A decisão no RE 635.659/SP: oito teses, muitas dúvidas

Após quase 14 anos de tramitação, concluiu-se no dia 26 de junho de 2024 o julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659/SP. A decisão mobilizou a opinião pública, a sociedade civil, os meios políticos, a ponto de se poder afirmar que, hoje, poucas pessoas não ouviram falar do tema, mesmo não tendo estudado a fundo os autos do caso ou as posições divergentes em debate.

Antes de mais nada, é necessário reconhecer a dificuldade em produzir avanços substanciais a partir da lei posta. A atual Lei de Drogas, de 2006, foi elaborada a partir da ideia da punição criminal como resposta estatal à multifacetada e complexa questão das drogas reputadas como ilícitas. Mesmo o artigo 28 da Lei Federal nº 11.343/2006, ao retirar a pena privativa de liberdade como sanção às condutas de porte de drogas para consumo próprio, permaneceu inserido no capítulo destinado aos crimes e penas, e submetido a julgamento perante os Juizados Especiais Criminais. As penas para o tráfico ilícito de drogas foram ampliadas e novas figuras puníveis foram trazidas pela lei, que não se furtou em indicar o sentido político-criminal que a inspirava.

Não se procedeu, naquele diploma, à distinção entre o usuário esporádico de drogas e o dependente químico. Tampouco foram assentados critérios claros e objetivos para a distinção entre o porte para o consumo próprio e o porte com intuito de distribuição ou de mercancia. A seletividade do sistema penal, tão demonstrada pelos dados jurimétricos presentes no voto do ministro Alexandre de Moraes, prevaleceu ante a ambiguidade do texto legal.

Uma decisão judicial, sozinha, mesmo que proveniente da Suprema Corte e dotada de repercussão geral, não consegue reverter o sentido de todo um subsistema penal. Urge discutir a questão das drogas sem o alarmismo ou o pânico moral que permeiam o senso comum, mas como uma questão de saúde pública. A resposta punitiva, do punho fechado, já se mostrou não apenas como ineficaz, mas como tão danosa quanto a questão que visa a enfrentar. Contudo, nem sequer há clareza se a posição da estreita maioria do Plenário do STF há de prevalecer, tendo em vista a tramitação acelerada da PEC 45/2023, que busca inserir, no rol dos direitos e garantias fundamentais, o porte de qualquer quantidade de drogas definidas como ilegais enquanto conduta criminosa.

Ricardo Tolomelli/Divulgação

O professor Cristiano Maronna, em artigo veiculado pela Folha de S.Paulo (aqui), resumiu bem a questão: ante a reação de setores políticos alinhados ao proibicionismo, o STF foi incapaz de avançar como deveria na análise dos problemas do encarceramento em massa de pessoas em situação de vulnerabilidade social, sob o pretexto do enfrentamento ao tráfico ilegal de drogas. Nas palavras do professor, “a maioria do Supremo acertou o diagnóstico, mas não foi capaz de oferecer uma solução eficiente para os desafios existentes no campo do processo penal, da segurança pública e da política criminal, em especial a definição de diretrizes orientadoras da atuação das forças de segurança e do próprio Judiciário”.

Por enquanto, o único documento publicado acerca do resultado do julgamento é uma “Informação à sociedade”, disponível no sítio eletrônico do STF (aqui). Nela, constam oito teses de julgamento, que supostamente refletirão o dispositivo do acórdão aprovado pela maioria. Como o julgamento produz efeitos imediatos em termos da liberdade individual dos cidadãos, é de se esperar que a invocação do precedente se dê o quanto antes, não a partir da data de publicação do acórdão.

À luz dessas oito proposições, queremos suscitar dúvidas e pensar soluções, especialmente diante da realidade concreta da vida social, das abordagens policiais, e das rotinas judiciais.

Tese 1 — Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (artigo 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (artigo 28, III).

1.a. O artigo 28 da Lei de Drogas consiste em norma penal em branco. Nele, não se menciona expressamente qualquer substância, deferindo-se a definição do que é “droga”, para fins jurídicos, a ato infralegal — a saber, a Portaria SVS/MS nº 343/1998 e as listas que a acompanham, atualizadas pela Anvisa.

Quando se examinam as razões de pedir do RE 635.659/SP, nelas se percebe o apelo ao reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas em sua totalidade, por violação aos direitos fundamentais à intimidade e à vida privada. A delimitação dos efeitos do julgado a apenas uma substância fez mudar o foco do juízo de inconstitucionalidade, da lei penal para a portaria infralegal. Pode-se dizer que, de certo modo, o julgamento foi citra petita.

A lógica formal não comporta a construção de que apenas o uso de maconha ofende o direito fundamental à intimidade e o de outras drogas não. O reconhecimento da inconstitucionalidade por ofensa ao direito à intimidade deveria abarcar todas as drogas, pois não há discriminação possível nessa seara. O lógico seria decidir que o artigo 28 da Lei de Drogas não ofende o direito à intimidade e, portanto, é constitucional para todas as drogas ou, a contrário, ofende a intimidade e é inconstitucional para todas as drogas.

Há, ainda, nítida lesão ao princípio da isonomia. O artigo 28 da Lei de Drogas, pela concepção exposta pela decisão, passa a funcionar — com o empréstimo da expressão utilizada por Silva Sánchez — em “duas velocidades”: como infração administrativa, para a cannabis, e como tipo penal, para as demais substâncias. Não é preciso muito esforço hermenêutico para perceber como isso representa uma distinção arbitrária e que, no caso das demais substâncias, fere os direitos fundamentais, em especial a liberdade, daqueles que estarão sujeitos a sanções mais gravosas.

Orientação: é preciso continuar provocando o Poder Judiciário a reconhecer, incidentalmente e em qualquer instância, a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, por violar a intimidade e a vida privada, valores plasmados como direitos fundamentais da pessoa humana (artigo 5º, inciso X, da Constituição da República) — tal como era o pedido esposado originariamente no RE nº 635.659/SP. Em caso de recusa, faz-se necessário subir até a apreciação do STF em relação ao tipo legal de crime, independentemente da substância envolvida, e empregando o resultado do RE como causa de pedir, em conjunto com os princípios da isonomia e do devido processo legal.

1.b. É pretensão jurídica que o ordenamento seja harmônico, coerente e completo. Deve haver certa lógica no Direito, comum a todos os seus ramos, de modo que um ramo do Direito não pode estabelecer regras contrárias a outro ramo. Se por um lado houve o reconhecimento de que a figura do artigo 28 da Lei de Drogas, pelo menos no tocante à cannabis, fere os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada, resta pouca justificativa para preservar a punição, mesmo que a título de ilícito administrativo. Se criminalizar o uso de drogas ofende o direito constitucional à intimidade, o consectário lógico é que se trata de ato lícito e que, portanto, não pode ser sancionado pelo Estado a qualquer título. A solução intermédia, aceita pelo Supremo, apenas reduz a escala da ilicitude, do caráter criminal para o caráter sancionatório ordinário, mas não consagra aquilo que visava a sustentar, a saber, a licitude dos comportamentos que implicam lesão apenas ao próprio sujeito.

1.c. Em se tratando de ilícito administrativo, e não de ilícito penal, as sanções usualmente associadas aos crimes não podem mais ser impostas a quem pratica a conduta típica do artigo 28 da Lei de Drogas, portando a cannabis. Nesse sentido, é avanço o fato de estar excluída de consideração a sanção de prestação de serviços à comunidade, outrora aplicável por força do inciso II do artigo 28 da Lei de Drogas. Tampouco é admissível a existência de anotações criminais em Certidão ou Folha de Antecedentes Criminais em razão da conduta em exame.

1.d. Igualmente, a conduta de portar cannabis, para consumo pessoal, não mais pode mais ser reconhecida como falta grave na execução penal. É deveras comum encontrar cannabis dentro de unidades prisionais com detentos. A princípio, esse ato não pode mais configurar falta grave, embora as exceções da Tese 5, a serem tratadas oportunamente, possam transformar o ato em tráfico de drogas – e, portanto, ainda enquanto crime e falta grave no ambiente carcerário.

