Embargos de declaração interrompem apenas prazo de recurso, não de outros meios de defesa ou impugnação

Para a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os embargos de declaração interrompem o prazo apenas para a interposição de recursos, não sendo permitido conferir interpretação extensiva ao artigo 1.026 do Código de Processo Civil de 2015 para estender o significado de recurso para as demais defesas previstas no processo de execução.

O entendimento foi estabelecido ao reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) que, interpretando o artigo 1.026 do CPC, considerou que os embargos de declaração interrompem o prazo para interposição de qualquer defesa do devedor, incluindo a impugnação ao cumprimento de sentença.

No entendimento do TJPR, o sentido da atribuição de efeito interruptivo de prazos aos embargos de declaração é o de não causar prejuízo à parte que os opõe. Assim, segundo o tribunal, a oposição dos embargos contra decisão que intimou o devedor para pagar voluntariamente a dívida ou impugnar a execução interrompeu o prazo para exercício dessas faculdades – mesmo porque, para a corte estadual, a depender do que fosse decidido sobre os embargos, o conteúdo da decisão anterior poderia ficar sem efeito.

Como consequência desse posicionamento, o TJPR deu provimento a agravo de instrumento do executado para, revertendo decisão de primeiro grau, reconhecer a tempestividade de impugnação ao cumprimento de sentença.

Interpretação extensiva do artigo 1.026 do CPC viola competência do Legislativo

O ministro Antonio Carlos Ferreira, relator do recurso da parte exequente, apontou que o TJPR, apesar de fundamentar a sua decisão em interpretação teleológica do CPC, na realidade, realizou interpretação extensiva do artigo 1.026 da lei processual, a fim de expandir o significado de recurso e abarcar no dispositivo qualquer defesa ajuizada pela parte executada.

Entretanto, para o ministro, não é possível interpretar extensivamente o artigo 1.026 do CPC, sob pena de usurpação das competências do Poder Legislativo, tendo em vista que a expressão “recurso” não permite a extração válida do sentido mais amplo de “defesa ajuizada pelo devedor”.

Antonio Carlos Ferreira também lembrou que, de acordo com a jurisprudência do STJ, o rol de recursos trazido pelo artigo 994 do CPC/2015 é taxativo.

“Assim, por serem taxativas as hipóteses legais de recurso, não é possível atribuir interpretação extensiva ao texto normativo. Desse modo, confere-se previsibilidade e coerência na aplicação da lei, em observância à segurança jurídica que deve permear a hermenêutica das normas processuais”, concluiu o ministro ao dar provimento ao recurso e julgar intempestiva a impugnação ao cumprimento de sentença.

Leia o acórdão no REsp 1.822.287.

Fonte: STJ

Abuso do direito de ação: o reconhecimento de limites no acesso à Justiça

O abuso do direito de ação é o uso exagerado ou desvirtuado desse direito, com o objetivo de atrasar ou impedir o andamento de processos, ou de obter alguma vantagem ilegítima.

O amplo acesso à Justiça é um direito fundamental cristalizado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal. Mas, como qualquer outro direito, o acesso à Justiça também encontra as suas limitações no ordenamento jurídico e deve ser exercido com responsabilidade.

O abuso do direito de ação é caracterizado pela utilização exagerada ou desvirtuada desse direito, com o objetivo de prolongar, atrasar ou impedir o andamento de processos. Há ainda os que ajuízam ações com conflitos forjados ou fictícios, pretendendo obter alguma vantagem de forma ilegítima.

O STJ já analisou diversos casos sobre abuso do direito de ação e definiu as possibilidades de reconhecimento dessa situação excepcional ao amplo acesso à Justiça, inclusive do chamado assédio processual.

Ajuizamento de sucessivas ações pode configurar assédio

Entrar na Justiça com sucessivas ações desprovidas de fundamentação idônea, intentadas com propósito doloso e abusivo, pode configurar ato ilícito de abuso do direito de ação ou de defesa e levar ao reconhecimento do assédio processual. O entendimento foi adotado pela Terceira Turma, por maioria, ao dar parcial provimento ao REsp 1.817.845.

Duas famílias disputavam uma área de mais de 1.500 hectares de uma fazenda. Foram propostas diversas ações – entre elas, uma ação divisória, em 1988 – e interpostos diferentes tipos de recursos. Em 1995, foi proferida a sentença na primeira fase da ação divisória, em que se determinou a divisão do imóvel entre as famílias.

Às vésperas da restituição da área que cabia aos autores da ação divisória, a outra família ajuizou sucessivamente, entre setembro e novembro de 2011, uma série de novas ações, todas sem qualquer fundamento relevante, manejadas quando já estava consolidada, há mais de 16 anos, a propriedade da outra parte.

No voto que prevaleceu no julgamento, a ministra Nancy Andrighi apontou que tal atitude configurou abuso de direito, uma vez que, conforme o artigo 187 do Código Civil, comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 

“O abuso do direito fundamental de acesso à Justiça em que incorreram os recorridos não se materializou em cada um dos atos processuais individualmente considerados, mas, ao revés, concretizou-se em uma série de atos concertados, em sucessivas pretensões desprovidas de fundamentação e em quase uma dezena de demandas frívolas e temerárias, razão pela qual é o conjunto dessa obra verdadeiramente mal-acabada que configura o dever de indenizar”, concluiu.

Reiteração de medidas processuais descabidas autoriza trânsito em julgado

Com apoio em precedentes, em 2021, a Primeira Seção determinou a certificação imediata do trânsito em julgado na Rcl 41.549, por reconhecer abuso do direito de ação na insistência da parte em apresentar medidas descabidas. 

No caso, uma mulher ajuizou ação buscando receber a pensão especial deixada por ex-combatente, sob o argumento de que esta poderia ser requerida a qualquer tempo, não sendo aplicável a prescrição de fundo de direito. Com o objetivo de reverter o acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que negou sua pretensão, a mulher impetrou vários recursos e outras medidas no STJ – entre eles, agravo em recurso especial, ação rescisória, reclamação, agravo interno e pedido de reconsideração.

