Representação comercial: avanço da jurisprudência e impactos para empresas

A representação comercial sempre desempenhou um papel relevante no ambiente de negócios brasileiro, servindo, historicamente, como importante força externa de vendas. Há décadas, empresas que atuam no mercado de distribuição, no setor de serviços, no atacado, e em determinados segmentos da indústria, têm utilizado este modelo diante de suas vantagens estratégicas, que vão desde a capilaridade logística, que garante o maior acesso a clientes em localidades diversas, sem a necessidade de uma estrutura própria em cada região, até a capacidade técnica do representante para comercializar produtos e/ou serviços que exigem conhecimento especializado, além, é claro, da redução de custos quando em comparação com a manutenção de uma equipe de vendas interna, lastreada em mão de obra própria.

Apesar da relevância prática, esse protagonismo sempre conviveu com uma legislação peculiar que regulamenta a matéria. A Lei de Representação Comercial, nº 4.886/1965, foi elaborada sob forte influência da legislação trabalhista e, por muitos anos, foi interpretada pelos tribunais sob a premissa de que o representante comercial seria sempre a parte hipossuficiente na relação com a empresa representada e, como tal, dependia com frequência da interferência do Judiciário para reequilibrar as dinâmicas contratuais, o que acabou por conferir ao instituto uma rigidez excessiva e uma proteção desproporcional ao representante, muitas vezes desestimulando a adoção de negócios mais modernos.

Curiosamente, essa rigidez nem sempre beneficiou o próprio representante. Não foram poucos os episódios em que modelos contratuais inovadores, que poderiam trazer ganhos mútuos, deixaram de ser implementados pelo receio das empresas representadas em atrair litígios ou pesadas condenações, de modo que estas empresas, por muito tempo, preferiam não inovar na formatação dos contratos de representação.

O resultado foi uma espécie de congelamento das práticas negociais, em prejuízo tanto das empresas quanto dos representantes.

Atualização nas relações comerciais

Nos últimos anos, contudo, sem prejuízo das regras pétreas da Lei nº 4.886/66, sobre as quais é vedado às partes disporem de forma diversa, ainda que em comum acordo, como por exemplo a obrigatoriedade de pagamento da comissão sobre o valor integral da nota fiscal, considerados inclusive os impostos incidentes, e a vedação de alteração contratual unilateral em prejuízo à média comissional dos últimos seis meses, a jurisprudência tem exercido uma função essencial na atualização das relações contratuais entre empresas e representantes.

Os tribunais têm reconhecido que, em determinados casos, o representante não se enquadra na condição de hipossuficiente, especialmente quando possui estrutura empresarial própria e assessoria jurídica para negociar condições equilibradas. Nessas hipóteses, a jurisprudência vem privilegiando a autonomia privada, permitindo a adoção de dinâmicas contratuais mais adequadas à realidade de cada negócio, conforme assim ajustadas em comum acordo entre as partes. Esse ponto é relevante pois, no passado, era comum que representantes assinassem contratos ou aditivos com condições customizadas e, posteriormente, buscassem a anulação desses documentos sob o argumento de terem sido forçados a aceitar os termos. Hoje, os juízes têm rejeitado esse tipo de alegação quando há elementos que demonstram que o representante tinha efetiva capacidade de negociação no momento da assinatura destas avenças.

Inscrição em conselho regional

Em paralelo, a jurisprudência recente vem consolidando outro entendimento importante. Em litígios envolvendo contratos de representação comercial, os tribunais estaduais vêm reforçando posição já firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, que considera que, quando o agente de negócios não estiver inscrito no Conselho Regional de Representantes Comerciais correspondente, a ele não se aplicará o regime jurídico especial da Lei nº 4.886/66, hipótese na qual a relação de agenciamento será regulada pelas regras gerais do Código Civil.

Esse tema é especialmente relevante, pois, com base nessa diferenciação, muitas empresas têm identificado a possibilidade de migrar de modelos tradicionais de representação comercial para outros contratos atípicos, mas que guardam semelhanças com essa mesma estrutura de vendas, sem, contudo, submetê-la à lei especial. Isso amplia a liberdade de negociação, reduz riscos jurídicos e permite que as partes estruturem modelos mais modernos e ajustados às particularidades de cada negócio.

Esse avanço jurisprudencial possui impacto direto na mitigação de riscos e na formatação de contratos mais modernos. Ele afasta a aplicação da indenização legal obrigatória prevista na lei especial em casos de rescisão imotivada pela empresa, garante maior segurança jurídica para a adoção de novos modelos comerciais e estimula a construção de relações negociais mais flexíveis e aderentes à realidade do mercado.

Aproximação da lei com a realidade do mercado

Em um cenário de negócios cada vez mais competitivo, essa evolução abre espaço para que empresas e agentes de negócios possam adotar arranjos contratuais tailor made, ajustados às especificidades de cada setor, sem a insegurança jurídica que antes limitava a inovação.

A jurisprudência tem cumprido papel relevante ao aproximar a lei de representação comercial da realidade do mercado, preenchendo a lacuna deixada pela inércia legislativa. Para as empresas, o momento é propício para revisitar contratos de representação e de agenciamento, avaliando a possibilidade de desenhar modelos mais seguros, modernos e vantajosos.

Para os representantes, a evolução jurisprudencial também traz benefícios ao reconhecer sua capacidade empresarial e de negociação, o que amplia sua autonomia na definição das condições contratuais e possibilita relações mais equilibradas e sustentáveis, além de abrir novas oportunidade de negócios.

Fonte: Conjur

STJ não impôs qualquer mordaça a gestores públicos nas redes sociais

A decisão da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial 2.175.480/SP, vem sendo lida de forma apressada. Manchetes sugeriram uma proibição geral para que prefeitos, governadores e outros mandatários publiquem, em perfis pessoais, ações de governo. Não foi isso que aconteceu. O tribunal apenas determinou o prosseguimento de ação de improbidade para apurar, no caso concreto, indícios de autopromoção com peças oficiais replicadas em perfil pessoal, somados a desproporção de gastos e a um contexto político específico (REsp 2.175.480/SP).

No caso, fala-se em cerca de R$ 44 milhões gastos em publicidade, algo acima de 20% do custo total do programa “Asfalto Novo”, orçado em R$ 190 milhões, além da replicação de peças institucionais — com slogans e identidade visual da gestão — no perfil pessoal do então prefeito. Diante desse conjunto, o STJ entendeu que há elementos mínimos para apuração, reformando decisão que rejeitara a petição inicial. É fase inicial. Não há condenação, nem tese vinculante de proibição ampla. Examinar dolo e eventual dano ao erário fica para a instrução.

Nada disso mexe com a jurisprudência eleitoral. O TSE, em 2023, reafirmou que postagem em perfil pessoal, feita às expensas do gestor e sem uso da máquina, não se confunde com publicidade institucional (REspEl 060068091/AL, 2023). Em 2020, o tribunal já havia assentado que a vedação do período eleitoral mira o emprego da estrutura pública, não a fala do cidadão ou do agente enquanto pessoa (AgR-REsp 37.615/ES, 2020). O ponto decisivo permanece: há uso de recursos, símbolos, identidade visual e canais oficiais para promover o titular do cargo, ou há simples relato de atos de governo em página pessoal?

Outros cenários já enfrentados por diferentes cortes ajudam a traçar a fronteira. Outdoors pagos com verba pública para enaltecer gestores tendem a ser enquadrados como improbidade por financiarem promoção pessoal com recursos do erário (REsp 1.856.432/SP, 2020). O uso sistemático de cores, slogans e signos que remetem à campanha do governante, transpostos à identidade de programas e obras, fere a impessoalidade e cria vantagem indevida.

Há também a publicação colaborativa. Na Bahia, o Tribunal de Contas determinou a retirada de collabs entre o perfil oficial da Prefeitura de Serra do Ramalho e o perfil pessoal do prefeito porque a associação direta do brasão, do slogan e da imagem do gestor convertia comunicação pública em vitrine pessoal (TCM-BA, 1ª Câmara, medida cautelar ratificada em 24/5/2023, relator: conselheiro Plínio Carneiro Filho). A ferramenta, por si, não é ilícita. Torna-se indevida quando dissolve a impessoalidade ao colar marca oficial e figura do mandatário na mesma peça. Se a collab é informativa, sem protagonismo personalista e sem custo público voltado à pessoa do agente, mantém-se dentro da Constituição.

