Irresponsabilidade do Congresso é culpada por excesso de emendas constitucionais

Constituição Federal brasileira atingiu em setembro a marca de 134 emendas desde 1988, ano de sua promulgação. É um número excessivo e indesejável. A culpa, porém, é da irresponsabilidade do Congresso, e não do procedimento de reforma da Carta Magna, que não deve ser alterado.

Em setembro, Constituição Federal de 1988 alcançou a marca de 134 emendas

Nos últimos dois meses, o Congresso promulgou duas novas emendas constitucionais. A EC 133/2024 “impõe aos partidos políticos a obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para candidaturas de pessoas pretas e pardas; estabelece parâmetros e condições para regularização e refinanciamento de débitos de partidos políticos; e reforça a imunidade tributária dos partidos políticos conforme prevista na Constituição Federal”.

Já a EC 134/2024 permite a reeleição para cargos de direção — como as respectivas presidências — dos Tribunais de Justiça com mais de 170 desembargadores, o que enquadra atualmente apenas as cortes de Rio de Janeiro e São Paulo.

Com isso, a Constituição de 1988 chegou à média de 3,7 emendas por ano. O número total chega a 144 caso sejam contadas as seis emendas constitucionais de revisão e os quatro tratados internacionais que têm equivalência ao texto da Carta Magna.

A atual é a Constituição brasileira que mais foi alterada. Em segundo lugar, vem a Constituição de 1946, que recebeu 27 emendas em 21 anos de vigência (média de 1,3 por ano). Completa o pódio a Emenda Constitucional 1/1969, outorgada pela Junta Militar e considerada por juristas uma nova Constituição, já que alterou completamente a Carta de 1967. A norma foi modificada 26 vezes em 19 anos (média de 1,4 por ano).

As Constituições do Império, da República e de 1930 receberam apenas uma emenda cada, em 65, 40 e três anos de vigência, respectivamente. Já a Constituição de 1967, a primeira da ditadura militar, não foi reformada nos dois anos em que vigorou.

Anos eleitorais

Anos de eleições nacionais estimulam alterações na Constituição. O recorde ocorreu em 2022, com a promulgação de 14 emendas constitucionais. A principal foi a EC 123/2022, que reconheceu o estado de emergência em função dos preços dos combustíveis e abriu caminho para o governo de Jair Bolsonaro (PL) promover despesas excepcionais para tentar a reeleição. Mas não deu certo, e ele foi derrotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O segundo ano com mais emendas foi 2014, com oito. Nenhuma delas foi tão explicitamente favorável à campanha de reeleição da então presidente Dilma Rousseff, da qual ela saiu vitoriosa — porém, sofreu impeachment após um ano e meio de segundo mandato.

O ano 2000 teve sete alterações na Carta Magna. E outros quatro anos tiveram pelo menos seis emendas constitucionais (2021, 2019, 2015 e 1996) — desde 1992, a Constituição não passa um ano sem ser modificada.

Emendas demais

A Constituição Federal é muito detalhista. Portanto, é de esperar que tenha emendas com mais frequência do que a dos Estados Unidos, por exemplo, que é mais principiológica. Ainda assim, 134 emendas em 36 anos é um número excessivo, de acordo com os constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, avalia que a proliferação de emendas pode banalizar o sentido de “matéria constitucional”.

“Há uma falsa ideia de que tem de colocar tudo na Constituição Federal, como uma espécie de garantia de efetividade. Se no processo constituinte isso fazia sentido, afinal o passado não recomendava muito por causa da ditadura militar e da inefetividade de direitos, agora essa ‘constitucionalização da banalidade’ aponta para uma perigosa desmoralização daquilo que seja o sentido de ‘matéria constitucional’. Do jeito que vai, logo teremos uma emenda dizendo que ‘somente é matéria constitucional aquilo que…’, como já constava na Constituição de 1824.”