Após a Primeira Seção do STJ indeferir liminarmente a ação rescisória, a parte entrou com reclamação, sustentando que o colegiado teria usurpado a competência do próprio tribunal. Em decisão monocrática, o relator, ministro Og Fernandes, afirmou que não cabe reclamação dirigida ao STJ contra acórdão proferido por um de seus órgãos jurisdicionais.

“Não faz sentido reconhecer que a Primeira Seção do STJ tenha usurpado sua própria competência para julgamento da ação rescisória”, declarou o ministro ao considerar que a reclamação foi usada como sucedâneo de recurso, “o que é inadmissível”.

Não satisfeita, a parte recorreu com agravo interno. A seção negou provimento ao recurso e, em razão da insistência na utilização de um instrumento processual manifestamente descabido, aplicou a multa prevista no artigo 1.021, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil (CPC), fixada em 1% sobre o valor atualizado da causa.

A parte, então, apresentou pedido de reconsideração, alegando não ter condições de pagar a multa processual e insistindo na procedência da reclamação. No entanto, não há previsão legal ou regimental desse tipo de pedido em relação a decisão colegiada. “A reiteração de medida judicial manifestamente descabida caracteriza abuso do direito de ação e autoriza a certificação imediata do trânsito em julgado da demanda”, decidiu Og Fernandes, que foi acompanhado de forma unânime pela seção.

Reconhecimento do abuso de direito de ação é medida excepcional

No julgamento do REsp 1.770.890, de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, a Terceira Turma reafirmou a jurisprudência segundo a qual o reconhecimento de abuso do direito de ação é excepcional, por estar intimamente atrelado ao acesso à Justiça, devendo ser analisado com prudência pelo julgador e declarado apenas quando o desvirtuamento do exercício desse direito for amplamente demonstrado.

O colegiado afastou a condenação por danos morais de três ex-vereadores do município Rio do Sul (SC) em razão de ação popular ajuizada por eles para impugnar a venda de um imóvel pela prefeitura. Os ex-vereadores haviam sido condenados nas instâncias ordinárias porque teriam utilizado a ação popular para fins políticos, mas o STJ concluiu que não foram demonstrados nem o abuso do direito de ação nem o dano moral indenizável.

De acordo com o relator, a análise da configuração do abuso deve ser ainda mais minuciosa quando se tratar da utilização de uma ação constitucional, como é o caso da ação popular, voltada para a tutela de direitos coletivos e um importante instrumento para a efetivação da democracia participativa, pois possibilita a interferência do cidadão na gestão da coisa pública.

O ministro Villas Bôas Cueva explicou que, mesmo sendo válida a preocupação do julgador com um eventual uso político da ação popular – o que significaria desvirtuamento do instituto –, essa análise deve se pautar pela prudência, “de modo a não coibir o seu uso diante de possíveis lesões ao patrimônio público e à moralidade pública”.

Mandados de injunção idênticos com diferentes pessoas no polo ativo

Para a Corte Especial, a impetração de vários mandados de injunção, com diferentes indivíduos no polo ativo, não caracteriza assédio processual. O colegiado entendeu que, em tal situação, a parte impetrante não deve ser condenada ao pagamento de indenização ou multa por litigância de má-fé ou abuso do direito de ação, pois a Constituição Federal autoriza a impetração de mandado de injunção sempre que a pessoa considerar que a demora do Estado em editar norma jurídica a impede de exercer direito assegurado constitucionalmente. 

No caso dos autos, um militar entrou com o pedido de mandado de injunção contra o comandante da Aeronáutica, alegando omissão dessa autoridade na edição de norma para disciplinar o direito de promoção do Quadro Especial de Sargentos.

Durante o trâmite do MI 345 no STJ, a União sustentou a ocorrência de assédio processual, que estaria caracterizado pela impetração de diversos mandados de injunção desprovidos de fundamentação idônea e intentados sem nenhum interesse legítimo a ser tutelado. Por isso, pediu que fosse fixada indenização ou multa contra o impetrante, por abuso de direito processual e litigância de má-fé.

Ao proferir sua decisão, o ministro Raul Araújo, relator, observou que o simples fato de o litigante utilizar ação ou recurso previsto em lei ou – como no caso – na própria Constituição não significa litigância de má-fé.

“O fato de terem sido impetrados vários mandados de injunção idênticos, cada qual com um indivíduo no polo ativo, não caracteriza, por si só, a litigância de má-fé. Julgando embargos de declaração similares aos dos presentes autos, a Corte Especial já teve a oportunidade de se manifestar, concluindo pela não configuração da litigância de má-fé e do assédio processual”, afirmou.

No AREsp 952.308, de forma semelhante, a Quarta Turma considerou indevida a aplicação de multa por litigância de má-fé ou abuso do direito de ação contra a pessoa que utiliza legitimamente um recurso previsto na legislação processual civil com o objetivo de esgotar a instância ordinária e possibilitar a interposição do recurso especial ao STJ.

Nesse caso, foi ajuizada contra um banco ação declaratória de inexigibilidade de dívida, cumulada com pedido de indenização por danos morais. A instituição financeira foi condenada à reparação dos danos pela inscrição indevida do nome do autor em órgãos de restrição de crédito. Em embargos de declaração, o consumidor requereu o aumento da indenização, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), além de rejeitar o pedido, puniu o embargante com multas, dada a sua insistência em argumentos já rejeitados.

O relator, ministro Raul Araújo, ressaltou que, como a interposição de agravo interno configura legítimo exercício das garantias do devido processo legal, deve-se afastar não apenas a multa do artigo 1.021, parágrafo 4º, do Código de Processo Civil, mas também a sanção por litigância de má-fé, pois ambas foram fundadas no mesmo fato (interposição do recurso).

Inversão automática do ônus da prova pode facilitar abuso do direito de ação

Ao julgar o REsp 1.866.232, a Terceira Turma entendeu que a inversão do ônus probatório a respeito da veracidade e da correção da informação publicitária, prevista no artigo 38 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), não se aplica a demandas que discutem concorrência desleal.