Tribunal não mandou calar ninguém

É fato que, muitas vezes, o perfil pessoal do mandatário alcança mais gente do que as páginas institucionais. Isso não é problema em si. O cuidado está em não transportar para o perfil pessoal aquilo que pertence à estrutura do Estado. Se a postagem é produzida às expensas do agente, sem marcas, slogans e identidade da administração e sem impulsionamento pago com dinheiro público, permanece pessoal. Se depende da engrenagem institucional, deixa de ser.

Um pedido direto a quem informa e compartilha: ler antes de publicar. Decisão judicial não cabe em atalho de rede social. Quando um julgamento técnico vira manchete maximalista, gestores se retraem por medo de fantasma, opositores celebram vitórias que não aconteceram e a sociedade fica sem balizas. Vale a crítica a quem replica chamadas sem consultar o teor do acórdão.

Orientação prática. Prefeitos, governadores e demais mandatários podem comunicar ações de governo em perfis pessoais. Façam-no sem usar marcas, slogans, identidade visual e recursos da administração, evitando colagens com canais oficiais e redobrando o cuidado nos períodos vedados pela legislação eleitoral. O STJ não mandou calar ninguém. O tribunal deixou claro que, quando a publicidade institucional veste a roupa do perfil pessoal, os fatos podem e devem ser examinados com lupa e com atenção ao alcance real dessa comunicação (REsp 2.175.480/SP).


Referências:

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.175.480/SP. Rel. min. Teodoro Silva Santos. Brasília, 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.856.432/SP. Brasília, 2020.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral nº 060068091/AL. Brasília, 2023.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 37615/ES. Brasília, 2020.

BAHIA. Tribunal de Contas dos Municípios do Estado da Bahia. 1ª Câmara. Medida cautelar ratificada em 24 maio 2023, rel. cons. Plínio Carneiro Filho (publicações colaborativas entre perfil oficial e perfil pessoal do prefeito de Serra do Ramalho).

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Empresa deve adotar medidas contra assédio mesmo com mudança de comportamento de assediador

A 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho determinou que um grupo econômico do ramo de estofados de Sarandi (PR) adote uma série de medidas para evitar o assédio moral. Embora o gerente acusado da prática que levou as empresas à condenação tenha mudado sua conduta, as obrigações foram mantidas para prevenir a repetição.

Entre as medidas determinadas estão a afixação da decisão judicial em local visível, frequentado pelos trabalhadores, por 30 dias consecutivos e multa diária de R$ 1 mil por trabalhador envolvido ou prejudicado.

Na ação, ajuizada em maio de 2014, o Ministério Público do Trabalho se baseou nos relatos de que um gerente de produção praticava assédio institucionalizado, ou seja, dirigido a todos os empregados sem distinção, com vários casos de pessoas chorando após as humilhações sofridas. Segundo o MPT, a prática era tolerada pelas empresas.

Além da condenação por dano moral coletivo, o MPT pediu que o Judiciário estabelecesse obrigações para diminuir a reiteração da conduta.

Nova atitude

A 4ª Vara do Trabalho de Maringá (PR) rejeitou o pedido do MPT, mas a sentença foi reformada em setembro de 2024 pelo Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR), que condenou as empresas a pagar indenização de R$ 50 mil por danos morais coletivos. Contudo, o TRT-9 concluiu que não havia mais o risco de o assédio voltar a ocorrer. “Os depoimentos colhidos referem-se a fatos ocorridos, no máximo, até 2015”, diz a decisão.

De acordo com a corte regional, testemunhas informaram que o comportamento do gerente mudou a partir de 2014 e que as empresas tomaram medidas para que o assédio moral acabasse. Isso levou inclusive à redução de ações trabalhistas relacionadas ao assédio.

Diante da recusa da tutela inibitória, o MPT recorreu ao TST. Para o relator do recurso, ministro José Roberto Pimenta, a imposição de obrigações é cabível, ainda que a situação que motivou o pedido tenha sido regularizada. Segundo ele, o objetivo é prevenir o descumprimento da decisão judicial e a repetição de ofensas a direitos e eventuais danos.

O ministro ressaltou que não há um marco temporal que defina a probabilidade de uma conduta deixar de ocorrer, como o TRT -9 entendeu. Segundo ele, a chamada tutela inibitória pode ser imposta mesmo que ainda não tenha havido uma violação de direito. A decisão foi unânime. Com informações da assessoria de imprensa do TST.

Clique aqui para ler o acórdão
Processo 1267-43.2017.5.09.0872

Fonte: Conjur

Antecipação de pagamento e incidência tributária: fato gerador nas regras do IBS e da CBS

A substituição dos tributos sobre o consumo pelo IBS e pela CBS não altera apenas alíquotas e competências. Ela reorganiza o momento em que a incidência tributária se verifica, com impacto direto sobre contratos de execução continuada, parcelada ou com entrega diferida.

A Lei Complementar (LC) nº 214/25 estabelece que o fato gerador do novo modelo ocorre no fornecimento. Ainda assim, admite a antecipação do imposto quando há pagamento prévio, criando uma sobreposição entre o momento financeiro e o momento jurídico da operação. [1]

O tributo se antecipa à entrega e será ajustado posteriormente, com complementação ou crédito conforme o valor final da operação.

Essa lógica, embora voltada à eficiência arrecadatória, tensiona a coerência entre obrigação civil e obrigação tributária. O objetivo deste artigo é examinar as consequências desse regime para contratos em curso, analisar os efeitos sobre o fluxo de caixa das empresas e refletir sobre os limites jurídicos da antecipação nos casos de inadimplemento, distrato ou entrega parcial.

Incidência no fornecimento do bem ou conclusão do serviço

Conforme mencionado, a LC nº 214 adota, como regra geral, a incidência do IBS e da CBS no momento do fornecimento do bem ou da conclusão do serviço. Essa diretriz busca alinhar o sistema à lógica do imposto sobre valor agregado, priorizando a materialização da operação como marco da tributação (artigo 10, caput).

Ocorre que o próprio texto legal prevê, de forma expressa, hipóteses em que o pagamento ocorre antes do fornecimento. Nessas situações, a legislação impõe o recolhimento proporcional do imposto no ato do pagamento, ainda que a entrega não tenha ocorrido (artigo 10, § 4º, I) [2]. Esse recolhimento antecipado será posteriormente ajustado no momento do fornecimento definitivo, por meio de complementação ou crédito, conforme o caso (artigo 10, § 4º, II, ‘b’ e ‘c’). [3]

Na prática, isso significa que o contribuinte pode ser obrigado a recolher o tributo antes mesmo de cumprir integralmente sua obrigação contratual.

Com isso, a antecipação tributária, embora juridicamente prevista, gera um deslocamento da exigência fiscal para um momento em que o fato gerador ainda não se concretizou.

Equilíbrio financeiro

Desse modo, essa antecipação pode afetar o equilíbrio financeiro da operação, especialmente quando a margem de lucro é estreita ou os prazos de fornecimento são longos.

A situação se agrava em casos de inadimplemento, distrato ou entrega parcial. O § 5º do artigo 10 estabelece que o crédito do imposto recolhido antecipadamente só poderá ser apropriado se os valores recebidos forem devolvidos. [4]

Isso cria um descompasso com o regime civil, que admite a retenção de valores pagos antecipadamente a título de cláusula penal ou indenização. Quando há justa causa para não restituir integralmente o valor recebido, o contribuinte pode ficar impedido de recuperar o tributo antecipadamente recolhido.

Esse cenário impõe desafios ao planejamento contratual e tributário. Operações com fornecimento programado ou sujeito a condições específicas devem ser cuidadosamente redigidas, com atenção ao momento do pagamento, aos efeitos da liquidação financeira e à alocação de riscos em caso de resolução contratual.

Revisão de contratos

Também se torna recomendável revisar contratos firmados sob o regime atual cujas obrigações de entrega ou execução se estendam para além do início de vigência do novo sistema.

Do ponto de vista econômico, o regime de antecipação pode comprometer a previsibilidade de caixa e aumentar a necessidade de capital de giro.