A média global é de uma emenda constitucional por ano, enquanto no Brasil há a promulgação de quase quatro alterações, um número elevado, conforme destaca Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“Mas como a Constituição é muito detalhista, e a realidade, muito dinâmica, seria impossível que o sistema funcionasse aqui como o norte-americano, que, nesse particular, inclusive, é bastante disfuncional. No Brasil, o que acaba protegendo o núcleo fundamental da Constituição são as cláusulas pétreas e o entendimento — que não é frequente no Direito Comparado — de que o STF pode controlar a constitucionalidade das próprias emendas, como já fez diversas vezes.”

É uma particularidade brasileira que uma emenda constitucional, aprovada por três quintos dos parlamentares, possa ser suspensa por decisão monocrática de um ministro do STF, que não foi eleito pelo voto popular, ressalta Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ele também considera elevado o número de emendas à Constituição de 1988, embora diga ser natural que cartas analíticas sofram mais modificações do que as sintéticas.

“Pouquíssimos países permitem controle de constitucionalidade, pelo Judiciário, de emenda à Constituição. E creio que só o Brasil permite que um ministro isolado suspenda os efeitos de emenda. Isso e o excessivo número de reformas banaliza a edição de emendas constitucionais.”

A culpa (não) é do sistema

Apesar disso, os constitucionalistas ouvidos pela ConJur entendem que não é necessário alterar o sistema de aprovação de propostas de emenda à Constituição.

As PECs podem ser apresentadas pelo presidente da República, por pelo menos 171 deputados ou 27 senadores (um terço do total) ou por mais da metade das Assembleias Legislativas.

A tramitação começa na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da casa legislativa, que é responsável pela análise da admissibilidade da proposta. Com o aval da CCJ, a PEC é examinada por uma comissão especial. Depois disso, é encaminhada para votação no Plenário.

A PEC só é aprovada se tiver votos favoráveis de três quintos dos deputados (308) e senadores (49), em dois turnos de votação. Após a primeira votação em uma das casas legislativas, a PEC é enviada para a outra. Se o texto for aprovado sem alterações pelas duas casas, ele é promulgado como emenda constitucional em sessão do Congresso Nacional. Não é necessária a sanção presidencial, como ocorre com as leis ordinárias.

Lenio Streck diz que a culpa pelo excesso de emendas é da irresponsabilidade do Congresso, e não do procedimento de tramitação delas.

“O fato de o Parlamento, de forma irresponsável, entulhar o texto da Constituição com emendas sobre vaquejada e reeleição de cargos de Tribunais de Justiça não quer dizer que devemos alterar o quórum da Constituição Federal. Não vamos jogar a água suja fora com a criança dentro. Precisamos fazer constrangimentos epistemológicos. As faculdades de Direito devem discutir isso.”

Na opinião de Pedro Serrano, o quórum exigido para proposição e aprovação de PECs é adequado, o problema é a relação entre os poderes.

“No Brasil, o Judiciário pode decidir casos concretos de controle de constitucionalidade e anular atos do Legislativo e do Executivo. Isso torna o Judiciário excessivamente forte. Nos EUA, a Suprema Corte decide casos concretos, que acabam repercutindo de forma geral por causa do sistema de precedentes. Mas ela não anula atos dos outros poderes. Na Europa, onde se anula atos dos poderes, isso é feito por uma corte constitucional que não é ligada a nenhum dos três poderes”, explica ele.

Não é necessário alterar o quórum de deliberação, somente tornar imperativo o cumprimento de regras regimentais “hoje com frequência desprezadas”, afirma Daniel Sarmento. Entre elas, as que preveem um intervalo mínimo entre cada votação de emenda em cada casa legislativa.

“Com isso, dificulta-se a aprovação de mudanças sobre assuntos importantes sem dar tempo para que a sociedade tome conhecimento do tema debatido e exerça pressão legítima sobre os parlamentares. O STF já foi provocado para examinar essa questão, que envolve às vezes duas votações da emenda no mesmo dia, uma imediatamente depois da outra, sem qualquer intervalo, mas afirmou que o assunto seria de natureza interna corpore do Parlamento, não invalidando o procedimento, no que discordo.”

Desconstitucionalização de matérias

Uma iniciativa positiva seria a desconstitucionalização de algumas matérias, afirma Daniel Sarmento, ressaltando que a Carta Magna de 1988 é a segunda mais extensa do mundo, ficando atrás apenas da Constituição da Índia.

