Paper Excellence tem, sim, fome de terras no Brasil

O foro originário por prerrogativa de função (foro originário ou foro privilegiado) é um critério jurídico concebido a fim de definir competências específicas na condução de processos judiciais contra determinadas autoridades.

Sob a justificativa de proteção do exercício de funções públicas, a prerrogativa em questão garante que autoridades tenham suas causas processadas e julgadas por tribunais de hierarquia superior; isto é, com melhor aptidão para assegurar imparcialidade e estabilidade institucional contra eventuais pressões políticas em instâncias inferiores. Soma-se a isso o objetivo de preservação da autonomia do Poder Judiciário ao lidar com questões de grande relevância social e política, elevando o nível de responsabilidade e transparência.

Abordado na Constituição, principalmente no artigo 102, inciso I, alíneas b e [1][2], e no artigo 105, inciso I, alínea [3], referentes ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, o foro privilegiado estabelece a atribuição originária para julgar ações penais contra ocupantes de cargos de alta relevância, e.g. presidente da República, ministros de Estado, membros do Congresso Nacional, governadores e desembargadores dos estados e do Distrito Federal, entre outros.

Desmembramento de processos: análise jurisprudencial

Ao longo dos anos, muitos foram os debates travados sobre a extensão e a pertinência desse critério, especialmente quanto à possibilidade de desmembramento com relação à investigados/acusados que, originalmente, não se enquadrariam no requisito objetivo de “qualidade da parte”[4]. Dessa maneira, a discussão resvala nos efeitos da força atrativa do foro por prerrogativa de função nas instâncias superiores [5].

A partir da análise de casos concretos, é possível compreender de que forma a jurisprudência dos tribunais superiores tem se posicionado sobre o tema.

O primeiro exemplo extrai-se do julgamento realizado em 2012 pelo STF na Ação Penal nº 470 (AP 470/MG), movida pelo Ministério Público Federal contra políticos e empresários envolvidos no escândalo de compra de parlamentares, popularmente conhecido como “Mensalão” [6].

Primeira sessão destinada ao julgamento do “Mensalão” Gervásio Baptista/SCO/STF

 

Naquele caso, a defesa de um dos réus requereu que os 35 acusados sem foro por prerrogativa de função fossem julgados na primeira instância, sob o argumento de violação ao princípio do juiz natural e o direito ao duplo grau de jurisdição. À época, a maioria dos ministros do STF decidiu pela manutenção do julgamento de todos os réus do “Mensalão” naquela corte, ao invés de desmembrá-lo para que apenas aqueles com foro fossem processados e julgados naquele tribunal.

Nos termos do voto vencedor, considerou-se que os processos conexos deveriam ser julgados em conjunto, a fim de evitar decisões conflitantes e tentativas protelatórias. Nesse sentido, o ministro Gilmar Mendes chegou a argumentar que manter todos os réus no STF garantiria uma maior coesão processual, de maneira a evitar que “se o processo estivesse espalhado por aí, o seu destino seria a prescrição com todo o tipo de manobra e artifício que pudesse ser feito”[7].

Sob o viés do Poder Judiciário especializado, a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar os crimes eleitorais e conexos (artigos 289 e seguintes da Lei 4.737/65) [8] também foi objeto de longos debates, a exemplo do Inq. 4.435/DF. Referido inquérito foi instaurado para investigar, entre outros crimes, a suposta utilização de “caixa 2” no financiamento de campanha de deputado federal para sua reeleição na Câmara dos Deputados [9], sendo argumentado pela defesa que, na época dos fatos (2010 e 2012), o acusado gozava de foro privilegiado.

Naquela ocasião, o Plenário da Corte Suprema, por maioria, acolheu o declínio da competência do STF para a Justiça Eleitoral do Estado Rio de Janeiro, haja vista que esta, por ser especializada, sobrepõe-se ao aspecto residual da Justiça Comum (federal ou estadual). De forma que, por força da conexão probatória ou instrumental, ela também atrairia a competência para processar e julgar os crimes conexos aos crimes eleitorais ocorridos no mesmo contexto fático (artigo 76, III do Código de Processo Penal) [10].

Em momento antecedente (2009), no Inq. 2.471/SP, instaurado com o escopo de investigar suposta lavagem de dinheiro e formação de quadrilha, o Plenário do STF havia decidido pela manutenção do desmembramento da investigação. Na ocasião, deu-se parcial procedência ao pedido da Procuradoria Geral da República (PGR), cuja pretensão era o desmembramento total do caso com o intuito de que permanecesse no STF as questões estritamente relacionadas ao detentor da prerrogativa de foro, diante do risco da ocorrência de prescrição relativamente a este investigado, que contava com mais de 70 anos e teria direito à redução dos prazos penais à metade [11] [12].

Como argumento contrário ao desmembramento total do Inquérito 2.471/SP, o relator do caso, ministro Ricardo Lewandowski, alertou sobre os perigos que poderiam resultar de uma divisão total, especialmente no tocante a decisões conflitantes, à coleta de provas e ao julgamento final. Na visão do ministro relator, seria difícil separar completamente as ações dos investigados por força da complexidade dos fatos e da quantidade de condutas [13].

De modo adjacente, convém mencionar a recente retomada do julgamento do Inquérito 4.787/DF e do HC 232.627/DF [14], relacionados à extensão do foro privilegiado após a saída de cargo que confere essa prerrogativa. Nesse caso, o Plenário já formou maioria [15] pela manutenção do foro especial nos crimes cometidos no cargo e em razão dele, mesmo que, posteriormente, haja o afastamento do cargo (e.g., por renúncia, cassação, não reeleição etc.). Como justificativa, sustentou-se a necessidade de promover maior coesão processual em detrimento de frequentes deslocamentos das ações entre as instâncias – cenário que aumentaria a insegurança jurídica.

Conveniência e oportunidade

A partir dessa análise jurisprudencial, merece destaque o raciocínio desenvolvido pelo STJ durante o julgamento do HC 347.944/AP: “o desmembramento do processo penal em relação aos acusados que não possuem prerrogativa de foro deve ser pautado por critérios de conveniência e oportunidade, estabelecidos pelo Juízo da causa, no caso, o de maior graduação” [16].

Nesse julgamento, o ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca indicou a conexão e a continência como a regra estabelecida na legislação processual (artigo 79 do Código de Processo Penal) e como ferramentas aptas a assegurar um julgamento conjunto não apenas de fatos, como também de corréus que respondiam pelo mesmo crime. Esse cenário propiciaria uma visão completa do quadro probatório ao magistrado, o que resultaria em uma prestação jurisdicional uniforme, evitando decisões contraditórias e otimizando a administração da Justiça: “Em suma, a separação dos processos constitui faculdade do juízo processante e tem em vista a conveniência da instrução criminal” [17].

A especial atenção aos critérios de conveniência e de oportunidade tem sido verificada nas decisões recentes do STJ, sobretudo no que se refere ao risco da dispersão indevida do andamento processual às instâncias inferiores, cujos efeitos se verificaram, por exemplo, no desnecessário emprego de múltiplas diligências e de atos processuais [18]. Inclusive, o verbete sumular nº 704 do Supremo Tribunal Federal (“não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados” [19]) tem recebido protagonismo na jurisprudência da Corte Superior, obviamente que observadas as particularidades de cada caso concreto.

Conclusão

A par dessas considerações, mesmo que o desmembramento de processos possa ser visto sob a ótica da celeridade e da otimização da tramitação processual, não se pode descartar as severas críticas tecidas pela jurisprudência quanto aos possíveis prejuízos à coesão da investigação e à uniformidade das decisões judiciais, além do malefício de gerar desigualdade de tratamento entre réus de um mesmo caso, bem como instalar insegurança jurídica.

Nada obstante a necessidade de se realizar o cotejo entre o juízo de oportunidade e o de conveniência pelo juízo competente, exige-se cautela quanto à decisão de desmembramento, haja vista a possibilidade de que eventual fragmentação infundada do processo tenda a prejudicar a aplicação da lei integralmente e a propiciar julgamentos contraditórios entre instâncias.


[1] BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: b) nas infrações penais comuns, o Presidente da República, o Vice-Presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República; c) nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, ressalvado o disposto no art. 52, I, os membros dos Tribunais Superiores, os do Tribunal de Contas da União e os chefes de missão diplomática de caráter permanente.

[2] BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Artigo 86. Ao Supremo Tribunal Federal competirá, privativamente, processar e julgar: I – os seus ministros, nos crimes comuns; II – os ministros de Estado, salvo nos crimes conexos com os do Presidente da República; III – o procurador-geral da República, os desembargadores dos Tribunais de Apelação, os ministros do Tribunal de Contas e os embaixadores e ministros diplomáticos, nos crimes comuns e de responsabilidade.

[3] BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Artigo 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: a) nos crimes comuns, os Governadores dos Estados e do Distrito Federal, e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os membros dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, os dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Trabalho, os membros dos Conselhos ou Tribunais de Contas dos Municípios e os do Ministério Público da União que oficiem perante tribunais.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 258.

[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). O foro por prerrogativa de função e as restrições à sua aplicação no STJ. STJ, 7 jun. 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/ Comunicacao/Noticias/O-foro-por-prerrogativa-de-funcao-e-as-restricoes-a-sua-aplicacao-no-STJ.aspx. Acesso em: 07 nov. 2024.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Penal 470 (AP 470/MG). Min. Rel. Joaquim Barbosa, julgado em 03 de agosto de 2012.  Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ap/ap470-parte5.pdf. Acesso em: 08 nov. 2024.

[7] CONJUR. Ministros do Supremo decidem julgar mensalão na íntegra. Conjur, 2 ago. 2012. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2012-ago-02/ministros-supremo-decidem-julgar-mensalao-integra/. Acesso em: 07 nov. 2024.

[8] BRASIL. Código Eleitoral (Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965). Institui o Código Eleitoral. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 15 jul. 1965. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l4737.htm. Acesso em: 31 out. 2024.

[9] FISCHER, Douglas. Crimes eleitorais e os eventualmente conexos diante do novo entendimento do Supremo Tribunal Federal. Revista do TRE-RS, Porto Alegre, ano 24, n. 46, p. 95-130, jan./jun. 2019. Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdtse/5872. Acesso em: 11 nov. 2024.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Quarto Agravo Regimental no Inquérito 4.435 (Quarto Ag. Reg. Inq. 4.435/DF) Min. Rel. Marco Aurélio. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2021/08/inq-4435-stf-acordao.pdf. Acesso em: 11 nov. 2024.

[11] BRASIL. Código Penal. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Artigo 115. São reduzidos de metade os prazos da prescrição, quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de vinte e um ou maior de setenta anos.

[12] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Quarto Agravo Regimental no Inquérito 2.471.470 (AgReg. Inq. 2.471/SP). Min. Rel. Ricardo Lewandowski, julgado em 17 de dezembro de 2009. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=609609. Acesso em: 08 nov. 2024.

[13] CONJUR. Supremo desmembra inquérito que investiga família de Paulo Maluf. Conjur, 17 dez. 2009. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-dez-17/supremo-desmembra-inquerito-investiga-familia-paulo-maluf/. Acesso em: 08 nov. 2024.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Habeas Corpus nº 232.627 (HC 232.627/DF). Min. Rel. Gilmar Mendes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2024/03/voto-Gilmar-foro-especial-apos-saida-do-cargo.pdf. Acesso em: 11 nov. 2024.