1.e. O reconhecimento da inconstitucionalidade por parte do STF se opera, em regra, ex nunc, removendo da ordem jurídica quaisquer efeitos da norma impugnada por contrariedade à Constituição. Dentre as teses de julgamento, não se percebe qualquer ressalva ou modulação acerca dos efeitos da decisão, o que conduz à conclusão lógica de que a norma penal, em relação à cannabis, deixou de existir, operando-se todos os efeitos da abolitio criminis. Note-se que não se trata, no caso, de retroatividade de novo entendimento jurídico acerca de crime, mas de extinção de conduta criminosa, o que suscita a aplicação do preceito do artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal brasileiro.

Orientação: é cabível, ex officio ou mediante provocação, a revisão de todas as condutas de porte de Cannabis para consumo próprio, proferidas antes da decisão do RE 635.659/SP, a fim de se verificar se podem ser agraciadas com o novo posicionamento do STF. A quantidade de substância portada pelo sujeito há de ser tomada em consideração, nos termos da Tese 4, mas o limite de quantidade, por si só, não representa o único dado para suscitar a revisão criminal. O reconhecimento da abolitio criminis pode ser feito em qualquer momento da investigação criminal, da tramitação processual, da execução da pena, ou, excepcionalmente, como motivo para expurgo de anotações criminais referentes a fatos em que a sanção já foi cumprida.

Tese 2 — As sanções estabelecidas nos incisos I e III do artigo 28 da Lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta.

2.a. A decisão do Supremo não desconhece, por óbvio, que o Juízo não opera sem provocação (artigo 2º, Código de Processo Civil). Se se afirma que as sanções administrativas cominadas ao porte de Cannabis serão impostas pelo Juízo em procedimento de natureza não penal, alguém há de provocar essa atuação, dando início ao exercício do poder jurisdicional. Contudo, a decisão é silente acerca de quem deve provocar o exercício da jurisdição.

Ao Ministério Público compete, privativamente, a promoção da ação penal de iniciativa pública, nos termos do artigo 129, inciso I, da Constituição. Entretanto, o mesmo artigo, em seu inciso IX, veda aos órgãos do Ministério Público que exerçam a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas — funções típicas da Advocacia Pública, seja ela a Advocacia da União ou a Advocacia dos estados.

A imposição da sanção administrativa não se confunde com a pretensão punitiva do Estado, em matéria penal. Deste modo, não deveria mais recair sobre os órgãos do Ministério Público, mas sim a autoridade diversa, que tenha por objetivo fazer cumprir as disposições administrativas vigentes.

Não mais subsiste o velho sistema das contravenções penais, em que a iniciativa da ação poderia ser exercida pela Autoridade Policial. Dentro de uma divisão de tarefas consentânea com a sistemática da persecução penal, à Autoridade Policial compete apurar o fato e submeter seus achados à análise do órgão do Ministério Público. Formada a opinio delicti, o Ministério Público pode oferecer a denúncia, se existirem elementos suficientes para a verificação do crime do artigo 33 da Lei de Drogas, conforme a Tese 5.

Não obstante, por diversas questões prática, acredita-se que a sistemática a ser adotada será muito similar às dos termos circunstanciados de ocorrência relativos às outras drogas que continuaram criminalizadas. Muito provavelmente não será estruturado um órgão estatal executor dessas multas. A Advocacia do Estado, órgão com atribuição para executar multas administrativas, não dispõe de capilaridade suficiente para essa tarefa e seria muito dispendioso se passasse a dispor somente por esse motivo.

A outra alternativa seria tratar o procedimento como administrativo. Dispensar autor, dispensar defesa através de advogado e proceder como na imposição de infrações administrativas, como multa de trânsito, apenas com prazo para defesa administrativa perante o juiz. Nessa hipótese, com a comunicação ao juízo, esse abriria prazo para defesa, conforme o artigo 5o, LV, da CRFB, e, não acatada a defesa, imporia a sanção administrativa. Acredita-se que, embora essa interpretação seja consentânea com a natureza administrativa da infração, tendo em vista a dificuldade de controlar através da interposição de recursos os atos judiciais, o que é importante para decisões judiciais, bem como o fato de que muito provavelmente o Ministério Público terá interesse em atuar nesses feitos, prevalecerá uma anômala atuação ministerial nesse caso, como também já determinada a anômala atuação judicial para imposição de infrações administrativas.

Orientação: acredita-se que todo o rito para análise do uso de cannabis será exatamente igual ao dos atuais termos circunstanciados de ocorrência para o uso de outras drogas. Apenas poderá ser lavrado por Delegado de Polícia; haverá uma inicial do Ministério Público; haverá o contraditório e rito do Juizado Especial; será julgado pelo Juizado Especial Criminal. Além da natureza não penal, a novidade será apenas a impossibilidade de aplicação de prestação de serviços à comunidade.

Quanto à multa, reputa-se que, por proporcionalidade, deve ser inferior às usualmente aplicadas para o uso de outras drogas, conduta mais gravosa, pois continua tratada como crime.

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Aplicação do princípio da relativização dos elementos informáticos

Recentemente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (AgRg no Habeas Corpus nº 828.054 — RN — 2023/0189615-0) [1], por unanimidade, decidiu que são inadmissíveis no processo penal as provas obtidas de celular quando não forem adotados procedimentos para assegurar a idoneidade e a integridade dos dados extraídos. Isso ocorre porque, segundo o colegiado, as provas digitais podem ser facilmente alteradas, inclusive de maneira imperceptível, demandando, portanto, mais atenção e cuidado na custódia e no tratamento, sob pena de terem seu grau de confiabilidade diminuído ou até mesmo anulado.

Joel Ilan Paciornik 2024
O ministro Joel Ilan Paciornik – Gustavo Lima/STJ

O relator, ministro Joel Ilan Paciornik, pontuou que é “indispensável que todas as fases do processo de obtenção das provas digitais sejam documentadas, cabendo à polícia, além da adequação de metodologias tecnológicas que garantam a integridade dos elementos extraídos, o devido registro das etapas da cadeia de custódia, de modo que sejam asseguradas a autenticidade e a integralidade dos dados”.

Segundo ele, “o material digital de interesse da persecução penal deve ser tratado mediante critérios bem definidos, com indicação de quem foi responsável pelas fases de reconhecimento, coleta, acondicionamento, transporte e processamento, tudo formalizado em laudo produzido por perito, com esclarecimento sobre metodologia empregada e ferramentas eventualmente utilizadas”.

Princípio da relativização dos elementos informáticos

Trata-se da aplicação do princípio da relativização dos elementos informáticos, desenvolvido em 2015 no Curso de Direito Penal Informático [2] pelo professor dr. Spencer Sydow, conhecido não apenas pela criação do ramo do Direito Penal Informático no Brasil, mas também por sua atuação profissional e acadêmica profícua em prol do desenvolvimento dessa ciência.

 

O referido princípio preceitua que os elementos informáticos são inerentemente voláteis, dinâmicos e podem ser facilmente manipulados ou alterados. Dessa forma, considerando-se que o meio digital permite a manipulabilidade ideológica (modificação indevida do conteúdo representado em um elemento informático verdadeiro) e formal (modificação do próprio elemento, independentemente de conter elementos ideologicamente verdadeiros) de seus documentos, o princípio em questão busca garantir que a evidência informática seja tratada com cuidado no processo legal.

Cita-se, como exemplo disso, a criação de logs de transações com criptoativos falsificados para criar transações inexistentes, prints de carteiras digitais com saldos manipulados para enganar investidores ou parceiros comerciais, uso de VPNs e IP spoofing para mascarar a localização e identidade dos usuários, e contratos inteligentes falsos contendo código malicioso para desviar fundos ou manipular resultados. Na medida em que essas possibilidades são identificadas, deve-se, necessariamente, aplicar o princípio da relativização dos elementos informáticos até que as hipóteses de manipulação sejam afastadas.