Ele cita o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, que afirmou que “a Constituição se perdeu no varejo das miudezas”.

“A Constituição é excessivamente detalhista em matérias como servidores públicos, regras previdenciárias e orçamentárias. Entre outros problemas do excesso de detalhismo, está o fato de que se confunde a matéria constitucional com questões políticas de menor importância, que deveriam ser resolvidas pelas maiorias de cada momento. E aí governar passa a depender da formação de coalizões políticas muito amplas, o que dificulta a governabilidade. Mas é essencial preservar os direitos fundamentais, inclusive os de grupos sociais vulnerabilizados”, analisa o professor da Uerj.

Pedro Serrano também é da opinião de que é preciso desconstitucionalizar algumas matérias. Como exemplo de tema que não deveria estar na Carta Magna, ele menciona a disposição de que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, seja mantido na órbita federal (artigo 242, parágrafo 2º, da Constituição).

Por sua vez, Lenio Streck entende que não há nada a desconstitucionalizar. “Também não há como evitar a proliferação de emendas, a não ser de dois modos: ou se copia a Constituição de 1824 (com emenda dizendo que ‘somente é matéria constitucional aquilo que…’) ou o Congresso faz uma autocontenção.”

Brasil x EUA

Em 36 anos, a Constituição de 1988 já recebeu 134 emendas. Em comparação, a Constituição dos EUA recebeu 27 emendas em 235 anos — a última foi promulgada em 1992. Outras seis emendas foram aprovadas pelo Congresso americano, mas não foram ratificadas por três quartos dos estados (38), quórum exigido para a reforma.

Os especialistas, porém, afirmam que não faz sentido comparar o número de emendas da Constituição brasileira com o da Carta dos Estados Unidos.

“São sistemas jurídicos diferentes. Até porque poderíamos dizer que, cada vez que a Suprema Corte decide algo com efeito vinculante (stare decisis), ela está aumentando o tamanho da Constituição”, ressalta Lenio Streck.

E a Constituição dos EUA dificulta o processo de modificação, aponta Daniel Sarmento. “A enorme dificuldade de emendar a Constituição — o que exige a votação de dois terços das duas casas congressuais e de três quartos dos estados — gera vários problemas, como a manutenção, até hoje, de um sistema completamente ultrapassado de eleição presidencial, em que o mais votado nacionalmente pode perder.”

A Carta Magna americana é sintética, principiológica e estabelece diretrizes gerais sobre o Estado, diz Pedro Serrano. Já a brasileira é analítica, detalhista. “E somos regrados pelo Direito positivo, ao passo que os norte-americanos são regulados pela common law, em que há prevalência dos precedentes judiciais. Esses fatores explicam por que o Brasil tem um número muito mais elevado de emendas constitucionais do que os EUA”, pondera o professor da PUC-SP.

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O caso Gusttavo Lima e a falta de isonomia ou ‘o diabo mora nos detalhes’

1. Explicando o caso

Uma juíza de Pernambuco decretou a prisão de Gusttavo Lima e da influencer Deolane – a notícia está em todos os jornais e sites. Deolane chegou a ser recolhida por alguns dias. Já Gusttavo Lima obteve habeas corpus antes de ser preso.

Gusttavo é suspeito de ter ligação com pessoas investigadas na operação “integration”, da Polícia Civil de Pernambuco, que apura um esquema de lavagem de dinheiro de jogos de azar pela internet (bets). Ele estava nos Estados Unidos em viagem com sua família, quando recebeu a notícia da concessão da ordem.

Na mesma decisão, o desembargador derrubou a decisão que suspendeu o passaporte e o porte de arma do cantor.  Para o desembargador, a decretação da prisão de Nivaldo Batista Lima, nome do cantor, foi justificada com base em ilações (deduções).

2. O desdobramento da concessão de habeas corpus — liminarmente

Houve um frisson sobre a (quase) prisão de Gusttavo Lima. Ainda há juízes no Brasil, disseram alguns causídicos. OK. Correta a decisão do HC concedido pelo desembargador pernambucano.