Nesse processo, a rede de lanchonetes Burger King buscava fazer com que o restaurante Madero Steak House, seu concorrente, parasse de veicular propaganda supostamente enganosa com a frase “o melhor hambúrguer do mundo”. A Burger King alegou que deveria haver inversão do ônus da prova, ficando seu concorrente responsável pelo custeio da produção da perícia, pois, embora não houvesse relação de consumo entre as partes, a aplicação do artigo 38 do CDC era necessária para proteger o consumidor de práticas abusivas e desleais.

O relator do recurso no STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino (falecido), afirmou que a norma do CDC não poderia ser aplicada nas relações entre empresas concorrentes, pois poderia facilitar o abuso do direito de ação, incentivando estratégias anticoncorrenciais, uma vez que, a partir do ajuizamento de demanda fútil, o ônus da prova estaria direta e automaticamente imposto ao concorrente com menor porte econômico.

Em tal hipótese, comentou o ministro, o processo estaria sendo utilizado não para obter um provimento jurisdicional, mas, sim, “como meio de dificultar a atividade do concorrente ou mesmo de barrar a entrada de novos competidores no mercado”.

Fonte: STJ

Comissão sobre direito digital debate poder normativo e poder regulador

Will Shutter / Câmara dos Deputados

Deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG) na primeira audiência pública da comissão especial

Para Andrada, o convidado deste debate poderá contribuir muito com os trabalhos do colegiado

A Comissão Especial sobre Direito Digital da Câmara dos Deputados promove, na próxima terça-feira (29), audiência pública com o tema “Direito digital: poder normativo e poder regulador”.

Foi convidado para discutir o assunto com os parlamentares, a pedido do relator, deputado Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), o PhD em Direito Digital, Dr. Matheus Puppe.

O colegiado avalia propostas para adaptar a legislação brasileira ao mundo atual de avanços tecnológicos e estabelecer a Política Nacional de Desenvolvimento Econômico Digital.

“Nos últimos anos estamos nos desenvolvendo e nos reinventando por meio da tecnologia, sejam as mídias sociais, a interconectividade fundamental e mais recentemente o uso de tecnologia de aprendizado para emular as capacidades humanas e nos auxiliar em nossa evolução técnica”, diz Lafayette de Andrada.

“Tais mudanças na conexão devem ser incorporadas ao direito, possibilitando a criação de novas leis, bem como a adaptação das já existentes, vez que situações antes complexas estão sendo incorporadas em nossas atividades diárias de maneiras anteriormente inconcebíveis”, defende o deputado.

Confira a pauta completa

A audiência está marcada para as 14 horas, no plenário 15.

Fonte: Câmara Notícias

STF vai retomar julgamento do marco temporal na próxima semana

O Supremo Tribunal Federal (STF) marcou para a próxima quarta-feira (30) a retomada do julgamento do processo que trata da constitucionalidade do marco temporal para demarcação de terras indígenas.

A data foi marcada, no início da noite desta quinta-feira (24), pela presidente do STF, Rosa Weber, após o ministro André Mendonça liberar o processo para julgamento.

Em junho deste ano, o julgamento foi suspenso após pedido de vista feito por Mendonça, que tinha até 90 dias para devolver o processo para julgamento, de acordo com as regras internas do Supremo.

O placar do julgamento está em 2 votos a 1 contra o marco temporal. Edson Fachin e Alexandre de Moraes se manifestaram contra o entendimento, e Nunes Marques se manifestou a favor.

No julgamento, os ministros discutem o chamado marco temporal. Pela tese, defendida por proprietários de terras, os indígenas somente teriam direito às áreas que estavam em sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal, ou que estavam em disputa judicial na época. Os indígenas são contra o entendimento. 

O processo que motivou a discussão trata da disputa pela posse da Terra Indígena (TI) Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, e a posse de parte da terra é questionada pela procuradoria do estado.

Fonte:

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Opinião: Cancelamento do registro imobiliário de terras devolutas

O Pontal do Paranapanema está localizado no extremo oeste do estado de São Paulo, na divisa entre os estados do Paraná e de Mato Grosso do Sul. A região é conhecida nacionalmente por questões fundiárias, de grilagens e de seguidas invasões de propriedades. No meio disso tudo está o Estado de São Paulo, sustentando que as terras são devolutas, e que os registros imobiliários em nome dos particulares estão eivados de vício insanável na origem da filiação dominial.

A situação da região é diferente de outras regiões do Brasil, pois quase todos os imóveis estão devidamente registrados nos Cartórios de Registros de Imóveis.

A maioria das matrículas imobiliárias atuais da citada região deriva do primeiro registro imobiliário de 31 de março de 1901, no Cartório de Imóveis de Assis (SP), Transcrição nº 133, do imóvel denominando Fazenda Pirapó e Santo Anastácio.

Segundo a Procuradoria Geral do Estado (PGE), o registro originário da Fazenda Pirapó e Santo Anastácio teria sido aberto de forma ilegal, sem o devido destaque do Estado ou do processo de revalidação exigido pela Lei nº 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras.

Com fundamento nessa alegação são promovidas as ações discriminatórias visando separar as terras particulares das terras devolutas. Terminado o processo, se a ação for julgada procedente, dar-se-á início a fase demarcatória para individualizar o perímetro devoluto, momento em que são canceladas as matrículas imobiliárias atuais até o registro primitivo, possibilitando ao Estado entrar com a ação reivindicatória para tomar posse do imóvel.

Normalmente, o Estado é obrigado a indenizar pelas benfeitorias feitas no imóvel antes de ser imitido na posse. Todavia há casos em que o proprietário sequer teve esse direito reconhecido [1].

É importante consignar que o registro imobiliário tem origem no Brasil justamente quando vigia a Lei de Terras nº 601/1850, e seu regulamento no Decreto nº 1.318/1.854. Assim, quando da abertura da Transcrição nº 133, em 31 de março de 1901, deveria o oficial registrador observar os dispositivos legais vigentes.