Setores como construção civil, incorporação, fornecimento industrial e projetos sob demanda podem ser particularmente afetados, já que operam com contratos complexos, margens comprimidas e cronogramas longos. Nessas situações, a tributação antecipada altera a dinâmica da operação e pode gerar desequilíbrios financeiros não previstos na fase de negociação.

Ainda que a sistemática tenha como objetivo a racionalização da arrecadação e o combate à evasão, sua aplicação irrestrita pode produzir efeitos adversos. A imposição do recolhimento com base no pagamento, independentemente da entrega, compromete a neutralidade do sistema e ignora particularidades legítimas dos contratos civis e empresariais.

Execução contratual com modelo de incidência de IBS e CBS

O novo modelo de incidência do IBS e da CBS introduz uma lógica tributária que, embora coerente com a estrutura do IVA, exige atenção às particularidades da execução contratual.

A previsão de antecipação do imposto quando o pagamento ocorre antes do fornecimento gera efeitos que extrapolam o campo fiscal, alcançando o equilíbrio financeiro e jurídico das relações obrigacionais.

Com base nisso, a regra prevista no artigo 10 da LC nº 214 demanda uma revisão na forma como os contratos são redigidos, executados e monitorados.

A separação entre pagamento e entrega, antes apenas um detalhe de cronograma, passa a ter impacto direto na apuração e na recuperação do tributo. Situações como inadimplemento e distrato tornam-se ainda mais sensíveis, sobretudo diante da exigência de devolução como condição para creditamento.

Portanto, fica claro que a transição para o novo sistema tributário exigirá mais do que ajustes contábeis. Exigirá clareza jurídica na definição do fato gerador, rigor na gestão dos contratos e atenção redobrada à coerência entre obrigações civis e obrigações fiscais.


[1] Art. 10. Considera-se ocorrido o fato gerador do IBS e da CBS no momento do fornecimento nas operações com bens ou com serviços, ainda que de execução continuada ou fracionada.

[2] (…) § 4º Para fins do disposto no caput deste artigo, caso ocorra pagamento, integral ou parcial, antes do fornecimento:
I – na data de pagamento de cada parcela:
a) serão exigidas antecipações dos tributos, calculadas da seguinte forma:
1. a base de cálculo corresponderá ao valor de cada parcela paga;
2. as alíquotas serão aquelas vigentes na data do pagamento de cada parcela; (…)

[3] (…) II – na data do fornecimento:
b) caso os valores das antecipações sejam inferiores aos definitivos, as diferenças constarão como débitos na apuração; e
c) caso os valores das antecipações sejam superiores aos definitivos, as diferenças serão apropriadas como créditos na apuração. (…)

[4] § 5º Na hipótese do § 4º deste artigo, caso não ocorra o fornecimento a que se refere o pagamento, inclusive em decorrência de distrato, o fornecedor poderá apropriar créditos com base no valor das parcelas das antecipações devolvidas.

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FGV cria projeto para difundir práticas de consensualidade na administração pública

A Fundação Getulio Vargas lançou o FGV Consenso, projeto voltado a estimular o uso de soluções consensuais na administração pública, em especial nos setores regulados de infraestrutura. A iniciativa se alinha à missão da FGV de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico do país, oferecendo resposta estruturada a um tema em expansão no Direito Administrativo.

O projeto tem coordenação-geral acadêmica do professor Bruno Dantas, pesquisador da FGV Direito Rio e idealizador da SecexConsenso durante sua presidência no Tribunal de Contas da União.

O FGV Consenso funcionará como centro de monitoramento, pesquisa e difusão de conhecimento, com foco na aplicação da consensualidade em políticas públicas e em ambientes regulados.

Segundo Dantas, a experiência recente do TCU com a criação do SecexConsenso mostrou que é possível encontrar soluções técnicas para impasses complexos em contratos de parceria.

Trata-se de iniciativas, diz Dantas, que trazem eficiência a serviços e utilidades públicas, destravam investimentos em infraestrutura e oferecem maior segurança jurídica em contratos incompletos.

“Por isso, considero motivo de especial satisfação atender ao convite da FGV Direito Rio para liderar academicamente esse tema estratégico para o país”, afirmou.

Objetivos e prática

O projeto nasce com três objetivos centrais:

– produzir análises críticas e propositivas sobre a consensualidade na administração pública e na regulação dos setores econômicos;

– fomentar práticas consensuais na formulação e implementação de políticas públicas;

– disseminar conhecimento de forma acessível, promovendo sua compreensão e aplicação por diferentes atores da sociedade.

Já as atividades previstas incluem:

– mapeamento e monitoramento contínuos de experiências nacionais e internacionais em consensualidade, com foco em infraestrutura;

– criação de repositório de boas práticas, dados abertos, indicadores e métricas de consensualidade;

– promoção de redes de cooperação acadêmica, institucional e setorial, no Brasil e no exterior;

– desenvolvimento de metodologias e instrumentos aplicáveis ao setor público e às agências reguladoras;

– propostas de aprimoramento normativo e de políticas públicas, alinhadas às diretrizes de órgãos de controle;

– capacitação de gestores públicos, reguladores, agentes privados e acadêmicos, por meio de programas e treinamentos especializados;

– integração com iniciativas estruturantes da FGV Direito Rio, como o projeto Regulação em Números, além de programas de mestrado, doutorado e iniciação científica.

Crescimento da consensualidade

Para o professor Sérgio Guerra, diretor da FGV Direito Rio e líder da equipe que coordenará a execução do projeto, a consensualidade administrativa vem ganhando destaque na legislação, na doutrina e na atuação de instituições públicas.,

“Como uma escola de realidade que possui reconhecida expertise em ensino e pesquisa em regulação, a FGV Direito Rio busca liderar este movimento com rigor acadêmico e compromisso prático”, disse.

O FGV Consenso será orientado por diálogo, cooperação e inovação institucional, buscando prevenir litígios e reforçar a confiança social. O projeto pretende estabelecer parcerias com órgãos públicos, instituições acadêmicas e agentes setoriais para fomentar um ambiente regulatório mais eficiente, transparente e colaborativo. Com informações da assessoria de imprensa da FGV. 

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Taxa de lixo não varre os problemas

Com os prazos cada vez mais exíguos (e já amplamente prorrogados) da Política Nacional de Resíduos Sólidos, a gestão municipal do lixo tornou-se um desafio cada vez mais caro e inadiável. Manter aterros, garantir coleta regular e evitar a poluição urbana exige recursos vultosos que a maioria dos municípios não dispõe em seus orçamentos.

Nesse cenário, não há mais espaço para alegar falta de verba. Desde as alterações na Política Nacional de Saneamento Básico, em 2021, a criação de instrumentos econômicos deixou de ser mera opção para se tornar, em muitos casos, uma obrigação legal. Assim, proliferam taxas e tarifas destinadas a custear serviços onerosos, mas indispensáveis para manter as cidades limpas, atender às exigências ambientais e evitar sanções civis, penais e financeiras.

Cobrar pelo lixo não é novidade no Brasil. Diversos municípios já implantaram instrumentos econômicos sobre os resíduos sólidos, inclusive na década de 1990 [1], vinculadas em muitos casos ao IPTU ou ao consumo de água. Além da percepção negativa dos contribuintes sobre a medida, que é sempre natural em casos de criação de tributos, há um problema evidente: essa forma de cobrança não distingue quem recicla de quem não recicla. Na maioria dos casos, por exemplo, quem separa seu lixo em casa paga o mesmo que quem joga tudo no mesmo saco. A pergunta é inevitável: que incentivo existe para que o contribuinte cogite mudar o seu comportamento?

Defesa do meio ambiente

A Emenda Constitucional nº 132/2023 incluiu a defesa do meio ambiente como princípio obrigatório do sistema tributário. Isso significa que qualquer exação fiscal ligada ao lixo precisa ser mais do que arrecadatória: deve induzir práticas ambientais corretas [2]. Do contrário, corre o risco de se tornar apenas mais uma cobrança, sem impacto positivo para a cidade nem para o planeta.

Muitos municípios já avançaram em várias frentes ambientais: pontos de entrega voluntária espalhados pela cidade, fortalecimento de associações de catadores, veículos elétricos destinados à coleta seletiva são exemplos encontrados, sobretudo, em municípios de grande e médio porte. O que falta é alinhar a nova perspectiva de arrecadação para custear os resíduos a essa realidade.