Então, qual é o problema? Causa finita, certo? Sim e não.  O busílis é que, em cem pedidos de habeas corpus apreciados desde 2023 até a semana em que houve a concessão da ordem a Gusttavo Lima, o desembargador pernambucano ou não conheceu ou não deferiu (nenhuma) liminar. No mérito, os HC relatados pelo desembargador, com raras exceções, são negados à unanimidade. Portanto, a comemoração pela concessão do habeas corpus em favor de Gusttavo e Deolane fica, digamos assim, ofuscada pelas notícias que darei na sequência. Já explicarei.

3. Uma questão de isonomia ou “isonomia – eu quero uma para aplicar no Direito”

Lembro-me que fui pioneiro, como procurador de Justiça, em lançar uma tese pela qual se deveria aplicar, por isonomia, a benesse concedida aos sonegadores de tributos – extinção da punibilidade pelo pagamento do prejuízo – aos acusados de furto e estelionato. Há dezenas de acórdãos nesse sentido, da lavra da 5ª. Câmara criminal do TJ-RS em que eu atuava. Um dos acórdãos teve a seguinte ementa:

“Lição de Lenio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 25 de Setembro de 1997)”.

Portanto, minha crítica não era (e não é) contra a concessão de favor legis aos sonegadores de tributos (como não sou contra, por óbvio, à concessão de habeas corpus a Gusttavo Lima); minha crítica era — e continua sendo —, sim, a não aplicação da isonomia. É disso que se trata.

A primeira vez em que defendi a tese (é uma de tantas) foi no caso de uma bicicleta furtada e que foi recuperada em seguida. Zero de prejuízo. E a tese foi aplicada, a partir de meu parecer. Isso em 1990, portanto, há 35 anos. Lutei muito por essa isonomia de tratamento. Coerência e integridade — que depois consegui incluir no CPC de 2015, artigo 926.

Portanto, insisto, não está errada a decisão que concedeu o HC em favor de Gusttavo Lima. Porém, talvez não tão corretas estejam muitas das decisões do desembargador (ou do tribunal) que não concederam liminar (e/ou o habeas corpus no mérito) a acusados presos cautelarmente no estado de Pernambuco (sim, sei que no restante do Brasil isso se repete).

Veja-se que a mesma Câmara que concedeu habeas corpus — liminar e monocraticamente — a Gusttavo Lima e para a influencer Deolane, negou o remédio heroico em um caso em que o acusado está preso desde 25/6/2019 – encarcerado há cinco anos (aqui, para além dos cem casos de não concessão de liminar, foram examinados apenas os últimos 40 acórdãos da Câmara em sede de habeas corpus) [1]. Mesmo se fosse crime de júri, ainda assim há um problema, certo?

Ou quem sabe a Câmara tenha acertado no caso de Gusttavo e errado ao negar habeas corpus (mesmo relator), à unanimidade, de um réu preso desde 13/10/2021. Portanto, recolhido há mais de três anos.

Os casos são muitos. Lembro de outro, em que o réu está preso desde 28/10/2022. E a mesma Câmara que concedeu liminar em habeas corpus para Gusttavo, negou o remédio heroico à unanimidade, seguindo voto do desembargador relator do caso Gustavo.

Também tenho notícia de que a Câmara negou habeas para acusado que está preso por não ter dinheiro para pagar fiança de um salário-mínimo (proc. 0022911 21.2023.8.17.9000). Sim, ficou preso (e parece que continua assim) porque não tinha o valor para pagar fiança. O tribunal alega que a questão da fiança não tem relevância porque há outros motivos para a prisão (contumácia delitiva). Há outro caso de pessoa presa deste 6/1/2021. E por aí afora.

Por justiça, registro que nos casos de um preso recolhido há 900 dias e de outro recolhido há mais de 400 dias, houve a concessão da ordem para ambos. Também foi concedida a ordem em um caso de tráfico de drogas (77 g de maconha).

É disso que falo quando escrevo em busca de coerência e integridade. Por isso lutei para incluir no CPC o artigo 926. Garantismo é fazer democracia no Direito e por meio do Direito. Garantias processuais são para todos, inclusive para os não-gustavos.