[15] No momento da publicação, a votação encontra-se com 6 votos favoráveis contra 1, em que o Ministro André Mendonça foi o único a votar no sentido de que o foro por prerrogativa de função acaba imediatamente com o fim do exercício do cargo, sob necessidade de envio da competência à primeira instância. BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Voto-vista no Habeas Corpus nº 232.627 (HC 232.627/DF). Min. André Mendonça. Julgado em: 20.09.2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/ wp-content/uploads/2024/09/voto-Mendonca-foro-especial-apos-saida-do-cargo.pdf. Acesso em: 11 nov. 2024.

[16] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Habeas Corpus nº 347.944 (HC 347.944/AP). Min. Rel. Reynaldo Soares da Fonseca. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/doc umento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1513118&num_registro=201600220509&data=20160524&formato=PDF. Acesso em: 08 nov. 2024.

[17] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). O foro por prerrogativa de função e as restrições à sua aplicação no STJ. STJ, 7 jun. 2020. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/ Paginas/Comunicacao/Noticias/O-foro-por-prerrogativa-de-funcao-e-as-restricoes-a-sua-aplicacao-no-STJ.aspx. Acesso em: 07 nov. 2024.

[18] A se citar os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça: Inquérito nº 1.655/DF (Julgado em 06.09.2024); Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 857.920/AP (Julgado em 23.02.2024); Agravo Regimental nos Embargos Declaratórios no Habeas Corpus nº 649.147/ES (Julgado em 23.09.2021); Habeas Corpus nº 347.944/AP (Julgado em 17.05.2016).

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Súmula 704. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/juris prudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2645. Acesso em: 08 nov. 2024.

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Há abalo à honra quando se chama alguém de ‘gordo’ ou ‘feio’?

Não é incomum que adolescentes façam listas a respeito de quem são os mais bonitos da sala de aula, o que significa que os excluídos serão considerados mais feios; isso se não há uma lista completa e alguém terá o desprazer de se encontrar em último. Não é incomum também que pessoas façam comentários a respeito do corpo de outrem, tachando a pessoa de gorda ou dizendo que ela está fora de forma.

Foi a partir dessas situações comezinhas, muitas delas discutidas em sala de aula, que ocorreu nos ocorreu de escrevermos neste artigo.

A ideia é tratar de direitos da personalidade, com ênfase no direito à honra.

Sobre os direitos da personalidade

Existem vários direitos da personalidade, tais como imagem, privacidade, sobre o próprio corpo e outros. Não há discussão a respeito da existência de alguns deles, eis que previstos de modo expresso no Código Civil, entre seus artigos 11 e 21; outros são implícitos, extraídos do sistema jurídico, segundo a corrente monista, a partir do que é considerado direito geral da personalidade.

A doutrina majoritária entende que esse direito geral da personalidade corresponde à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento da República Federativa do Brasil insculpido no artigo 1º, III, da CF/1988. (1) Um direito da personalidade implicitamente previsto no sistema jurídico pátrio é o da identidade, a respeito do qual foi publicado artigo em data relativamente recente (2).

No mais das vezes, as situações que se apresentam adequam-se a um ou outro direito da personalidade com precisão. Por exemplo, se uma pessoa adentra em nossa casa sem consentimento viola a nossa vida privada, pois o domicílio é o centro de exercício típico desse direito. Se outra pessoa faz publicar a nossa fotografia em uma revista sem que tivesse prévia concordância específica, por certo, ofenderia o nosso direito à imagem, no caso, sempre, pelo ponto de vista restrito da imagem-retrato.

Há outras situações fáticas, entretanto, que são mais difíceis, quer porque colocam-se praticamente no limiar entre dois direitos distintos, quer porque fazem com que o intérprete do direito se questione se, de acordo com as peculiaridades apresentadas, ainda assim há ofensa ao direito de que se trata.

Se alguém verifica nosso extrato bancário haveria ofensa à nossa vida privada, segundo o c. STF, que tem vários julgamentos nesse sentido, malgrado algo antigos (3). Mas isso também poderia ser entendido como uma ofensa ao direito de proteção dos próprios dados, direito esse que ganhou ou vem ganhando autonomia em relação àquele (4) e que diz respeito à autodeterminação informativa, ou seja, à liberdade de definir se, como e até quando seus dados pessoais podem ser de conhecimento alheio. A LGPD, certamente, contribuiu para esse ganho de autonomia do direito aos dados pessoais.

Para resolver essas dúvidas o intérprete do Direito deve ter em mente o conteúdo adequado dos direitos da personalidade de que se trata, diferenciando-os dos demais que lhes são correlatos. Isso é especialmente importante quando se trata do direito à honra na atualidade, pois ele se aproxima bastante, dentre outros direitos, do direito à identidade.

Sobre a honra

Qualquer um de nós tem uma boa noção a respeito do que se entende por honra, mas se tivéssemos que defini-la, provavelmente, encontraríamos dificuldade, como lembra Jean Carbonnier, autor francês de renome internacional quando se trata de direito civil. Segundo ele, a honra diz respeito à dignidade da pessoa: quer a noção que cada pessoa tem da própria dignidade, quer a noção que os outros têm dela. (4) Sem dúvida, essa definição, por mais abrangente que seja, está conectada à noção kantiana de que a dignidade corresponde àquilo que não tem preço.

Essa divisão entre a ótica que os outros têm da minha dignidade e que eu tenho da minha própria dignidade, consoante exposto acima, é o que dá ensejo à classificação encontrada na doutrina sobre a honra objetiva e a subjetiva.

Tomando como base justamente essa noção de dignidade como cerne da honra, Carlos Alberto Bittar diz que a honra subjetiva é a consciência da própria dignidade, ao passo que a honra objetiva corresponde à reputação, que abrange o bom nome e a fama (5).

Cláudio Luiz Bueno de Godoy, por sua vez, diz que a honra é emanação direta da personalidade do homem, que supõe não apenas um elemento corpóreo, mas também um componente espiritual, revelado pela dignidade que se lhe reconhece. A honra, no seu entender, compreende a autoestima, o amor próprio, o sentimento da própria dignidade, de um lado (honra subjetiva), e o apreço, o respeito, a fama, a reputação, de outro lado (honra objetiva) (6).

Essa dicotomia é encontrada também no direito penal. Damásio E. de Jesus diz que a honra subjetiva é o sentimento de cada um a respeito de seus atributos físicos, intelectuais, morais e demais dotes da pessoa humana, ou seja, aquilo que cada um pensa de si mesmo em relação a tais atributos, ao passo que a honra objetiva é a reputação, aquilo que os outros pensam a respeito da pessoa no tocante a esses mesmos atributos (7).

O que mais importa notar a partir dessas definições é que a honra carrega consigo um juízo de valor que lhe é peculiar. São bons os atributos que a sociedade assim considera como tais, por isso as pessoas se orgulham de ostentá-los (honra subjetiva) ou essa mesma sociedade prestigia as pessoas que os ostentam (honra objetiva).

Como subsistema social que é, portanto, o Direito colhe essa informação da sociedade. É a sociedade que diz que ser honesto é bom e desonesto ruim por exemplo. Isso é relevante porque se não há esse juízo de valor não está se tratando de honra; se a ideia é apenas distinguir duas atribuições distintas, mas sem juízo de valor quanto a qualquer delas, de honra não se trata, como é o caso do já citado exemplo de ser gay.

Fixada a premissa de que a honra envolve sempre um juízo de valor, a questão que se coloca é se esse tipo de crítica, chamar alguém de “gordo” ou “feio” pode ser considerado como ofensivo à honra ou aceitar isso seria, por via reflexa, reforçar um preconceito estético.

A resposta, como é comum no âmbito jurídico, depende das circunstâncias.

Por exemplo, em um concurso de miss a beleza é critério de julgamento, por isso entender que alguém é bonito ou feio faz parte do processo e, a rigor, não pode ser considerado ofensivo, havendo inclusive concursos plus size. Anunciar isso, com o devido cuidado, sem exageros, configuraria exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião.

Ainda, ser chamado de gordo em um reality show de emagrecimento que tem por objetivo acompanhar o processo de perda de peso dos participantes, provavelmente, não é ofensivo à honra (8).

Claro que esses são exemplos mais simples, marcantes mesmo, a fim de explicar a ideia. É sabido que na sociedade as coisas se apresentam de modo mais complexo e a análise do intérprete se torna mais difícil, como é o caso da moça que diz à amiga que não quer namorar determinado garoto porque o acha feio. Será que haveria ofensa à honra dele apenas por conta disso ou seria uma conduta lícita, natural, representando excesso de sensibilidade do garoto exigir indenização por danos morais ao tomar ciência disso?

Para ajudar a responder essa questão é importante dar um passo atrás e verificar um processo julgado na Itália em 1979, o qual ajudou a definir o direito à identidade, diferenciando-o do direito à honra.

Nesse ano, o tribunal de Turim julgou o caso do político Marco Pannela. Conhecido por ser do Partido Radical Italiano, teve o seu nome mencionado em panfletos distribuídos na cidade como se fizesse parte do Partido Comunista Italiano. Em suma, era de uma vertente política, mas teria sido retratado como se fosse da vertente oposta. Na conclusão do caso, o tribunal afirmou que ser de uma vertente política ou outra não diz respeito à honra, ou seja, houve o reconhecimento de que ninguém é melhor ou pior do que outrem apenas porque adota determinada visão de mundo. Sendo assim, existiu ofensa a um direito da personalidade desse político, mas não a honra, e sim a identidade (9).

Esse caso é relevante porque define que ninguém é melhor ou pior por ser de direita ou esquerda, no ambiente político, já que se trata de exercício da liberdade decorrente da visão de mundo de cada um.

Em outras palavras, não há propriamente um juízo de valor social que permita justificar o pensamento de que alguém é melhor ou pior por seguir uma ou outra corrente política, o critério acaba por ser individual aos olhos de cada um. Sendo assim, não é ofensivo à honra, mas sim à identidade política, se o caso, atribuir a alguém visão de mundo de caráter político que divirja da realidade fática.

Mas por que essa conclusão não se aplica à situação de chamar alguém de “gordo” ou “feio”? Porque é uma realidade que a estética impõe à sociedade que é melhor ser “magro” e “bonito”. Ainda que isso, inevitavelmente, seja algo subjetivo, e que a sociedade esteja mudando para aceitar melhor a diversidade corporal, esses padrões de estética ainda têm um peso muito grande no julgamento das pessoas a respeito de si mesmas e das outras.

Como explicam Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos e Paola Uliana de Oliveira, os padrões de beleza são mutáveis. Na Grécia a aparência física e estética importava tanto quanto o conhecimento intelectual. Na Idade Média as formas arredondadas do corpo feminino, com circunferências e curvas avantajadas, eram prestigiadas, como é possível observar em telas de diversos artistas. Atualmente, segundo eles, a indústria da moda e a mídia ditam as regras e exigem um corpo “perfeito”, supervalorizando a imagem corporal, gerando, em contrapartida, a intensificação de doenças como a anorexia e a bulimia (9).