Trata-se de exemplos que ressaltam a necessidade de se criar rigorosos protocolos de verificação para assegurar a integridade e autenticidade dos elementos probatórios em processos legais. Por esse motivo, Sydow defende que faz-se necessária a criação de um novo paradigma de precaução probatória para que sejam adotados procedimentos pertinentes para salvaguardar a integridade e a autenticidade dos elementos probatórios que estão sendo analisados. Isso se dá porque as bases de investigação e julgamento partem de pressupostos muitas vezes incorretos, não raro incorrendo em análises enviesadas de realidades informáticas, graças à ausência de cuidados elementares nessa esfera [3].

Essa situação se torna ainda mais premente em face do profundo e generalizado desconhecimento de boa parte dos atores processuais (advogados, juízes, promotores, delegados etc.) acerca de diversos elementos informáticos — questão que, no nosso entendimento, é ainda mais crítica ao se tratar de criptoativos e de tecnologia blockchain. Seja por falta de preparo, inexperiência, negligência ou, ainda, simplesmente por falta de conhecimento técnico, percebe-se na prática jurídica atual que questões fundamentais básicas sobre esses temas são tratadas de maneira grosseira, superficial ou simplesmente errônea, situação que compromete gravemente a eficácia do processo penal e, consequentemente, do sistema jurídico nacional.

Não se olvida que a informatização dos meios de vida, a criação imaterial de elementos e a desmaterialização do processo judicial de papel tornaram mais fácil a vida ao mesmo tempo que tornou os negócios mais velozes e mais amplos. Contudo, deve-se lembrar que os métodos informáticos de geração de elementos juridicamente relevantes também trouxeram um lado de questionamento possível dada a ampliação dos mecanismos de manipulação e modificação desses mesmos elementos [4].

Por isso, é de grande relevância que todos os elementos informáticos levado a um procedimento parta do pressuposto da existência de métodos de manipulação e adulteração para que possam ser considerados idôneos. Caso contrário, admitir-se-á o risco de condenações de acusados baseadas em elementos que não foram devidamente analisados, violando-se regras constitucionais basilares.

_____________________________________

[1] Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=242041837&registro_numero=202301896150&peticao_numero=202300906480&publicacao_data=20240429&formato=PDF

[2] https://www.lexml.gov.br/urn/urn:lex:br:rede.virtual.bibliotecas:livro:2020;001178860

[3] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial. São Paulo: Editora JusPodvim, 2023. p. 131

[4] SYDOW, Spencer Toth. Curso de Direito Penal Informático – Partes Geral e Especial. São Paulo: Editora JusPodvim, 2023. p. 139

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Nova lei padroniza correção de dívidas civis e abre portas para juros zero

Quando não forem previstos contratualmente, os juros referentes a uma obrigação serão calculados pela aplicação da Taxa Selic, deduzido do IPCA (índice de atualização monetária). Se esse valor for negativo, os juros serão considerados zerados para o período.

Essa é a nova fórmula para correção de dívidas civis, prevista pela Lei 14.905/2024. Ela alterou o artigo 406 do Código Civil para resolver uma questão que é alvo de disputa no Judiciário há pelo menos uma década.

Método para calcular os juros só vale quando não forem previstos contratualmente – Freepik

A lei foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 28 de junho. A alteração partiu do Projeto de Lei 6.233/2023, do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e do então ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino.

A ideia inicial era mais complexa, mas acabou simplificada pelo Congresso Nacional. Até então, o artigo 406 do Código Civil se limitava a dizer que os juros seriam calculados pela taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Não havia dúvidas de que essa taxa é a Selic. Ainda assim, nunca houve consenso se seria esse o melhor método para atualização das dívidas civis. O tema está em discussão na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça.

Os críticos desse método entendem que vincular os juros à Selic é um problema porque ela é um instrumento de política monetária para o combate à inflação. Isso faz com que esteja sujeita a uma “variação anárquica” que impacta credor e devedor aleatoriamente.

Fato é que tribunais por todo o país simplesmente não utilizam esse método. A alternativa mais aceita é a de impor juros de 1% ao mês e correção monetária por algum dos índices de medição da inflação. A comissão de juristas que propôs esse ano um projeto para atualização do Código Civil adotou essa saída.

Nesse ponto, a Lei 14.905/2024 oferece um alento, ao uniformizar a questão. Um fator de preocupação, no entanto, é ela abrir as portas para a ocorrência de juros zero.

Juros zero

Se a função dos juros é remunerar o credor pelo tempo em que ele indevidamente esteve privado de determinado valor, admitir que ele seja zerado é um grande problema. Isso aconteceria toda vez que a variação da Selic for menor que a do IPCA.

A Selic é definida pelo Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central e serve para controlar a inflação. Se ela sobe, o crédito fica mais caro e há um desestímulo ao consumo, com o objetivo de controlar a pressão inflacionária.

Essa tem sido historicamente a situação brasileira. Para a Selic baixar muito, seria preciso um cenário para estimular o consumo — por exemplo, por conta da baixa inflação ou até mesmo da deflação. Isso já aconteceu recentemente.

De maio a maio, entre 2020 e 2021, o Copom manteve a Selic bem baixa, por conta da crise sanitária decorrente da Covid-19. A variação foi de 2,13% no período. Já o IPCA, calculado pelo IBGE, somou 7,65%.

Isso significa que, pelo atual método de cálculo de juros previsto no Código Civil, uma dívida de maio de 2020 passaria o próximo ano inteiro sem a incidência de quaisquer juros.

Esse método vale para todas as situações contratuais em que não há a previsão de um índice específico para juros. E afeta principalmente os casos de responsabilidade extracontratual — como aquelas de dano moral.

Se uma pessoa sofre um acidente de trânsito e o responsável é condenado a pagar indenização, por exemplo, os juros serão calculados conforme diz o artigo 406 do Código Civil.

Dever compensa

Essa é exatamente a situação em julgamento na Corte Especial. O recurso trata de uma mulher que sofreu um acidente de trânsito em março de 2013. A empresa de ônibus foi condenada a pagar indenização de R$ 20 mil e ainda não cumpriu a obrigação.

Esse valor será acrescido de juros, calculados a partir do evento danoso (março de 2013) e de correção monetária, a partir da sentença (outubro de 2016).

O advogado Leonardo Amarante, que representa a mulher na ação, está há anos defendendo o afastamento da Selic para a correção do valor. Para ele, o critério estabelecido pela Lei 14.905/2024 não é bom.

“O legislador de 2024 está permitindo que o titular de um direito, após longo período de entraves judiciais para fazer valer sua pretensão, fique no chamado ‘zero a zero’, em que não perde capital, mas também não ganha, muito embora tenha ficado anos sem dele dispor.”

Ele aponta inconstitucionalidade da norma, por violar o princípio da justa indenização. “O grande devedor é estimulado a se manter inadimplente, levando à conjuntura de maciço descumprimento de obrigações no país.”

Luiz Fernando Pereira, que atua pelo Conselho Federal da OAB como amicus curiae (amigo da corte) na ação no STJ, também classificou o novo critério do artigo 406 do Código Civil como “muito ruim” por vincular a penalidade do devedor à situação monetária do país.

“Juro é sanção decorrente do atraso no pagamento. Em todos os lugares, esse atraso gera ônus para quem está devendo. No Brasil, embora no primeiro momento a Selic esteja alta, quando a economia der bons sinais e ela baixar, teríamos um cenário de eventualmente pena zero para o devedor.”

“É um grande estímulo aos grandes e piores devedores. Nenhum país do mundo autoriza tramitação de processos sem ônus. Para um devedor que tem um processo em andamento, tem que haver a construção de uma política de incentivo ao adimplemento”, avalia.

Ambos os advogados acreditam que o novo método de atualização das dívidas civis só poderá ser aplicado para casos futuros. Ele não incidiria naquele julgamento da Corte Especial do STJ, que ainda aguarda definição de Questão de Ordem para ser finalizado.

Critério razoável

Já Leonardo Roesler, do RMS Advogados, avalia que o cenário de juros zero é possível, mas altamente improvável. E prevê que, se isso um dia acontecer, vai haver judicialização do tema por parte dos credores.

Em sua análise, enquanto a economia brasileira enfrentar desafios relacionados à inflação, vincular os juros à diferença da Selic para com o IPCA é algo bastante razoável, evitando uma sobreposição de correções que poderia onerar indevidamente o devedor.

