Tese do STF sobre prisão de condenados no Júri deixa rastro de confusão nos tribunais

Já se passou um ano desde que o Supremo Tribunal Federal determinou que condenados no Tribunal do Júri devem ser presos imediatamente após o julgamento. Segundo a tese da corte, fixada no Tema 1.068, a execução da pena só pode ser adiada caso haja indícios de nulidade no processo ou de condenação “manifestamente contrária à prova dos autos”.

A decisão foi aprovada sob várias divergências entre os ministros e é amplamente criticada por advogados, mas foi confirmada recentemente pelo Supremo em embargos de declaração ajuizados por defensorias públicas. A aplicação da norma, porém, tem se dado de maneira desuniforme nos tribunais estaduais.

A falta de critérios foi detectada em um levantamento da revista eletrônica Consultor Jurídico sobre acórdãos criminais deste ano, especialmente no Tribunal de Justiça de São Paulo e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

A análise mostra que os magistrados têm determinado a execução imediata da pena mesmo em processos com indícios de nulidade, o que contraria a exceção prevista pelo STF. Por outro lado, decisões que autorizam os réus a recorrerem em liberdade são tomadas sob critérios divergentes e, em alguns casos, com justificativas que já foram rechaçadas pelo Supremo.

Falta de padrões

Em geral, as decisões que mantêm os condenados soltos sustentam que a medida do Supremo não pode retroagir para prejudicar o réu, conforme previsto no artigo 5º da Constituição. Os magistrados avaliaram, nestas ações, que pessoas julgadas antes da fixação da tese não podem ser atingidas pela nova diretriz da corte.

O STF, contudo, já reiterou que a irretroatividade da lei penal não se aplica a estes casos. Em pelo menos três julgados, publicados em fevereiromarço e abril deste ano, os ministros afirmaram que não se trata de retroação de lei penal porque o Supremo deu apenas uma nova interpretação a uma legislação já existente: o “pacote anticrime”, que entrou em vigor em janeiro de 2020.

A lei “anticrime” alterou o artigo 492 do Código de Processo Penal para determinar que condenados pelo Júri devem ser presos automaticamente se a pena for igual ou superior a 15 anos — o que é comum nestes casos, já que o Júri se dedica a crimes dolosos contra a vida. A nova posição do Supremo derrubou este piso de 15 anos e ordenou a execução imediata para qualquer pena, mas não alterou o texto do CPP.

O novo arranjo tem gerado um rastro de confusão. O princípio da irretroatividade, além de ser usado contra a orientação do STF, ainda tem sido aplicado com diferentes marcos temporais, como ilustra o quadro abaixo:

Processo 2027309-88.2025.8.26.0000 — (10/02/2025) — Decisão de primeira instância, em fevereiro de 2025, determinou a prisão de dois homens que tinham sido condenados no Júri por tentativa de homicídio. Em segundo grau, porém, um desembargador reviu a medida e mandou soltar os réus porque eles foram julgados em março de 2024, antes da fixação da nova tese pelo STF, em setembro (clique aqui para ler).

Processo 2133280-62.2025.8.26.0000 — TJ-SP (17/07/2025) — Com base na irretroatividade, o acórdão afastou a prisão de um condenado por homicídio apesar de ele só ter sido sentenciado em abril de 2025, depois da decisão do STF. Isso porque o acórdão não se fundamentou na data da condenação, e sim na da pronúncia — decisão que leva o réu ao Tribunal do Júri. Ele foi pronunciado em agosto de 2024, antes da medida do Supremo (clique aqui para ler).

Processo 1.0000.24.518035-1/001 — TJ-MG (10/07/2025) — Neste caso, o acórdão não tomou como base a data da condenação nem a da pronúncia, e sim a data do fato criminoso, um homicídio cometido em 2016. Além disso, a baliza para a retroatividade não foi o estabelecimento da tese pelo STF, e sim a data da vigência do pacote “anticrime”, em janeiro de 2020 (clique aqui para ler). Um acórdão do mesmo tribunal, em maio, havia adotado como marcos temporais a data da sentença no Júri e a nova posição do STF (clique aqui para ler).

Para a criminalista Isabella Piovesan Ramos, do escritório Machado de Almeida Castro Advogados, o STF colocou um ponto final na questão ao julgar embargos de declaração no final de agosto, que questionavam se a nova regra poderia retroagir ou não.

“Eu discordo da posição do STF, mas ela foi bem clara ao afirmar que a prisão imediata também vale para casos anteriores. Pode ser que algum juiz mais garantista continue decidindo em sentido contrário, mas eu entendo que o Supremo acabou com qualquer margem para discussão sobre isso”, avalia.

Autoriza ou obriga?

Outra confusão frequente nos tribunais é baseada no texto literal da tese do Supremo: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. Para alguns julgadores, o uso do termo “autoriza” dá a opção de aplicar ou não o novo entendimento.

Um acórdão recente do TJ-SP, o mesmo que usou o princípio da irretroatividade com base na data da pronúncia, entendeu que a medida do STF “autoriza, mas não impõe o imediato início da execução da pena, sendo necessária a análise do caso concreto”.

Essa também foi a conclusão de um juiz do Tribunal de Justiça do Maranhão ao lavrar uma sentença, do final de agosto, que condenou dois homens por homicídio qualificado. Ao permitir que eles recorressem em liberdade, o magistrado afirmou que a tese do Supremo “estabelece uma possibilidade, não uma obrigatoriedade, cabendo ao juiz presidente a análise das circunstâncias do caso concreto (clique aqui para ler)“.

“Realmente, o uso desse termo ‘autoriza’ está causando algum ruído, porque dá a entender que a norma não tem um caráter obrigatório. Isso provoca uma discussão nos tribunais sobre a força que essa determinação tem”, opina o criminalista Fabrício Dreyer Pozzebon, doutor em Direito pela PUC-RS.

Vaivém de jurisprudência

O julgamento em que o STF fixou a nova tese passou longe da unanimidade. O voto vencedor, do relator Luís Roberto Barroso, foi acompanhado por cinco ministros, enquanto outros cinco expuseram divergências totais ou parciais.

Entre os discordantes, o principal argumento foi o de que a execução imediata da pena fere a presunção de inocência, prevista no artigo 5º da Constituição. Esses ministros apontaram que o próprio Supremo já havia vetado a prisão antes do trânsito em julgado em novembro de 2019, no julgamento das ADCs 43, 44 e 54.

O panorama começou a mudar em janeiro de 2020, com a entrada em vigor do pacote “anticrime”, e foi endurecido com a posição do Supremo em setembro de 2024. Segundo o voto vencedor de Barroso, o princípio da presunção de inocência deve ser sopesado com outras garantias constitucionais, como a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e o direito fundamental à vida, que estaria ameaçado sob as normas antigas.