O Direito é ciência social prática. Ele deve se voltar para a sociedade para observá-la e entendê-la, com vistas à melhor interpretação – e, se o caso, aplicação – da lei. E se o padrão estético atual diz que ser “feio” ou “gordo” é pior do que ser “bonito” ou “magro”, natural compreender-se que há um juízo de valor ínsito neste julgamento.

Mas é importante compreender a questão da forma correta para que não se retire disso um reforço ao preconceito. Não estamos defendendo, de maneira alguma, que uma pessoa considerada por outros como “feia” ou “gorda” valha menos do que outra. Isso seria inconcebível e absolutamente contrário à dignidade da pessoa humana.

O que estamos reconhecido é que, em termos objetivos, faticamente, há uma “ditadura da estética”, a impor padrões. Praticamente todos sofrem com isso, por isso não é algo a ser estimulado. Contudo, também não há como simplesmente olvidar desse fato e deixar de admitirmos que ela existe e causa impacto psicológico em todos nós.

Desta maneira, ao utilizarmos esses termos para se referir a outrem, sem que as circunstâncias ajudem a explicar que se trata de uma crítica feita no exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião, a pessoa pode praticar ofensa à honra alheia. Mas de que honra se trata, da objetiva ou da subjetiva? A nosso ver, das duas.

Isso porque ao proceder desse modo a pessoa que se manifesta a respeito da outra a coloca numa escala inferior da sociedade, no que diz respeito à estética; na classificação que se faz a partir desse critério de julgamento, a pessoa considerada “feia” ou “gorda” é rebaixada em relação às demais. E a pessoa que toma ciência dessa manifestação também pode passar a se sentir menosprezada, com a sua autoestima abalada.

Breve conclusão

Os direitos da personalidade estão em constante evolução, pois representam a extensão da dignidade da pessoa humana. Em tempos de modernidade líquida, consoante explicado por Zygmunt Bauman, tudo muda o tempo todo, por isso as pessoas também mudam sempre. Natural, destarte, esperar que os direitos da personalidade acompanhem essa mudança.

O direito à honra, um dos direitos da personalidade mais conhecidos e que já foi utilizado como argumento para práticas mais do que conservadoras, verdadeiramente retrógradas e abusivas, como é o caso do feminicídio e das agressões contra mulheres, é outro que acompanha essa mudança na sociedade.

Ele contempla um juízo de valor social que parte do princípio da presença de um atributo positivo ou negativo, pessoal a cada grupo ou individuo . Se a pessoa é chamada por outras de criminosa, recebe um rótulo ruim e, por conta disso, é rebaixada socialmente. Por outro lado, se ela é rotulada como honesta, recebe um rótulo positivo e, por conseguinte, sobe um degrau na escala social.

A conclusão é mais fácil quando se trata de alguns atributos, como os vistos acima, mas a situação é mais complexa quando se trata de outros. É o caso dos atributos de beleza, tais como ser “bonito”, “feio”, “magro” ou “gordo”.

O objetivo deste breve artigo foi mostrar que os termos considerados negativos podem ensejar ofensas à honra porque existe um padrão estético na sociedade e ele não pode ser simplesmente desprezado. Os rótulos sociais são importantes na maneira como as pessoas pensam, em geral, inclusive sobre o que pensam sobre si e sobre os outros.

Não havendo razão jurídica que justifique a utilização desses termos por parte de quem emite opinião, pode haver, sim, ofensa à honra, quer objetiva, quer subjetiva.


(1) BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 125; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 30.

(2) https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/417379/o-direito-a-identidade-direito-a-espera-de-alguem-que-chame-pelo-nome

(3) RE 612.687 AgR, 1ª T., rel. Min. Roberto Barroso, j. 27.10.2017, DJ 14.11.2017; ADI 7276, Pleno, rel. Min. Cármem Lúcia, j. 09.09.2024, DJ 20.09.2024.

(4) A propósito desse movimento: SCHEDELOSKI, Mariana Almirão Sousa. Comércio de dados pessoais.

(4) CARBONNIER, Jean. Droit civil. Les personnes:personnalité, incapacites, personnes Morales. 19. ed. Paris: PUF, 1994, p. 129.

(5) BITTAR, Carlos Alberto. Direitos da personalidade. 6. ed., rev. e ampl. por Eduardo C.B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 133

(6) GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo : Editora Atlas, 2001, p. 38-39.

(7) JESUS, Damásio E. de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 2, p. 177

(8) É o caso, por exemplo, do programa da NBC chamado The biggest loser, que estreou em 2004 e fez muito sucesso.

(9) SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidade personal cit., p. 65; ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Onore, reputazione e identità personale cit., p. 28-29.

(10) SILVA, Katia Moraes da. Estética e sociedade. Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos, Paola Uliana de Oliveira. 2. ed. – São Paulo: Érica, 2014, p. 118-120.

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Cobrança extrajudicial de dívidas prescritas: o impacto do Tema 1.264 no STJ

A inclusão de dívidas prescritas em plataformas de negociação, como o “Serasa Limpa Nome”, tem acendido um debate acirrado no Brasil, tanto no âmbito jurídico quanto econômico. A questão central é: até que ponto é legítimo cobrar extrajudicialmente dívidas prescritas sem ferir os direitos do consumidor e o alcance da prescrição?

Em análise no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tema Repetitivo 1264 promete lançar luz sobre essa controvérsia, estabelecendo um entendimento vinculante que afetará credores e devedores, especialmente em setores que dependem da recuperação de crédito, como o mercado de securitização.

Para entender o cerne da discussão, é crucial compreender o efeito jurídico da prescrição no direito brasileiro. Consumidores argumentam que, após o prazo prescricional de cinco anos para ação judicial, a dívida não deveria ser cobrada, nem mesmo extrajudicialmente, e muito menos constar em plataformas como o “Serasa Limpa Nome”.

Apoiam-se no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que limita a permanência de informações negativas em cadastros de crédito a cinco anos, sugerindo que a prescrição extinguiria qualquer possibilidade de cobrança.

Os credores, por sua vez, reconhecem que a prescrição extingue a pretensão judicial, ou seja, o direito de exigir coercitivamente o cumprimento da obrigação por meio do Judiciário. No entanto, eles argumentam que a dívida em si não é extinta pela prescrição. Essa distinção é fundamentada no Código Civil brasileiro, que separa a existência da dívida da possibilidade de sua exigência judicial.

O artigo 189 do Código Civil estabelece que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição”. Isso significa que a pretensão  o poder de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação  se extingue com a prescrição, mas não o direito material em si. Já o artigo 882 dispõe que “não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”. Ou seja, se o devedor voluntariamente paga uma dívida prescrita, não pode exigir a devolução do valor pago, o que reforça a ideia de que a obrigação subsiste.

Defendem que essa separação entre a dívida e a pretensão coercitiva permite que os credores busquem a satisfação de seus créditos por meios extrajudiciais, mesmo após o prazo prescricional, desde que não utilizem coação ou práticas abusivas.

Violação do Código do Consumidor

Outro ponto crítico é a alegação de que a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas violaria o CDC, especialmente o artigo 43, que protege o consumidor contra informações desatualizadas em cadastros de crédito. Este artigo estabelece os direitos do consumidor em relação aos cadastros de crédito, incluindo o prazo máximo de cinco anos para a manutenção de informações negativas e a exigência de que os dados sejam exatos e atualizados.

Sobre este ponto, as securitizadoras defendem que plataformas restritas de negociação, como o “Serasa Limpa Nome”, funcionam como ambientes seguros onde apenas o devedor tem acesso. Nessas plataformas, o devedor pode visualizar suas dívidas e negociar diretamente com os credores, sem exposição pública. Elas diferem dos registros públicos de inadimplência porque não tornam a dívida visível a terceiros. Argumentam que, por facilitarem a negociação e evitarem a exposição, essas ferramentas não infringem o CDC e não podem ser consideradas mecanismos de cobrança indevida.

Com relação ao ônus da prova, os devedores alegam que a cobrança de dívidas prescritas é, por si só, abusiva, argumentando que a simples tentativa de cobrança já viola seus direitos.

Do lado dos tribunais, muitos precedentes têm entendido que a tentativa de negociação extrajudicial não configura abuso, desde que não haja pressão indevida ou práticas coercitivas. Além disso, conforme o artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, que estabelece que o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito, cabe ao devedor provar eventuais abusos ou coação na cobrança.

Suspensão de processos

Com a afetação do Tema 1.264 ao regime dos repetitivos, o STJ reconheceu a pertinência do tema e determinou a suspensão de todos os processos relacionados, em todas as instâncias, até o julgamento final. A decisão que será proferida terá efeito vinculante, promovendo uniformidade jurisprudencial e evitando decisões conflitantes que poderiam gerar insegurança jurídica.

É importante ter em mente o impacto do julgamento do Tema 1.264 pelo STJ, que tem implicações diretas no mercado de crédito, especialmente para empresas de securitização e recuperadoras de crédito que adquirem carteiras de dívidas prescritas visando à negociação extrajudicial. A prescrição limita a cobrança judicial, tornando a via extrajudicial essencial para a recuperação desses créditos.

Do ponto de vista econômico, a possibilidade de cobrança extrajudicial de dívidas prescritas é uma prática legítima e necessária para a gestão de riscos e manutenção de custos de crédito acessíveis. Restringir ou proibir essa prática pode gerar efeitos adversos, como o aumento da inadimplência e a redução da liquidez em carteiras de crédito, impactando negativamente o acesso a crédito novo pela população. Poderia, ainda, resultar na elevação das taxas de juros, refletindo o maior risco percebido pelos credores.

Nos últimos anos, tanto o STJ quanto o Supremo Tribunal Federal têm adotado cada vez mais fatores econômicos nas fundamentações de suas decisões. Como destaca Guilherme Mendes Resende, assessor especial da Presidência do STF para assuntos econômicos, em artigo publicado no Valor Econômico em novembro de 2023, essa prática busca aprimorar a transparência e a eficiência das decisões judiciais ao considerar os impactos econômicos no sistema como um todo.

Viabilização de negociação de dívidas

A futura decisão do STJ no Tema 1264 vai muito além de resolver uma controvérsia jurídica específica. Ela representa uma oportunidade de equilibrar a proteção dos direitos dos consumidores com a eficiência econômica indispensável. A interpretação de que a prescrição limita apenas a exigibilidade judicial da dívida, sem extingui-la, permite que credores e devedores busquem soluções extrajudiciais respeitosas, sem recorrer a práticas abusivas ou constrangedoras.

Ao viabilizar a negociação de dívidas prescritas em plataformas de acesso restrito, evitam-se barreiras ao crédito e aos investimentos, protegendo a economia de efeitos adversos como o aumento da inadimplência e a elevação das taxas de juros. Nesse contexto, é essencial que o Judiciário considere não apenas os aspectos legais, mas também os impactos econômicos de suas decisões.

Ao incorporar essa perspectiva, o STJ tem a chance de proferir uma decisão que não apenas pacifica entendimentos jurídicos divergentes, mas também promove um ambiente econômico mais estável. Equilibrar os direitos individuais com a eficiência econômica não é apenas desejável, mas necessário para uma sociedade que busca justiça e prosperidade.