“A combinação da Selic com o IPCA busca equilibrar dois fatores cruciais: a remuneração adequada do credor pelo atraso no cumprimento da obrigação e a proteção do devedor contra uma cobrança excessiva e desproporcional”, diz.

O advogado ainda explica que a Selic, sendo a taxa básica de juros da economia brasileira, reflete as condições macroeconômicas do país e, portanto, ajusta-se dinamicamente às flutuações econômicas.

“Este aspecto torna-a um índice robusto para a atualização de valores devidos, garantindo que o montante reflita a realidade econômica vigente, o que é essencial para a preservação do valor real do crédito concedido. Ao mesmo tempo, o IPCA, por ser um índice de inflação amplamente reconhecido e utilizado, oferece um ajuste preciso e confiável do poder de compra da moeda.”

REsp 1.795.982

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Comissão de Constituição e Justiça aprova projeto que torna crime facilitar a migração internacional ilegal

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania aprovou projeto de lei que torna crime facilitar a migração internacional ilegal mesmo sem vantagem econômica em troca. A pena prevista é de 2 a 5 anos de reclusão e multa. A proposta segue para a análise do Plenário da Câmara dos Deputados.

O texto aprovado define como crime “promover ou facilitar, por qualquer meio, com o fim de obter ou não vantagem econômica, a entrada ilegal de estrangeiro em território nacional ou de brasileiro em país estrangeiro”.

Apresentação de plano de trabalho e apreciação de pareceres preliminar. Dep. Ricardo Ayres (REPUBLICANOS - TO)
Ricardo Ayres propôs ainda punir igualmente quem pratica a conduta sem vantagem econômica – Mario Agra / Câmara dos Deputados

O relator, deputado Ricardo Ayres (Republicanos-TO), concordou com a ideia original do Projeto de Lei 199/24, da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), mas optou por alterações na forma.

Originalmente, o projeto incluía a conduta de “facilitar a migração internacional ilegal” como uma das finalidades do crime de tráfico de pessoas, que tem pena de reclusão, de 4 a 8 anos, e multa.

Ayres, no entanto, optou por revogar e renomear o atual crime de “promoção de migração ilegal”, que já consta no Código Penal, incluindo nele também a punição para quem facilita as migrações e não apenas para quem as promove, como ocorre hoje.

“O ato de ‘promover’ consiste em articular ou dar causa à migração ilegal, enquanto que ‘facilitar’ corresponde à conduta do indivíduo que, apesar de não atuar ativamente na concretização da migração ilegal, proporciona as condições essenciais para que aconteça”, justifica o relator.

Ele propôs ainda punir igualmente quem pratica a conduta sem finalidade de obter vantagem econômica. A redação atual do Código Penal prevê punição apenas para quem promove a migração com finalidade de conseguir ganhos financeiros.

Fonte: Câmara dos Deputados

Se não é possível desistir de ADI, por que seria em Reclamação?

De como nasceu a Reclamação Constitucional: a clarividência do ministro

Vão seria o poder, outorgado ao Supremo Tribunal Federal de julgar em recurso extraordinário as causas decididas por outros tribunais, se lhe não fora possível fazer prevalecer os seus próprios pronunciamentos, acaso desatendidos pelas justiças locais. A criação dum remédio de direito para vindicar o cumprimento fiel das suas sentenças, está na vocação do Supremo Tribunal Federal e na amplitude constitucional e natural de seus poderes. Necessária e legitima é assim a admissão do processo de Reclamação, como o Supremo Tribunal tem feito.

Com essas palavras, no longínquo ano de 1952, o ministro Rocha Lagoa, do STF, sustentava a importância da Reclamação, a partir da clássica teoria dos poderes implícitos, nos casos em que a justiça local deixasse de atender à decisão do Supremo Tribunal Federal.

Desde seu surgimento pretoriano, passando pela inclusão no regimento interno, até sua incorporação no texto da Constituição de 1988, muito já se escreveu sobre esse relevante mecanismo de jurisdição constitucional, destinado à preservação da competência da Corte e, sobretudo, à garantia da autoridade de suas decisões (artigo 102, I, l, CR), em especial de seus provimentos vinculantes (artigo 988, III, CPC).

Trata-se, como já afirmamos nos Comentários à Constituição do Brasil, de uma medida jurisdicional cuja própria evolução ao longo dos últimos anos demonstra haver se tornado uma ação constitucional voltada à proteção da totalidade da ordem constitucional.

Ou seja, atualmente, a Reclamação Constitucional é um instrumento fundamental para garantir própria a eficácia das decisões do guardião da Constituição. Uma espécie de mater actio, isto é, aquela que garante as ações e os recursos constitucionais. Ou melhor: a Reclamação é a ação das ações constitucionais. Afinal, ela tem a função de  guardar a eficácia — também a efetividade! — das demais ações.

Dito de outro modo, a Reclamação não se destina diretamente à tutela de direitos subjetivos do reclamante, mas sim a garantir a própria jurisdição do tribunal, visto que o seu correto e adequado manejo assegura a fiscalização do cumprimento dos provimentos da Suprema Corte.

A Reclamação como a ação de controle que faz o controle do controle

Como se isso não bastasse, não se pode perder de vista que a reclamação também possui uma dimensão relacionada ao controle das decisões exaradas em controle abstrato de constitucionalidade. Veja-se: a reclamação possibilita o controle-do-controle. Ou melhor: o controle-sobre-o-resultado-do-controle.

Nesse sentido, o ministro Edson Fachin já explicitou que, desde a Rcl 4.374, o Supremo Tribunal Federal, “ao julgar reclamações, redefiniu o alcance e o sentido de suas próprias decisões apontadas como parâmetros da reclamação”, visto que, sabidamente, “a abertura hermenêutica da jurisdição constitucional exige a utilização da reclamação com todas suas potencialidades instrumentais”.

A Reclamação é disponível? Como poderia, se a ADI não o é?

A questão teórica a ser enfrentada pela dogmática constitucional, nesse contexto, é a seguinte: se a Reclamação é dotada de tão importante papel no exercício da jurisdição constitucional, a ela poderia ser aplicado, sem reservas, o instituto processual da desistência? Ou ainda: seria admissível a disponibilidade da reclamação, cuja renúncia dependeria de simples ato privativo do proponente sucedido de mera homologação pelo juízo competente?

Penso que a resposta é — e tem de ser — negativa, por conta da inevitável expansão do interesse de agir — não mais particular, porém público — após a proposição da reclamação constitucional. Em outras palavras: a Reclamação não pertence ao proponente; ela não tem donos; ela não pertence nem mesmo à Suprema Corte; ela é de interesse público, porque seu conhecimento e julgamento transcende.

Ora, a Reclamação não é uma ação comum ou qualquer (artigo 485, §5º, CPC). Aliás, a restrição à desistência pode ser facilmente encontrada no ordenamento jurídico em outras ações notadamente marcadas por seu caráter público: ação penal incondicionada (artigo 42, CPP) e ação civil pública (artigo 5º, §3º, Lei 7.347/85), por exemplo.

E, a meu ver, esse mesmo raciocínio se estende — naturalmente e por razões óbvias — às ações de controle de constitucionalidade, tanto concentrado quanto difuso. Como se sabe, segundo dispõe a Lei 9.868, uma vez proposta a ação direta, não se admitirá desistência (artigo 5º). Aplica-se o mesmo, por analogia, à arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 572, Rel. Min. Edson Fachin); e, ainda, aos recursos extraordinários, após o reconhecimento da repercussão geral (RE 693.456 RG), visto que uma tese há de ser fixada sobre a questão constitucional, “independentemente do interesse subjetivo que esteja em jogo”; ou, ainda, nos incidentes de resolução de demandas repetitivas, por força de lei (artigo 976, §1º, CPC).

Repito: a palavra-chave é transcendência. E esse me parece o ponto central. Se nas ações e recursos envolvendo controle de constitucionalidade não se admite a desistência, então o que dizer da reclamação destinada a verificar a eficácia — leia-se, observância e cumprimento — do controle de constitucionalidade?