Só para registrar, pelo levantamento minha assessoria apontou que nenhuma liminar foi concedida pelo desembargador na centena de decisões monocráticas em sede de habeas corpus analisadas, desde 2023 até a semana em que foram proferidas as de Gusttavo Lima e da influencer Deolane (pode até existirem concessões nas cem decisões anteriores a essas últimas cem)Algum problema legal? Não. O desembargador pode alegar que cada caso é um caso. E que decide assim levando em conta a jurisprudência do tribunal. Portanto, tudo dentro da legalidade. OK. De minha parte, apenas falo de isonomia. Por mais graves que sejam os crimes dos réus que tiveram habeas negados, há uma coisa que salta aos olhos: o excesso de prazo (sem contar o caso da falta de dinheiro para fiança). No caso de Gusttavo Lima, não houve sequer a concretização da prisão ilegal. Que bom. Porém, nos casos dos não-gustavos, é provável que o excesso de prazo já tenha extrapolado qualquer razoabilidade e proporcionalidade – mesmo aquela “proporcionalidade raiz”, a do Código prussiano.

É disso que se trata.

Há mais de 30 anos eu dizia nas palestras e textos: no Brasil, la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos. A frase é de um camponês salvadorenho, repetida por Jesus José  de La Torre Rangel.

O resto é autoexplicativo pela modernidade tardia brasileira.

No Brasil, pessoas como Gusttavo Lima sabem se defender (meus cumprimentos ao trabalho eficaz dos seus advogados); minha preocupação é com os não-gusttavos. De todo o Brasil.


[1] Foram analisados os últimos 40 acórdãos encontrados a partir da busca de jurisprudência no site do TJ-PE com os requisitos de busca por “PESQUISA LIVRE” (Defensoria Pública), “CLASSE CNJ” (Habeas Corpus Criminal) e “RELATOR” (Eduardo Guilliod Maranhão). Admite-se, por consequência, que, por outros meios, talvez pudesse ser alcançado outro resultado.

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Tutela específica de obrigação de fazer nos contratos de seguro

O Direito Processual Civil brasileiro disciplina o julgamento dos conflitos relacionados com o descumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa. Quando julga procedente o pedido, o juiz deve conceder a tutela específica ou determinar providências que assegurem a obtenção do resultado prático equivalente ao adimplemento (CPC, artigo 497).

O regime da tutela específica foi introduzido em 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 213) e pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 84), seguidos pela Lei nº 8.952 de 1994, uma das micro reformas por que passou o CPC/73 naquela época (artigo 461). Foi uma reação do sistema. A tutela ressarcitória (sancionatória) tradicional se mostrou insuficiente para atender às pretensões insatisfeitas quando o bem da vida perseguido não era pagamento em dinheiro, mas sim uma atividade pessoal do devedor [1]. Em muitos casos, sobretudo nas obrigações infungíveis, o ressarcimento do dano já consumado não passa de um melancólico “prêmio de consolação”, na expressão de Barbosa Moreira, para quem “nem todos os tecidos deixam costurar-se de tal arte que a cicatriz desapareça por inteiro” [2].

Era preciso imprimir mais efetividade à prestação jurisdicional para torná-la capaz de inibir a ameaça do ilícito, evitar sua repetição ou cessar sua continuidade, campo de trabalho das tutelas inibitórias e reintegratórias (de remoção) [3], movimento iniciado na doutrina italiana apontando um catálogo de “novos direitos” que reclamavam proteção especial. A falta de procedimento para regular a execução de obrigação de fazer e não fazer constituía uma obscura terra de ninguém (“un’ambigua terra di nessuno”), queixava-se Sergio Chiarloni nos anos 80 [4].

As preocupações se voltaram para os direitos não patrimoniais da personalidade (vida, integridade física e psíquica, liberdade, honra, imagem), da concorrência, da propriedade intelectual, práticas abusivas no mercado de consumo, degradações ao meio ambiente, conflitos de família [5] etc. Com ênfase no direito fundamental do credor [6], a preferência do sistema pela tutela específica convoca o devedor a produzir resultado igual, ou o mais próximo possível, ao que produziria se tivesse a prestação sido cumprida, sob pena de medidas de pressão psicológica para curvá-lo ao adimplemento [7].