A advogada Marcella Mascarenhas Nardelli, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), vê incoerência na posição do STF que flexibiliza a presunção da inocência em nome da soberania dos veredictos do Júri. Em exposição no 31º Seminário Internacional de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), no final de agosto, ela lembrou que essa mesma soberania dos veredictos é relativizada quando o réu é absolvido.

“A força da soberania dos veredictos é reduzida a partir da consideração de que a absolvição pelo quesito genérico, ainda que fruto de clemência, pode ser submetida ao crivo do Tribunal de Apelação”, avaliou.

Suposta proteção à vida

O acórdão do STF que permitiu a prisão antecipada citou que menos de 2% das sentenças do Júri no TJ-SP, no período entre janeiro de 2017 e outubro de 2019, foram anuladas posteriormente. Para Barroso, o percentual “inexpressivo” de condenações revertidas justifica o cumprimento antecipado da pena, já que as decisões do Júri costumam ser mantidas.

O criminalista Rodrigo Faucz, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que esse argumento não se sustenta. “Esse percentual, mesmo que pequeno, é uma prova de que erros podem acontecer. Isso que eles chamam de números inexpressivos eu chamo de pessoas. São vidas que eventualmente são perdidas por causa disso”, critica.

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Comissão aprova projeto que cria o “Pix Pensão” para facilitar pagamento de pensão alimentícia

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou proposta que institui a transferência automática de pensão alimentícia, chamada de “Pix Pensão”. A medida permite que o beneficiário opte pela transferência automática em qualquer momento do cumprimento da sentença.

Caberá ao juiz determinar o débito direto da conta do pagador para a conta do alimentando ou de seu responsável.

Hoje, a pensão pode ser debitada automaticamente do salário do devedor. Mas se ele não tiver vínculo formal, o beneficiário precisa acionar a Justiça a cada atraso.

A comissão aprovou a versão elaborada pela relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), para o PL 4978/23, da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) e outros parlamentares. A proposta segue agora para análise dos senadores, a menos que haja pedido para que seja analisada também pelo Plenário da Câmara.

“Embora o ordenamento jurídico seja dotado de mecanismos eficientes de coerção para o pagamento, o maior compromisso do legislador é com o efetivo cumprimento da obrigação alimentar”, afirmou Laura Carneiro. “A proposição promove celeridade e efetividade, fechando portas para manobras de devedores irresponsáveis.”

O texto altera o Código de Processo Civil.

Penhora
O projeto permite a penhora de valores depositados em conta de empresário individual. Ela deverá se limitar ao valor das prestações alimentícias em atraso.

“Caso persista infrutífera a execução por transferência direta, deve ser possível prosseguir, seja pelo rito da execução por quantia certa (com a penhora de outros bens, como automóveis, imóveis etc.), seja pelo rito da prisão”, esclareceu Laura Carneiro.

Outro ponto do projeto prevê a divulgação de estatísticas sobre o andamento das ações de alimentos no país.

Outros projetos rejeitados
Na mesma votação que aprovou o projeto de Tabata Amaral, foram rejeitados os PLs 3837/19, 185/22, 5067/23 e 404/24, que tramitam em conjunto e tratam de assunto semelhante.

Fonte: Câmara dos Deputados

Disponibilização indevida de informações pessoais em banco de dados gera dano moral presumido

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por maioria, que a disponibilização para terceiros de informações pessoais armazenadas em banco de dados, sem a comunicação prévia ao titular e sem o seu consentimento, caracteriza violação dos direitos de personalidade e justifica indenização por danos morais.

O caso teve origem em ação proposta por um consumidor contra uma agência de informações de crédito, sob a alegação de que seus dados pessoais foram divulgados sem autorização. Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente. Ao manter a decisão, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) considerou que os dados compartilhados não eram sensíveis e que a atuação da empresa, na condição de birô de crédito, estaria respaldada pela legislação específica.

No recurso ao STJ, o consumidor sustentou que a disponibilização de informações cadastrais a terceiros exige o consentimento do titular. Argumentou que tais informações, como o número de telefone, têm caráter sigiloso, e que a divulgação de dados da vida privada em bancos de fácil acesso por terceiros, sem a anuência do titular, gera direito à indenização por danos morais.

Danos são presumidos diante da sensação de insegurança

A ministra Nancy Andrighi, cujo voto prevaleceu no julgamento, ressaltou que, de acordo com a jurisprudência consolidada do STJ, o gestor de banco de dados regido pela Lei 12.414/2011 pode fornecer a terceiros apenas o score de crédito, sem necessidade de consentimento prévio do consumidor, e o histórico de crédito, desde que haja autorização específica do cadastrado, conforme prevê o artigo 4º, inciso IV, da mesma lei.

A ministra enfatizou que as informações cadastrais e de adimplemento registradas nesses bancos de dados não podem ser repassadas diretamente a terceiros, sendo permitido o compartilhamento apenas entre instituições de cadastro, nos termos do artigo 4º, inciso III, da Lei 12.414/2011.

Nancy Andrighi concluiu que o gestor de banco de dados que, em desacordo com a legislação, disponibiliza a terceiros informações cadastrais ou de adimplemento do consumidor deve responder objetivamente pelos danos morais causados. Segundo a ministra, esses danos “são presumidos, diante da forte sensação de insegurança” experimentada pela vítima.

Leia o acórdão no REsp 2.201.694.

Fonte: STJ

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Por que a autocontenção no caso dos atos antidemocráticos é um erro

O julgamento do processo dos atos antidemocráticos levanta uma série de questões jurídicas, políticas e morais. Deve o Supremo Tribunal Federal julgar casos que envolvem ofensas a seus ministros? Parece que a resposta é afirmativa nesse caso em função de que os ataques são à instituição do STF, e não às pessoas dos ministros.

Pedir que um dos juízes visados por esses ataques se declare parcial ou suspeito ignora essa distinção, e tornaria todos os 11 ministros incapazes de julgar. Também é verdadeira a conclusão de que o STF existe em grande medida para limitar e punir ações concretas e planos de derrubada da democracia. Ele é, afinal, o “guardião da Constituição”, e a divisão atual do trabalho do Judiciário lhe confere competência jurídica — pois há suspeitos de envolvimento nos atos julgados que possuem prerrogativa de foro.

O que ainda é muito questionado é se o STF deve se autoconter em seu julgamento, com vistas à sua autopreservação institucional, dada a carga política em torno do julgamento. Acredito que a resposta a essa pergunta é negativa em certos termos, que se relacionam com a busca da melhor definição do ideal de moralidade política do “Estado Democrático de Direito.”