Tudo indica, por corolário lógico, que ninguém pode dispor da reclamação pelo mesmo motivo que ninguém pode dispor da ação direta de inconstitucionalidade. Qualquer entendimento contrário incorreria em inevitável paroxismo. Imagine-se, a reclamação — ação que controla o resultado do controle de constitucionalidade — assumiria uma conotação privatista, o que seria inconcebível em uma democracia constitucional, em que a teoria constitucional e a teoria do processo não podem mais ser confundidas com uma espécie da teoria geral do processo, tal qual ocorria antes do fenômeno da constitucionalização do Direito (e do processo!).

Minha conclusão, portanto, caminha na seguinte direção: toda Reclamação com fundamento na garantia da autoridade das decisões da Suprema Corte deve, obrigatoriamente, ser conhecida e processada até seu julgamento final, por conta do interesse público que lhe subjaz, salvo se o relator entender pela negativa de seguimento, na forma regimental.

O caráter eminentemente público da Reclamação e a necessidade de superação da timidez jurisprudencial atual sobre o tema

Quando alguém provoca o Supremo, todos queremos saber o que a Corte pensa a respeito. Isso porque o interesse é público.

Há, entretanto, uma timidez da jurisprudência sobre a matéria: (1) inadmissibilidade da desistência de reclamação cujo mérito já tenha sido decidido (por todas, Rcl 66.885, Rel. Min. Cristiano Zanin; Rcl 66.866, Rel. Min. Carmen Lúcia); (2) inadmissibilidade da desistência de reclamação cujo julgamento já tenha sido iniciado (por todas, Rcl 1.503-QO, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Rcl 60.811, Rel. Min. André Mendonça).

Nada que não possa ser corrigido e adaptado. Em nome do interesse público. É um easy case. Portanto, avancemos. E, com isso, não me refiro a nenhum overruling, nem distinguishing, mas apenas a necessidade de expandir a ratio decidendi que tem orientado a Corte, dando mais um passo na defesa da jurisdição constitucional, tal qual feito em 1952, quando a reclamação foi gerida pelo próprio Tribunal.

E os fundamentos, além de fortes, são precisos. Para isso, trago à colação uma coisa nova no âmbito da interpretação-aplicação do Direito. Falo da hermenêutica da função. Ela está presente no clássico exemplo de Recaséns Siches sobre os “cães na plataforma do trem”. Se uma lei proíbe a entrada de cães na estação, não precisamos colocar uma nota de rodapé ou uma infinidade de parágrafos para dizer que “estão proibidos também ursos e quaisquer animais perigosos”. Tampouco não é necessário que o legislador explicite que, ao proibir cães, não se está a proibir o cão-guia do cego.

E por que é assim? Simples, porque há uma função. E a hermenêutica da função traz a lume o implícito. Desse modo, o velado, o não-dito, exsurge claramente; ele aparece na função. A hermenêutica da função vem desenvolvida indiretamente por  Wittgenstein, , assim como por Lon Fuller e, em especial, por Alasdair MacIntyre, no livro After Virtue. Vejamos seu argumento: das premissas que dispõem, por exemplo, que (a) “o relógio não marca as horas corretamente” e (b) “o fazendeiro teve um índice de produção maior do que todos os outros”; seguem-se, logicamente, as conclusões: (aa) “o relógio é ruim” e (bb) “o fazendeiro é bom”.

Isso ocorre porque, explica MacIntyre, “o conceito de relógio não pode ser definido independentemente do conceito de um bom relógio e o conceito de fazendeiro independentemente do bom fazendeiro”.

Voltando ao exemplo dos cães na plataforma, retira-se da descrição “proibido cães na plataforma” a obviedade de que o cão-guia do cego não está proibido. E que, sim, ursos estão vetados. Isso se deve à existência de uma hermenêutica da função, da coisa, do objeto, da lei. Há uma questão implícita que, se interpretada a contrario sensu, conspurcaria o sentido originário da norma, como ocorreria se afirmássemos que, por estarem proibidos apenas cães, ursos seriam permitidos. Qual sentido teria isso?

Numa palavra: sendo a reclamação uma ação de controle das ações de controle de constitucionalidade, é da sua própria função a indisponibilidade. Afinal, as discussões submetidas ao crivo da jurisdição constitucional sempre ultrapassam a esfera dos meros interesses subjetivos das partes. O que está em jogo, nesse caso, são direitos e garantias constitucionais. Públicos e indisponíveis, pois.

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IAC analisa se é possível anular ordem judicial para devolver valor recebido por força de liminar posteriormente revogada

Servidores públicos ajuizaram ações individuais para não devolveram valores recebidos liminarmente, em ação coletiva movida pelo sindicato da categoria; já são 260 recursos no STJ.

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) instaurou incidente de assunção de competência (IAC) para analisar a “possibilidade ou não de rediscussão, em ações individuais, de coisa julgada formada em ação coletiva que tenha determinado expressamente a devolução de valores recebidos em razão de tutela antecipada posteriormente revogada”.

O tema foi cadastrado como IAC 17. A relatoria é do ministro Paulo Sérgio Domingues, que afetou o Recurso Especial 1.860.219 para ser julgado no incidente.

O colegiado determinou a suspensão da tramitação dos processos com a mesma matéria no STJ ou nas instâncias de origem, com aplicação extensiva da regra do artigo 1.040 do Código de Processo Civil (CPC) aos processos em curso no tribunal, inclusive nos casos de devolução à origem para sobrestamento.

Necessidade de tratamento uniforme para recursos com o mesmo pedido

O requerimento de instauração do IAC foi formulado pela Universidade Federal de Santa Catarina, depois que servidores da instituição ajuizaram ações individuais para anular a obrigação de devolver valores recebidos por força de decisão precária, proferida em ação coletiva movida pelo sindicato da categoria. Segundo a universidade, a demanda coletiva transitou em julgado, e ficou decidido que os valores recebidos após o mandado de segurança impetrado pela entidade de classe (decisão precária) deveriam ser devolvidos.

A universidade alegou também que essas ações individuais chegaram ao STJ de maneira esparsa e dispersa, já tendo sido interpostos pelo menos 260 recursos especiais, “fomentando-se, com isso, um tratamento não uniforme à tese subjacente aos recursos”.

Número finito de processos que demandam tratamento uniforme da Justiça

Segundo o ministro Paulo Sérgio Domingues, o IAC é uma técnica de julgamento idealizada para a formação de precedentes vinculantes – similar ao incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), ao recurso extraordinário submetido à repercussão geral e ao recurso especial repetitivo, todos voltados à solução de questões de direito cuja importância ultrapassa os limites de um caso concreto.

O relator explicou que o IAC é aplicado às hipóteses em que a questão de direito – ainda que relevante e de grande repercussão social – estiver restrita a um número finito de demandas (artigo 947, caput, do CPC), em geral já ajuizadas, e que necessitem de um tratamento uniforme pela Justiça, prevenindo ou superando eventuais divergências jurisprudenciais (artigo 947, parágrafo 4º, do CPC).

O ministro lembrou que a instauração do IAC vai conferir tratamento uniforme às ações já ajuizadas, bem como prevenir o surgimento de novos litígios entre a administração pública e servidores a ela vinculados. “Considero relevante reafirmar que a decisão proferida em IAC constitui precedente qualificado (artigo 121-A do Regimento Interno do STJ), cuja observância se impõe a todos os juízes e tribunais (artigo 927, III, CPC), tal como ocorre com as decisões proferidas por esta corte superior em recursos especiais repetitivos”, concluiu.

Fonte: STJ

Réus pelo assassinato de Marielle indicam 70 testemunhas de defesa

Os réus acusados de participar do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes arrolaram cerca de 70 testemunhas de defesa na ação penal que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). As oitivas ainda não foram marcadas.

Os nomes foram entregues ao Supremo pelas defesas dos irmãos Brazão e do ex-chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro Rivaldo Barbosa.