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Importância da priorização das práticas restaurativas promovida pelo CNJ

Ainda no Réveillon de 1988, sob intermitente chuva fina e mar agitado, a proa do Bateau Mouche IV foi avistada adernando nas proximidades da Ilha de Cotunduba, próxima ao morro do Leme. Cinquenta e cinco vidas perdidas e o sofrimento de sobreviventes e familiares na tragédia da Baía de Guanabara povoam nosso imaginário até hoje. Se foi a irregularidade por excesso de passageiros, ou se uma reforma no convés superior (instalação de piso de cimento e a colocação de duas caixas-d’água, que pode haver comprometido a estabilidade do barco) [1], o que importa mesmo é o trauma que perpassa gerações e a sensação perene de “justiça não distribuída” [2].

Movidos pela comoção popular, vários atores e instituições se mobilizaram para defesa das famílias das vítimas e intensivo acompanhamento dos processos no Judiciário. O tempo “lento” dos meios convencionais de justiça acaba se convertendo, ele próprio, em mais um fator indireto de vitimização (“vitimização secundária”). Foragidos para a Europa desde 1994, nunca mais se teve notícia dos sócios do Bateau Mouche. As carências que a perda sem reparação traz na vida dos sobreviventes e familiares se prolonga os efeitos traumáticos no tempo, causando múltiplos níveis de vitimização (PTSD — post traumatic stress disorders).

Lamentavelmente, acumulam-se ao longo dos anos casos sem solução. Porém, as evidências científicas apontam que, na maioria das vezes, vítimas ou familiares (vitimização terciária) não querem vingança ou punição. O que lhes move é apenas o reconhecimento de que houve um crime, de que seus direitos foram violados, de que merecem atenção e cuidado.

A ausência de reconhecimento da vítima tem provocado questionamentos de fundo ao conhecimento convencional sobre sentidos e finalidades da pena. Não apenas porque as teorias preventivas não resistem à verificação empírica sobre o real efeito dissuasório, mas porque elas têm sentido prático quase nenhum.

Bastaria com o exemplo primeiranista da Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente” seria a retribuição na sua expressão mais básica, ao mesmo em que simplesmente se preenche todo o sentido da prevenção ao reafirmar que vigora uma lei taliônica universalmente válida. Pior ainda é que se fia pela dimensão alienante da juridificação (Verrechtlichung) ou do procedimento voltado à “difusão da insatisfação gerada pelo conflito” [3], reduzida à mera descrição da “verdade” dos fatos  com todas as limitações dos meios de prova , sendo incapaz de capturar a dimensão narrativa dos conflitos que introjeta os dramas das vítimas na solução do conflito. Na fina leitura de Lawrence Sherman, as narrativas preenchem a composição do conflito com a dimensão emocional das vítimas, promovendo o “giro emocional” (emotional turn[4] no endereçamento da justiça.

Práticas restaurativas na solução de conflitos

É em função deste contexto que o Ato Normativo do CNJ recomendou a priorização das práticas restaurativas na solução de conflitos [5], buscando reposicionar as alternativas de solução do conflito por meio de medidas de composição juntos às vítimas. Com este ato, o CNJ renova as expectativas em torno da autocomposição dialogada e, em grande medida, atualiza a normativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  as Resoluções nº 125/2010 e 225/2016 [6].

Além de reparação condizente com a natureza dos fatos e alinhada à orientação jurisprudencial, a solução por meio da autocomposição é menos aflitiva e mais ágil do que o tempo lento do processo tradicional, permitindo oferecer acolhimento multiprofissional (desde a possibilidade de melhor tratamento clínico possível até o indispensável cuidado psicológico) e uma combinação inteligente com a postura colaborativa por parte dos ofensores [7].

É bem verdade que as evidências científicas sobre a efetividade das práticas restaurativas na redução da criminalidade são adstritas a comportamentos não-violentos. No entanto, é igualmente verdadeiro que viabiliza soluções mais dinâmicas  e em tempo hábil  diante de processos de múltipla vitimização, especialmente diante da escassez de recursos públicos para levar adiante as investigações mais complexas, exigindo meios de prova pouco usuais, perícias sofisticadas ou mesmo teste de novas tecnologias.

Segundo a Coordenadora do Grupo USP Restaura, Cristina Rego de Oliveira, vale mesmo é como poderoso instrumento de desformalização, reconhecimento, inclusão e participação mais efetiva dos “esquecidos” do Sistema de Justiça Criminal [8].

O desafio para as práticas restaurativas é ainda maior quando se pensa na responsabilidade empresarial. Apesar da profusão de teses sobre os modelos de imputação às empresas, não há quase nenhuma construção positiva em torno dos modelos de sanção [9]. No campo empresarial, a prática restaurativa deveria atender a alguns passos essenciais:

1) reconhecimento da responsabilidade. É a principal manifestação de humildade por parte do ofensor de que a colaboração tem o real propósito[10] de restauração. Consequência disso, como mecanismo de imediata gestão de crise, os envolvidos devem ser afastados da posição que os levou à prática do ato e providenciadas todas as mudanças necessárias para que não mais se repita o comportamento indesejável, em quaisquer hipóteses ou circunstâncias.

2) delimitação do dano e mapeamento do conflito [11]: apreendida a responsabilidade, adquire-se melhor compreensão sobre processos de produção de dano e vitimização. Deve-se delimitar o dano em todas as suas dimensões (vitimização tangível e também intangível, de mais difícil mensuração). Com base nesta medida objetiva do dano, aos stakeholders afetados garante-se a oportunidade de discutir o impacto do dano em suas vidas e o que deve ser realizado para superá-lo [12].

3) arrependimento sincero e pedido de desculpas: apoiada nesta medida objetiva do dano, discutem-se as medidas de reparação e inicia-se o processo restaurativo com as desculpas do ofensor, a partir da oportunidade que é franqueada às vítimas para que possam exercer o seu direito a perdoar, reforçando a centralidade da vítima em toda a prática restaurativa.

Com a promoção das práticas restaurativas pelo CNJ, conferindo-lhes às vítimas voz e lugar na solução dos conflitos,  mesmo com toda a cautela para não reduzir o sistema de autocomposição a uma mera negociação de acordos e escusa de responsabilidade aos ofensores [13], é bem possível avançar muito na experimentação de soluções menos traumáticas às vítimas e a seus familiares.

Estamos diante de estratégia promissora para a evolução dos modelos de sanção, permitindo que o sistema de justiça possa de fato priorizar seus recursos em relação a comportamentos efetivamente mais danosos e para os quais a solução dialogada é inviável.


[1] SANT´ANNA, Ivan. “Bateau Mouche, uma tragédia brasileira”.

[2] TYLER, Tom. Procedural Justice, Legitimacy, and the Effective Rule of Law. Crime and Justice, 30/2003.

[3] FERRAZ JR., Tercio. Revisão e apresentação do livro Legitimação do Procedimento. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Editora UnB, 1980.

[4] SHERMAN, Lawrence. Reasons for emotions: reinventing justice with theories, innovation and research. Criminology, 41/2006.

[5] O Ato Normativo 0006689-50.2024.2.00.0000, aprovado pelo Plenário do CNJ durante a 13.ª Sessão Ordinária (22.10.2024).

[6] O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – Resoluções n. 118/2014, 40/2016 e 243/2021 – atua em sentido semelhante: as quais orientam a autocomposição das partes, a reparação dos danos e a reconciliação com as vítimas.

[7] SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e compliance. RT: 2019; SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. Tirant: 2019.

[8] OLIVEIRA, Cristina Rego. Justiça Restaurativa Aplicada. Blimunda, 2021. Mais detalhes, OLIVEIRA, Cristina Rego; SAAD-DINIZ, Eduardo (org) Justiça Restaurativa em ação: diálogos do Projeto USP-Restaura. LiberArs, 2022.

[9] LAUFER, William. “The missing account of progressive corporate criminal law”. New York University Journal of Law & Business, 2017.

[10] BRAITHWAITE, John. “Restorative Justice: theories and worries”. In: Visiting Experts’ Papers, 123rd International Senior Seminar, Resource Material Series No. 63. Tokyo: 2005.

[11] NIETO MARTIN, Adán; CALVO, Raul (org) Justicia restaurativa empresarial: un modelo para armar. Madrid: Reus, 2023.

[12] STRANG, Heather, “Is restorative justice imposing its agenda on victims?”. In: ZEHR, Howard et al., (org.), Critical issues in Restorative Justice. New York: Monsey, 2004, ps. 95-106.

[13] LAUFER, William. “Corporate crime and making amends”. American Criminal Law Review, 2007.

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Acordo prévio à citação não enseja extinção da execução por falta de interesse do credor

A celebração de acordo entre credor e devedor, antes de realizada a citação e prevendo a suspensão da execução até o pagamento final do débito, não é fundamento para a extinção da ação por falta de interesse de agir.

Embora o tema pareça simples, ele envolve consequências jurídicas e práticas que podem afetar o direito de o credor receber o crédito devido.

Esse assunto foi recentemente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da 3ª Turma, no Recurso Especial nº 2.165.124/DF.

No caso, uma instituição financeira havia ajuizado ação de execução e, antes da citação do devedor, as partes firmaram acordo para pagamento parcelado, requerendo a homologação judicial e a suspensão da execução até o pagamento final. No entanto, o juiz de primeira instância extinguiu o processo sem resolução de mérito, entendendo que teria havido a perda do interesse de agir da instituição financeira (artigo 485, VI, CPC). A sentença de extinção, sem homologação do acordo, foi mantida pelo TJ-DF, que sustentou que a simples comunicação do acordo sem a citação do devedor indicava falta de interesse de agir e de utilidade do processo, aplicando a consequência de indeferimento da petição inicial [1].

O STJ, contudo, modificou essa conclusão. De forma acertada, a relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que o Código de Processo Civil prevê duas modalidades de suspensão do processo: para ações de conhecimento, a suspensão é limitada a seis meses (artigo 313, II c/c §4º, CPC [2]); para execuções, é autorizada a suspensão durante o prazo concedido pelo exequente para o pagamento voluntário da obrigação (artigo 922, caput, CPC [3]).

Argumentos para suspensão do processo

Assim, tratando-se de uma ação de execução, seria possível a suspensão do processo até o pagamento, mesmo que o acordo tenha sido firmado antes da citação do devedor.

Existem dois argumentos relevantes para a manutenção da suspensão do processo até o pagamento final. Primeiro, o impacto psicológico e prático sobre o devedor, já que, se o acordo for descumprido, o processo pode ser retomado imediatamente, sem necessidade de nova distribuição ou citação. Ou seja, o inadimplemento comunicado ao Juízo levará à pronta retomada do processo e à prática de atos de constrição de patrimônio, de forma rápida e eficiente.

Segundo, a manutenção do processo preserva o crédito original executado e, especialmente, os consectários da mora do devedor, caso seja necessário retomar o andamento processual.

