca-se como especialmente relevante o princípio da proteção da confiança, assim entendido como “a necessária tutela que a ordem jurídica confere a situações conhecidas como expectativas legítimas” [10]. Efetivamente, com muito mais intensidade que em outras modalidades de serviços, ao contratar um plano privado de assistência à saúde, o consumidor tem a expectativa legítima de que encontrará amparo dos serviços da operadora quando deles assim necessitar [11] [12].

Outrossim, o inciso IV, do artigo 6 º do CDC, estabelece como direito básico do consumidor a proteção contra práticas e cláusulas abusivas no fornecimento de produtos e serviços, de maneira que são abusivas as cláusulas e as práticas que criam obstáculos ao acesso a procedimentos e tratamentos de saúde de modo a comprometer a satisfação útil do contrato [13].

Ainda, nesse contexto se faz necessária a compreensão das pessoas com transtorno do espectro autista enquanto consumidores hipervulneráveis.

Sabe-se que todo consumidor é vulnerável por sua própria posição jurídica de consumidor. Há, no entanto, circunstâncias concretas verificadas em determinados indivíduos e grupos sociais que os colocam numa condição de especial vulnerabilidade, de uma vulnerabilidade agravada [14], frente ao fornecedor, e a tal situação a doutrina e jurisprudência dominantes denominam de hipervulnerabilidade [15] [16].

Quanto às pessoas com TEA — as quais se encontram abarcadas na categoria de pessoas com deficiência [17] — a sua especial vulnerabilidade é reconhecida em inúmeros dispositivos presentes no corpo da Constituição Federal de 1988, na Convenção Internacional sobre a Proteção das Pessoas com Deficiência (com status normativo de norma constitucional), em normas convencionais infraconstitucionais (p. e. Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência), e, ainda, em normas legais como a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015) e a Lei Berenice Piana.

Vale dizer, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio, o consumidor com transtorno do espectro autista é vulnerável por ser consumidor e, cumulativamente, é vulnerável por ser pessoa com deficiência.

De outra maneira, tal hipervulnerabilidade — decorrente da cumulação da condição de consumidor e pessoa com TEA — não exclui a sobreposição de outras ordens de vulnerabilidade. Em outras palavras, é perfeitamente possível, e até frequente, a cumulação de múltiplas vulnerabilidades em um mesmo indivíduo ou grupo social, por exemplo: uma criança com TEA beneficiária de plano de assistência privada à saúde será vulnerável não somente enquanto consumidora e pessoa com TEA, mas também enquanto criança.

Aliás, na esteira do que já se disse acerca da hipervulnerabilidade, é de reconhecer a necessidade de proteção jurídica ainda mais intensa e ampla aos consumidores com TEA que se encontram nessa posição de hipervulnerabilidade agudizada ou múltiplas vulnerabilidades. Isso porque, considerando as peculiaridades já analisadas acerca do transtorno do espectro autista — um transtorno do neurodesenvolvimento para o qual preconizado o diagnóstico precoce, ainda na primeira infância, e a aplicação de tratamento multiprofissional, intensivo e de longa duração — é de reconhecer que os consumidores com TEA mais frequentemente afetados pelas práticas abusivas das operadoras de planos de saúde são justamente as crianças com autismo e, portanto, um segmento de consumidores sob múltiplas vulnerabilidades.

Dessa forma, incidente o microssistema protetivo do direito do consumidor às relações estabelecidas entre os beneficiários de planos de saúde e suas correlatas operadoras, pontuadas as peculiaridades dessa relação contratual, bem como compreendida a pessoa com TEA enquanto consumidora hipervulnerável, evidente que a limitação de tratamentos terapêuticos indispensáveis à preservação da vida, saúde e desenvolvimento das pessoas com TEA representa uma prática abusiva das operadoras de planos de saúde em detrimento desses grupo de consumidores especialm

[1] MAENNER, Mathew J.; SHAW, Kelly A.; BAKIAN, Amanda V.; et alli. Prevalence and Characteristics of Autism Spectrum Disorder Among Children Aged 8 Years — Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 Sites, United States, 2020. MMWR Surveill Summ 2023;70 (No. SS-2):1–14. Disponível em: http://dx.doi.org/10.15585/mmwr.ss7202a1 Acesso em: 08 jun. 2023.