No mês passado, o Supremo transformou em réus o conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TCE-RJ), Domingos Brazão, o irmão dele, Chiquinho Brazão, deputado federal (Sem Partido-RJ), Rivaldo Barbosa e o major da Policia Militar Ronald Paulo de Alves Pereira. Todos estão presos.

Entre as testemunhas indicadas, a defesa de Domingos Brazão arrolou as promotoras do Ministério Público do Rio Simone Sibílio e Leticia Emile, responsáveis pela investigação inicial do caso Marielle, além do prefeito do Rio, Eduardo Paes, e os deputados federais Reimont (PT-RJ) e Otoni de Paula (MDB-RJ).

Chiquinho Brazão indicou o deputado federal Washington Quaquá (PT-RJ), o ex-deputado Eduardo Cunha, além das duas promotoras.

Os advogados de Rivaldo Barbosa também indicaram as promotoras, além de investigadores da Polícia Civil do Rio e o delegado Giniton Lages, que também é investigado e atuou na apuração inicial do assassinato da vereadora.

Os depoimentos dos réus vão ocorrer somente no fim do processo. 

Durante o julgamento que transformou os acusados em réus, as defesas se pronunciaram e rejeitaram as acusações de participação no homicídio da vereadora.

Fonte:

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Telemedicina e princípio da inafastabilidade do atendimento presencial

De acordo com recente pesquisa na área de serviços de saúde, foi constatado que 64% dos centros de saúde fizeram atendimentos mediante a utilização da telemedicina [1], o que demonstra o desenvolvimento do uso desta tecnologia pela comunidade médica e pela sociedade.

Marcello Casal Jr/Agência Brasi

Nesse passo, vale lembrar que a Lei da Telessaúde (nº 14.510/2022) trouxe as regras gerais sobre o atendimento telepresencial, cabendo ao Conselho Federal de Medicina dispor sobre as regras específicas acerca da telemedicina, mediante a edição da Resolução CFM nº 2.314/2022. Ademais, importa mencionar que o uso desta tecnologia ganhou impulso após a pandemia da Covid-19, pelo que, por se tratar de um assunto novo, o tratamento desta temática ainda é incipiente no Judiciário brasileiro.

Em que pese o exposto, o TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) julgou um interessante caso envolvendo uma situação jurídica contemporânea relacionada à telemedicina, especificamente sobre uma de suas modalidades, a teleconsulta [2].

Em síntese, o caso analisado pelo tribunal paulista tratou de uma ação de obrigação de fazer com um pedido de antecipação de tutela, proposta por um menor, de três anos de idade, com suspeita de apresentar o Transtorno do Espectro Autista (TEA), em face de uma operadora de plano de saúde. No caso, após ser avaliado por um neurologista pediátrico, o paciente foi encaminhado para realizar uma triagem neurocognitiva, via telemedicina, de modo a possibilitar o diagnóstico. No entanto, após diversos contatos com a operadora, os representantes do paciente não conseguiram promover o agendamento da teleconsulta, requerendo, por sua vez, o atendimento presencial, o que foi negado pela operadora sob o argumento de que o pedido realizado era tão somente para o atendimento via telemedicina.

Com efeito, o juízo de primeiro grau deferiu a tutela pleiteada, destacando, em suma, que era manifesto o risco de dano ao autor diante da impossibilidade de se aguardar o desfecho da demanda para que somente então fosse realizado o atendimento presencial. Por conseguinte, a operadora interpôs o respectivo agravo de instrumento em face da decisão, argumentando que o pedido médico lançado pelo autor nos autos do processo foi expresso em indicar a realização do atendimento via telepresencial, de modo que a determinação judicial para que o atendimento ocorresse de modo presencial transcenderia a jurisdição e a atuação do magistrado.

Antes de tratar do julgamento do recurso interposto pelo plano de saúde, cumpre citar algumas questões jurídicas relacionadas à matéria a fim de esclarecer a incidência das normas que envolvem o tema. Em primeiro lugar, cabe trazer o disposto no parágrafo primeiro do artigo 6º da Resolução CFM nº 2.314/2022:

“Art. 6º. A teleconsulta é a consulta médica não presencial, mediada por TDICs, com médico e paciente localizados em diferentes espaços.

  • 1º A consulta presencial é o padrão ouro de referência para as consultas médicas, sendo a telemedicina ato complementar”.

Assim, pode-se concluir que a natureza jurídica da telemedicina (teleconsulta) é de ato complementar, tendo em vista que o critério considerado mais adequado para o atendimento médico (padrão ouro) permanece sendo a consulta presencial.

Do mesmo modo, ratificando a natureza complementar da telemedicina, o artig 19 da Resolução CFM nº 2.314/2022 dispõe que:

“Art. 19. Os serviços médicos a distância jamais poderão substituir o compromisso constitucional de garantir assistência presencial segundo os princípios do SUS de integralidade, equidade, universalidade a todos os pacientes.”

Nesse contexto, considerando o novo ambiente introduzido pela telemedicina, a literatura jurídica reforça a importância do atendimento presencial, destacando que:

“A possível potencialização da subjetividade do médico na seara da telemedicina, diante das peculiaridades deste atendimento, parece ter sido amenizada com a inclusão do que foi denominado neste trabalho de “princípio da inafastabilidade do atendimento presencial” (art. 19), enfatizando-se que a telemedicina é um ato complementar, a qual, portanto, não tem o objetivo de se tornar a regra para o atendimento médico. De outro modo, o apontamento da Resolução no que toca à fixação do atendimento presencial como a regra, assegura a qualidade na prestação do serviço médico e o respeito ao princípio bioético da beneficência.” [3]

Princípio da inafastabilidade

Desta forma, o princípio da inafastabilidade do atendimento presencial revela uma importância nodal na relação do paciente com os estabelecimentos de saúde, com os profissionais de saúde e com os planos de saúde, de modo a preservar a sua dignidade [4], evitando que a qualidade do atendimento médico seja prejudicada em decorrência de eventual interesse econômico envolvido.

Por outro ângulo, cumpre enfatizar que o presente tema aborda uma relação consumerista, pelo que devem ser observados os princípios insculpidos no artigo 4º do CDC, notadamente a necessidade de harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo, compatibilizando a proteção do consumidor com a busca pelo desenvolvimento econômico e tecnológico [5].

Por óbvio, a norma consumerista reforça o princípio da inafastabilidade do atendimento presencial ao deixar clara a necessidade de equilibrar a tutela da dignidade do paciente consumidor com os anseios econômicos e tecnológicos do fornecedor, de maneira que o interesse existencial do primeiro (saúde, vida) prevaleça em detrimento do interesse patrimonial do último.

Nessa linha de raciocínio, alargando ainda mais a incidência do princípio da inafastabilidade do atendimento presencial, a Lei da Telessaúde versa expressamente sobre o princípio do direito de recusa [6], ou seja, que o paciente tem a garantia (e a faculdade) de requerer o atendimento presencial sempre que entender necessário. Ainda nessa linha, a norma deontológica corrobora que o paciente ou o médico podem interromper o atendimento telepresencial e requerer o atendimento presencial (artigo 6º, §5º da Resolução CFM nº 2.314/2022) [7].

Retornando à análise do julgamento do agravo de instrumento interposto pela operadora de plano de saúde, pode ser verificado que o TJ-SP aplicou, parcialmente, a normativa relativa ao tema, negando provimento ao recurso, baseado no fundamento de que “não é prerrogativa do médico determinar atendimento via telemedicina”.

“É direito, tanto do paciente quanto do médico, optar pela interrupção do atendimento à distância, assim como optar pela consulta presencial, com respeito ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pré-estabelecido entre o médico e o paciente — Aplicação do artigo 6º, §§ 1º e 5º, da Resolução CFM nº 2.314.”

Outrossim, o aludido acórdão destacou também que a conduta da operadora foi abusiva, visto que contrária à boa-fé objetiva e à equidade, colocando o consumidor em uma desvantagem exagerada frente à imposição da fornecedora de serviços [8].

Considerando que ainda não houve o julgamento do mérito do processo pelo juízo de primeiro grau, além das questões já suscitadas, deve ser observado que o contrato de prestação de serviços de saúde possui um caráter eminentemente existencial [9], haja vista que o seu objeto é a tutela da pessoa, motivo pelo qual essa relação contratual deve ser pautada não somente na autonomia privada, mas, prioritariamente, na dignidade da pessoa humana.