Para muitos, essa parece ser uma questão de realpolitik: as cortes constitucionais em geral “não tem a espada nem o tesouro”, como diziam os Artigos Federalistas. Os ministros devem se perguntar se há boas chances de que represálias se imponham a eles e à corte caso decidam como creem ser justificado; suas decisões se resumiriam a questões de fato e de “razão prudencial.” O raciocínio visa à autopreservação: se o STF sofrer represálias — como a limitação dos seus poderes pelo Congresso, o efeito “backlash” —, cada ministro individualmente perderá poderes. Por isso, para a conservação da instituição no médio e longo prazo, algumas decisões teriam de ser minimalistas para evitar atritos políticos.

Por ser a “instituição menos perigosa” (ou mais frágil), no dizer do jurista estadunidense Alexander Bickel, uma corte como o STF deveria estar muito atenta aos efeitos de suas decisões sobre os atores políticos mais relevantes. Poderia se dizer, então que o STF deveria buscar resolver o processo dos atos antidemocráticos em audiências de conciliação – públicas ou privadas; ou estender a sua duração para evitar julgar o caso; ou, ainda, aplicar a estrangeira “doutrina da questão política”, terceirizando a resolução do conflito a outro Poder da República, por conta do peso político do conflito.

Caio Cardoso Tolentino (mestre e doutorando em Direito pela USP) me lembrou, nesse sentido, que há precedentes no Brasil para quem apoia esse último argumento: em 1892, o STF foi instado por Rui Barbosa a julgar a validade de prisões políticos em torno da decretação de estado de sítio por decreto. O Habeas Corpus nº 300 foi rejeitado, entre outras razões, por não ser considerado “da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo” [1]. A decisão veio depois de o marechal Floriano Peixoto afirmar “se os juízes do Tribunal concederem o Habeas Corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão” [2].

No nosso caso, esse argumento ressurge de novas maneiras: pela defesa da votação do projeto de lei de anistia no Congresso; pela postergação da decisão ao/à próximo/a presidente da República (há pré-candidatos fazendo essa promessa caso eleitos); ou pior, pela submissão da decisão a Donald Trump, que chantageia o Brasil a conceder a anistia.

O professor Marcus André Melo levanta uma questão importante do ponto de vista mais descritivo da ciência política em texto recente na Folha de S.Paulo sobre o tema. Ele cita “The politics of the rule of law[3] (“A política do estado de direito”) de Joseph Raz (1939-2022), grande teórico do Direito dos séculos 20 e 21, como base teórica de seu artigo “Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF”, de 24/8/2025 [4].

Nele, afirma que “há clamor por autocontenção, mas a estrutura de incentivos é o que importa”. Após defender brevemente que juízes devem evitar “grande sofisticação filosófica” ao cumprir seu dever de justificação pública de decisões, o professor Melo logo remete a outros dois artigos seus [5] sobre o tema, onde afirma que “o saldo líquido para a corte [no caso dos atos antidemocráticos] seria negativo em qualquer cenário”“O julgamento será fatalmente percebido como hiperpolitizado — seu custo proibitivo — em um momento crítico para a democracia brasileira.”

O professor Melo tem razão quanto ao seguinte: juízes constitucionais não devem “jogar para a torcida” com suas decisões. Sua legitimidade é corroída quanto mais se “pessoaliza” a atuação da corte em nome de politicagem ou avanço de projetos pessoais. Por isso, correto o argumento de que o STF deve se pautar por razões jurídicas no julgamento que se avizinha. Isso não significa, contudo, que não haja uma carga moral relevante para fundamentar essa postura judicial. Em outras palavras, não há um dever moral de autocontenção judicial, mas de aplicação do direito e de razões jurídicas por parte dos juízes, o que, se reconhece, inclui respeito à Constituição e a seus princípios e normas fundamentais.

Joseph Raz era antes do que analista ou cientista político um grande filósofo moral e político que acreditava que certos deveres morais são reais e objetivos, e por isso não podem ser ignorados. Alguns deles constituem a própria atividade institucional. Um dever moral que todo juiz deve seguir — embora nem sempre consiga fazê-lo, por erro, fraqueza de vontade ou dificuldade de saber o que é certo em casos difíceis — é buscar realizar o ideal político do Estado Democrático de Direito, conforme seu texto clássico “The rule of law and its virtue” (“O estado de direito e sua virtude”), de 1977 [6].

Esse ideal pode ser realizado em graus, e é composto de vários elementos que devem concorrer para o sucesso desse objetivo. Os juízes fazem parte de sua realização ao respeitar princípios de justiça natural — respeitar o devido processo, o contraditório, não ter viés —, usar seus poderes de revisão de ações dos outros Poderes para garantir a conformidade ao direito — o que demanda imparcialidade e independência frente a pressões externas, além de respeito à lei e à divisão dos papeis das instituições – e serem acessíveis – decidindo em prazos razoáveis e com baixo custo.

O Judiciário brasileiro está longe de “bater essas metas.” Mas o fato não invalida seus deveres, que são morais e não postos pela lei. Antes, derivam de do valor moral das cortes em garantir por certos procedimentos a liberdade e a dignidade de todas as pessoas em certo Estado. Mas qual liberdade se busca garantir? Afinal, os réus do processo do golpe clamam por liberdade.

Por vezes surgem nesse debate ecos do sentido hobbesiano de liberdade – entendida como ausência de interferência física para a realização do que se deseja; a liberdade civil surge do desejo mútuo das pessoas de viverem em paz social sob a vigilância de um soberano absoluto. Demandas por anistia em nome da “pacificação” são uma resposta “civil” nesses termos ao desejo de liberdade natural absoluta dos golpistas.

Para Locke, embora coubesse ao soberano garantir a paz no Estado civil pelos meios cabíveis, haveria certos direitos inalienáveis da pessoa humana. Mas eles se resumiam basicamente à propriedade provinda do trabalho e/ou da especulação financeira. Ao governo caberia ser imparcial, estável e previsível na resolução dos conflitos entre os privados.

Por isso, Friedrich Hayek retoma no século 20 a ideia de o Estado de Direito ser uma virtude política, desde que atrelada à liberdade econômica. Os clamores por segurança jurídica então dispararam. Isso não impediu que ditaduras militares do Cone Sul garantissem a estabilidade econômica subtraindo da população a democracia. Não é à toa que Hayek aprovou as medidas do ditador Pinochet no Chile – em 1981, ele afirmou ser “melhor uma ditadura liberal do que um governo democrático sem liberalismo” para justificar o assassinato do presidente eleito Salvador Allende.