[2] ZEIDAN, Jinan; FOMBONNE, Eric; SCORAH, Julie; IBRAHIM, Alaa; DURKIN, Maureen S.; SAXENA, Shekhar; YUSUF, Afiqah; SHIH, Andy; ELSABBAGH, Mayada. Global prevalence of autism: A systematic review update. Autism Reserach, maio 2022. Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9310578/. Acesso em: 20 jan. 2023

[3] SANTIN, Douglas Roberto Winkel. As relações de consumo e os consumidores hipervulneráveis com autismo: as práticas abusivas das operadoras de planos de saúde. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, p. 110. 2023.

[4] SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. Manual sobre Transtorno do Espectro do Autismo. Porto Alegre: SBP, 2019. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf Acesso em: 20 out. 2022.

[5] ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE – OMS. Relatório mundial sobre a deficiência (World Report on Disability, 2011). São Paulo: SEDPcD, 2012. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/44575/9788564047020_por.pdf. Acesso em: 19 jan. 2023.

[6] GREGORI, Maria Stella. A lei dos planos de saúde: aspectos históricos e jurídicos. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: vol.121/2019, p. 347-364, 2019. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/revista-dos-tribunais-online.html. Acesso em: 20 jan.2023.

[7] AZEVEDO, Paulo Furquim de; et al. A cadeia de saúde suplementar no Brasil: avaliação de falhas de mercado e propostas de políticas. São Paulo: INSPER, 2016. Disponível em: https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2018/09/estudo-cadeia-de-saude-suplementar-Brasil.pdf. Acesso em: 20 jan. 2023.

[8] AZEVEDO, Fernando Costa de. Uma Introdução ao Direito Brasileiro do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, vol. 69, p.32-86. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/revista-dos-tribunais-online.html. Acesso em: 20 jan.2023

[9] SILVA, Joseane Suzart Lopes da. Planos de Saúde, 2.ª ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

[10] AZEVEDO, Fernando Costa de. O direito do consumidor e seus princípios fundamentais. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Dossiê Consumo e Vulnerabilidade: a proteção jurídica dos consumidores no século XXI. Vol. 03, N. 1, Jan-Jun., 2017. Disponível em https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/revistadireito/issue/view/662. Acesso em: 20 out. 2022

[11] PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Planos de Saúde e Direito do Consumidor in MARQUES, Cláudia Lima e outros (orgs). Saúde e Responsabilidade 2 – a nova assistência privada à saúde, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008

[12] MELLO, Heloísa Carpena Vieira de. Seguro-Saúde e abuso de direito. In:MARQUES, Claudia Lima (org.). Doutrinas Essenciais do Direito do Consumidor. Org. Cláudia Lima Marques. São Paulo: RT., 2011. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/revista-dos-tribunais-online.html. Acesso em: 20 jan.2023

[13] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.573.

[14] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.201.

[15] MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2012.

[16] AZEVEDO, Fernando Costa de. O Núcleo familiar como coletividade hipervulnerável e a necessidade de sua proteção contra os abusos da publicidade dirigida ao público infantil. Revista de Direito do Consumidor, vol. 123, p.17-35. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2019. Disponível em: https://www.thomsonreuters.com.br/pt/juridico/revista-dos-tribunais-online.html. Acesso em: 20 jan.2023

[17] NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. Proteção jurídica das pessoas com deficiência nas relações de consumo. Curitiba: Juruá, 2016.

Fonte: Conjur

Prêmios retidos por representante de seguros não se submetem aos efeitos da recuperação judicial

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que os valores dos prêmios arrecadados pela representante de seguros e não repassados à seguradora não constituem créditos sujeitos à recuperação judicial da primeira, e por isso podem ser cobrados. Com esse entendimento, o colegiado deu provimento ao recurso de uma seguradora que buscava a anulação do acórdão que extinguiu sua ação de cobrança contra uma empresa vendedora de eletrodomésticos, que se encontra em recuperação.