Nessa direção, ao avaliar a negativa do atendimento presencial pela Operadora do Plano de Saúde pelo simples fato de que o pedido continha uma indicação para a teleconsulta, observa-se uma flagrante violação da boa-fé objetiva (artigo 4º, III do CDC) [10], baseada na tutela da confiança, nos deveres de lealdade e cooperação, atributos indispensáveis numa relação contratual desta espécie.

No mais, cabe pontuar que a avaliação do magistrado a respeito do caso deverá considerar que o paciente possui uma vulnerabilidade agravada [11], pois, além de consumidor, é uma criança, com a indicação de um possível diagnóstico de uma condição grave de ordem psicológica e/ou mental.

Por qualquer prisma que se observe, não obstante o caso em apreço ainda não ter sido julgado definitivamente, o desrespeito às regras estabelecidas na norma específica atinente ao tema (Resolução CFM nº 2.314/2022 e Lei nº 8.080/1990), entoadas pelo princípio da inafastabilidade do atendimento presencial, refletem que a conduta da fornecedora de serviços frustrou a legítima expectativa do paciente consumidor [12], causando um acidente de consumo.

É fato que a telemedicina proporciona vantagens incríveis ao atendimento médico, especialmente pela possibilidade de atingir regiões desprovidas de hospitais ou de determinada especialidade médica, mas, de outro lado, o caso narrado demonstra que a expansão da sua utilização deve ser cautelosa a fim de que a qualidade da prestação do serviço de saúde não sofra prejuízo e a dignidade do paciente consumidor seja preservada.

Nessa linha de compreensão, conclui-se este breve artigo com a advertência do papa Francisco ao expor que “o benefício inquestionável que a humanidade pode obter do progresso tecnológico dependerá da medida em que as novas possibilidades disponíveis forem utilizadas de modo ético”. [13]

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[1] Disponível em https://tinyurl.com/34xs6krc. Acesso realizado em 24/06/2024.

[2] TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2294692-70.2023.8.26.0000, São Paulo, Relator: João Batista Vilhena, Data de Julgamento: 17/11/2023, 5ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 17/11/2023.

[3] CAMPOS, Alan Sampaio. A responsabilidade civil pela ausência do consentimento informado do paciente no âmbito da telemedicina. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2024, pp. 233/234.

[4] Nas palavras do saudoso Antônio Junqueira de Azevedo, “a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico pressupõe o imperativo categórico da intangibilidade da vida humana e dá origem, em sequência hierárquica, aos seguintes preceitos: 1. respeito à integridade física e psíquica das pessoas; 2. consideração pelos pressupostos materiais mínimos para o exercício da vida; e 3. respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social igualitária.” (AZEVEDO, Antônio Junqueira. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Revista USP, 2001, p. 123)

[5] “Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (…) III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.

[6] Lei n. 8.080/1990: “Art. 26-A. A telessaúde abrange a prestação remota de serviços relacionados a todas as profissões da área da saúde regulamentadas pelos órgãos competentes do Poder Executivo federal e obedecerá aos seguintes princípios: III – direito de recusa ao atendimento na modalidade telessaúde, com a garantia do atendimento presencial sempre que solicitado” (artigo incluído pela Lei n. 14.510/2022).

[7] “Art. 6º. (…) § 5º É direito, tanto do paciente quanto do médico, optar pela interrupção do atendimento a distância, assim como optar pela consulta presencial, com respeito ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pré-estabelecido entre o médico e o paciente”.

[8] “Art. 51. (…) IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade; (…) § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II – restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual”.

[9] PEREIRA, Paula Moura Francesconi de Lemos. Relação médico-paciente: o respeito à autonomia do paciente e a responsabilidade civil do médico pelo dever de informar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 28.

[10] “(…) boa-fé objetiva significa uma atuação ‘refletida’, uma atuação refletindo, pensando no outro, no parceiro contratual, respeitando-o, respeitando seus interesses legítimos, suas expectativas razoáveis, seus direitos, agindo com lealdade, sem abuso” (MARQUES, Claudia Lima. “A abusividade nos contratos de seguro-saúde e assistência médica no Brasil”. Revista da Ajuris, Porto Alegre: Ajuris, v. 64, n. 34, 1995, p. 55.)

[11] “No caso da criança, a vulnerabilidade é um estado a priori, considerando que vulnerabilidade é justamente o estado daquele que pode ter um ponto fraco, que pode ser “ferido” (vulnerare) ou é vítima facilmente” (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. RT, São Paulo: 2016, p. 131)

[12] “Percebe-se, assim, que o conceito de defeito está relacionado não propriamente com a inaptidão do produto para seus fins, mas, antes, com a violação de uma legítima expectativa de segurança, que é capaz de provocar danos aos consumidores” (CALIXTO, Marcelo Junqueira. A responsabilidade civil do fornecedor de produtos pelos riscos do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 134)

[13] Discurso do Papa Francisco aos participantes no seminário “bem comum na era digital” promovido pelo Pontifício Conselho para a cultura  e o dicastério para o serviço do desenvolvimento humano integral. Sala Clementina, 27 de setembro de 2019. Disponível  em  https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2019/september/documents/papa-francesco_20190927_eradigitale.html. Acesso realizado em 25/06/2024.

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Encontro Nacional das Seções Judiciárias é encerrado com propostas de melhorias para a Justiça Federal

O evento aconteceu nos dias 27 e 28 de junho, na sede do CJF, em Brasília (DF)

O Encontro Nacional das Seções Judiciárias foi encerrado na sexta-feira (28), com a apresentação, em plenária, dos resultados dos trabalhos desenvolvidos. O evento reuniu, em 27 e 28 de junho, na sede do Conselho da Justiça Federal (CJF), em Brasília (DF) diretores de foro das 27 Seções Judiciárias, diretores-gerais dos seis Tribunais Regionais Federais (TRFs), além de gestores das áreas de administração, gestão de pessoas, gestão orçamentária e tecnologia da informação desses 33 órgãos da Justiça Federal.

O secretário-geral do Conselho, juiz federal Daniel Marchionatti, destacou a qualidade das ideias fomentadas durante o encontro e reafirmou o compromisso do CJF em atuar como facilitador no âmbito da Justiça Federal. “São vocês que fazem da Justiça Federal uma instituição grande, importante e atuante. O Conselho da Justiça Federal está sempre à disposição de todos vocês, que estão nos estados e na ponta, atuando diretamente com o cidadão”, disse o secretário-geral.

Resultados

Após os debates das mesas setoriais sobre os principais desafios da Justiça Federal, foram apresentados, em plenária, os balanços das atividades desempenhadas nos dois dias de evento, e possível soluções foram propostas paras as dificuldades identificadas.

O secretário de Planejamento, Orçamento e Finanças do CJF, Marcelo Barros Marques, apresentou a área de orçamento e descreveu as discussões como “muito proveitosas e essenciais para estreitar laços e mostrar a importância das áreas”.

Entre as questões trabalhadas pelo grupo destacaram-se: o uso do Sistema Integrado de Gestão Orçamentária e Financeira da Justiça do Trabalho (SIGEO); a universalização e o aumento da segurança dos sistemas orçamentários; os parâmetros de propostas orçamentárias da Justiça Federal e a promoção de uma agenda de reuniões entre o CJF e as Seções Judiciárias com a presença dos TRFs.

Administração

Na sequência, o secretário de Administração do Conselho, Humberto Miranda Cardoso, afirmou que as reuniões foram “muito profícuas e possibilitaram a articulação dos esforços e as contribuições dos participantes”.

A mesa debateu sobre os modelos de governança compartilhada de contratações, a prestação de apoio para o TRF da 4ª Região e a SJRS, no que se refere à recuperação de acervo documental, o uso do SIGEO na área administrativa e a alteração de resoluções de suprimentos de fundos, diárias e passagens.