Joseph Raz não compactuou com a posição de Hayek; criticou-a por reduzir a liberdade política à liberdade econômica. Os governos podem e devem punir atos que subvertem o governo do direito e a garantia da democracia e dos direitos humanos. Isso implica em se legislar crimes que protejam esses bens, em garantir limites ao poder e, no caso dos juízes, em se garantir a aplicação dessas normas. A realização desses deveres pelos agentes institucionais é essencial para que se respeite a dignidade e a liberdade de todos. Nada disso pode ser superado por ganhos econômicos.

Com isso, Raz ecoa a tradição republicana de Montesquieu e Rousseau, para quem o interesse privado não pode corroer o interesse comum de todos na garantia de um ambiente justo. Sem a proteção do Estado Democrático de Direito – autogoverno fazendo parte de tal ideal –, ninguém poderá ser realmente livre. Sendo tal valor um ideal político, cabe ao Judiciário fazer a sua parte incutindo a incorporação dessa virtude à vida cívica do país pelos procedimentos que lhe cabem.

Grave equívoco

Quem agora defende autocontenção do STF pode compartilhar de uma pauta com os acadêmicos que defendem o julgamento conforme a Lei dos Crimes Contra o Estado democrático de Direito, sem anistia: a crítica a inconsistências e falhas da corte em realizar em maior grau as demandas do ideal político-moral do Estado Democrático de Direito. Afinal, trata-se de um ideal em constante realização, com avanços e retrocessos.

O grave equívoco dos que “clamam” por autocontenção — seja com apelo a fatos, estruturas institucionais ou defesa de certos valores — está em validar a liberdade irrestrita dos golpistas, de um lado, ou a submissão da liberdade política a chantagens — interna e externa, de bolsonaristas e trumpistas — em nome da liberdade econômica, de outro. A liberdade política e civil genuína demanda cooperação constante em prol da proteção da democracia, dos direitos humanos e do Estado de Direito em nome do sentimento de que todos são livres e realmente respeitados pelos três poderes do Estado. Isso demanda que o Judiciário realize sua parte na construção desse ideal moral-político.


[1] Disponível aqui.

[2] COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2006, p. 30.

[3] RAZ, Joseph. The politics of the rule of law. In: RAZ, Joseph. Ethics in the public domain: essays in the morality of law and politics. Revised edition. Oxford: Clarendon Press, 1995.

[4] MELO, Marcus André. Juízes ambiciosos filosoficamente são maus juízes: autocontenção de juízes e o legado institucional do STF. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui.

[5] MELO, Marcus André. O STF e o foro. Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui. MELO, Marcus André. O STF e a conspiração: por que o saldo líquido do julgamento para a corte será negativo em qualquer cenário? Folha de S. Paulo, 2025. Disponível aqui.

[6] RAZ, Joseph. The rule of law and its virtue. In: RAZ, Joseph. The authority of law: essays on law and morality. Oxford: Oxford University Press, 1979.

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Comissão aprova prioridade para análise de sentença estrangeira sobre violência contra mulher

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que prioriza a análise e a homologação, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), de sentenças estrangeiras que tratem de estupro ou de violência contra mulher, criança, adolescente ou pessoa idosa. O texto aprovado altera a Lei de Migração.

Foi aprovada a versão (substitutivo) apresentada pela relatora, deputada Rosangela Moro (União-SP), ao Projeto de Lei 824/24, da deputada Fernanda Pessoa (União-CE). Segundo a autora, “a rapidez na homologação da sentença estrangeira” faz justiça à vítima e à família e impede que “o sentimento de impunidade prevaleça”.

O novo texto, além de alterações de redação e técnica legislativa, inclui a medida na Lei de Migração e não no Código de Processo Civil (CPC), como previa o projeto original.

Projeto importante
A deputada Lêda Borges (PSDB-GO), que participou da discussão da matéria, ressaltou que o projeto é importante para vítimas de violência no estrangeiro.

“É um dos maiores absurdos o que nós mulheres passamos quando vamos para o exterior nos casar e temos que decidir: deixamos os nossos filhos com o agressor ou chegamos no Brasil como sequestradoras”, disse.

Legislação atual
A Constituição Federal estabelece que a homologação de decisões estrangeiras é competência do STJ. De acordo com o Código de Processo Civil, a decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação. A exigência não é válida apenas para a sentença estrangeira relativa a divórcio consensual, sem envolvimento de guarda de filhos, alimentos ou partilha de bens.

Próximos passos
A proposta tramitou em caráter conclusivo e, portanto, poderá seguir para análise do Senado, a menos que haja recurso para votação pelo Plenário da Câmara.

Fonte: Câmara dos Deputados

Conflito de competência

No mais recente episódio de Entender Direito, a jornalista Fátima Uchôa ouviu os juízes trabalhistas e professores universitários Rodolfo Pamplona Filho e Danilo Gonçalves Gaspar sobre os principais aspectos legais e jurisprudenciais do conflito de competência.

Entre outros pontos, os dois magistrados abordam os motivos que podem levar a um conflito entre juízes ou órgãos judiciais quanto ao julgamento de um caso, bem como explicam quem pode suscitar o incidente processual e qual o papel do Superior Tribunal de Justiça (STJ) na solução de tais controvérsias.

Clique na imagem para assistir:  

Fonte: STJ

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Comissão aprova projeto que torna crime o assédio a adolescentes

 

A Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou projeto de lei que torna crime aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, crianças ou adolescentes para a prática de ato sexual. O texto deverá seguir agora para análise no Plenário.

Hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) classifica essa conduta como crime apenas se a vítima for criança – ou seja, se tiver até 12 anos incompletos. A proposta altera o ECA.

O projeto também aumenta o tempo de prisão: de 1 a 3 anos para 2 a 4 anos, além de multa.

Mudanças no original
O texto aprovado é o substitutivo da relatora, deputada Laura Carneiro (PSD-RJ), para o Projeto de Lei 4723/23, da deputada Delegada Ione (Avante-MG). A relatora manteve o aumento da pena previsto no projeto original, mas decidiu incorporar sugestões do Projeto de Lei 2857/19, recentemente aprovado pela CCJ.

Assim, nos casos de assédio contra criança ou adolescente cometidos por meio de mídias sociais ou pela internet, a pena de prisão aumentará em 1/3, passando então de 2 a 4 anos para 2 anos e sete meses a 5 anos e três meses, além de multa.