O oficial de registro só poderia abrir o registro imobiliário se o possuidor tivesse promovido a revalidação do seu título de posse ou registro paroquial junto à repartição de terras públicas, artigos 3º, 4º e 5º da Lei 601/1850, no caso da Transcrição nº 133, só consta como título de origem um registro paroquial, que de acordo com os artigos 93 e 94 da Lei de Terras não possuía aptidão para caracterizar o domínio e não poderia ensejar a abertura do registro imobiliário.

Com efeito, o registrador tinha obrigação legal de conferir as normas vigentes na abertura do registro da transcrição imobiliária, e sem o título hábil não se poderia dar ensejo ao registro. Essa é a conclusão da jurisprudência do STJ (Superior Tribunal de Justiça) [2] e do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) [3].

Desta forma, se o oficial de registro não podia abrir a referida transcrição imobiliária, resta evidenciado o erro ou culpa, que induziram a erro os adquirentes dos imóveis.

Os adquirentes das terras foram comprando seus imóveis ao longo destes anos através de escrituras públicas devidamente registradas no folio real, recolhendo impostos intervivoscausa mortis e ITR, em favor do Estado, sem que houvesse qualquer restrição ou informação nos registros imobiliários. Os compradores, terceiros de boa-fé, não sabiam que sobre aquele registro pairava suspeita de vício na origem da cadeia dominial, há casos em que o Estado demorou mais de cem anos para dar entrada na ação discriminatória.

O erro e a culpa do oficial registrador ao não observar as regras para abertura da Transcrição nº 133 são notórios e comprova o nexo de causalidade entre a conduta culposa do agente e os danos experimentados pelos proprietários, que estão tendo suas matrículas canceladas e correndo o risco de perder o imóvel.

Não há qualquer dúvida que o oficial de registro procedeu em desconformidade com o que determinava a legislação. E como os serviços de registros são exercidos por delegação pública [4], o Estado de São Paulo é o grande culpado pela conflagração fundiária que assombra o Pontal do Paranapanema, seja porque demorou muito tempo para buscar resolver o problema, seja porque não fiscalizou os cartórios.

O Estado busca transferir sua responsabilidade para os proprietários que muitas vezes não recebem a indenização pela perda de suas terras, imóveis adquiridos com fulcro na fé pública dos registros imobiliários, conforme dispõe a Lei Federal nº 8.935/94 e artigo 19, II da Constituição Federal.

Nesses termos, a nova Lei de Regularização paulista nº 17.557/2022 é um alento aos proprietários rurais.  Mas no a PGE insista na retomada dos imóveis. A Constituição estabelece a responsabilidade civil objetiva e solidária do Estado no dever de indenizar:

“Artigo 37 (…)§6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”

O STF (Supremo Tribunal Federal) assentou tese de repercussão geral, obrigando o Estado a indenizar as vítimas por atos praticados pelos oficiais de registro que no exercício da sua função causem prejuízos a terceiros, exatamente como no caso das terras do Pontal do Paranapanema, Recurso Extraordinário nº 842.846/SC, devendo os tribunais e juízes obedecerem a orientação:

“O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.”

A responsabilidade do Estado por atos irregulares praticados pelos registradores existe desde a codificação anterior. O artigo 15 do Código Civil de 1916 [5] trazia redação semelhante ao atual artigo 43 [6], e o STF no RE nº 116.662, relator ministro Moreira Alves, reconheceu a responsabilidade objetiva do Estado quando presente a culpa do registrador, aliás no Brasil nunca vigorou a irresponsabilidade total do Estado, mesmo quando não havia legislação legal específica, a responsabilização já era aceita como princípio fundamental (CAVALIERI FILHO, 2008) [7], e na lição de Pedro Henrique Baiotto Noronha [8].

Assim os proprietários que tiverem suas terras declaradas devolutas e suas matrículas imobiliárias canceladas, devem buscar a reparação integral de seu prejuízo, na esteira desta fundamentação em sintonia com os artigos 186, 927 e 944 do Código Civil, e a indenização deve ser total e corresponder ao valor de mercado da terra nua e das benfeitorias, com direito de retenção até que os valores sejam efetivamente pagos pelo Estado.

[1] REsp nº 1744310/SP – relator ministro Mauro Campbell Marques.

[2] REsp 389.372/SC, relator LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, unânime, 04 de junho de 2009.

[3] CGJSP nº 10.819/96.

[4] Constituição Federal artigo 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

[5] Artigo 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

[6] Artigo 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado o direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

[7] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9 ed. São Paulo: Atlas, 2009.

[8] RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO encontrado: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/a-responsabilidade-civil-do-estado-no-direito-brasileiro/

Fonte: Conjur

Reconhecimento judicial de falha do cartório abre prazo prescricional da ação indenizatória contra tabelião

Uma empresa processou o tabelião depois de ter negociado a compra de um imóvel com pessoa que apresentou procuração pública lavrada com base em identidade falsa.

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que o prazo prescricional para ajuizar pedido de indenização contra o tabelião, em razão dos danos materiais decorrentes de procuração nula lavrada por ele, começa a contar a partir do trânsito em julgado da sentença que reconheceu a nulidade.

De acordo com os autos, a empresa autora da ação indenizatória negociou a compra de um imóvel com uma pessoa que possuía procuração supostamente passada pela proprietária. Após a concretização do negócio, a antiga dona do imóvel ajuizou ação declaratória de nulidade e cancelamento de registro e uma ação de reintegração de posse. A primeira, julgada procedente, transitou em julgado em 2017.

Diante disso, em 2019, a empresa compradora do imóvel acionou judicialmente o tabelião, pedindo indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência da lavratura de procuração pública com base em identidade falsa, e obteve êxito nas instâncias ordinárias, que reconheceram a legitimidade passiva do tabelião e afastaram a prescrição.