Na origem do caso, as duas empresas firmaram parceria para a venda aos consumidores de seguro de garantia estendida dos produtos. Atuando como representante de seguros, a varejista não repassou à seguradora prêmios que recebeu dos consumidores antes do deferimento de seu pedido de recuperação. O juízo de primeira instância considerou que esses valores não se sujeitariam à recuperação e julgou procedente a ação de cobrança.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), contudo, extinguiu a ação sem resolução de mérito, sob o entendimento de que a retenção da quantia que pertencia à seguradora se equipara a qualquer outro tipo de descumprimento de obrigação, e que o crédito constituído em momento anterior ao pedido de recuperação deve ser habilitado pela credora.

Retenção de bens fungíveis, de titularidade de terceiro, não gera créditos para fins da lei falimentar

A ministra Isabel Gallotti, relatora do caso no STJ, comentou que o contrato firmado entre a companhia seguradora e a representante permitia que o bem fungível – quantia recolhida do consumidor a título de prêmio – ficasse em posse da segunda empresa, até o momento de seu repasse.

A magistrada lembrou que a Segunda Seção do STJ, ao julgar o CC 147.927, definiu que o descumprimento da obrigação de devolver bens fungíveis, no caso de contrato de depósito regular em armazém, não ensejava a constituição de crédito para os fins da legislação falimentar.

“No mencionado precedente, foi razão de decidir, para a Segunda Seção, o fato de que a propriedade dos bens fungíveis depositados não havia sido transferida para a empresa em recuperação judicial”, afirmou.

Intermediação não torna a representante proprietária momentânea dos valores

Isabel Gallotti também destacou que o contrato de representação de seguro se diferencia do depósito bancário, pelo qual a propriedade do dinheiro é transferida ao banco, que o investe. Segundo ela, não se poderia falar que o banco está obrigado a manter em seus cofres todos os valores depositados; já na hipótese da representação securitária, ao contrário, a propriedade dos prêmios não é do representante, pois se considera que o pagamento é feito à própria seguradora.

A ministra ressaltou que, desde o momento da emissão dos bilhetes de seguro e do recebimento do prêmio pela representante, em nome da seguradora, o contrato se aperfeiçoa e a seguradora passa a ser responsável pelo risco que lhe é transferido. Assim, de acordo com a magistrada, a intermediação não torna a representante proprietária momentânea dos valores sob a sua posse, assim como ela não é responsável pela cobertura do risco.

“Conclui-se, pois, de forma similar aos produtos agropecuários depositados em armazém, aos créditos consignados e ao dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, que os prêmios de seguro não são de propriedade da empresa recuperanda. Logo, os valores que deveriam ser repassados à ora recorrente não estão abrangidos pela recuperação judicial, deles não se podendo servir a recuperanda no giro de seus negócios ou para pagar credores”, declarou Gallotti.

STF remarca para agosto julgamento sobre descriminalização de drogas

O Supremo Tribunal Federal (STF) remarcou para 2 de agosto o julgamento que trata da possível descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal.

O processo sobre o assunto deveria ter sido julgado em junho deste ano, mas foi adiado em função das sessões destinadas ao julgamento do ex-presidente Fernando Collor.

A descriminalização começou ser analisada em 2015, mas o julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

O caso trata da posse e do porte de drogas para consumo pessoal, infração penal de baixa gravidade que consta no Artigo 28 da Lei das Drogas (Lei 11.343/2006). As penas previstas são advertência sobre os efeitos das drogas, serviços comunitários e medida educativa de comparecimento a programa ou curso sobre uso de drogas.

Até o momento, três ministros – Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Gilmar Mendes – votaram, todos a favor de algum tipo de descriminalização da posse de drogas.

O recurso sobre o assunto tem repercussão geral reconhecida, devendo servir de parâmetro para todo o Judiciário brasileiro.

Fonte: Logo Agência Brasil

Ministério Público não é obrigado a notificar investigado sobre acordo de não persecução penal

O acordo, criado pelo Pacote Anticrime, é uma possibilidade no caso de infrações penais cometidas sem violência ou grave ameaça e que tenham pena mínima inferior a quatro anos.