Proteção ampliada
Segundo Laura Carneiro, a Constituição já determina que “lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual de criança e adolescente”, sem fazer distinção de idade. “Todas as vítimas menores de 18 anos devem ser protegidas, tendo em vista a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento”, disse ela.

Autora da proposta original, a deputada Delegada Ione avalia que o ECA precisa ser atualizado. “Esse trecho merece crítica, pois o pedófilo só será punido por assédio contra crianças, e contra adolescentes não haverá punição”, comentou.

Fonte: Câmara dos Deputados

Senado aprimorará contas públicas se limitar dívida federal via PRS 8/25

Às vésperas do 37º aniversário da Constituição de 1988, o Senado tem diante de si, mais uma vez, a oportunidade e o dever histórico de aprimorar a governança fiscal do país. O Projeto de Resolução do Senado (PRS) nº 8, de 2025, de autoria do senador Renan Calheiros, resgata a Mensagem Presidencial nº 154, de 2000, pautando a necessidade incontornável de fixar limite global para o montante da dívida consolidada da União, conforme preceitua o artigo 52, inciso VI, da Carta Magna, desde sua redação originária.

Quase quatro décadas se passaram sem que o Senado tenha se desincumbido da sua competência privativa, por mais que a matéria só demandasse apreciação unicameral da Casa da Federação. Há um quarto de século, a Lei de Responsabilidade Fiscal reiterou o comando constitucional, estabelecendo, em seu artigo 30, o dever de o Executivo remeter proposta de limites para as dívidas de todos os entes da Federação. Todavia, apenas houve balizamento da dívida dos estados, Distrito Federal e municípios no âmbito da Resolução nº 40, de 2001 (disponível aqui).

A ausência de limitação apenas para a dívida pública da União configura uma lacuna normativa que, concomitantemente, enseja assimetria federativa e compromete a transparência, o equilíbrio fiscal e o controle social das finanças públicas do país.

Tamanho vazio regulamentar de dispositivo constitucional tão sensível decorre de interdição promovida por interesses, ora coordenados, ora conflitantes do mercado financeiro e do Executivo federal em torno do limite da dívida pública da União. José Roberto Afonso, em entrevista concedida por ocasião do aniversário de 25 anos da LRF, lucidamente desvendou o impasse em comento:

Embora passados 25 anos [da edição da Lei de Responsabilidade Fiscal], você tem algumas regras muito importantes da lei que nunca foram regulamentadas. É curioso que nem mesmo aproveitando essa comemoração dos 25 anos não vimos as pessoas se mobilizando, salvo a CAE [Comissão de Assuntos Econômicos] do Senado, que disse que votaria o limite da dívida da União. Mas o governo federal parece não ter maior interesse nisso, nem o atual governo nem o anterior, e muito menos o mercado financeiro, que reclama muito e quer resultado fiscal, mas não fala em limite da dívida. Essa é uma regra que existe no mundo inteiro. No fundo, as pessoas querem restrições de gasto e de renúncia fiscal para os outros, mas não para si. No caso da dívida pública, a preocupação que existe é a de que, em momentos de crise financeira aguda, o governo precisa socorrer o sistema bancário, como já aconteceu em 2008 e na pandemia de Covid, por exemplo. Embora a legislação tenha flexibilidade nesses casos, o que eu sinto é que os credores não querem correr risco. É algo paradoxal: eles reclamam que se deve muito, mas não querem limite da dívida, que é o ponto mais relevante da LRF que falta regulamentar.

[…] O arcabouço é uma lei complementar. O problema é que, no âmbito desta lei complementar, anteciparam metas específicas de sustentabilidade da dívida da União que, na minha opinião, deveriam estar em uma lei ordinária, que muda todo ano. A LRF resolveu isso remetendo à LDO, que é uma lei ordinária. As coisas mudam, você muda. Ora se faz superávit, ora se faz menos superávit ou até déficit. Acho que acabaram deixando o arcabouço muito rígido.”

Idas e vindas no percurso da matéria fizeram com que a precedente tentativa de regulamentar a dívida pública consolidada federal (PRS nº 84, de 2007) fosse arquivada em 21/12/2018. Desde então, a omissão inconstitucional [1] e suas consequências para o agravamento [2] das contas públicas brasileiras têm sido denunciadas, sem que a longa mora legislativa tenha sido, de fato, enfrentada.

Eis o contexto em que o PRS nº 8/2025 (disponível aqui) se apresenta como uma agenda inadiavelmente necessária. Afinal, não é porque um problema é antigo que ele deixa de ser um impasse que reclama solução.

Ao longo dos últimos 37 anos, as contas públicas brasileiras têm se ressentido da falta de balizas sistêmicas, capazes de equalizar a inibição da receita e a escalada das despesas financeiras, ampliando o foco usualmente incidente sobre as despesas primárias, como se sucedeu com a Emenda nº 95, de 2016.

Mesmo após transcorridos exatamente dois anos da edição da Lei Complementar nº 200, de 2023, não foi satisfatoriamente atendida a demanda da Emenda Constitucional nº 109, de 2021, que inseriu inciso VIII no artigo 163 da CF/1988 [3], para que lei complementar explicitasse o que seria a noção de sustentabilidade da dívida pública. Isso ocorre porque o artigo 2º, §§1º e 2º da LC 200/2023 [4] reduziu o foco do que seja dívida pública sustentável apenas ao alcance de metas de resultado primário.

É sintomático que o Teto de Despesas Primárias, sucedido pelo vulgarmente conhecido Novo Arcabouço Fiscal (NAF), respectivamente EC nº 95/2016 e LC nº 200/2023, sejam ambos regimes fiscais aplicáveis exclusivamente à União, enquanto a LRF (LC nº 101/2000) é a única norma, de fato, nacional, aplicável a todos os entes da federados. Apenas essa última reiterou a necessidade constitucional de fixação de limites de endividamento indistintamente para União, estados, DF e municípios.

Sendo o Senado a Casa da Federação, soa contraditório que a câmara alta do Congresso tenha cumprido seu papel ao fixar limites para a dívida consolidada os governos locais e regionais, por meio da Resolução nº 40/2001, sem que equivalente parâmetro tenha sido estabelecido para o governo central. Essa disparidade federativa amplifica a judicialização entre os entes políticos, em meio a uma guerra fiscal cada vez mais danosa para a sociedade.

O Tribunal de Contas da União já havia manifestado preocupação clara sobre essa omissão legislativa no âmbito do seu Acórdão nº 1.084/2018-Plenário. O TCU destacou que a ausência de limites formais para a dívida pública da União compromete a responsabilidade fiscal e torna inviável a transparência e o controle social esperados em um regime democrático.