Mostra-se integralmente correta a decisão do Superior Tribunal de Justiça ao se alinhar com princípios basilares cristalizados no Código de Processo Civil de 2015: de um lado, privilegia a duração razoável do processo (artigos 4º e 6º [4]), pois torna muito mais célere a eventual retomada do processo em caso de inadimplemento, além de suprir a repetição de atos já praticados (como citação, intimação, prazo de defesa); de outro lado, privilegia a primazia do julgamento de mérito (artigos 4º [5], 932, parágrafo único [6], 938, §1º [7], dentre outros, além da doutrina [8]), uma vez que homologa acordo em julgamento de mérito (artigo 487, III, alínea b), em detrimento da solução extintiva sem resolução de mérito (artigo 485, VIII).

Autonomia ao credor

Mas o principal efeito é o “psicológico”, pois dá mais autonomia e ingerência ao credor sobre o devedor, o que pode reforçar a efetividade daquele acordo.

Se o processo de execução é o grande gargalo do Poder Judiciário, e a recuperação de crédito é extremamente tortuosa e ineficiente, deve ser comemorada toda posição de tribunais superiores no sentido de privilegiar a celeridade, a efetividade e o direito de o credor reaver os valores buscados em Juízo.

Assim, seja porque juridicamente coerente com a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil, seja porque efetivamente aumenta a eficácia da recuperação do crédito, a decisão do Superior Tribunal de Justiça é um marco interessante na prática forense do processo executivo.


[1] Processo nº 0731183-70.2023.8.07.0001

[2] Art. 313. Suspende-se o processo:

II – pela convenção das partes;

§ 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II.

[3] Art. 922. Convindo as partes, o juiz declarará suspensa a execução durante o prazo concedido pelo exequente para que o executado cumpra voluntariamente a obrigação.

[4]   Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[5] Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

[6]  Art. 932. Incumbe ao relator:

Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.

[7] Art. 938. A questão preliminar suscitada no julgamento será decidida antes do mérito, deste não se conhecendo caso seja incompatível com a decisão.

§ 1º Constatada a ocorrência de vício sanável, inclusive aquele que possa ser conhecido de ofício, o relator determinará a realização ou a renovação do ato processual, no próprio tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, intimadas as partes.

[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Princípio da Primazia da Resolução do Mérito e o Novo Código de Processo Civil. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro. v. 18, n. 70, p. 42-50, set-out. 2015

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Impossibilidade de presunções e ilações no direito sancionador: necessidade de provas robustas na improbidade

A improbidade administrativa exige rigor probatório devido à gravidade das sanções envolvidas, como perda da função pública, suspensão de direitos políticos e eventual ressarcimento ao erário. Para assegurar a coerência do regime jurídico aplicável aos casos de improbidade, o Poder Judiciário tem estabelecido entendimentos que ressaltam a necessidade de provas sólidas e inquestionáveis, pois, como bem pondera Ivan Lira de Carvalho, no “âmbito do direito administrativo sancionador, ‘quase penal’, a condenação deve ser feita com base em provas sólidas, não sendo suficiente que o reconhecimento da prática de atos ímprobos seja feita apenas com base em indícios ou em meras ilações”. [1]

Ao mesmo tempo, a tentativa de ampliação das interpretações normativas criou uma interminável crise de segurança jurídica, ampliada pelo ativismo judicial e pela abertura conceitual e do exagero de algumas teorias “neoconstitucionalistas”.

Elementos sobre improbidade administrativa e questão da prova adequada

A Lei 8.429/92 regula os atos de improbidade administrativa, exigindo, para essa qualificação, dolo ou culpa comprovada, conforme o tipo de ato (enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário ou violação de princípios). Assiste razão ao entendimento de que a responsabilidade objetiva é inadmissível nesses casos, sendo imprescindível o elemento subjetivo da ação. E esse cuidado se justifica para evitar condenações que não estejam embasadas em uma análise rigorosa de conduta.

Nesse contexto, a condenação em ações de improbidade administrativa deve ser baseada em provas robustas e claras da prática eventual do ato e da presença de dolo. Presunções e indícios não são suficientes para justificar condenações, considerando a gravidade das consequências envolvidas, garantindo-se que o processo sancionador observe os princípios da tipicidade e da proporcionalidade, evitando o decisionismo baseado em análises subjetivas.

Por outro lado, infere-se a necessidade da presença concomitante da ilegalidade com má-fé, que corresponde ao “dolo”, conforme assenta o STJ há anos: “[…] O ato ilegal só adquire os contornos de improbidade quando a conduta antijurídica fere os princípios constitucionais da Administração Pública coadjuvada pela má-intenção do administrador, caracterizando a conduta dolosa; a aplicação das severas sanções previstas na Lei 8.429/92 é aceitável, e mesmo recomendável, para a punição do administrador desonesto (conduta dolosa) e não daquele que apenas foi inábil (conduta culposa). […].” (STJ – REsp 1.248.529/MG, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, julgado em 03/09/2013, DJe 18/09/2013).

A má-fé é elemento que deve ser comprovado (STJ – REsp 1.248.529/MG, Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, j. 03.09.2013, DJe 18.09.2013).

O TRF-5 corrobora com essa perspectiva, ao interpretar que a improbidade administrativa, por envolver o caráter sancionador, demandando, pois, um conjunto probatório que fundamente as acusações com precisão, sob pena de configurar abuso interpretativo e de causar danos à segurança jurídica.

Edílson Nobre, ao relatar numerosos casos sobre o tema, explica a preocupação que deve orientar o intérprete: “[…] In casu, a parte autora não demonstrou a existência de prejuízo financeiro derivado da irregularidade mencionada, circunstância reconhecida pelo próprio voto condutor. – Provimento aos embargos infringentes.” (TRF-5ª – Eiac 2.460.201/PE, Relator Desembargador Federal Edílson Nobre, Pleno, j. 10.04.2013, DJE 24.04.2013).

Do voto do relator, também professor da Faculdade do Direito do Recife, extrai-se que:

“Com efeito, antes de examinar as condutas dos réus, merece ser frisada advertência de que, embora a ação de improbidade administrativa não possa ser equiparada a ação criminal, não se pode — de forma alguma — obscurecer que possui forte carga punitiva e de restrição de direitos. Isso é evidente. Daí decorre incidir, no exame da caracterização do ato ímprobo, o princípio da tipicidade. […]. Isso porque não cabe ao intérprete esquecer prestigiado método de interpretação, que é sistemático, mediante o qual o significado de um preceito é extraído da sua conjugação com as demais regras do diploma interpretado.”

Considerações finais

A instauração de processos sancionadores deve ser baseada em elementos concretos e sólidos, seja na esfera administrativa, cível ou penal. E isso porque não se pode admitir ilações e presunções de irregularidades quando se aponta eventual ato improbo. No atual estágio dos modelos jurídicos, deve ficar para o passado a prática de determinadas ordens jurídicas aliadas aos denominados “princípios do chefe” (Führerprinzip), oriundos de uma ideologia arbitrária que gera uma subjetividade de interpretação.

As práticas incoerentes com o due process of law devem ser controladas, seja em nome dos limites do Estado, seja para garantir estabilidade e previsibilidade, elementos essenciais da segurança jurídica, ressaltando-se, com Geraldo Ataliba, que “o direito é, por excelência, acima de tudo, instrumento de segurança. Ele é que assegura a governantes e governados os recíprocos direitos e deveres, tornando viável a vida social. Quanto mais segura a sociedade, tanto mais civilizada. Seguras são as pessoas que têm certeza de que o direito é objetivamente um e que os comportamentos do Estado ou dos demais cidadãos dele não discreparão”. [2]

A segurança jurídica está associada ao que se denomina de proteção da confiança, derivando-se da própria estruturação do Estado de direito, que se vincula à “preocupação com o conhecimento do direito aplicável, impondo que as respectivas fontes sejam públicas e prospetivas na sua vigência”.[3]

O Estado de direito requer que “o quadro normativo vigente não mude de modo a frustrar as legítimas expectativas geradas nos cidadãos acerca de sua continuidade, com a proibição de uma intolerável retroatividade das leis, assim como a necessidade de essa alteração de expectativas constitucionalmente tuteladas ser devidamente fundamentada”. [4] Ou seja,”a proteção da confiança pretende instituir um clima de estabilidade entre o poder público e os cidadãos destinatários dos respectivos atos”. [5]

O papel do Judiciário em ações de improbidade administrativa exige um equilíbrio entre o dever de punir e a segurança jurídica. A exigência de provas sólidas é fundamental para evitar abusos e para preservar os direitos individuais, especialmente em um contexto em que o ativismo judicial e o neoconstitucionalismo — da forma posta — tendem a minar a previsibilidade e a estabilidade das normas.

A crise de segurança jurídica poderá se agravar à medida em que o Poder Judiciário permitir a ampliação de sua atuação além dos limites previstos na legalidade e na tipicidade, comprometendo a efetividade das normas e a justiça baseada em regras claras. A necessidade de provas robustas em ações de improbidade administrativa não é apenas uma exigência processual, mas também uma medida essencial para proteger a segurança jurídica e garantir a efetiva justiça no âmbito do direito administrativo sancionador.


[1] TRF5 – PROCESSO: 00022329020134058103 – Ap. Cível 590216, Relator: Des. Federal Ivan Lira de Carvalho (CONVOCADO), Primeira Turma, j. 24/10/2019, p. DJE – Data:05/11/2019.

[2] Cf. Geraldo Ataliba. República e Constituição, p. 184. No mesmo sentido: “A previsibilidade da ação estatal, seja em que ato ou em que manifestação ela for baseada, é essencial para a liberdade de ação individual e para a ação empresarial. […] A segunda questão diz respeito à carência de confiabilidade do ordenamento jurídico (Unzuverlässigkeit der Rechtordung). O cidadão não sabe se a regra, que era e é válida, se esta ainda continuará válida. E, quando ele sabe disso, não está seguro se essa regra, embora válida, será efetivamente aplicada ao seu caso. Regras e decisões são, pois, inconstantes. O Direito não é sério – e também deixa de ser levado a sério.” Humberto Ávila. Segurança Jurídica no Direito Tributário – Entre Permanência, Mudança e Realização, pp. 59-61).

[3] Cf. Jorge Bacelar Gouveia. Direito da Segurança – Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo. Lisboa: 2018, p. 95.

[4] Cf. Jorge Bacelar Gouveia. Direito da Segurança – Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo. Lisboa: 2018, p. 95.

[5] Jorge Bacelar Gouveia. Direito da Segurança – Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo. Lisboa: 2018, p. 95.

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Lei das consequências não intencionais e proteção à vítima no direito processual penal

Em 1989, o petroleiro Exxon Valdez protagonizou um dos maiores vazamentos de petróleo na costa do Alasca. Estima-se que o equivalente entre 257 mil a 750 mil barris de petróleo foram derramados quando no navio encalho na enseada do Príncipe Guilherme. Neste acidente, morreram cerca de 260 mil pássaros marinhos, 2,8 mil lontras, 250 águias e 22 orcas, para ficar nos exemplos mais expressivos.

Esta tragédia gerou a busca por aprimoramento no serviço de transporte de óleo e, entre eles, a edição de uma série de leis. Estas leis reforçavam a responsabilidade dos transportadores de petróleo e, evidentemente, seu objetivo era criar maior responsabilidade para evitar que novas tragédias ambientais se repetissem.