Quando se cria o instrumento econômico sem que o vincule a um elemento de proteção ambiental, a mensagem que se passa é “pague e não se preocupe com o lixo”. Esse raciocínio é perigoso, porque desestimula a segregação dos resíduos gerados pelos contribuintes, bem como a entrega de recicláveis.

Defende-se, portanto, um caminho mais inteligente: transformar a taxa/tarifa em um modelo de sanção premial. Isso significa premiar quem reduz e recicla. A proposta é criar um sistema digital (um aplicativo, por exemplo) que permita registrar a entrega de recicláveis em pontos de coleta ou diretamente às associações de catadores. A cada registro, o contribuinte acumularia pontos, em modelo semelhante ao cashback.

Os ganhos são múltiplos. Para o contribuinte, um estímulo financeiro claro para mudar o comportamento e criar uma cultura de reciclagem. Para os catadores, mais acesso a materiais, maior renda e valorização do seu papel social. Para o município, menos rejeitos destinados às centrais de tratamento de resíduos, o que significa economia mensal, bem como a prorrogação da vida útil de equipamentos como aterros sanitários.

Além de todos esses ganhos, um resultado ambiental efetivo: menos poluição, mais economia circular e mais responsabilidade compartilhada.

Tributação ambiental e economia

A tributação ambiental precisa dialogar com a economia comportamental e com a realidade das pessoas. As decisões não são apenas econômicas: são emocionais, culturais, muitas vezes pouco racionais. Por isso, premiar quem faz a escolha certa é mais eficiente do que punir de forma cega. Como alerta Hugo de Brito Machado Segundo [3], incentivos mal desenhados podem gerar o efeito contrário ao desejado.

Não basta, portanto, criar tributos “verdes” que não mudam nada. Se é ambiental, precisa induzir comportamento ambiental. E isso só será possível se o contribuinte perceber que separar e reciclar seu lixo tem valor concreto.

Cobrar pelo lixo é legítimo e será cada vez comum entre os municípios, que já sofrem celeumas demais diante de um pacto federativo desigual. Mas só vale como política pública se premiar quem cuida do ambiente.

Os municípios têm a chance de criar um modelo paradigmático: transformar a tarifa de resíduos em instrumento de cidadania e sustentabilidade. Porque tributos ambientais que não induzem comportamentos não são sustentáveis, representam apenas mais um boleto a se pagar. E o custo desse boleto sai caro. Para todas as gerações.


[1] Aqui.

[2] CAVALCANTE, Denise Lucena. Tributação Ambiental e Aspectos da Extrafiscalidade. In: Revista Brasileira de Estudos Tributários, 2019. Disponível aqui.

[3] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Ciência do direito tributário, economia comportamental e extrafiscalidade. In: Revista Brasileira de Políticas Públicas. Uniceub. Vol. 8, nº 2, 2018. Disponível aqui

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Perpetuação do vício: quebra da cadeia creditícia nas etapas isentas ou imunes da reforma tributária

A reforma tributária representava a oportunidade de corrigir uma relevante distorção da não cumulatividade no sistema de tributação sobre o consumo: a quebra da cadeia creditícia quando há etapas isentas ou imunes intermediárias na cadeia produtiva. Contudo, desde a Emenda Constitucional nº 132/2023 até a regulamentação pela Lei Complementar nº 214/2025, optou-se por perpetuar o mesmo vício estrutural que existia no ICMS, PIS/Cofins e IPI.

É verdade que a reforma trouxe melhorias significativas na técnica da não cumulatividade. O artigo 156-A, §1º, VIII, da Constituição estabeleceu um creditamento amplo sobre todas as operações, ressalvando apenas os bens de uso e consumo pessoais e as hipóteses constitucionais específicas, superando, a princípio, os debates inerentes ao ICMS, IPI e PIS/Cofins de crédito físico, financeiro e conceito de insumo.

Essa previsão, por si só, já representaria um avanço substancial em relação ao sistema anterior. No entanto, a nova sistemática reincide na citada falha estrutural: quando uma etapa intermediária da cadeia produtiva é beneficiada com isenção ou imunidade, ocorre a chamada “quebra da cadeia creditícia”, tendo como consequência o cancelamento do crédito concedido nas operações anteriores. O resultado é o ressurgimento do indesejável efeito cascata que a técnica da não cumulatividade deveria definitivamente eliminar, na medida em que o tributo pago nas operações anteriores não é mais neutralizado. Este problema, longe de ser corrigido pela reforma, foi constitucionalizado e detalhadamente regulamentado, transformando um defeito sistêmico em regra permanente do ordenamento jurídico brasileiro.

O problema não surgiu apenas com a LC nº 214/2025. A própria emenda constitucional já trouxe em seu bojo a perpetuação desta distorção ao estabelecer, no artigo 156-A, §7º, que “a isenção e a imunidade: I – não implicarão crédito para compensação com o montante devido nas operações seguintes; II – acarretarão a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.

Esta disposição constitucional revela uma escolha legislativa questionável. O constituinte reformador tinha em suas mãos a chance de estabelecer uma não cumulatividade verdadeiramente plena, mas preferiu constitucionalizar essa limitação que já existia no sistema anterior. A LC nº 214/2025, por sua vez, apenas regulamentou aquilo que a Constituição já havia determinado. Os artigos 49, 51 e 52 da nova lei são o desdobramento do comando constitucional, estabelecendo como deve operar a quebra da cadeia creditícia.

Exemplo para demonstrar o problema na reforma

Para compreender o problema, considere uma cadeia produtiva típica onde uma etapa intermediária seja isenta e hipoteticamente que a alíquota do IBS/CBS seja de 10%: a empresa A vende insumos para a empresa B, cobrando normalmente R$ 100 de mercadoria mais R$ 10 de IBS/CBS, totalizando R$ 110. A empresa B, contudo, é beneficiária de isenção tributária — por exemplo, produz medicamentos. Ao vender seu produto para a empresa C por R$ 200, não haverá IBS/CBS por estar isenta. Neste ponto, ocorre a primeira distorção: B perde definitivamente o crédito de R$ 10, conforme determina o artigo 51 da LC nº 214/2025.

A empresa C, por sua vez, ao comprar de B por R$ 200, não obterá qualquer crédito desta operação, pois a venda foi isenta e o crédito da primeira operação da cadeia (de A para B) foi anulado (artigo 49). Quando C vender seu produto final por R$ 300 ao consumidor, cobrará os R$ 30 de IBS/CBS integralmente, sem poder se creditar das operações anteriores.

O resultado é devastador para a lógica da não cumulatividade: onde deveria haver apenas R$ 30 de tributo total na cadeia (10% sobre o valor final de R$ 300), temos efetivamente R$ 40 — os R$ 10 perdidos por B mais os R$ 30 pagos no fim da cadeia. Essa distorção não fica restrita ao aspecto técnico-tributário: os R$ 10 excedentes serão inevitavelmente repassados ao preço final, onerando o consumidor com custos tributários que um sistema de não cumulatividade plena deveria eliminar, e tornando mais oneroso um produto cujos compostos (cadeias anteriores) deveriam ter um benefício.

Efeito cascata até o consumidor final

Esta sistemática mantém o efeito cascata nessa espécie de cadeia. O valor perdido na etapa isenta se propaga até o consumidor final, onerando a cadeia produtiva com exatamente aquele custo adicional que os modernos sistemas de IVA foram concebidos para evitar.

Mais grave ainda: o efeito cascata parcial distorce as decisões econômicas dos agentes, violando o atualmente expresso princípio da neutralidade tributária (artigo 156-A, § 1º, da CF e artigo 2º da LC nº 214/2025), o qual estabelece que os tributos “devem evitar distorcer as decisões de consumo e de organização da atividade econômica”. Contudo, a manutenção da anulação de créditos nas etapas isentas e imunes gera exatamente as distorções que o próprio legislador buscou evitar. A empresa C, conhecedora da sistemática, pode preferir comprar de fornecedores não isentos para preservar seus créditos, prejudicando justamente aqueles setores que a política pública pretendia beneficiar através das isenções.

O paradoxo é evidente: ao conceder uma isenção para beneficiar determinado setor, o sistema acaba por torná-lo menos atrativo como fornecedor, contrariando os objetivos da política tributária implementada.