No julgamento, o Tribunal salientou que a falta dos limites demandados pelo artigo 48, XIV e pelo artigo 52, VI da Constituição, respectivamente, limites de dívida mobiliária e consolidada, dificulta o exercício do controle externo sobre a dívida pública federal. Sem tal baliza normativa, o acompanhamento da sustentabilidade fiscal da União fica comprometido, abrindo espaço para riscos macroeconômicos significativos.

Em um dos seus trechos mais destacados, o Acórdão TCU 1084/2018 buscou informar ao Senado que a omissão em regulamentar os limites de dívida federal (artigos 48, XIV e 52, VI da CF/1988, bem como artigo 30 da LRF), bem como a falta de instituição do Conselho de Gestão Fiscal (artigo 67 da LRF) constituem-se como “fator[es] crítico[s] para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação”. Ambas são lacunas tão significativas que impedem o ordenamento jurídico brasileiro de consolidar um marco regulatório coerente e eficaz sobre o conjunto das finanças públicas do país

Sob todos os prismas temporais, o cenário que se apresenta é historicamente grave e não se revolverá com o mero decurso negligente dos anos, como se não fosse um problema. Trinta e sete anos desde a previsão originária da Constituição de que deveria haver limites de dívida pública para todos os entes da federação, 25 anos desde que a LRF demandou a imediata edição das normas reclamadas constitucionalmente, quatro anos da Emenda Emergencial que previu a necessidade de fixação do regime de sustentabilidade da dívida pública e dois anos da LC nº 200/2023, sem que haja, de fato e de direito, um arranjo jurídico sistêmico que permita monitorar mais de perto o peso das despesas financeiras e das opções de inibição da receita sobre a dívida pública federal.

Não basta monitorar os fluxos orçamentários, sem que se avalie o estoque acumulado da dívida pública, de modo a correlacionar a sua trajetória com os impactos trazidos pelo conjunto das políticas macroeconômicas ao longo do tempo. Afinal, como bem alertado por José Roberto Afonso, na mesma entrevista anteriormente citada, não cabe apenas pautar o debate pelo prisma da política fiscal a cargo do Tesouro Nacional, sem que sejam explicitadas as suas correlações com as políticas cambial, monetária e creditícia, sob responsabilidade do Banco Central:

“Outro vício antigo difícil de se resolver no Brasil é tratar a política fiscal isolada da política monetária, e a política monetária isolada da política cambial, isolada da política comercial, isolada da política social e assim por diante. Está valendo a regra de que cada um é dono do seu quadradinho e pronto. Nós não temos política macroeconômica no Brasil. Não temos equipe econômica. O Brasil deve ser o país que mais fala em política fiscal, mas trata a política fiscal como se fosse algo independente do resto. Ela é causa e consequência: afeta as demais políticas e também é afetada por elas. Temos de voltar a ter mais debates macroeconômicos, formulação de política macroeconômica, ter um plano estratégico. E, aí sim, a política fiscal se inserir nesse contexto. Isso, inclusive, não se resolve com lei. Muito disso tem a ver com prática, com cultura.”

A ausência de um parâmetro normativo claro para a dívida pública federal permite que ela cresça de forma opaca e potencialmente ilimitada por força da atuação do Banco Central, mesmo que as metas primárias venham a ser rigorosamente cumpridas, comprometendo a sustentabilidade financeira do país. Vale lembrar que, no período de agosto de 2024 a junho de 2025, a expansão da taxa básica de juros, a taxa Selic, em 4,5% equivaleu a praticamente o montante de um piso federal anual em saúde.

Dessa forma, o Novo Arcabouço Fiscal, embora tenha tentado avançar em aspectos relevantes, não supriu integralmente a lacuna normativa que o Senado Federal tem o dever constitucional de preencher, tornando urgente a aprovação do PRS nº 8/2025 para fortalecer o regime de responsabilidade fiscal brasileiro.

Para além de proporções específicas e tempo de recondução a limites que o debate político deve avaliar no curso da tramitação da proposta normativa, o que se busca aqui é defender a oportunidade, a relevância e a viabilidade do PRS nº 8/2025. Ali está previsto o dever de o Executivo federal prestar contas regularmente sobre a dívida pública, apresentando justificativas para eventuais desvios e ações corretivas para o cumprimento dos limites. Assim, o projeto fortalece o papel fiscalizador do Senado e amplia a transparência na gestão da dívida pública.

A fixação de limites para a dívida da União não é mero detalhe ou adereço residual em face do conjunto das finanças públicas brasileiras, mas uma questão central para a responsabilidade fiscal, o pacto federativo e a segurança jurídica das contas públicas.

O PRS nº 8/2025 representa, portanto, uma oportunidade singular para o Senado Federal reafirmar sua relevância institucional, regulando o endividamento da União e fechando uma lacuna normativa que compromete a sustentabilidade das finanças públicas e o federalismo brasileiro.

Ao garantir limites claros, transparência e mecanismos de controle, o projeto favorece a estabilidade econômica e social do Brasil. Assim, na iminência de celebrar 37 anos da Constituição Cidadã, o Senado pode e deve se posicionar com visão de futuro, fortalecendo o pacto federativo, a governança pública e a confiança da sociedade nas instituições, por meio da aprovação do PRS nº 8/2025.


[1] Como esta colunista, José Roberto Afonso e Lais Khaled Porto debatemos aqui

[2] No item 9.2 da parte dispositiva do Acórdão 1084/2018-Plenário (cujo inteiro teor está disponível aqui), o Tribunal de Contas da União informou “ao Presidente do Senado Federal que a não edição da Lei prevista no art. 48, inciso XIV, e da Resolução de que trata o art. 52, inciso VI, ambos da Constituição da República, para o estabelecimento de limites para os montantes das dívidas mobiliária federal e consolidada da União, assim como da lei que prevê a instituição do conselho de gestão fiscal, constitui fator crítico para a limitação do endividamento público e para a harmonização e a coordenação entre os entes da Federação, comprometendo, notadamente, a efetividade do controle realizado pelo Tribunal de Contas da União com base no art. 59, § 1º, inciso IV, da Lei Complementar 101/2000, e o exercício do controle social sobre o endividamento público e demais limites fiscais”.

[3] Que assim dispõe: “Art. 163.  Lei complementar disporá sobre:

[…] VIII – sustentabilidade da dívida, especificando:

a) indicadores de sua apuração;

b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida;

c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação;

d) medidas de ajuste, suspensões e vedações;

e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida.

Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso VIII do caput deste artigo pode autorizar a aplicação das vedações previstas no art. 167-A desta Constituição.”