No entanto, esta lei gerou uma consequência não intencional [1]: o Grupo Royal Dutch/Shell, uma das maiores empresas de petróleo do mundo, passou a contratar navios independentes para a entrega de petróleo em vez de usar sua própria frota de 46 petroleiros. Com isso, a probabilidade de derramamento de óleo aumentou dado o uso de petroleiros de qualidade duvidosa.

Uma lei que originalmente fora elaborada para aumentar a proteção contra vazamentos de petróleo normal tornou mais frágil o transporte aumentando os riscos quando tais leis não existiam.

Este é um exemplo da lei das consequências não intencionais: uma lei que é projetada com finalidade específica, por conta de situações não previstas pelo legislador acaba gerando o oposto do que pretendia.

Lei das consequências não intencionais e o processo penal

No direito processual penal temos vários exemplos, e gostaria de me focar na indenização cível para a vítima.

Até 2008, o sistema era relativamente simples. A sentença penal condenatória transitada em julgado era título executivo judicial. A vítima deveria buscar a liquidação do valor na esfera cível. Não se discutia mais se o réu era responsável pelo dano mas apenas seu valor. É dizer, não se discutia mais o an debeatur, mas apenas o quantum debeatur.

Em 2008, a Lei 11.719, buscando aprimorar a proteção das vítimas, promoveu duas alterações importantes no Código de Processo Penal:

1) O artigo 387, IV estabeleceu que o juiz deveria fixar o valor mínimo da indenização considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido e
2) O artigo 63, parágrafo único estabeleceu que a vítima poderá executar o valor mínimo sem prejuízo de liquidação do restante do valor.

A partir de 2008, passaríamos a ter então dois mecanismos conjuntos:

a) o juiz poderia fixar um valor indenizatório mínimo e
b) a vítima, além de executar este valor, poderia fazer a liquidação da sentença buscando a satisfação do valor justo.

Passados quase 16 anos desta mudança, temos ainda insegurança na jurisprudência quanto ao trato desta questão da indenização e a jurisprudência oscilou muito ao longo dos anos.

Logo após editada a lei, surgiram três posições sobre o tema:

a) o juiz poderia fixar de ofício o valor da indenização;
b) haveria necessidade de pedido para a imposição deste valor e
c) haveria necessidade de pedido deste valor que somente poderia ser feito pelo ofendido. Também se discute se, havendo pedido, este precisa ser com o valor específico da indenização ou pode ser genérico.

Violência contra a mulher

O STJ definiu parte deste tema relativamente aos casos envolvendo a Lei Maria da Penha e fixou o Tema 983: nos casos de violência contra a mulher praticados no âmbito doméstico e familiar, é possível a fixação de valor mínimo indenizatório a título de dano moral, desde que haja pedido expresso da acusação ou da parte ofendida, ainda que não especificada a quantia, e independentemente de instrução probatória.

Este acórdão foi afetado em 4 de outubro de 2017, julgado em 28 de fevereiro 2018 e transitado em julgado em 19 e abril de 2018. Ou seja, passados 12 anos da mudança da lei foi pacificado o tema, mas apenas e unicamente nas questões envolvendo a Lei Maria da Penha.

A questão acaba adquirindo preocupação, pois nas demais situações o entendimento do STJ não é esse. Vejamos esse julgado abaixo:

“A interpretação do artigo 387, inciso IV, do CPP consentânea com as garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa orienta que a fixação, na sentença condenatória, de valor mínimo para reparação de danos materiais causados pela infração depende de pedido expresso na inicial, com a indicação do valor a ser indenizado, bem como da realização de instrução probatória específica. Precedentes”. (STJ, T5, AgRg no AREsp 2108809/SP, Rel. Messod Azulay Neto, DJe 04.10.2024).

Este julgado segue a orientação definida pela 3ª Seção que estabelece que “1. À exceção da reparação dos danos morais decorrentes de crimes relativos à violência doméstica (Tema Repetitivo 983/STJ), a fixação de valor mínimo indenizatório na sentença — seja por danos materiais, seja por danos morais — “[…] exige o atendimento a três requisitos cumulativos: (I) o pedido expresso na inicial; (II) a indicação do montante pretendido; e (III) a realização de instrução específica a fim de viabilizar ao réu o exercício da ampla defesa e do contraditório” (REsp 1986672/SC, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, Terceira Seção, julgado em 08/11/2023, DJe 21/11/2023)” (STJ, T6, AgRg no REsp 2008575/RS, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, DJe 07.03.2024).

Ou seja, para entendermos adequadamente como está a questão da indenização precisamos nos perguntar se está ou não no âmbito de crimes relativos à violência doméstica. Em caso positivo, há necessidade de pedido e não há necessidade de indicação do valor concreto nem de instrução probatória específica. Se não for no âmbito da violência doméstica, então há necessidade de pedido, indicação de valor concreto e instrução específica.

Indenização da vítima

A preocupação com a vítima é valor relevante em nossa sociedade. No entanto, quando esta preocupação é feita pelo legislador unicamente com o objetivo de populismo penal, a lei das consequências indesejáveis assume o papel: a proteção da vítima com as mudanças operadas pela lei deixa de ter segurança e torna-se terreno inseguro.

Tantos e tamanhos são os riscos envolvidos no uso do direito processual penal para obtenção de indenização da vítima que a conduta segura da parte é valer-se de ação cível autônoma. David Garland nos alerta sobre o risco que existe no sistema ao se colocar a vítima como protagonista do sistema criminal.

Além dos tradicionais riscos relativos à limitação de direitos e garantias fundamentais, temos os riscos gerados pela própria lei das consequências indesejadas. Há o risco de a vítima ser utilizada apenas como um totem a justificar nossas punções punitivas.

O exemplo acima mostra o porquê precisamos ser melhores na elaboração e na aplicação das leis. A ideia original do legislador era aumentar a proteção da vítima e, no entanto, gerou tamanha insegurança que reduziu a sua proteção.

O processo criminal tradicional não tem se mostrado o local mais adequado para a proteção da vítima. O processo criminal transformativo, no entanto, apresenta múltiplas possibilidades de mudança e de solução de problemas. Mas este é tema para outro artigo.

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Referências

ALVES, Leonardo Barredo Moreira. Manual dos Direitos da Vítima e de Vitimologia. Editora Juspodivm, 2024.
GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Editora Revan, 2008.
ROSA, Cristina Schmitt. Reflexões sobre o papel da vítima no sistema de justiça criminal. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, v1 (95), 2024. Link para acesso: https://revistadomprs.org.br/index.php/amprs/article/view/375/236


[1] Para maiores detalhes veja aqui

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Racismo reverso? Discriminação contra maiorias? Só o racismo estrutural é racismo?

O racismo, segundo a CF/88 e as leis brasileiras

A questão racial tem sido objeto de debates acalorados e, muitas vezes, radicais. Em um contexto político polarizado entre ideologias cegas, para as quais o mais importante é o domínio do poder pelo uso das massas e não o enfrentamento sério dos problemas sociais, o debate sobre racismo reverso é um banquete para lideranças odiosas, totalitaristas e revanchistas.

Afinal, é possível que minorias políticas sejam racistas e discriminem outras pessoas (de minoria ou de maioria)?

Bem, o racismo, enquanto gênero, engloba toda e qualquer manifestação preconceituosa, discriminatória, excludente, restritiva ou preferencial contra pessoa ou grupo em razão de raça, cor, religião, etnia ou outros fatores discriminatórios, podendo essas manifestações serem diretas, ou indiretas, comissivas ou omissivas, individuais, sistêmicas e/ou estruturais.

As leis sobre racismo, a começar pela Constituição, ao tratarem de racismo, assim como de preconceito e discriminação, não afirmam que o ele só ocorra quando praticado por maiorias políticas contra minorias políticas. Não há dispositivo normativo que afirme que racismo é discriminação de branco contra preto, ou de cristãos contra umbandistas etc. As leis definem racismo como a discriminação em razão da raça, da cor (não importa a cor do autor, nem da vítima), da religião (não importa a religião do autor, nem da vítima) e da etnia (não importa a etnia do autor, nem da vítima).

Como se sabe, a lei não tem palavras inúteis, logo se escreveu-se cor e não negro, é porque o legislador não restringiu o polo passivo do racismo aos negros, se escreveu-se religião e não religião de matriz africana, é porque o legislador não restringiu o polo passivo do racismo às pessoas e religiões de matriz africana. Mas, por qual razão a lei não restringiu o racismo aos negros ou as minorias? Ora, a lei busca combater o racismo em todas as suas formas e contra qualquer pessoa, ainda que, na prática, algumas minorias políticas sofram muito mais racismo do que as maiorias jamais experimentaram em suas vidas. Porém, o que a lei busca não é implementar uma revanche proibindo o racismo contra as minorias e permitindo contra as maiorias, ou se preferirem em outros termos, a lei não busca proibir discriminações contra pretos e pardos e permitir contra brancos; a lei busca pôr um fim em toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo. Como bem afirmam William Douglas e Irapuã Santana“o racismo pode ser praticado por qualquer pessoa contra qualquer pessoa”.

Nesse sentido, o art. 1º, da lei de crimes resultantes de preconceito (Lei 7.716/1989), também chamada de Lei de Racismo, define os crimes raciais como aqueles tipificados em lei (somente os definidos em lei expressa, em respeito ao princípio constitucional da legalidade penal), resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.  Veja que a lei não diz os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de brancos contra pretos, ou de cristãos contra umbandistas etc. A lei é clara: são os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, não importando a raça, a cor, a etnia, a religião ou a procedência nacional do autor, nem da vítima!

O artigo 20-C, da Lei 7.716/89 e a má-fé hermenêutica dos neorracistas

Embora a CF/88 seja clara em conceber que todo racismo é racismo e, portanto, deve ser repudiado, os defensores do identitarismo pós-moderno revanchista têm usado, de má-fé, o artigo 20-C, da Lei 7.716/89, para sustentar a falácia de que os crimes de discriminação, preconceito e racismo só poderiam ser praticados por maiorias contra minorias. O referido artigo afirma: “Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.

Perceba que o dispositivo unicamente institui uma norma hermenêutica que reforça a identificação e tipificação dos crimes de preconceito, discriminação e racismo, sempre que identificados atos e tratamentos contra minorias que causem constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, que usualmente não são dispensados a grupos majoritários. É uma norma hermenêutica de identificação e reforço e não uma norma de definição. Ou seja, o legislador reconheceu que há certas formas de discriminação, preconceito e racismo que ocorrem predominantemente (ou exclusivamente) contra minorias, mas não todas. E isso, obviamente, não exclui a ocorrência desses crimes contra maiorias, nem a prática desses crimes por minorias, isto é: a lei não tutela um direito das minorias de serem preconceituosas, discriminar e serem racistas!

Assim, essa norma jamais pode ser interpretada no sentido de excluir a punição do preconceito, da discriminação e do racismo contra pessoas pertencentes a grupos majoritários, pois não é essa a teleologia da Constituição, nem mesmo da Lei de Racismo, que buscam punir o racismo de qualquer pessoa contra qualquer pessoa, sob pena de se dizer que uma pessoa pode ser diretamente discriminada pela cor da sua pele, pois ela é branca, ou pela cor do seu cabelo, pois é loira, ou pela sua religião, pois é cristã, ou pela sua origem, pois é europeu, o que implicaria ofensa direta ao princípio da igualdade, que não admite discriminações negativas, e, em especial, à dignidade da pessoa humana, que veda a reificação de qualquer pessoa por qualquer pessoa.