Manutenção de créditos em operações de alíquota zero

Uma solução técnica para este problema já estava ao alcance do legislador brasileiro. A própria LC n.º 214/2025 oferece o mecanismo adequado ao estabelecer, no artigo 52 que, “no caso de operações sujeitas a alíquota zero, serão mantidos os créditos relativos às operações anteriores”. Esta disposição demonstra que o legislador tinha plena consciência de que a anulação de créditos viola a lógica da não cumulatividade.

A adoção da alíquota zero em substituição às isenções resolveria grande parte do problema, preservando a cadeia creditícia e eliminando o efeito cascata parcial. Contudo, o legislador optou por manter a sistemática restritiva para isenções e, mais gravemente, para as imunidades. Estas últimas, por derivarem diretamente da Constituição, apresentam uma dificuldade adicional: não podem ser simplesmente convertidas em alíquota zero por lei.

O resultado é uma diferenciação artificial e economicamente injustificável entre institutos que, na prática, produzem o mesmo efeito — a desoneração da operação —, mas com impactos completamente distintos sobre a cadeia creditícia.

Violação da neutralidade fiscal

A neutralidade fiscal pressupõe que as decisões empresariais sejam baseadas em critérios de eficiência econômica, não em considerações tributárias. Quando uma empresa precisa avaliar se deve comprar de um fornecedor isento (perdendo créditos) ou de um fornecedor tributado (mantendo créditos), sem uma justificativa constitucionalmente razoável para tanto, o tributo deixa de ser neutro e passa a influenciar artificialmente a organização da atividade econômica.

Esta violação da neutralidade é ainda mais grave por atingir setores considerados prioritários pela própria política pública. Saúde, educação e outros segmentos contemplados com benefícios fiscais podem ser prejudicados em sua competitividade caso atuem como fornecedores, contrariando a lógica que deveria orientar um sistema tributário moderno e eficiente.

A reforma, que poderia ter eliminado esse problema da não cumulatividade nas etapas isentas e imunes, optou por mantê-lo vivo e até mesmo constitucionalizá-lo. O resultado é um sistema que, embora superior ao anterior, carrega consigo as distorções do passado vestidas com roupagem constitucional. A quebra da cadeia creditícia continuará onerando consumidores, distorcendo decisões empresariais e contrariando os próprios objetivos de neutralidade que a nova sistemática objetiva perseguir.

Fonte: Conjur

Multas de leniência e sua dedução tributária

Pode uma empresa deduzir do cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) o valor de uma multa paga em acordo de leniência firmado sob a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013)? A questão, embora até recentemente pouco debatida nos tribunais, ganhou relevância prática com o avanço das grandes operações de combate à corrupção no Brasil nas últimas décadas. Essa nova realidade exige respostas claras sobre as consequências tributárias de atos ilícitos cometidos por empresas.

O debate saiu do campo teórico em 2024, quando um acórdão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reconheceu, pioneiramente, a legitimidade da dedução desse tipo de multa da base de cálculo do IRPJ. Essa decisão (Acórdão Carf nº 1004-000.137, de 8/4/2024) abriu caminho para uma interpretação alinhada a princípios fundamentais do sistema tributário brasileiro. Afinal, está em jogo o clássico princípio pecunia non olet (“o dinheiro não tem cheiro”) e a própria moralidade tributária aplicada ao contexto do combate à corrupção.

A seguir, com base nas conclusões a que meu sócio Rodrigo Caserta e eu chegamos na elaboração de um dos capítulos de uma obra jurídica coletiva que será publicada em breve, farei algumas reflexões sobre as implicações práticas do tema.

Dinheiro não tem cheiro: tributação de ganhos ilícitos

No direito tributário, vigora a máxima de que “o dinheiro não tem cheiro”. A famosa expressão latina pecunia non olet, atribuída ao imperador romano Vespasiano, simboliza a ideia de que a tributação independe da origem dos recursos. Em outras palavras, mesmo que determinada quantia seja fruto de atividades moralmente reprováveis ou juridicamente ilícitas, isso não a isenta do imposto se tiver havido acréscimo patrimonial configurador de renda.

O Código Tributário Nacional (CTN) positivou esse entendimento no artigo 118, ao determinar que a definição legal do fato gerador deve ser interpretada abstraindo-se da validade jurídica do ato praticado. A doutrina majoritária sustenta há décadas que a ilicitude do ato que gerou renda não impede a incidência do imposto correspondente, pois o foco do tributo recai sobre a riqueza auferida, não sobre a legalidade da conduta do contribuinte.

Os tribunais superiores consolidaram essa orientação. O Supremo Tribunal Federal já afirmou que tributar rendimentos de origem ilícita é, além de possível, exigido pelo princípio da igualdade e pela própria moralidade fiscal – afinal, isentar o lucro do crime seria conceder um privilégio indevido ao infrator. Do mesmo modo, o Superior Tribunal de Justiça entende que, conforme o artigo 118 do CTN, a incidência do imposto de renda independe da validade jurídica dos atos praticados.

Importa também frisar que o artigo 3º do CTN – ao definir tributo e estabelecer que ele não constitui sanção por ato ilícito – não veda a tributação de receitas ilícitas. Esse dispositivo busca apenas impedir que se utilize o tributo com propósito punitivo (como pena pecuniária), mas não obsta que fatos geradores derivados de atos ilegais sejam normalmente alcançados pelo fisco. Ou seja, havendo riqueza economicamente auferida, deve haver tributação, independentemente da licitude de sua origem.

Princípio da renda líquida e despesas dedutíveis

O imposto de renda incide apenas sobre o acréscimo patrimonial líquido – em síntese, sobre o lucro real do contribuinte (receitas menos despesas necessárias). Esse postulado decorre dos próprios princípios constitucionais (capacidade contributiva, vedação ao confisco, etc.) e assegura que não se tribute algo que não represente ganho efetivo.

Em outras palavras, despesas incorridas para obter ou manter a fonte de renda devem ser deduzidas na apuração do lucro tributável, sob pena de se cobrar imposto sobre resultado fictício. A legislação infraconstitucional, em consonância com isso, define que são dedutíveis as despesas necessárias à atividade da empresa e usuais ou normais a suas operações (artigo 47 da Lei 4.506/1964, reproduzido no Regulamento do Imposto de Renda RIR). Ou seja, são passíveis de abatimento os gastos feitos para a empresa exercer suas atividades e manter sua fonte produtora de renda, desde que guardem pertinência com o ramo do negócio em questão.

Vale notar que “usual” não significa, obrigatoriamente, “frequente”. Mesmo um gasto excepcional pode ser deduzido se guardar relação objetiva com a atividade empresarial. Em geral, havendo nexo com a geração de receitas, considera-se a despesa dedutível, salvo expressa proibição legal. A autoridade fiscal, portanto, deve ater-se a essa relação de causalidade entre a despesa e a produção de renda, sem se guiar por juízos de valor subjetivos ou morais acerca do gasto.

Multas de acordos de leniência como despesa dedutível

Estabelecidas essas premissas, cabe analisar se as multas pagas em acordos de leniência podem ser tratadas como despesas dedutíveis na apuração do lucro real.

Os acordos de leniência, previstos na Lei Anticorrupção, são pactos em que a empresa investigada por atos de corrupção colabora com as autoridades em troca de benefícios legais – como a redução substancial das multas aplicáveis, a isenção de certas penalidades (por exemplo, deixar de ser proibida de contratar com o poder público) e a suspensão ou extinção de ações judiciais relacionadas.

Esses acordos não eximem a empresa de reparar integralmente os danos causados. Ao contrário: a lei exige (artigo 16, §3º) que o ajuste contemple a indenização pelos prejuízos, de modo que a multa pactuada frequentemente possui também caráter compensatório. Na prática, portanto, a multa de leniência tem natureza dúplice: funciona como punição pelo ato ilícito e, simultaneamente, como instrumento de reparação e de compromisso com uma conduta empresarial futura mais íntegra.

Do ponto de vista da empresa, o pagamento da multa do acordo de leniência representa um custo de regularização necessário para a continuidade de suas operações. Sem o acordo, a companhia poderia ser declarada inidônea, impedida de contratar com o Estado ou sofrer outras restrições capazes de inviabilizar seus negócios. Assim, esse desembolso mostra-se indispensável para a manutenção da atividade empresarial, enquadrando-se como despesa necessária à preservação da fonte de renda.