[4] Cujo inteiro teor é o seguinte: “Art. 2º […]

§1º. Considera-se compatível com a sustentabilidade da dívida pública o estabelecimento de metas de resultados primários, nos termos das leis de diretrizes orçamentárias, até a estabilização da relação entre a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) e o Produto Interno Bruto (PIB), conforme o Anexo de Metas Fiscais de que trata o § 5º do art. 4º da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000(Lei de Responsabilidade Fiscal).

§2º. A trajetória de convergência do montante da dívida, os indicadores de sua apuração e os níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a sustentabilidade da dívida constarão do Anexo de Metas Fiscais da lei de diretrizes orçamentárias.”

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Comissão de Trabalho aprova licença de cinco dias para acompanhante de mãe solo

A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 199/25, que estabelece prioridade a pessoas com câncer na adoção de crianças e adolescentes. O texto inclui a medida no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

A relatora, deputada Silvia Cristina (PP-RO), defendeu a aprovação da proposta da deputada Luisa Canziani (PSD-PR). “A preferência na adoção a pessoas com câncer deve ser amparada pela lei, porquanto será envolvida por todo um processo de avaliação, não havendo de ser deferida de forma irresponsável”, afirmou.

O Brasil deve registrar 704 mil novos casos da doença a cada ano do triênio 2023-2025, segundo informações do Instituto Nacional do Câncer (Inca).

Comprovação
Silvia Cristina apresentou emenda para que o adotante comprove estar mesmo com câncer e já estar inscrito no cadastro de postulantes para adoção. Segundo ela, a inscrição garantirá a vivência do período de preparação psicossocial e jurídica para o adotante.

Próximos passos
A proposta ainda será analisada em caráter conclusivo pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Para virar lei, a proposta tem que ser aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal.

Fonte: Câmara dos Deputados

Pela fixação de critérios objetivos para o compartilhamento de dados entre polícia, MP, Receita e UIF

persecutórias — polícia e Ministério Público — e órgãos de inteligência financeira e fiscalizatórios — Unidade de Inteligência Financeira (UIF) e Receita Federal. O objeto da reverberação é o Tema 1.404 da Repercussão Geral do STF que tem a seguinte ementa sob discussão: “Provas obtidas pelo Ministério Público por requisição de relatórios de inteligência financeira ou de procedimentos fiscalizatórios da Receita, sem autorização judicial e/ou sem a prévia instauração de procedimento de investigação formal”.

Inicialmente, em 20/8/2025, o ministro Alexandre de Moraes decidiu pela suspensão, em âmbito nacional, de todos os processos pendentes que tratem da matéria discutida no Tema 1.404 [1]. Dias depois, a pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo e da Procuradoria Geral da República, o ministro esclareceu a decisão e explicitou que a suspensão alcança as recentes decisões do STJ e de outros juízos que determinaram a anulação de relatórios de inteligência da UIF e/ou de procedimentos fiscalizatórios da Receita Federal. No esclarecimento, o ministro ainda disse que ficam excluídas da abrangência da suspensão as decisões que reconheceram a validade das requisições de relatórios pelas autoridades investigatórias e que ficam afastadas, por outro lado, as interpretações que condicionem o prosseguimento das investigações à prévia confirmação da validade do relatório de inteligência da UIF e/ou do procedimento fiscalizatório da Receita Federal.

Segundo a decisão, o esclarecimento foi necessário porque as defesas de investigados e réus estariam se utilizando da suspensão para requerer a paralisação de investigações e a revogação de medidas cautelares já deferidas, o que, de acordo com o ministro Alexandre de Moraes, extrapolaria o âmbito da determinação e ameaçaria a eficácia da persecução penal em inúmeros procedimentos e processos criminais, criando entraves indevidos à persecução penal.

As determinações do ministro Alexandre de Moraes vêm na sequência de decisões do STF que, em sede de reclamações constitucionais movidas pelo Ministério Público, têm cassado acórdãos do STJ que estariam a desrespeitar a autoridade da decisão firmada no Tema 909 da Repercussão Geral do STF [2]. Nesse particular, relembra-se que, em 14/5/2025, a 3ª Seção do STJ havia definido a tese de que “A solicitação direta de relatórios de inteligência financeira pelo Ministério Público ao Coaf sem autorização judicial é inviável. O Tema 990 da Repercussão Geral não autoriza a requisição direta às unidades financeiras por órgão de persecução penal sem autorização judicial” [3].

A revista eletrônica Consultor Jurídico [4] repercutiu decisão do ministro Cristiano Zanin que julgou procedente o pedido do Ministério Público da Bahia para reconhecer a legalidade do compartilhamento das informações do Relatório de Inteligência Financeira (RIF) realizado sem autorização judicial [5]. O detalhe da decisão é que o ministro Cristiano Zanin esmiuçou os votos proferidos quando do julgamento do Tema 909 para dizer que o STF, em repercussão geral, decidiu que vale tanto o compartilhamento espontâneo (enviado diretamente pela UIF e pela Receita Federal) como o compartilhamento a pedido (mediante solicitação prévia dos órgãos de persecução) mesmo sem autorização judicial. De fato, da análise do inteiro teor do acórdão do Tema 909, é possível perceber que os votos dos ministros Dias Toffoli [6], Alexandre de Moraes [7], Edson Fachin [8] e Gilmar Mendes [9] trataram do tema e dispensaram a necessidade de autorização judicial para o compartilhamento de informações mesmo nos casos em que o relatório de inteligência tenha sido solicitado pela polícia ou pelo Ministério Público.

Parecia-nos, então, que a questão sobre a necessidade de prévia autorização judicial estava superada até a divulgação de que o ministro Gilmar Mendes teria exigido decisão judicial para o compartilhamento de relatórios de inteligência por encomenda das autoridades persecutórias [10]. Fato é que o debate sobre tal exigência não pode se sobrepor àquilo que, no fundo, para nós é fundamental: a existência de um procedimento formal de compartilhamento que registre as comunicações trocadas entre as instituições e que permita a apuração e a correção de eventuais desvios, ainda que a posteriori.

Até o presente momento, o STF não definiu, especificamente, quais são os critérios que devem ser objetivamente cumpridos para que o compartilhamento de dados pessoais respeite o devido processo legal e viabilize o concreto exercício do contraditório e da ampla defesa por aqueles que tiveram os seus dados pessoais compartilhados. Não é demasiado lembrar que medidas invasivas de direitos fundamentais possuem requisitos estabelecidos para serem executadas no âmbito do processo criminal.