No recurso especial dirigido ao STJ, o tabelião sustentou que o prazo de prescrição da reparação civil, de três anos nesse caso, deveria ser contado da data da lavratura da procuração, conforme o artigo 22, parágrafo único, da Lei 8.938/1994.

Configuração do efetivo prejuízo depende do trânsito em julgado

A relatora, ministra Nancy Andrighi, afirmou que o ato notarial e de registro tem presunção legal de veracidade e, por isso, no caso em julgamento, o efetivo prejuízo só se configurou com o trânsito em julgado da sentença que reconheceu a nulidade documental e resultou na reintegração da antiga proprietária na posse do imóvel.

“A pretensão indenizatória da autora contra o tabelião nasceu somente quando infirmada, definitivamente, a autenticidade do ato notarial e de registro lavrado no cartório de que ele é titular”, acrescentou.

A ministra apontou uma decisão semelhante, também da Terceira Turma, no AREsp 2.023.744, que aplicou a teoria da actio nata por entender que “a pretensão indenizatória da parte recorrida dependia do reconhecimento judicial do vício no registro”.

“Não merece reparo o acórdão exarado pelo tribunal de origem, ao manter a decisão que afastou a alegada prescrição, fundado na teoria da actio nata“, concluiu a relatora.

Leia o acórdão no REsp 2.043.325.

Fonte: STJ

CCJ aprova projeto que permite aplicação subsidiária do Código de Processo Civil em ação penal

Pablo Valadares/Câmara dos Deputados

Ricardo Ayres fala durante reunião em comissão

Ricardo Ayres foi o relator da proposta na comissão

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que autoriza a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil  no âmbito do processo penal, de maneira semelhante ao que ocorre atualmente nos processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos.

Foi aprovado o substitutivo elaborado pelo relator, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), para o Projeto de Lei 49/23, do deputado Marangoni (União-SP). Como tramitava em caráter conclusivo, o texto deve seguir para o Senado, a menos que haja recurso para análise do Plenário da Câmara.

“Com o substitutivo, deixamos claro que a norma processual civil apenas poderá ser ‘importada’ ao processo penal (e também aos demais ramos) quando não conflitar com os princípios e a sistemática que lhes são próprios”, disse o relator.

Segundo Marangoni, autor do projeto original, a medida facilitará o “diálogo” entre as fontes normativas processuais diante de lacunas na lei penal “desde que a regra a ser aplicada seja compatível com o sistema processual penal”.

Fonte: Câmara Notícias

Projeto permite cobrança de honorários advocatícios em prescrição intercorrente

Reila Maria/Câmara dos Deputados

Fernando Monteiro fala durante reunião de comissão

Para Fernando Monteiro, proposta retoma padrão de “litigância responsável”

O Projeto de Lei 1423/23 restabelece a possibilidade de o devedor pagar honorários advocatícios em processo de execução que prescreve devido à falta de atuação do credor (prescrição intercorrente). A proposta tramita na Câmara dos Deputados.

Pelo texto, quando extinta a execução por prescrição intercorrente, não haverá ônus para o devedor apenas se houver concordância do credor.

O Código de Processo Civil prevê que o reconhecimento da prescrição intercorrente da ação pelo juiz, e a consequente extinção do processo, não gera qualquer ônus para as partes (credor e devedor). Essa regra foi incluída no código por uma lei em 2019.

“A alteração proposta visa restaurar a segurança jurídica e a previsibilidade necessárias para estimular um padrão de litigância responsável”, disse o deputado Fernando Monteiro (PP-PE), autor do projeto.

Tramitação
O projeto será analisado em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Fonte: Câmara Notícias

STJ interrompe análise sobre prescrição de danos morais por tortura na ditadura

Um pedido de vista do ministro João Otávio de Noronha interrompeu nesta terça-feira (22/8) o julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que discute se a ação que visa a obrigar o ex-coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra a pagar indenização por atos de tortura cometidos durante a ditadura militar se submete à prescrição.

O caso julgado trata da prisão, tortura e desaparecimento do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que teve a morte presumida em 1971 no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) em São Paulo.

Brilhante Ustra comandou aparelho estatal da repressão em São Paulo no período da ditadura militar, quando praticou tortura
Wilson Dias/ABr

Merlino foi torturado por Brilhante Ustra, motivo que levou sua ex-companheira e sua irmã a ajuizar uma ação de indenização em 2010. O ex-coronel foi condenado a pagar R$ 50 mil a cada uma delas em 2012. A sentença reconheceu que foi ele o responsável por, inclusive, dirigir e calibrar a intensidade e duração da tortura contra o jornalista.

Ustra morreu em 2015, enquanto aguardava o julgamento do recurso. Em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) entendeu que a possibilidade de pedir indenização, embora não atingida pela Lei de Anistia de 1979, já estava prescrita. O marco inicial considerado foi a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Até o momento, a 4ª Turma do STJ tem duas posições antagônicas sobre a possibilidade da prescrição. Elas foram apresentadas na sessão do último dia 8 e reiteradas amiúde nesta terça-feira, em voto-vista regimental do ministro Marco Buzzi e em manifestação da ministra Isabel Gallotti.

Buzzi defende que o caso, por envolver tortura — crime contra a humanidade —, tem reparação civil imprescritível. Assim, deve retornar ao TJ-SP para a continuidade do julgamento da apelação contra a condenação de Ustra.

Gallotti, por sua vez, diz que a ação não poderia ser ajuizada contra Ustra, mas, sim, contra o Estado brasileiro. E que, superado esse ponto, a pretensão indenizatória pode prescrever justamente por se tratar de um processo que tem como alvo um agente estatal.

Quem processar?
O tema da legitimidade de Brilhante Ustra para responder à ação indenizatória pelos atos praticados na condição de agente estatal não chegou a ser analisado pelo relator. Ele entendeu que a questão estava preclusa porque não foi ventilada em contrarrazões, nem analisada pelo TJ-SP.