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou o entendimento de que, por falta de previsão legal, o Ministério Público (MP) não tem a obrigação de notificar o investigado acerca de sua recusa em propor o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).

Para o colegiado, se o acusado só tomar conhecimento da recusa na citação, após o recebimento da denúncia, isso não o impedirá de requerer a remessa dos autos ao órgão de revisão do MP.

Denunciado pelos artigos 309 e 311 do Código de Trânsito brasileiro (CTB), em concurso material com o crime previsto no artigo 330 do Código Penal (CP), o réu recorreu de acórdão que concluiu que o juiz não poderia ter rejeitado a denúncia apenas porque o MP não o notificou sobre a propositura ou a recusa do ANPP.

Após o tribunal de segundo grau determinar a manifestação do MP, o órgão afirmou que deixou de notificar os denunciados porque eles não se apresentaram na Promotoria de Justiça acompanhados de advogados ou defensores públicos para o oferecimento da proposta de acordo.

No recurso dirigido ao STJ, a defesa sustentou que a rejeição da denúncia seria cabível, pois o réu cumpria os requisitos legais previstos no artigo 28-A do Código de Processo Penal (CPP) para o acordo e, mesmo assim, o órgão ministerial não o propôs, sem apresentar a devida motivação para tanto.

Por falta de previsão legal, MP não tem obrigação de notificar o denunciado

O relator do caso, o desembargador convocado Jesuíno Rissato, ressaltou que o entendimento adotado no acórdão do tribunal de origem encontra respaldo na jurisprudência do STJ, segundo a qual, por ausência de previsão legal, o Ministério Público não é obrigado a notificar o investigado acerca da propositura do ANPP.

O desembargador destacou também que, conforme a interpretação conjunta do artigo 28-A, parágrafo 14, e artigo 28, ambos do Código de Processo Penal (CPP), a ciência da recusa ministerial pode ser verificada com a citação do acusado, após o recebimento da denúncia.

Conforme explicou o relator, o acusado pode, na primeira oportunidade de se manifestar nos autos, requerer a remessa dos autos ao órgão de revisão ministerial, caso discorde da posição tomada pelo Ministério Público.

Fonte: STJ

STF deve finalizar hoje julgamento sobre piso salarial da enfermagem

O Supremo Tribunal Federal (STF) vai finalizar, nesta sexta-feira (23), o julgamento sobre a validade do pagamento do piso salarial nacional para os profissionais de enfermagem.

O processo está em julgamento no plenário virtual da Corte. A votação será encerrada às 23h59. Na semana passada, o caso voltou a ser julgado após dois pedidos de vista diante de divergências apresentadas pelos ministros em relação à operacionalização do pagamento.

Em maio, o relator do processo, ministro Luís Roberto Barroso, estabeleceu regras para o pagamento do piso aos profissionais que trabalham no sistema de saúde de estados e municípios nos limites dos valores recebidos pelo governo federal.

Votos

Até o momento, a maioria dos ministros se manifestou para validar o pagamento conforme a lei para os profissionais que são servidores públicos da União, de autarquias e de fundações públicas federais.

O piso também fica valendo para servidores públicos dos estados e municípios e do Distrito Federal, além dos enfermeiros contratados por entidades privadas que atendam 60% de pacientes oriundos do SUS.

O impasse na votação está no pagamento aos profissionais celetistas, que trabalham em hospitais privados.

Está vencendo a proposta do ministro Dias Toffoli. Para o ministro, o pagamento do piso aos enfermeiros privados deve ocorrer conforme negociação coletiva da categoria na região do país em que o profissional trabalha, devendo prevalecer o “negociado sobre o legislado”.

Também votaram nesse sentido os ministros Alexandre de Moraes, Luiz Fux e Nunes Marques.

Os ministros Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Carmen Lúcia estabeleceram somente a negociação coletiva entre patrões e empregados como critério para o pagamento do piso.

Para Edson Fachin e Rosa Weber, o piso deve ser garantido para todas as categorias de enfermeiros públicos e privados.

Falta o voto do ministro André Mendonça.