Ora, o artigo 20-C, da Lei 7.716/89 não exclui em nenhum momento a prática de crimes de discriminação, preconceito e racismo por minorias políticas. A própria estrutura da norma não permite esse raciocínio, pois ela não afirma que “o juiz só deve considerar como racismo a discriminação contra grupos minoritários”. Se o legislador quisesse restringir a aplicação da lei de racismo ao racismo contra minorias ou aderir à tese do racismo estrutural, ele deveria ter feito uso de expressões que assim o fizessem, como “só”, “somente”, “apenas” etc. Mas, não foi essa a sua intenção. A lei em nenhum momento usa qualquer expressão que leve a essa conclusão. Contudo, caso o legislador assim o fizesse, essa pretensa norma seria claramente inconstitucional por ofensa direta aos princípios da igualdade, da não discriminação e da dignidade da pessoa humana.

Racismo reverso? Só o racismo estrutural é racismo?

Em que pese a CF/88 vede expressamente toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo contra qualquer pessoa ou grupo, os radicais do identitarismo pós-moderno tem defendido que só o racismo estrutural é racismo, sustentando que não há racismo de minoria contra maioria (de preto contra branco, de umbandista contra cristão etc.). Assim, pretos estariam juridicamente liberados para serem preconceituosos, para discriminar e terem atitudes racistas contra brancos. Do mesmo modo, umbandistas teriam essa mesma licença jurídica contra os cristãos, e assim por diante. Ora, não é só o racismo estrutural que é racismo. A Constituição protege todas as pessoas contra qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo e não só as minorias. Por um lado, ninguém precisa ter sido escravizado ou ter tido os direitos negados por décadas ou séculos para ser vítima de racismo. Por outro lado, ser racista não é um direito fundamental das minorias!

Então, existe racismo reverso? Não! A Constituição veda toda e qualquer forma de preconceito, discriminação e racismo de qualquer pessoa ou grupo contra qualquer pessoa ou grupo, logo todo racismo é racismo. Não existe racismo reverso porque todo racismo é racismo, não se podendo graduar o racismo, como pretendem os identitaristas ao rotularem de racismo reverso os atos preconceituosos, discriminatórios e racistas praticados por minorias contra maiorias, numa tentativa de legitimar condutas criminosas revanchistas.

Ora, ninguém precisa ter poder ou pertencer a um grupo político dominante para ser racista, qualquer um pode ser racista. Da mesma forma, ninguém precisa pertencer a uma minoria política para ser vítima de atos e tratamentos preconceituosos, discriminatórios ou racistas. O discurso supremacista negro que eclodiu nos Estados Unidos na segunda metade do séc. XX, ressurge agora no Brasil, em alas radicais do movimento negro, sendo abraçado pela esquerda progressista, que promove um neorracismo identitário como projeto de (manutenção de) poder: é o famoso “nós contra eles”.

Se a Constituição vedasse só o chamado racismo estrutural (como tentam impor alguns, inclusive, para fins de aplicação das leis de crimes resultantes de discriminação ou preconceito) e permitisse as demais formas de preconceito, discriminação e racismo, em especial, contra maiorias políticas, então a tese do racismo reverso passaria a existir como um pseudo-contraponto ao único racismo existente identificado pelos identitaristas, unicamente, para tentar conferir razão, autoridade e unanimidade a uma tese furada.

Perceba: tanto a teses do racismo reverso quanto a tese do racismo estrutural foram criadas pelos neorracistas identitários, pois a sobrevivência de uma depende da sobrevivência da outra. Então, ambos os discursos são repetidos exaustivamente, um em tom intelectual e acadêmico, para lhe conferir razão, e outro em tom de chacota, para ridicularizar qualquer um que pense diferente. Porém, um não vive sem o outro, os dois conceitos são interdependentes, de modo que para defender que o racismo reverso não existe é indispensável defender a existência (unicamente) do racismo estrutural.

Aqui, vale lembrar que a tese do racismo estrutural foi proposta em estudos raciais de autores adeptos do movimento supremacista negro americano a partir dos anos 1960, sendo popularizada no Brasil por Silvio Almeida, para quem o racismo decorre da estrutura social em si, da forma como se constituem as relações políticas, econômicas, culturais, jurídicas e familiares de uma sociedade. Assim, o racismo seria estrutural, de modo que as ações individuais e os processos institucionais derivam de uma sociedade racista, ou seja, para essa teoria, a sociedade é estruturalmente racista e tudo que as pessoas e instituições praticam é feito de forma racista, em razão da estrutura social que foram formadas. Nas palavras do autor, o racismo é parte de um processo social que ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição, de modo que a validade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na organização política, econômica e jurídica da sociedade, sendo que o racismo se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e jurídica, uma vez que o racismo, enquanto processo histórico e político, cria condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistêmica. Assim, para os defensores desta tese, ainda que indivíduos que cometam atos racistas sejam responsabilizados, a responsabilização jurídica seria insuficiente para que a sociedade deixe de ser uma máquina produtora de desigualdade racial.

Ora, a tese do racismo estrutural tem caráter homogêneo e totalizador. Sendo homogêneo, somos todos culpados por esse racismo, não havendo presunção de inocência. Nesse contexto, o movimento supremacista identitário tenta imputar à sociedade atual uma “dívida histórica” por atos da sociedade dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, que deveria, então, ser reparada. Ora, em qualquer sistema jurídico republicano, a responsabilidade é individual (a pessoa responde por seus próprios atos e não pelos atos de outrem), sendo criminoso falar em “reparação histórica”, pois essa ideia busca responsabilizar brancos do presente por atos de brancos do passado, favorecendo pretos do presente pelo sofrimento de pretos do passado. Sendo totalizador, o conceito acaba por perder o seu poder explicativo, pois se todo racismo é estrutural (como afirma Silvio Almeida), não se esclarecem os fenômenos sociais. Nesse contexto, o movimento supremacista identitarista tenta impor o conceito de racismo estrutural como o único possível de caracterizar o racismo (monopólio do racismo).

Assim, de um lado, tenta legitimar atos preconceituosos, discriminatórios e racistas contra outros grupos, criando uma licença para que minorias sejam racistas. De outro lado, usam o racismo, de forma abusiva e banal, como um escudo para qualquer situação da vida dessas pessoas. Consequentemente, não importam mais as razões pelas quais um negro foi preso, expulso de um lugar ou demitido do trabalho, não importa se matou alguém, se assediou as colegas ou se furtou algo da empresa, o que é importa é que ele é negro, logo sua prisão foi racista, sua expulsão foi racista, sua demissão foi racista ou fruto de perseguição porque a branquitude não consegue ver negros em lugar de destaque ou de poder. Os fatos não importam mais, agora o que importa é a cor da pele.

O próprio Silvio Almeida, principal autor e defensor da tese do racismo estrutural no Brasil, quando era Ministro de Direitos Humanos, após ser denunciado por dezenas de mulheres, incluindo a Ministra da Igualdade Racial, por importunação sexual, assédio sexual e moral, afirmou que estava sendo perseguido por um grupo de pessoas que queriam diminuir sua luta e afetar sua imagem por ser um homem negro e que com isso o combate ao racismo no Brasil perderia muito. Afirmou, ainda, que esse grupo de pessoas não suportava ver negros em lugares de poder e de destaque, colocando-se como uma vítima do racismo estrutural.

Ademais, a tese do racismo estrutural não possui qualquer base científica, até por ser irracional, assim como não possui qualquer base normativa, vez que não há qualquer lei, democraticamente elaborada pelos representantes do povo, que reconheça que um ato ou tratamento preconceituoso, discriminatório ou racista para ser considerado racismo (e crime de racismo) deve encaixar-se na tese do racismo estrutural.

Obviamente que, com isso, não se quer dizer que brancos ou cristãos sofram, constantemente, preconceito, discriminação e racismo na sociedade brasileira, longe disso. O que se quer é dizer que, também, existem atos racistas, discriminatórios e preconceituosos que são praticados por pessoas pertencentes a minorias políticas contra pessoas pertencentes a maiorias políticas, e, até mesmo, alas radicais e revanchistas de alguns movimentos que difundem preconceito, discriminação, exclusão e preferências contra pessoas brancas, contra cristãos etc. E esses atos e tratamentos, bem como esses movimentos, devem ser punidos da mesma forma que se pune atos racistas e movimentos racistas contra minorias. Afinal, a Constituição vedou a discriminação de qualquer natureza contra todas as pessoas e não apenas contra as minorias.

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Execução antecipada da pena no Júri e as possibilidades de recorrer em liberdade

Muito já se escreveu [1] sobre a inconstitucionalidade da execução antecipada da pena prevista no artigo 492, I, ‘e’ do CPP, com bastante autoridade nos argumentos, sublinhe-se. Mas, infelizmente, prevaleceu o argumento de autoridade do Supremo Tribunal Federal, proferido no julgamento do RE 1.253.340 (Tema 1.068), em que se decidiu que é constitucional a execução antecipada e sequer a pena necessita ser superior a 15 anos.

Mas e agora? Condenado no plenário é sempre preso? Pensamos que não, pois diferentes situações podem acontecer no plenário e há espaço – no artigo 492 – para atribuição de efeito suspensivo, sendo que nada disso foi afastado pelo STF. Vejamos algumas situações.

Sabemos que o Tribunal do Júri exerce vis atractiva, artigo 78, I do CPP, cabendo a ele julgar o crime doloso contra a vida (tentado ou consumado) e todos os conexos. Imaginemos a hipótese de o réu ser acusado por homicídio doloso e tráfico de drogas (ou ocultação de cadáver, porte ilegal de arma de fogo, ou qualquer outro crime conexo). Levado a júri, é absolvido do crime de homicídio e condenado pelo conexo? Aplica-se a execução antecipada da pena? Entendemos que não. Afastados eventuais mecanismos de consenso cabíveis em relação ao crime residual (transação penal, suspensão condicional ou mesmo ANPP), também não é caso de prisão.

É preciso atentar para a ratio decidendi (do julgamento do STF) que vem no sentido de uma tutela especial dos crimes dolosos contra a vida, quando o agente é condenado pelo Tribunal do Júri. Não faz nenhum sentido o réu cumprir antecipadamente uma pena por crime diverso, pelo qual jamais haveria execução antecipada se tivesse tramitado em outro procedimento (ou seja, sem a reunião pela conexão). Nessa linha, é inconstitucional e insustentável determinar o imediato recolhimento de alguém condenado por tráfico de drogas, porte ilegal de arma de fogo, ocultação de cadáver, enfim, por qualquer outro crime que não é doloso contra a vida e que, se não houvesse a conexão, jamais seria julgado no Tribunal do Júri e, portanto, jamais haveria execução antecipada da pena (não estamos falando de prisão preventiva, sempre cabível, se presente sua cautelaridade, por elementar).