Gestão de Pessoas

A secretária de Gestão de Pessoas em exercício do CJF, Adriana Alves Xavier Durão, exaltou a importância de se trabalhar de forma integrada na Justiça Federal e afirmou que “nesse curto período, tendo a oportunidade de ouvir os colegas, nós percebemos o quanto que é valoroso trabalhar em rede, colaborando com o outro”.

A mesa temática abordou cinco tópicos principais: recomposição da força de trabalho e valorização da carreira; automatização de fluxos de trabalho; padronização de processos, procedimentos e fluxos; ações de prevenção e tratamento de saúde; e efetividade das ações de capacitação.

Tecnologia da informação

Por fim, o secretário da Tecnologia da Informação do CJF, Charles Fernando Alves, apontou que essa é a primeira vez que todos os gestores da área de tecnologia estão juntos em um mesmo espaço “tratando de temas estratégicos para a Justiça Federal, prospectando e sonhando com novos produtos, serviços, integrações”.

Alguns dos temas abordados pela área foram compras compartilhadas, a uniformização das áreas de gestão de segurança da informação e de cibersegurança da Justiça Federal, a evolução da implantação do SIGEO e do Sistema Eletrônico de Recursos Humanos (SERH) nos TRFs, e o serviço de emissão de certidão unificada da Justiça Federal, lançado no Portal do CJF na quinta-feira (27).

Fonte: CJF

Legislação experimental, PL do Estupro e jabuti das blusinhas

AGU e o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços anunciaram no último dia 24 de junho uma cooperação para desenvolver o procedimento de legislação experimental. Você, pessoa desavisada e incrédula nas inovações que possam sinalizar alguma luz no ringue polarizado da crônica político-legislativa nacional saiba que ainda há vida republicana no Brasil.  Ainda que, por enquanto, seja o Executivo a dar o passo enquanto o Legislativo assista a banda passar.

A legislação experimental como o próprio nome indica é um procedimento (com garantias à uma polifonia dos afetados) que encontra o seu espaço de atuação, exatamente onde a possibilidade de consenso sobre como regular uma matéria parece estar a anos luz de um desfecho no mundo terreno.

Para quem ainda acha que elaborar um ato normativo (seja ele de origem parlamentar/legal, ou regulamentar/legal) significa publicar e assistir a dinâmica da situação objeto da ação legislativa, há remédios para aqueles temas que ninguém quer e todo mundo fala.

A fala inclui até mesmo a alegação da inexistência do dever de legislar (cuja necessidade é fartamente documentada nas burocracias judiciais e administrativas), como se a afetação de recursos públicos para os legislativos federais, estaduais e municipais fosse coisa de pouca monta que não tivesse a contrapartida de poder-dever. Aliás, a defesa da legislação pelos legisladores (e legisladoras em menor número, mas isso é assunto para depois) é sempre invocada quando o Judiciário se lança no seu desejo secreto e explícito de legislar.

Afinal, há um imenso campo das omissões, moras e lacunas legislativas que povoam a vida cotidiana nacional. Exorbitância de competência, reserva legal, conflito entre poderes são parte dos mantras entoados pelo mesmo Legislativo (mandatários da atual legislatura) que ignora temas difíceis, controversos de olho nos likes, quer dizer, votos na próxima campanha.

A legislação experimental apresenta-se como técnica que atua sobre a duração (vigência) de uma legislação. Na prática, significa o reconhecimento estratégico do papel do tempo e sobre como modulá-lo de maneira eficiente para alcançar os objetivos justificadores da sua existência (ou deveria sê-lo). A modulação de efeitos da legislação não é algo estranho à crônica jurídica brasileira, haja vista o que ocorre com os efeitos das declarações de inconstitucionalidade, ou mesmo com os eventuais conflitos em caso de perda de eficácia das medidas provisórias (de novo, o tempo), ou mesmo no caso de legislações em tempos de calamidades e riscos.

Os outros campos de atuação da lei experimental têm a ver com o impacto da tecnologia em produtos, processos e na sociedade, ou mesmo quando há conflitos e visões divergentes sobre um tema cujos dados e evidências demonstrem problemas na efetividade de direitos fundamentais, por exemplo. O período de existência de uma legislação é controlado ( modulação do tempo de vigência) com o fim de verificação dos efeitos e também no modo como a sociedade, as instituições, o setor produtivo, os governos reagem ao conteúdo da decisão de legislar.

Insumos informacionais obtidos nessa etapa formam uma justificação poderosa ao aperfeiçoamento da legislação. Essa inovação na elaboração de legislações e regulações considera as contingências do nosso tempo e a necessidade de leis que façam sentido e que sua edição minimize a criação ou risco de efeitos perversos, desiguais, com ônus. Por fim, a legislação experimental lida com problemas públicos, problemas delimitados no arco de direitos e garantias da nossa Constituição, inclusive aqueles com impacto sobre a dignidade humana, a autonomia científico-tecnológica, o desenvolvimento nacional, a maior isonomia entre entes e pessoas e etc.

Legislação experimental exige planejamento

O planejamento passa, primeiramente, pela definição do tipo de problema a ser enfrentado. Falamos de questões do presente que necessitam serem redesenhadas para o futuro. Como o mundo deveria ser, pode passar por percepções religiosas, ideológicas, morais, mas elas não podem desconsiderar a ocorrência de efeitos aqui e agora.

Porém, o tempo, no procedimento legislativo ou regulatório tem o seu lado b que não tem nada de bom para a nossa República.Práticas legislativas malfazejas estão entre nós, mesmo com as inovações identificadas no Executivo e no Judiciário.

Uma das formas para obtenção de consensos autoritários e em franco desrespeito ao princípio constitucional do contraditório que permite a circulação de informações e sua dinâmica de verificação e contradita é o regime de urgência. Ele entra em rota de colisão com toda a proposta de inovação da legislação experimental pois cria uma barreira às condições para uma livre deliberação pública, com a devida crítica fundamentada quanto efeitos de um texto inicial de proposição legislativa.

Foi o caso do PL do Estupro (PL nº 1.094/2024) que sem considerar o iter legislativo ordinário pretende criar um ilícito desproporcional e desumano que atinge mulheres e meninas brasileiras. A avalanche de dados contrários ao texto apresentado e o deslocamento do debate parlamentar para a arena cotidiana e das redes sociais, mostrou o desastre da desconsideração do tempo e da necessidade de seriedade no deferimento dos regimes de urgência de tramitação. O balão de ensaio, mal acabado, do Legislativo, tal e qual o real das Festas de São João chamuscou, ainda mais, a imagem da Câmara dos Deputados.

Nosso segundo caso de péssimas práticas legislativas, tem a ver com o PL 914/2024 cujo objeto é a produção de veículos menos poluentes. A iniciativa, conforme os objetivos do desenvolvimento sustentável, tem toda a justificação de uma legislação intergeracional a marcar o campo legislativo brasileiro no setor, porém, trouxe consigo um oitavo passageiro.

A “taxa das blusinhas “,ou a taxação de compras internacionais até 50 dólares não poderia ser discutida, de forma, ampla, aberta e republicana. Ela tinha que ser aprovada a todo custo, ainda que seu preço fosse o desrespeito às regras do jogo, do devido processo legislativo (sim, de novo o artigo 7º da Lei Complementar nº 95/1998 que não por acaso regulamenta o art. 59 da Constituição) , minando as bases principiológicas do Regimento do Senado, frustrando de uma só vez a participação, o contraditório, a deliberação (artigo 412).

Bons argumentos não faltam para impedir a aquisição de importados de baixo custo (por boa parte da população que não viaja para o exterior) como a evasão fiscal, concorrência desleal da indústria têxtil internacional, ocorrência de trabalho escravo etc. Três bons assuntos diferentes, díspares, com regimes próprios a exigir tempo, dados, discussão, afinal o inferno anda cheio de boas intenções, inclusive as legislativas.

Inovações que coloquem o tempo da legislação e sua sabedoria a serviço de instituições mais legítimas (no caso, o Executivo) têm na legislação experimental uma boa prática. Porém, cabe aos legisladores, não ao decurso do tempo, a decisão de fazerem sentido para quem vota, respeitando as próprias regras que criam.

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