O novo piso para enfermeiros contratados sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é de R$ 4.750, conforme definido pela Lei nº 14.434. Técnicos de enfermagem recebem, no mínimo, 70% desse valor (R$ 3.325) e auxiliares de enfermagem e parteiras, 50% (R$ 2.375). Pela lei, o piso vale para trabalhadores dos setores público e privado.

Suspensão

No ano passado, o pagamento do piso havia sido suspenso pelo STF devido à falta de previsão de recursos para garantir o pagamento dos profissionais, mas foi liberado após o presidente Luiz Inácio Lula da Silva abrir crédito especial para o repasse de R$ 7,3 bilhões para estados e municípios pagarem o piso.

Fonte: Agência Brasil

Como protege direitos, juiz das garantias não cabe só ao Judiciário

Para manter a autonomia, o Judiciário tem competência privativa para propor alterações em sua estrutura e funcionamento. Porém, esse argumento não serve para barrar leis de iniciativa do Legislativo ou do Executivo que, com o fim de proteger direitos fundamentais, promovem mudanças na Justiça — como o juiz das garantias.

Ao criar o mecanismo, a Lei “anticrime” (Lei 13.964/2019) buscou reduzir o risco de parcialidade nos julgamentos. Com a medida, o juiz das garantias fica responsável pela fase investigatória e o juiz da instrução fica a cargo do andamento do processo e da sentença. Entre as atribuições do juiz das garantias está decidir sobre o requerimento de prisão provisória ou outra medida cautelar e sobre a homologação de acordo de colaboração premiada. A competência do julgador acaba com o recebimento da denúncia ou queixa.

A partir desse momento, o juiz da instrução assume o caso e, em até dez dias, deve reexaminar a necessidade das medidas cautelares impostas pelo juiz das garantias. E o julgador que, na fase de investigação, praticar atos privativos da autoridade policial ou do Ministério Público, ficará impedido de atuar no processo.

Em 22 de janeiro de 2020, um dia antes de a lei “anticrime” (que havia sido adiada por 180 dias pelo ministro Dias Toffoli) entrar em vigor, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux suspendeu a implementação do juiz das garantias. Três anos depois, Fux apresentou voto pela inconstitucionalidade, por diversos aspectos, do juiz das garantias.

Um dos principais argumentos do ministro e dos autores das ações, como a Associação dos Magistrados Brasileiros e a Associação dos Juízes Federais do Brasil, é que a norma desrespeitou a reserva de iniciativa do Judiciário para dispor sobre a competência e funcionamento dos órgãos jurisdicionais e a criação de novas varas (artigo 96, I, “a” e “d”, da Constituição).

O pacote “anticrime” foi apresentado por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública do governo Jair Bolsonaro (PL), em fevereiro de 2019. Na Câmara dos Deputados, a proposta foi apensada ao Projeto de Lei 10.372/2018, que reunia sugestões de alteração da legislação penal e processual penal feitas por comissão de juristas presidida pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Ou seja: a Lei “anticrime” teve origem no Executivo e no Legislativo, não no Judiciário.

O texto de Moro foi significativamente alterado no Congresso, de forma a atenuar seu teor punitivista. Em setembro de 2019, o grupo de trabalho que analisava o pacote “anticrime” na Câmara aprovou emenda que incluía a criação do juiz das garantias no projeto. A proposta foi dos deputados Margarete Coelho (PP-PI) e Paulo Teixeira (PT-SP). Em dezembro daquele ano, o projeto foi aprovado pelo parlamento e sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).

O Judiciário tem algumas competências legislativas e regulamentares exclusivas, listadas nos artigos 93 e 96 da Constituição. Por exemplo, cabe ao Supremo Tribunal Federal, aos tribunais superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao poder Legislativo respectivo reajustes salarias, criação e extinção de cargos e cortes inferiores e alteração da organização e da divisão judiciárias. Também compete aos tribunais dispor sobre a competência e o funcionamento de seus órgãos jurisdicionais e administrativos. E o Supremo é o responsável por regulamentar o Estatuto da Magistratura.