Desclassificação e expectativa de êxito de futuro recurso defensivo

Na mesma linha pensamos ser inconstitucional, e não abarcada pela decisão do STF, a execução antecipada da pena se houver uma desclassificação, ou seja, se os jurados – por exemplo – negarem o dolo e se operar a desclassificação para crime culposo. Uma vez condenado por homicídio culposo, poderá recorrer em liberdade (lembrando que sequer cabe prisão preventiva em caso de crime culposo), não se aplicando o entendimento do STF.

Portanto, de plano já temos duas situações em que o imputado, ainda que condenado no plenário do Júri, não pode ser submetido a execução antecipada da pena.

Mas e se condenado, por crime doloso contra a vida, sempre deverá ser preso e iniciar a execução antecipada? Não.

Existe a possibilidade de o juiz presidente do Tribunal do Júri deixar de determinar a execução antecipada da pena nas hipóteses do artigo 492, § 3º ou de se buscar a atribuição de efeito suspensivo para a apelação, nos casos dos parágrafos 5º e 6º:

“Art. 492. (…)

§3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.

§5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o §4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso.

I – não tem propósito meramente protelatório; e

II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.

§6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.”

Portanto, no caso do § 3º, o próprio juiz presidente do Júri poderá deixar de determinar a imediata prisão do réu, desde que vislumbre a possibilidade – diante de determinada questão do julgamento – de uma revisão do julgamento por parte do Tribunal de Justiça ou Regional Federal (conforme o caso). Trata-se, no fundo, de uma situação em que o juiz que presidiu o julgamento tem consciência de que aquele júri poderá ser anulado (hipótese do artigo 593, III, ‘a’ do CPP) ou que os jurados proferiram uma decisão manifestamente contrária a prova dos autos (artigo 593, III, ‘d’ do CPP). De antemão ele vislumbra a probabilidade de êxito do futuro recurso defensivo (inclusive se sugere que seja interposto em plenário mesmo, indicando a alínea ‘a’ ou ‘d’ (ou ambas)) que demonstra o risco de uma execução antecipada daquela pena.

Nesta situação, de forma fundamentada, poderá o juiz presidente do júri deixar de determinar a execução antecipada da pena e manter o réu em liberdade.

Pedido ao relator

A segunda hipótese de atribuição de efeito suspensivo ao recurso defensivo e, portanto, de suspensão da execução antecipada já iniciada (quando do término do julgamento), é através de um pedido ao relator da apelação. Esse pedido poderá ser feito no corpo das razões da apelação (preliminar) ou em petição separada, autônoma. Deverá o relator avaliar, de forma cumulativa:

– que o recurso não seja meramente protelatório;

– traga como fundamento questões que possam resultar em “absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão”.

Portanto, caberá ao apelante demonstrar a plausibilidade, a viabilidade dos fundamentos do recurso de apelação, nos termos do artigo 593, III, se:

a) ocorrer nulidade posterior à pronúncia;

b) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei expressa ou à decisão dos jurados;

c) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena ou da medida de segurança;

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

Lembrando que no caso da alínea “a”, a consequência do provimento da apelação é a remessa a novo júri; nos casos das alíneas “b” e “c”, a consequência é que o próprio tribunal pode corrigir a sentença, sem a necessidade de novo júri; por fim, quando a decisão dos jurados for manifestamente contrária à prova dos autos, o tribunal, dando provimento ao recurso, encaminhará o réu a novo júri. Portanto, quando o relator vislumbrar a possibilidade (juízo de verossimilhança, não de certeza) de acolhimento da apelação para enviar réu a novo júri (letras “a” e “d”) ou que a correção da sentença acarretará uma absolvição ou desclassificação para um crime que não é doloso contra a vida (porque entendemos que segundo a ‘ratio decidendi’ da decisão do STF, a execução antecipada só pode ocorrer em caso de condenação por crime doloso contra a vida), permitirá que o réu aguarde o julgamento em liberdade, suspendendo a execução antecipada.

Redução da pena

Com relação à última situação apontada no inciso II do parágrafo 5º do artigo 492 – redução da pena para patamar inferior a 15 anos de reclusão – pensamos que foi afastada pelo julgamento do STF, que não mais exige que a pena seja superior a 15 anos para que ocorra a execução antecipada.

O grande inconveniente desse caminho (do pedido de atribuição de efeito suspensivo) é que o réu ficará preso no período que vai do término da sessão do júri até a apreciação do pedido pelo tribunal, em grau de apelação, o que poderá gerar uma prisão desnecessária e infundada por semanas. Portanto, não se afasta, em casos pontuais, o uso do habeas corpus em conjunto com a apelação, para obtenção da liberdade (pela via de atribuição de efeito suspensivo ao apelo defensivo).

Enfim, ainda que o legislador preveja hipóteses de concessão de efeito suspensivo que evite a execução antecipada da pena, infelizmente isso é um mero paliativo, que enfrentará resistência diante do furor punitivista e a postura burocrática de muitos julgadores, resultando na desnecessária e inconstitucional execução antecipada da pena aplicada em primeiro grau de jurisdição. Sempre recordando, que se o réu representar algum perigo, a justificar a necessidade cautelar, poderá ser decretada a prisão preventiva. Então, estamos tratando de uma prisão sem qualquer fundamento cautelar, de periculum libertatis, que a justifique. Tudo isso com o aval do STF, lamentavelmente.

E neste momento, ao cair da cortina, não há como não lembrar do grande Lenio Streck [2] e o “fator Julia Roberts”, na cena épica do Dossiê Pelicanothe supreme court is wrong.


[1] Além dos nossos livros:  https://www.conjur.com.br/2020-jan-31/limite-penal-prisao-obrigatoria-juri-vez-inconstitucional/

[2] Entre tantos escritos: https://www.conjur.com.br/2012-out-25/senso-incomum-fator-julia-roberts-ou-quando-supremo-erra/

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Não há lado vencedor nas movimentações contrárias ou favoráveis à moratória da soja

O último trimestre do ano tem deixado o setor de agronegócios de orelha em pé em razão dos debates relacionado às atividades legislativas de alguns estados sobre a moratória da soja e suas implicações no cenário nacional. A questão se divide assim: de um lado, produtores rurais com propriedades no bioma amazônico que estão sendo prejudicados com a moratória e sustentam que é a imposição de um acordo privado na negociação de soja, em contraposição ao Código Florestal ao qual os produtores já estão sujeitos para desempenho regular de suas atividades; de outro, associações e as tradings, que controlam 95% do mercado de exportação da soja, defendem que a adoção da moratória da soja concede uma certificação adicional a respeito do compromisso de barrar o desmatamento da Amazônia.

Wenderson Araujo/Trilux/CNA

O assunto é importantíssimo para o setor agrícola e envolve um debate complexo. A questão principal é o reconhecimento de que qualquer movimentação em direção à aplicação ou não da moratória onera não só produtores localizados no bioma amazônico, mas o setor como um todo. Os danos reputacionais relacionados à moratória acabam contribuindo para a imagem de vilão ambiental atribuída ao setor, quando a moratória sequer é objeto de regulamentação. Explico.

As empresas privadas que atuam na originação e exportação de produtos do complexo da soja e algumas associações do setor que adotam a moratória, utilizam o critério de desmatamento zero no bioma amazônico a partir de 22 de julho de 2008 (data de corte aplicada para discussão da regulamentação do Código Florestal), independentemente de o desmatamento ser legal ou não.

Ocorre que a legislação brasileira aplicável à matéria (Código Florestal), que entrou em vigor em 2012 e se tornou referência mundial, adota métrica diferente: além do critério temporal, que é maio de 2012 (e não julho de 2008), impõe ao produtor que queira desenvolver atividades em determinada propriedade o dever de cuidado e manutenção (ou conforme o caso, de restauração) da vegetação original pelo produtor rural, que deve variar entre 20% e 80% do total da área da propriedade, conforme o bioma onde está inserida a propriedade. No caso do bioma amazônico, o produtor deve preservar pelo menos 80% e utilizar até 20% da área para produção agrícola.

Bioma amazônico

Com a aplicação da moratória pelas tradings, os produtores do bioma amazônico que cumprem a legislação e atuam dentro dos limites concedidos pelo Código Florestal estão tendo problemas caso a área da plantação tenha sido aberta após a 2008. Ou seja, um acordo comercial é soberano em relação à legislação federal. Esse impacto é importante porque 95% da produção de soja brasileira é comercializada por meio das tradings que fazem um processo de triagem ao receber o produto em seus armazéns para exportação.

Ademais, o processo de triagem passa a ser mais rigoroso no contexto da moratória, uma vez que o produto oriundo de uma propriedade em conformidade com os critérios de restrição imposto pela moratória pode se misturar a outro que não cumpra tais critérios, fazendo com que produtores de outras regiões, que não no bioma amazônico, sejam compelidos a fornecer a comprovação, que até então era aplicada apenas àqueles localizados no referido bioma.

Essas questões evidenciam o problema reputacional, já que, apesar de a moratória não ser aplicável a propriedades localizadas em estados do Sul e sudeste do país, qualquer discussão envolvendo a sua adoção em território nacional ou por determinadas organizações acaba impactando todo o setor de soja, gerando um efeito em cadeia dado ao caráter continental do Brasil. A aplicação da moratória já impacta e impactará ainda mais o setor como um todo, uma vez que mesmo os produtores que seguem o Código Florestal enfrentam dificuldades em exportar o produto.

A isso tudo, se soma uma discussão relacionada a autonomia legislativa dos estados e soberania nacional. No âmbito das discussões estaduais, temos legislação já aprovada em Rondônia e mais recentemente em Mato Grosso para retirar e impedir a concessão de benefícios fiscais para empesas que adotem a moratória da soja. Essas leis foram aprovadas pelos referidos estados dentro de suas atribuições legislativas relacionadas à concessão de benefícios fiscais.

Estados com dependência agrícola

Tais medidas também estão em discussão em Roraima, Tocantins, Maranhão e Amazonas a fim de contrabalancear o impacto que está sendo causado no segmento pelas medidas adotadas por tais empresas da iniciativa privada. Não podemos esquecer que boa parte das receitas de alguns desses estados são originadas pelo setor (tanto produtores como tradings), o que tem gerado impactos a produtores e a economia da região, já que estamos falando de estados com forte dependência agrícola.

A problemática complica ainda mais quando outros entes federados começaram a questionar a utilização pelos estados de critérios ambientais, sobre os quais apenas a União teria competência para legislar, apesar da autonomia legislativa dos estados na adoção das medidas acima.

Por fim, outro fator que permeia a discussão jurídica trazida pela moratória envolve a soberania nacional e seu conflito com a norma local, já que temos um pacto comercial não incorporado ao ordenamento jurídico pátrio e seu conflito com uma norma local legitimamente aprovada que é o Código Florestal. A mesma discussão vem sendo travada a respeito da aplicação da Regulamentação Europeia Antidesmatamento, que proíbe a importação por países europeus de determinados produtos (que inclui o complexo soja) de áreas que tenham sido objeto de desmatamento após 2020.

O assunto ainda vai gerar muita discussão e principalmente prejuízos reputacionais para o setor como um todo, que mais uma vez se encontra no centro de discussões questões ambientais que impactam a produção de alimentos que ultrapassam o âmbito local e de regulamentação nacional.

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