Embora não faça parte da rotina de nenhuma organização incorrer em multas por corrupção, esse é um desfecho possível — e infelizmente observado nos últimos anos – para empresas sujeitas a certos riscos. Trata-se de um ônus inevitável para a empresa superar a crise de compliance e retomar suas atividades dentro da legalidade. Por esse ângulo, pode-se considerar tal gasto como uma despesa operacional pertinente, ainda que extraordinária.

Há manifestações doutrinárias [1] que corroboram esse entendimento, sustentando que as multas cujo pagamento é capaz de assegurar a regular manutenção das atividades empresariais, ainda que decorrentes de ilícitos, preenchem os requisitos de necessidade e normalidade e que inexiste vedação legal à sua dedução. Em outras palavras, o direito brasileiro não exclui automaticamente do cálculo do lucro tributável os gastos decorrentes de infrações; deve prevalecer a análise objetiva do caso, focada no fluxo econômico do negócio.

No precedente do Carf mencionado acima, o conselheiro relator adotou a tese da não dedutibilidade, argumentando que permitir o abatimento incentivaria o comportamento ilícito e diluiria o caráter punitivo da multa (uma indevida “socialização” do prejuízo com a sociedade). Esse entendimento, contudo, foi superado. Por maioria, o Carf decidiu que a multa paga no acordo de leniência pode ser deduzida do IRPJ/CSLL. Em síntese, considerou-se que negar a dedução equivale a tributar como lucro um valor que, na verdade, foi desembolsado a título de penalidade – o que seria, na prática, transformar o imposto em uma punição tributária adicional, desvirtuando sua finalidade.

Moralidade tributária: obstáculo ou fundamento?

Para os críticos, permitir que a empresa abata do imposto uma multa por corrupção seria moralmente inadequado, pois o Estado estaria “socializando” o custo da penalidade com a coletividade. Argumenta-se que esse benefício fiscal reduziria o efeito punitivo da multa e acabaria, em última análise, favorecendo o infrator às custas do erário. Essa perspectiva foi adotada, por exemplo, no voto vencido do caso Carf referido, o qual alertava que a dedução incentivaria grandes empresas a delinquirem imaginando poder arcar com multas e depois aliviar parte do gasto via redução de tributos.

Essa linha de raciocínio, porém, não se sustenta a uma análise mais detida. Primeiro, o acordo de leniência é um ato lícito incentivado pela lei, distinto do ato ilícito original. A multa nele ajustada decorre desse instrumento legal de colaboração e reparação, não podendo ser confundida com um “lucro do crime”. Permitir sua dedução não significa “premiar” a corrupção, e sim reconhecer que se trata de um custo decorrente de um mecanismo de ajuste de conduta (compliance) previsto em lei, o qual deve ser tratado segundo as regras tributárias vigentes.

Além disso, é preciso esclarecer o alcance do princípio da moralidade nesse contexto. A moralidade administrativa (CF, artigo 37) não autoriza o Fisco a agir com base em impressões morais subjetivas. Ao contrário, exige que a administração tributária se paute pela legalidade, impessoalidade, eficiência e, no caso específico dos tributos, pelos princípios da igualdade, capacidade contributiva e vedação ao confisco. Sob essa ótica, longe de impedir a dedução da multa de leniência, a moralidade tributária reforça a sua legitimidade.

Permitir o abatimento é justamente dar efetividade ao princípio da capacidade contributiva – tributando apenas o lucro real, sem confisco – e observar o postulado de que tributo não é penalidade. Aliás, o artigo 3º do CTN reforça esse ponto ao vedar a utilização do tributo como sanção de ato ilícito. Negar a dedução da multa significaria, na prática, desrespeitar esse preceito, impondo uma punição fiscal indireta além da penalidade já aplicada.

Por fim, do ponto de vista sistêmico, admitir a dedutibilidade promove coerência e neutralidade no ordenamento tributário. Se a lei manda tributar os ganhos de fonte ilícita, não há razão para, em nome do moralismo, recusar o reconhecimento dos custos necessários relacionados a esses ganhos. Caso contrário, a Fazenda Pública se beneficiaria duplamente do fato ilícito (ao tributar o ganho e não reconhecer o custo), desequilibrando a equidade do sistema. Em última instância, a reprovação moral ao ato já se deu nas esferas penal e administrativa; no âmbito tributário, cabe apenas aplicar a técnica fiscal de forma isenta, tributando-se aquilo que efetivamente configura renda.

Conclusão

Conclui-se que os valores pagos em multas decorrentes de acordos de leniência podem, à luz do ordenamento vigente, ser deduzidos na apuração do imposto de renda. Longe de premiar condutas ilícitas, tal dedução preserva a lógica do tributo incidente sobre o lucro real, evitando que a empresa seja punida duplamente – primeiro pela multa em si e depois por uma tributação sobre um montante que efetivamente saiu de seu patrimônio. Em outras palavras, a autoridade fiscal cobra o imposto sobre os ganhos reais (inclusive os de origem ilegal), mas não transforma a multa em um “acréscimo patrimonial” tributável.

À luz do princípio da renda líquida, é indispensável considerar, no cálculo do lucro tributável, todas as despesas necessárias e usuais à atividade econômica da pessoa jurídica – inclusive aquelas originadas de acordos de leniência firmados para viabilizar a continuidade da empresa dentro da legalidade. Vimos também que a invocação da moralidade tributária, quando devidamente compreendida, não contraria essa dedução; ao contrário, a solução aqui defendida harmoniza-se com os imperativos de justiça fiscal, neutralidade e estrita legalidade que devem nortear a aplicação do referido princípio no campo tributário.

Do ponto de vista prático, o tema é de grande relevância para a atuação empresarial contemporânea. Empresas que decidem cooperar com as autoridades – admitindo irregularidades e arcando com pesadas multas – naturalmente buscam previsibilidade quanto aos efeitos tributários dessas escolhas. O reconhecimento da dedutibilidade desses valores mitiga o impacto financeiro dos acordos, sem comprometer o caráter punitivo e reparatório das sanções, e pode servir de incentivo para que mais companhias adotem programas de conformidade e colaboração, sabendo que não serão “punidas em dobro” via tributação.

Em suma, a controvérsia acerca da dedução de multas sob a ótica da moralidade tributária exemplifica a necessidade de conciliar o combate vigoroso à corrupção com a aplicação coerente das normas fiscais. O precedente aberto pelo Carf em 2024 sinaliza uma perspectiva de equilíbrio: sancionar o ilícito com rigor, mas calcular os tributos com base em critérios técnicos e justos. Essa visão contribui para um ambiente de negócios mais seguro juridicamente e para a efetividade das políticas anticorrupção – objetivos que convergem com o interesse público e a integridade das relações econômicas.


[1] MOREIRA, André Mendes; ANTUNES, Pedro Henrique Neves. Reflexões sobre ilícitos, sanções e a dedutibilidade de multas no Imposto de Renda. Revista Direito Tributário Atual, n. 49, ano 39, p. 395–411, São Paulo: IBDT, 3º quadrimestre de 2021: IGLESIAS, Tadeu Puretz. Dedutibilidade de despesas com subornos e propinas da base de cálculo do IRPJ. São Paulo: IBDT, 2022 (Série Doutrina Tributária, 46)

Fonte: Conjur

Sucesso do ECA Digital dependerá de políticas públicas, afirma Rubens Naves

Aprovado pelo Senado no final de agosto, o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital) busca proteger menores de 18 anos da exposição indevida na internet com a adoção de regras para a retirada de conteúdo das plataformas.

O texto, que aguarda sanção presidencial, é elogiado pelo advogado Rubens Naves, ex-presidente da Fundação Abrinq e coautor de um livro sobre os desafios para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente no Brasil.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, ele avalia que o ECA Digital é um complemento necessário ao ECA “analógico”, que está em vigor há 35 anos, mas diz que as novas regras só terão efeito se forem acompanhadas de políticas públicas eficientes.

“A lei por si só não resolve. Será preciso o envolvimento de todas as instituições criadas pelo próprio ECA, como os conselhos, e a integração com as escolas, que terão um papel fundamental no controle sobre o uso de celulares, por exemplo. Tudo isso vai depender de políticas públicas e da capacitação dos agentes que efetivamente forem trabalhar na implementação dessa legislação.”