É assim, por exemplo, com as buscas e apreensões domiciliares (artigo 240, § 1º, do CPP), com as buscas e apreensões pessoais (artigo 240, § 2º, do CPP), com as interceptações telefônicas e telemáticas (artigo 2º da Lei nº 9.296/96), de modo que não poderia ser diferente no âmbito do compartilhamento de informações entre Receita Federal, UIF e os órgãos de persecução penal, porque a medida também envolve restrição de direitos fundamentais, como é o caso do direito à proteção de dados pessoais (artigo 5º, inciso LXXIX, da CF/88).

Sete propostas

Artigo publicado na Revista de Estudos Criminais constatou a necessidade de se avançar em termos de observância e respeito à proteção de dados pessoais num ambiente, que é o de procedimentos de investigação penal, cujo compartilhamento e tratamento de informações é muito amplo [11]. Nesse particular, defendeu-se a imprescindibilidade da existência de um procedimento formal de compartilhamento entre as instituições que respeite, ao menos, os seguintes sete critérios:

1) o direito de acesso integral pelo cidadão que teve seus dados compartilhados e tratados, ou pelo seu procurador, ao processo administrativo em que foi realizado o intercâmbio de informações pessoais;

2) o dever de motivação para o compartilhamento dos dados pessoais, ou seja, deve ser justificado, pelas autoridades competentes, se havia justa causa, indícios de autoria e materialidade de infração penal para o intercâmbio dos dados pessoais e a finalidade específica;

3) o registro de qual autoridade solicitou os dados pessoais;

4) o registro de para qual investigação, já previamente instaurada, os dados pessoais foram solicitados e compartilhados;

5) o registro de qual autoridade compartilhou os dados pessoais;

6) o dever de exatidão dos dados pessoais compartilhados;

7) o dever de manutenção do sigilo sobre os dados pessoais compartilhados, de modo a não se permitir o acesso por terceiros alheios à investigação” [12].

O cumprimento ao menos desses sete critérios propostos parece-nos fundamental, porque viabilizam o controle sobre o compartilhamento de dados pessoais no âmbito de investigações criminais e, sobretudo, porque têm o condão de neutralizar a devassa na vida privada e o fenômeno do fishing expedition cujo risco já havia sido levantado desde o julgamento objeto do Tema 990 do STF [13]. Não há dúvidas sobre a eficiência do compartilhamento de dados entre os órgãos de inteligência no que tange ao combate à criminalidade econômico-financeira organizada, assim como não há dúvidas de que a restrição de direitos fundamentais deve seguir uma rigorosa fundamentação que justifique a medida invasiva. Por isso que a fixação desses critérios objetivos, ainda que não evite totalmente uma prática excessiva e ilegal, nos parece apta para indicar caminhos que equilibrem e harmonizem o direito fundamental à liberdade individual e o direito fundamental à segurança pública.

As idas e vindas da jurisprudência, sobretudo quando as próprias Cortes Superiores produzem decisões conflitantes, contribuem para um cenário de incertezas que afeta, em última análise, a segurança jurídica. Por essa razão que, para muito além da mera discussão sobre a exigência, ou não, de prévia autorização judicial, o que nos parece essencial é definir (e respeitar) critérios objetivos que estabeleçam parâmetros de legitimidade para o compartilhamento de dados entre autoridades persecutórias e órgãos de inteligência financeira e fiscalizatórios no âmbito de procedimentos de persecução penal.


[1] RE 1.537.165/SP: aqui

[2] Tema 909 do STF: “1. É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional. 2. O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.”.

[3] RHC 196.150/STJ.

[4] Aqui

[5] RCL 81546 / BA.

[6] “(…) Dessa perspectiva, por entender preservada a intangibilidade da intimidade e do sigilo de dados, que gozam de proteção constitucional (art. 5º, incisos X e XII, da CF), não há dúvidas, para mim, quanto a possibilidade de a UIF compartilhar relatórios de inteligência (RIF por intercâmbio) por solicitação do Ministério Público, da polícia ou de outras autoridades competentes.”

[7] “(…) Tanto de ofício quanto a pedido, a UIF só pode atuar nos seus limites legais. Se um órgão pedir uma informação, ela só pode devolver a resposta nos exatos limites que poderia realizar se fosse espontaneamente”

[8] “(…) é da UIF a atribuição para concluir pela necessidade de encaminhamento às autoridades competentes. E esse juízo pode ser exercitado mediante provocação ou não, o que não retira a oficialidade da deliberação, como, aliás, apontou o Banco Central em suas informações”.

[9] “(…) No entanto, além do compartilhamento ‘espontâneo’ de informações, o UIF também realiza outra modalidade de compartilhamento, que é chamado de ‘disseminação em face de pedido da autoridade competente. Essa hipótese, a meu ver, deve ser cautelosamente conduzida pelo órgão de inteligência financeira. De acordo com as regras de organização e procedimento vigentes, as Autoridades Competentes podem utilizar o chamado Sistema Eletrônico de Intercâmbio (SEI-C), ambiente digital seguro em que o Ministério Público ou a Polícia Federal registra dados sobre pessoas investigadas em procedimentos como inquéritos policiais e PICs. Assim, mesmo quando a disseminação de informações é feita ‘a pedido das Autoridades Competentes’, a atuação do órgão de inteligência deverá seguir os mesmos parâmetros de produção de RIFs estabelecidos para o mecanismo de disseminação espontânea. O destaque para as particularidades desse procedimento é necessário para que fique claro que a legislação aplicável não admite a elaboração de RIFs ‘por encomenda’ do Ministério Público ou da Autoridade Policial.”

[10] Aqui

[11] ROCHA NETO, Tapir; RUARO, Regina Linden. O devido processo legal administrativo como garantia da ampla defesa e do contraditório e como meio de controle do compartilhamento de dados pessoais na esfera penal: breve discussão acerca do Tema 990 do STF. Revista de Estudos Criminais: REC, nº 93, abril/junho, 2024, p. 96-115.

[12] ROCHA NETO, Tapir; RUARO, Regina Linden. O devido processo legal administrativo como garantia da ampla defesa e do contraditório e como meio de controle do compartilhamento de dados pessoais na esfera penal: breve discussão acerca do Tema 990 do STF. Revista de Estudos Criminais: REC, nº 93, abril/junho, 2024, p. 111.

[13] Conforme voto do Min. Dias Toffoli: “a absoluta e intransponível impossibilidade [do] fishing expedition contra cidadãos que não estejam sob investigação criminal de qualquer natureza ou em relação aos quais não haja alerta já emitido de ofício pela unidade de inteligência com fundamento na análise de informações contidas em sua base de dados”.

O post Pela fixação de critérios objetivos para o compartilhamento de dados entre polícia, MP, Receita e UIF apareceu primeiro em Consultor Jurídico.