Dos três poderes, o Judiciário é o único que não tem legitimidade popular. Afinal, seus membros não são eleitos pelo povo. Eles ingressam na carreira por meio de concurso público ou escolha do chefe do Executivo — nos postos de magistrados eleitorais ou selecionados pelo quinto constitucional ou ministros de tribunais superiores.

Ainda assim, a competência do Judiciário para dispor sobre sua estrutura, funcionamento e orçamento não é antidemocrática, avalia Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

“O Judiciário é um poder de Estado, não é um órgão qualquer. Como poder de Estado, deve ter o mínimo de autonomia financeira e estrutural”, afirma Serrano.

As hipóteses de iniciativa legislativa reservada ao Judiciário são concretizações do princípio da separação de poderes. Portanto, não violam o princípio democrático, desde que adequadamente interpretadas, opina Rodrigo Brandão, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“A Constituição forma um sistema harmônico que equilibra os princípios da separação de poderes e democrático, do que resulta que as hipóteses de iniciativa privativa são apenas aquelas previstas expressamente na Constituição, de modo que as demais matérias podem ter a sua iniciativa em parlamentares ou na chefia do poder Executivo. Apenas a interpretação excessivamente abrangente das hipóteses de iniciativa privativa poderiam ser antidemocráticas ou estimular o corporativismo, e não a sua previsão em si pelo constituinte”.

Direitos fundamentais
A questão é que o juiz das garantias, embora interfira na organização e funcionamento do Judiciário, é matéria processual penal, que visa garantir direitos fundamentais. E a Justiça não tem competência privativa nessa matéria, afirma o jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá.

“Não entendo essa objeção de ordem formal. O que o STF deve é fazer uma leitura constitucionalmente adequada do juiz das garantias, uma leitura substancial, e não meramente procedimental, do dispositivo que atribui competência privativa ao Judiciário. O juiz das garantias altera a estrutura do Judiciário, é verdade. Mas, antes disso, proporciona alterações no Código de Processo Penal. Um ponto importante: garantias processuais são matéria que diz respeito a direitos fundamentais”.

“Não se pode deixar que o Judiciário — só ele — tenha iniciativa. Quer dizer: pode o sistema de garantias esperar pela boa vontade do judiciário? O poder Legislativo é competente de forma mais ampla”, diz Lenio. Ele ressalta que a alteração na estrutura do Judiciário é um efeito colateral da criação de um instrumento fundamental, que existe em diversos outros países.

A criação do juiz das garantias não é uma mera questão de estrutura do Judiciário, diz Pedro Serrano. “O mecanismo diz respeito ao exercício de um direito fundamental. Ter juízes diferentes para conduzir a investigação e o processo é algo essencial para a garantia de imparcialidade do juízo e do devido processo legal”.

Rodrigo Brandão também entende que a instituição do mecanismo não é de iniciativa privativa do Judiciário. Isso porque “a matéria é tipicamente de processo penal, não se relacionando com o regime jurídico da magistratura (artigo 93 da Constituição), nem com a autonomia dos tribunais (artigo 96)”. “A bem da verdade, traduz uma relevante evolução na proteção dos direitos fundamentais dos réus nos processos penais”, opina.

Entendimento do STF
O Supremo Tribunal Federal já declarou a constitucionalidade de alterações na estrutura e funcionamento do Judiciário que não foram propostas por tal poder.

A Corte validou os juizados de violência doméstica, estabelecidos pela Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que teve origem no Executivo (ADC 19). O relator do caso, ministro Marco Aurélio, apontou que a União tem competência privativa para legislar sobre processo penal. Também afirmou que o tema é de caráter nacional e que a lei não criou varas judiciais nem estabeleceu o número de magistrados a serem alocados nos juizados, o que seria de competência dos estados.

Em sustentação oral a favor do juiz das garantias em nome do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o criminalista Alberto Zacharias Toron mencionou a validação dos juizados de violência doméstica. E citou a Lei 9.099/1995, que criou os juizados especiais cíveis e criminais. A norma, originada de projeto do então deputado federal Michel Temer (MDB-SP), não teve sua iniciativa questionada. Porém, o Supremo a analisou em diversas ocasiões e nunca contestou o fato de ela não ter sido proposta pelo Judiciário.

Fonte: Conjur