Para a ministra Isabel Gallotti, porém, a legitimidade não precisaria ser invocada porque, sendo matéria de ordem pública, pode ser levantada pelo STJ até mesmo de ofício. Com base no Recurso Extraordinário 1.027.633, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, ela considerou Brilhante Ustra parte ilegítima para responder à ação indenizatória.

Estado nenhum dá direito a seus agentes praticarem tortura, disse ministro Buzzi
Rafael L.

Isso porque, segundo o STF, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado. Se condenado, o ente público poderá, no máximo, ajuizar ação de regresso contra seu agente, para ser indenizado pelo prejuízo.

Nesta terça-feira, Buzzi destacou que a 4ª Turma já interpretou a tese do STF no sentido de que ela só vale nas situações em que o dano causado ao particular é provocado por conduta do agente público no cumprimento de sua função. Se a conduta é alheia ao cargo, a ação pode ser diretamente contra ele.

Foi assim que o colegiado condenou o ex-chefe da “lava jato”, Deltan Dallagnol, a indenizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos abusos cometidos no episódio em que uma denúncia contra o petista foi espetacularmente divulgada, com o uso de uma infame apresentação de PowerPoint.

“Não há como cogitar que a prática de tortura, de abusos de toda ordem, de violências à dignidade da pessoa humana, seja considerada conduta que derive das funções publicas regulares do agente estatal. Estado de Direito nenhum dá esses poderes a quem quer que seja”, pontuou o ministro Buzzi.

A ministra Gallotti manteve a divergência, especialmente levando em conta que a interpretação dada pela 4ª Turma foi desafiada por recurso ao STF, que ainda não se debruçou sobre o tema. Até que isso ocorra, ela vai manter a posição de que a ação indenizatória só pode ser ajuizada contra o Estado em qualquer situação.

E a prescrição?
Para Marco Buzzi, a qualificação dos atos praticados por Ustra como crimes contra a humanidade impede o uso do instituto da prescrição, uma vez que houve gravíssimas violações de direitos fundamentais.

Esse entendimento reside no potencial ofensivo dos atos praticados, na afronta à moralidade e à dignidade da pessoa humana, nos empecilhos criados pelo próprio Estado para investigação e no princípio da não repetição, pelo qual se permite proteger a coletividade e a sobrevivência humana.

A divergência da ministra Gallotti, por sua vez, aponta que essa posição vai de encontro ao movimento histórico que levou à aprovação da Lei da Anistia, em 1979, o que permitiu a redemocratização e a abertura política lenta e gradual no país.

“Os crimes foram horrendos e repugnantes, mas exatamente esse lado foi alvo da anistia. O lado criminal foi apagado. O que se busca aqui é uma indenização com base em normas de Direito Civil”, disse ela ao destacar que a regra geral é contar a prescrição a partir da data do fato.

A ação foi ajuizada em 2010, mais de 20 anos desde a promulgação da Constituição de 1988, marco escolhido pelo TJ-SP para decretar a prescrição. “Não havia obstáculo nenhum a ser alegado para impedir o ajuizamento da ação. Durante a ditadura poder-se-ia alegar medo de perseguição. Esse medo, desde a Constituição de 1988, não tem mais fundamento”, disse ela.

Em seu voto-vista regimental, o ministro Marco Buzzi reiterou a posição de que é evidentemente impossível estipular lapso certo para colher informações acerca dos algozes do regime militar com o intuito de pedir indenização, inclusive porque por muitos anos esses dados estavam inacessíveis, sob sigilo decretado pelo próprio Estado.

REsp 2.054.390

Fonte: Conjur

Reclassificação de rendimentos e aproveitamento de tributos

No mês passado, a plataforma de pesquisa de acórdãos e resoluções (VER) completou dois anos, ostentando mais de meio milhão de documentos ali inseridos e se tornando a principal fonte de informações acerca das decisões proferidas no âmbito do Carf [1].

Em rápida busca no mencionado banco de dados, já é possível perceber a importância da temática relacionada aos efeitos da reclassificação da receita tributada na pessoa jurídica para rendimentos tributáveis na pessoa física, porquanto mais de mil decisões já foram prolatadas.

A situação é configurada quando rendimentos são originalmente apurados pela pessoa jurídica (PJ) – sobre a qual incide IRPJ, CSLL, PIS e Cofins, apenas para mencionar os tributos federais – e a fiscalização, a partir da constatação de elementos como ausência de propósito negocial, simulação, inadequação da entidade eleita, etc., reclassifica-os como rendimentos recebidos pela pessoa física (PF).

A questão devolvida às conselheiras e aos conselheiros do Carf é a seguinte: poderão ser deduzidos, quando da apuração do crédito tributário, os valores arrecadados sob códigos de tributos federais exigidos da pessoa jurídica, cuja receita foi reclassificada e reconhecida como rendimentos de pessoa física? Duas são as correntes que se firmaram.

Uma primeira vertente responde de modo negativo a indagação. Para os que à ela se filiam, “incabível o aproveitamento na pessoa física de supostos recolhimentos efetuados indevidamente ou a maior por pessoa jurídica” [2].

O ponto nodal para a negativa do aproveitamento estaria na ausência de previsão legal para que o abatimento seja realizado de ofício pela própria autoridade fiscalizadora no momento do lançamento o que, consequente e evidentemente, obstaria a atuação de julgadores administrativos, estejam eles em primeira ou em segunda instância. Assim, “[s]e a autoridade lançadora não pode aproveitar pagamentos de natureza distintos, a decisão do julgador administrativo, no sentido do aproveitamento de pagamentos, extrapola sua competência, afeta ao controle de legalidade” [3].

Em atenção ao princípio da entidade [4] e à “exegese do art. 170 [do CTN] tem-se que o contribuinte pode compensar débitos tributários próprios com créditos líquidos e certos que possuir com a Fazenda Pública; porém, (…) a compensação de seus débitos com créditos de uma outra pessoa (…) não está previsto na legislação (…)” [5].