Naves falou à ConJur por ocasião de ter recebido, no final do mês passado, o Jubileu de Ouro do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), que marcou seus 50 anos como associado da entidade. Além de tratar do ECA Digital, o advogado comentou na entrevista as transformações do Direito nas últimas cinco décadas e os atuais desafios à democracia e ao equilíbrio entre os poderes.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Qual sua avaliação sobre o ECA Digital, recentemente aprovado no Senado?
Rubens Naves — É uma legislação extremamente adequada, do meu ponto de vista. Ela atualiza alguns mecanismos de proteção e complementa o ECA, na medida em que uniformiza conceitos pertinentes ao mundo virtual.

A lei esclarece o que é serviço de monitoramento infantil (ferramenta que permite aos pais acompanhar a atividade dos filhos nas redes), o que é rede social, o que é perfilamento, o que é caixa de recompensa (mecanismo em jogos eletrônicos que dá vantagens ao jogador mediante pagamento). Ou seja, existe toda uma linguagem que precisa ser atualizada e uniformizada nos mecanismos legais.

Essa legislação traz isso. Ela prevê a criação de um mecanismo central, uma espécie de agência reguladora que vai baixar normas complementares, e dá mais clareza à responsabilização das grandes empresas de tecnologia, uma discussão que já alcançou o Supremo Tribunal Federal.

Em suma, eu acredito que essa lei traz uma grande contribuição. Mas às vezes nós temos, como reflexo da nossa cultura, a impressão de que a legislação soluciona os problemas sozinha, e naturalmente isso não funciona assim.

ConJur — Quais são os empecilhos?
Rubens Naves — A lei, por si só, não resolve. Será preciso o envolvimento de todas as instituições criadas pelo próprio ECA, como os conselhos, e a integração com as escolas, que terão um papel fundamental no controle sobre o uso de celulares, por exemplo.

Tudo isso vai depender de políticas públicas e da capacitação dos agentes que efetivamente forem trabalhar na implementação dessa legislação. Isso vai exigir uma união de esforços da área educacional, da área de saúde e da área de segurança pública. Não adianta você caracterizar um ilícito, por exemplo, se não houver uma persecução penal adequada.

ConJur — O senhor acredita que as instituições estão preparadas para esse desafio?
Rubens Naves — O Judiciário, ao meu ver, tem agido com competência e sensibilidade nesse ponto. O Conselho Nacional de Justiça tem apoiado a capacitação dos magistrados, o que é fundamental, porque vamos depender de capacitação e de debate constantes.

É preciso lembrar o artigo 227 da Constituição, que estabelece que a proteção da criança e do adolescente é um dever compartilhado entre família, sociedade e Estado. Esse tripé sempre foi essencial para assegurar a efetividade do ECA, e será igualmente fundamental na efetivação do ECA Digital.

ConJur — O senhor completou 50 anos como advogado associado ao Iasp. Como avalia o papel da entidade?
Rubens Naves — O Iasp tem uma tradição muito grande na área jurídica, tem mais de 150 anos. Ele, inclusive, precede a Ordem dos Advogados do Brasil, e foi fundamental na sua formação.

Lembro da minha experiência pessoal, nas décadas de 1970 e 1980. O Iasp tinha uma bancada que fazia parte do Conselho da OAB, na seccional de São Paulo, da qual eu pude participar. Essa bancada se destacava por ter uma visão do Direito extremamente científica e desenvolvida. Eram profissionais experientes e técnicos, alguns, inclusive, com vivência acadêmica.

O Iasp trouxe para a advocacia a capacidade de dialogar no ambiente do contraditório, em que se permitia a expressão livre e dotada de urbanidade. No tempo que vivíamos, sob a ditadura, aquilo foi salutar. Foi um momento em que a Ordem, apoiada pelo Iasp, trabalhou no aperfeiçoamento da nossa legislação, colhendo as várias sugestões que desembocaram na Constituinte.

Ao lado de outras instituições, o Iasp foi fundamental nesse período de transição para que tivéssemos uma Constituição moderna, que assegura direitos fundamentais a uma vida humana digna.

ConJur — Como o senhor vê as condições institucionais de hoje para o exercício da advocacia no Brasil?
Rubens Naves — A advocacia é um segmento essencial à promoção da Justiça em nosso país. Ela só tem condição de ser exercida na sua plenitude se a gente estiver vivendo um Estado democrático de Direito.

É o que está acontecendo agora, por exemplo, com o julgamento no Supremo que envolve o ex-presidente Bolsonaro e ministros importantes de seu governo, inclusive generais. Eles estão tendo acesso a uma defesa competente e justa porque nós vivemos no Estado democrático de Direito e, com isso, vamos poder responsabilizar quem promoveu danos materiais e morais à nossa democracia.

A meu ver, essa tentativa de golpe de Estado só não foi concretizada porque as nossas instituições agiram rapidamente e defenderam o sistema democrático, com as providências necessárias para fazer cessar aquela conspiração. Não é o que foi visto, por exemplo, nos Estados Unidos.

ConJur — O que significam as recentes interferências dos EUA na democracia brasileira?
Rubens Naves — Infelizmente, as instituições americanas não conseguiram responsabilizar, na integralidade, os responsáveis por aquela invasão ao Capitólio, em 2021. Aqui no Brasil, estamos vivendo um momento histórico: o Poder Judiciário está demonstrando que todos são iguais perante a lei. Ou seja, serão julgados e terão todos os seus direitos de defesa preservados e lastreados no devido processo legal.

Portanto, as nossas instituições avançaram em relação às americanas, que não tiveram esse mesmo desfecho lá. As instituições dos EUA hoje estão ameaçadas por um comportamento completamente atípico, desprovido de qualquer sutileza do governo americano, em especial do presidente Donald Trump.

Veja o paradoxo que nós temos: estamos assegurando, por meio desse julgamento no Supremo Tribunal Federal, todas as garantias constitucionais a um grupo que tinha como intenção eliminar essas mesmas garantias. É preciso uma ampla coalizão das instituições do Direito para fazer frente a isso.

ConJur — Como o senhor avalia as recentes articulações por anistia, que partem do Congresso e de governadores da oposição?
Rubens Naves — Eu acredito que se trata de um processo orientado por oportunismo político. Já estamos observando todo um conjunto de ações para viabilizar as candidaturas no ano que vem. Nesse movimento, todos os grandes líderes da oposição tentam buscar apoio do chamado bolsonarismo, de um segmento radicalizado da direita.

Esse movimento, vale lembrar, é destituído de razoável suporte técnico e constitucional. Eu entendo que não é possível, como se pretende, anistiar qualquer grupo de pessoas que conspiraram contra o Estado democrático de Direito. O próprio Supremo Tribunal Federal já estabeleceu que um indulto dessa natureza seria atentatório a uma cláusula pétrea.

Uma pessoa que não reconhece a democracia como um valor da nossa sociedade, um valor amparado pela nossa Constituição, não pode se beneficiar de uma anistia dessa natureza. Não é razoável que o Congresso se preste a esse papel.

ConJur — Sobre o Congresso: qual sua opinião sobre o crescimento das emendas impositivas? 
Rubens Naves — Há uma evidente hipertrofia dessas emendas parlamentares nos últimos anos. Isso se verifica diante da inexistência de uma maioria partidária suficiente para garantir um apoio constante a um governante, no caso, o presidente da República.

E isso não é de hoje. Há mais de uma década essas emendas têm desvirtuado a forma de gerir o orçamento público. Elas passaram a ser uma espécie de moeda de troca, implementada sem qualquer vínculo com as políticas públicas que são planejadas em âmbito federal.

Aos pouquinhos, essa tendência vem contaminando também as Assembleias Legislativas e até mesmo as Câmaras Municipais. Com isso, prejudica todo o funcionamento da federação brasileira, em seus três níveis. Os repasses de recursos começam a ser desvirtuados, já não obedecem à lógica do planejamento de longo prazo.

E aí voltamos à questão da criança e do adolescente no Brasil. A essência do próprio ECA está sujeita a um planejamento de longo prazo: o município conta com essas transferências para implementar sua política nas áreas da saúde, da educação, da segurança pública e da cultura.