Pontuam que “[p]edidos de compensação e restituição possuem rito próprio, não sendo possível sua analise no curso de processo envolvendo o lançamento de crédito tributário, mormente quando o sujeito passivo deste é distinto do contribuinte através do qual foi supostamente recolhido o tributo [6] – ex vi do art. 74 da Lei nº 9.430/1996.

Do escrutínio dos precedentes colhidos, algumas ponderações são levantadas de modo a corroborar a impossibilidade de deferimento do aproveitamento dos créditos, dentre os quais se incluem ausência de prova de que, deveras, foram os valores efetivamente recolhidos pela pessoa jurídica, bem como (in)existência de procedimento específico para a apuração de eventuais débitos, de modo a assegurar a existência de numerário a ser aproveitado pela pessoa física. [7] Questiona-se, ainda, “se caso o aproveitamento de recolhimentos requerido fosse admitido, poderia o contribuinte pleitear, da mesma forma, a dedução de eventuais despesas da pessoa jurídica que estivessem relacionadas à manutenção de sua fonte pagadora? E se os recolhimentos efetuados pela PJ, ao cabo, se mostrarem superiores ao que seria devido pelo recorrente, caberia a este restituição? E os rendimentos recebidos pelo outro sócio a título de distribuição nos lucros, deveria ser imputada omissão de rendimento do trabalho assalariado a tal beneficiário?”
 [8].

segunda vertente, ao seu turno, autoriza a aproveitamento do que foi pago pela pessoa jurídica pela pessoa física; entretanto, subdivide-se noutras duas correntes, as quais denominaremos restritiva e ampliativa.

corrente restritiva sustenta ser “[c]abível a dedução no lançamento de ofício do imposto de renda da pessoa física, antes da inclusão dos acréscimos legais, com relação aos valores arrecadados de mesma natureza a título de imposto de renda da pessoa jurídica, cuja receita foi desclassificada e considerada rendimentos tributáveis auferidos pela pessoa física” [9].

Dito ser “plenamente razoável a dedução dos eventuais recolhimentos de mesma natureza a título de imposto sobre a renda efetuados pela [pessoa jurídica], tendo em conta, nesse raciocínio, [que parte do] o tributo exigido da pessoa física (….) foi efetivamente pago, ainda que por outrem” [10]. Restaria, para os defensores dessa corrente, possível a dedução apenas dos valores arrecadados a título de imposto de renda das pessoas jurídicas, cuja receita fora desclassificada e considerada como se rendimentos auferidos pela pessoa física fossem.

Assinalado que, “[q]uanto aos demais tributos pagos, distintos do imposto de renda, o aproveitamento entre pessoas distintas, em qualquer hipótese, dependeria de previsão em lei específica autorizadora de sua realização. Como regra, a compensação no âmbito tributário implica a existência de duas pessoas, simultaneamente credoras e devedoras uma da outra desde a origem, havendo obrigações recíprocas entre as partes (art. 170 do CTN)” [11]. Isso porque, não se deveria “transmudar o processo fiscal de controle do lançamento em procedimento de compensação. A via adequada é, portanto, o pedido de restituição, sem prejuízo da observância do prazo para repetição do indébito e do cumprimento dos demais requisitos estipulados na legislação” [12].

Por derradeiro, a corrente ampliativa, prevalecente na Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf há mais de uma década [13], autoriza não só a dedução do montante recolhido pela pessoa jurídica a título de IRPJ, mas ainda de CSLL, PIS e Cofins, referentes ao período autuado, devendo ser observada a proporção dos rendimentos desclassificados e considerados como auferidos pela pessoa física.

Os filiados à vertente sublinham se tratar “de uma única capacidade contributiva, e as receitas oneradas pelos tributos da legislação atinente às pessoas jurídicas consubstanciam-se de fato, em rendimentos e proventos da pessoa física do recorrente, consoante a reclassificação promovida pela autoridade lançadora verificou, e que já foram parcialmente onerados por tributos federais” [14]. Frisado que o “que se ora admite não é aquela compensação com esteio no artigo 74 da Lei 9.430/96, mas sim o aproveitamento do IR já pago pela pessoa jurídica sobre esses mesmos rendimentos que se entendeu deveriam ter sido tributados na pessoa física (…)” [15].

Ao sentir dos que assim entendem, o aproveitamento dos tributos já pagos, ainda que pela pessoa jurídica, nada mais seria do que uma consequência direta do próprio lançamento, porquanto “teria havido erro no ‘local’ (sob o ângulo do titular da renda) da tributação da renda” [16]. O indeferimento da dedução colidiria com princípios e normas do ordenamento jurídico, fazendo configurar em uma de duas nefastas alternativas, quais sejam: 1) “[a] movimentação desnecessária da máquina administrativa, que deveria restituir o imposto pago pela pessoa jurídica, sendo mais racional realizar o procedimento no curso deste processo” [17]; ou, 2) “[o] enriquecimento ilícito da Administração Pública, que terá recebido duas vezes pelo mesmo fato gerador (bis in idem), sem lei específica para tal, caso se considere impossível o pedido de restituição, por já ter se passado cinco anos do fato gerador” [18]. Além disso, há o entendimento de que, diante da existência de pagamento antecipado, à luz do que disciplina o inciso I do artigo 44 da lei nº 9.430/96, não caberia, sobre o montante já recolhido, a multa de 75% [19].

Embora, há muito, haja uma prevalência do entendimento da Câmara Superior no sentido da possibilidade do aproveitamento dos tributos recolhidos na pessoa jurídica a título de IRPJ, CSLL, PIS e Cofins no período autuado, observada a proporção dos rendimentos desclassificados e considerados como auferidos pela pessoa física, poderá o cenário ser modificado – seja pela nova composição que passará exibir, tendo em vista o término do mandato de conselheiras e conselheiros que a integram; seja pela retomada do voto de qualidade no Carf, que oxalá se avizinha, com a tramitação do PL nº 2.384/2023 no Senado Federal.

Como é tempo de despedidas no Carf, não poderiam as subscritoras desta coluna deixar de desejar sucesso às colegas e aos colegas que partem para novos voos, agradecidas e engrandecidas pela singular oportunidade de aprendizado e certas de que a ausência deles é – e continuará a ser – em demasia sentida.

Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Cf. <http://carf.economia.gov.br/noticias/2022-1/plataforma-de-pesquisa-de-acordaos-e-resolucoes-do-carf-2013-ver-completa-dois-anos-com-meio-mais-de-meio-milhao-de-documentos>. Acesso em: 21 ago. 2023.

[2] CARF. Acórdão nº 2201-009.462, Consª. Rel.ª DÉBORA FÓFANO DOS SANTOS, sessão de 11 nov. 2021 [à unanimidade].

[3] Cf. declaração de voto da Cons.ª SONIA QUEIROZ ACCIOLY em: CARF. Acórdão nº 2202-010.169. Cons.ª Rel.ª SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º ago. 2023 [por maioria].

[4] O princípio da entidade é tratado no art. 4º da Resolução CFC nº 750/1993, nos seguintes termos:

Art. 4º. O Princípio da Entidade reconhece o Patrimônio como objeto da Contabilidade e afirma a autonomia patrimonial, a necessidade da diferenciação de um Patrimônio particular no universo dos patrimônios existentes, independentemente de pertencer a uma pessoa, um conjunto de pessoas, uma sociedade ou instituição de qualquer natureza ou finalidade, com ou sem fins lucrativos. Por conseqüência, nesta acepção, o patrimônio não se confunde com aqueles dos seus sócios ou proprietários, no caso de sociedade ou instituição.

Parágrafo único. O Patrimônio pertence à Entidade, mas a reciproca não é verdadeira. A soma ou agregação contábil de patrimônio autônomos não resulta em nova Entidade, mas numa unidade de natureza econômico contábil.

[5] Cf. declaração de voto do Cons. DENNY MEDEIROS DA SILVEIRA em: CARF. Acórdão nº 2402-008.171, Cons.ª Rel.ª ANA CLAUDIA BORGES DE OLIVEIRA, Redator Designado Cons. LUÍS HENRIQUE DIAS LIMA, sessão de 3 mar. 2020 [desempate pelo voto de qualidade].

[6] CARF. Acórdão nº 2201-009.224, Cons. Rel. RODRIGO MONTEIRO LOUREIRO AMORIM, sessão de 03 set. 2021 [unanimidade]. Em idêntico sentido, aclarado que “à pessoa jurídica foram conferidos mecanismos de restituição de valores pagos indevidamente, e nestes casos de reclassificação de rendimentos/negócio jurídico, compete ao interessado discutir em procedimento apresentado à Autoridade da Administração Tributária na RFB, a aplicação do instituto.” Cf. declaração de voto da Cons.ª SONIA QUEIROZ ACCIOLY em: CARF. Acórdão nº 2202-010.169, Cons.ª Rel.ª SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º ago. 2023 [por maioria].

[7] CARF. Acórdão nº 2201-009.462, Consª. Rel.ª DÉBORA FÓFANO DOS SANTOS, sessão de 11 nov. 2021 [à unanimidade].

[8] CARF. Acórdão nº 2201-009.544, Cons. Rel. CARLOS ALBERTO DO AMARAL AZEREDO, sessão de 03 dez. 2021 [à unanimidade].

[9] CARF. Acórdão nº 2401-009.813, Cons. Rel. JOSÉ LUÍS BENJAMIN PINHEIRO, Redator Designado cons. MATHEUS SOARES LEITE, sessão de 1 set. 2021 [desempate pró-contribuinte].

[10] CARF. Acórdão nº 2401-005.938, Cons.ª Rel.ª LUCIANA MATOS PEREIRA BARBOSA, Redator Designado CLEBERSON ALEX FRIES, sessão de 16 jan. 2019 [desempate pelo voto de qualidade].

[11] CARF. Acórdão nº 2401-009.813, Cons. Rel. JOSÉ LUÍS BENJAMIN PINHEIRO, Redator Designado cons. MATHEUS SOARES LEITE, sessão de 1 set. 2021 [desempate pró-contribuinte].

[12] CARF. Acórdão nº 2401-006.224, Cons. Rel. RAYD SANTANA FERREIRA, Redator Designado CLEBERSON ALEX FRIES, sessão de 07 maio 2019 [por maioria].

[13] Sublinhamos que sói ser utilizado como base de fundamentação o entendimento proferido pelo Cons. LUIZ EDUARDO DE OLIVEIRA SANTOS, no acórdão de nº 9202-002.112, de 09 de maio de 2012. Confira-se, à título exemplificativo, os seguintes precedentes, todos colhidos da Câmara Superior, que comprovam nossa afirmação: 9202-002.451, sessão de 08 nov. 2012; 9202-002451, sessão de 08 nov. 2012; 9202-003.665, sessão de 09 dez. 2015; 9202¬004.458, sessão de 23 nov. 2016; 9202-007.391, sessão de 29 nov. 2018; 9202-008.619, sessão de 19 fev. 2020; 9202-009.957, sessão de 24 set. 2021; 9202-010.441, sessão de 29 set. 2022.

[14] CARF. Acórdão nº 2202-004.869, Cons. Rel. RONNIE SOARES ANDERSON, sessão de 16 jan. 2019 [à unanimidade].

[15] CARF. Acórdão nº 9202-010.812, Cons. Rel. MAURÍCIO NOGUEIRA RIGHETTI, sessão de 29 jun. 2023 [à unanimidade].

[16] Idem.

[17] CARF. Acórdão nº 9202-002.112, Cons. Rel. LUIZ EDUARDO DE OLIVEIRA SANTOS, sessão de 09 maio 2012 [à unanimidade].

[18] Idem.

[19] Cf. CARF. Acórdão nº 2202-010.169, Cons.ª Rel.ª SARA MARIA DE ALMEIDA CARNEIRO SILVA, sessão de 1º ago. 2023 [por maioria].

Fonte: Conjur