Se a destinação desses recursos passa a obedecer à vontade de um único legislador, a distorção resultante ameaça as garantias de desenvolvimento e de vida digna que o ECA se propõe a oferecer.

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Tese do STF sobre prisão de condenados no Júri deixa rastro de confusão nos tribunais

Já se passou um ano desde que o Supremo Tribunal Federal determinou que condenados no Tribunal do Júri devem ser presos imediatamente após o julgamento. Segundo a tese da corte, fixada no Tema 1.068, a execução da pena só pode ser adiada caso haja indícios de nulidade no processo ou de condenação “manifestamente contrária à prova dos autos”.

A decisão foi aprovada sob várias divergências entre os ministros e é amplamente criticada por advogados, mas foi confirmada recentemente pelo Supremo em embargos de declaração ajuizados por defensorias públicas. A aplicação da norma, porém, tem se dado de maneira desuniforme nos tribunais estaduais.

A falta de critérios foi detectada em um levantamento da revista eletrônica Consultor Jurídico sobre acórdãos criminais deste ano, especialmente no Tribunal de Justiça de São Paulo e no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

A análise mostra que os magistrados têm determinado a execução imediata da pena mesmo em processos com indícios de nulidade, o que contraria a exceção prevista pelo STF. Por outro lado, decisões que autorizam os réus a recorrerem em liberdade são tomadas sob critérios divergentes e, em alguns casos, com justificativas que já foram rechaçadas pelo Supremo.

Falta de padrões

Em geral, as decisões que mantêm os condenados soltos sustentam que a medida do Supremo não pode retroagir para prejudicar o réu, conforme previsto no artigo 5º da Constituição. Os magistrados avaliaram, nestas ações, que pessoas julgadas antes da fixação da tese não podem ser atingidas pela nova diretriz da corte.

O STF, contudo, já reiterou que a irretroatividade da lei penal não se aplica a estes casos. Em pelo menos três julgados, publicados em fevereiromarço e abril deste ano, os ministros afirmaram que não se trata de retroação de lei penal porque o Supremo deu apenas uma nova interpretação a uma legislação já existente: o “pacote anticrime”, que entrou em vigor em janeiro de 2020.

A lei “anticrime” alterou o artigo 492 do Código de Processo Penal para determinar que condenados pelo Júri devem ser presos automaticamente se a pena for igual ou superior a 15 anos — o que é comum nestes casos, já que o Júri se dedica a crimes dolosos contra a vida. A nova posição do Supremo derrubou este piso de 15 anos e ordenou a execução imediata para qualquer pena, mas não alterou o texto do CPP.

O novo arranjo tem gerado um rastro de confusão. O princípio da irretroatividade, além de ser usado contra a orientação do STF, ainda tem sido aplicado com diferentes marcos temporais, como ilustra o quadro abaixo:

Processo 2027309-88.2025.8.26.0000 — (10/02/2025) — Decisão de primeira instância, em fevereiro de 2025, determinou a prisão de dois homens que tinham sido condenados no Júri por tentativa de homicídio. Em segundo grau, porém, um desembargador reviu a medida e mandou soltar os réus porque eles foram julgados em março de 2024, antes da fixação da nova tese pelo STF, em setembro (clique aqui para ler).

Processo 2133280-62.2025.8.26.0000 — TJ-SP (17/07/2025) — Com base na irretroatividade, o acórdão afastou a prisão de um condenado por homicídio apesar de ele só ter sido sentenciado em abril de 2025, depois da decisão do STF. Isso porque o acórdão não se fundamentou na data da condenação, e sim na da pronúncia — decisão que leva o réu ao Tribunal do Júri. Ele foi pronunciado em agosto de 2024, antes da medida do Supremo (clique aqui para ler).

Processo 1.0000.24.518035-1/001 — TJ-MG (10/07/2025) — Neste caso, o acórdão não tomou como base a data da condenação nem a da pronúncia, e sim a data do fato criminoso, um homicídio cometido em 2016. Além disso, a baliza para a retroatividade não foi o estabelecimento da tese pelo STF, e sim a data da vigência do pacote “anticrime”, em janeiro de 2020 (clique aqui para ler). Um acórdão do mesmo tribunal, em maio, havia adotado como marcos temporais a data da sentença no Júri e a nova posição do STF (clique aqui para ler).

Para a criminalista Isabella Piovesan Ramos, do escritório Machado de Almeida Castro Advogados, o STF colocou um ponto final na questão ao julgar embargos de declaração no final de agosto, que questionavam se a nova regra poderia retroagir ou não.

“Eu discordo da posição do STF, mas ela foi bem clara ao afirmar que a prisão imediata também vale para casos anteriores. Pode ser que algum juiz mais garantista continue decidindo em sentido contrário, mas eu entendo que o Supremo acabou com qualquer margem para discussão sobre isso”, avalia.

Autoriza ou obriga?

Outra confusão frequente nos tribunais é baseada no texto literal da tese do Supremo: “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. Para alguns julgadores, o uso do termo “autoriza” dá a opção de aplicar ou não o novo entendimento.

Um acórdão recente do TJ-SP, o mesmo que usou o princípio da irretroatividade com base na data da pronúncia, entendeu que a medida do STF “autoriza, mas não impõe o imediato início da execução da pena, sendo necessária a análise do caso concreto”.

Essa também foi a conclusão de um juiz do Tribunal de Justiça do Maranhão ao lavrar uma sentença, do final de agosto, que condenou dois homens por homicídio qualificado. Ao permitir que eles recorressem em liberdade, o magistrado afirmou que a tese do Supremo “estabelece uma possibilidade, não uma obrigatoriedade, cabendo ao juiz presidente a análise das circunstâncias do caso concreto (clique aqui para ler)“.

“Realmente, o uso desse termo ‘autoriza’ está causando algum ruído, porque dá a entender que a norma não tem um caráter obrigatório. Isso provoca uma discussão nos tribunais sobre a força que essa determinação tem”, opina o criminalista Fabrício Dreyer Pozzebon, doutor em Direito pela PUC-RS.

Vaivém de jurisprudência

O julgamento em que o STF fixou a nova tese passou longe da unanimidade. O voto vencedor, do relator Luís Roberto Barroso, foi acompanhado por cinco ministros, enquanto outros cinco expuseram divergências totais ou parciais.

Entre os discordantes, o principal argumento foi o de que a execução imediata da pena fere a presunção de inocência, prevista no artigo 5º da Constituição. Esses ministros apontaram que o próprio Supremo já havia vetado a prisão antes do trânsito em julgado em novembro de 2019, no julgamento das ADCs 43, 44 e 54.

O panorama começou a mudar em janeiro de 2020, com a entrada em vigor do pacote “anticrime”, e foi endurecido com a posição do Supremo em setembro de 2024. Segundo o voto vencedor de Barroso, o princípio da presunção de inocência deve ser sopesado com outras garantias constitucionais, como a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri e o direito fundamental à vida, que estaria ameaçado sob as normas antigas.

A advogada Marcella Mascarenhas Nardelli, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), vê incoerência na posição do STF que flexibiliza a presunção da inocência em nome da soberania dos veredictos do Júri. Em exposição no 31º Seminário Internacional de Ciências Criminais do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), no final de agosto, ela lembrou que essa mesma soberania dos veredictos é relativizada quando o réu é absolvido.

“A força da soberania dos veredictos é reduzida a partir da consideração de que a absolvição pelo quesito genérico, ainda que fruto de clemência, pode ser submetida ao crivo do Tribunal de Apelação”, avaliou.

Suposta proteção à vida

O acórdão do STF que permitiu a prisão antecipada citou que menos de 2% das sentenças do Júri no TJ-SP, no período entre janeiro de 2017 e outubro de 2019, foram anuladas posteriormente. Para Barroso, o percentual “inexpressivo” de condenações revertidas justifica o cumprimento antecipado da pena, já que as decisões do Júri costumam ser mantidas.

O criminalista Rodrigo Faucz, pós-doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), avalia que esse argumento não se sustenta. “Esse percentual, mesmo que pequeno, é uma prova de que erros podem acontecer. Isso que eles chamam de números inexpressivos eu chamo de pessoas. São vidas que eventualmente são perdidas por causa disso”, critica.

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