Conversão

Entretanto, existem limites à busca do cumprimento “in natura”. A lei dispõe que a obrigação pode ser convertida em perdas e danos em duas hipóteses: (a) se o autor requerer essa conversão ou (b) se for impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente (CPC, artigo 499). Vale dizer, se a tutela específica não puder ser realizada, porque se tornou inviável, o interessado pode requerer um resultado prático equivalente. Mas se não quiser nem uma coisa nem outra, ou seja, nem o objeto específico nem algo que lhe faças as vezes, o credor pode requerer uma indenização que compense o prejuízo gerado pela inadimplência.

Na técnica processual, ele pode ajuizar diretamente sua pretensão ressarcitória ou formular seus pedidos em cumulação eventual (se não me der o bem A, quero a indenização B[8]. Nada impede também que solicite a conversão no curso do processo quando a tutela específica não tiver mais aderência à realidade material [9], seja na fase de conhecimento [10], seja no cumprimento de sentença [11].

Aqui, a grande discussão era a seguinte: o órgão judicial pode converter a pretensão específica para o procedimento de perdas e danos sem requerimento do credor? A resposta é sim. As hipóteses são alternativas: requerimento do autor ou impossibilidade de cumprimento da prestação. A conversão pode ser voluntária, se o autor preferir, mas pode também ser aplicada de ofício diante das circunstâncias pessoais ou materiais que impossibilitam o cumprimento da obrigação original (conversão compulsória) [12], gatilho que vem do Código de 1973 [13], seguido pelo atual [14].

Nada impede também o devedor de requerer a conversão em perdas e danos, desde que prove a impossibilidade de cumprir a obrigação. É o caso do provedor de internet que, condenado a reativar o perfil do usuário indevidamente excluído da plataforma, consegue demonstrar que é tecnicamente inviável a recuperação do conteúdo apagado do sistema [15].

Agora façamos o caminho inverso. Uma vez pleiteada a conversão pelo autor, pode o órgão discordar para manter o pleito de recebimento do objeto específico? A resposta é negativa. Não se pode impor prestação original a quem já desistiu dela pelos desgastes da inadimplência. A conversão constitui um direito do credor de preferir o ressarcimento e seguir nele até o fim (CC, artigo 247 e 249). Se ficar evidenciado algum abuso de sua parte, isso não lhe retira a pretensão ressarcitória, podendo render algum reflexo negativo na liquidação do dano por falta de mitigação do próprio prejuízo [16].

Portanto, o fato de a lei autorizar a conversão da demanda em perdas e danos, quando houver requerimento do autor ou quando impossível a tutela específica, não significa que, na situação contrária, a demanda de ressarcimento pode ser “convertida” de ofício em tutela específica. Uma vez realizada a conversão, ou preenchidas as condições para tanto, nem o juiz pode impor e nem o réu pode “insistir” no cumprimento de uma obrigação a contragosto do autor. Seria muita invasão em sua esfera de disponibilidade [17].

Como lembrado de início, tudo foi pensado para resolver a crise dos direitos não patrimoniais, o que justifica o esforço pela tutela específica dentro de certos limites. Fora do seu raio, o sistema abre a porta da pretensão ressarcitória.

O § único do artigo 499 do CPC

No entanto, as coisas mudaram com a Lei nº 14.833, de 27/3/2024. O Congresso introduziu um § único no artigo 499 do CPC, que ganhou a seguinte redação:

“Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441618 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.”

O novo dispositivo está dizendo agora que, mesmo após formulado o pleito de conversão em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica nos casos de vícios redibitórios (CC, artigo 441), nos contratos de empreitada (CC, artigo 618), de seguros (CC, artigo 757) e na responsabilidade subsidiária e solidária.

A redação não ficou clara. O verbo “conceder” é transitivo indireto. Quem concede, concede algo a alguém. Faculdade conferida a quem? Ao sujeito passivo? Parece que sim. Ora, se o juízo deve consultar o devedor sobre o interesse dele em cumprir a obrigação, então significa, no fundo, que o credor deixou de ser o titular do direito de preferir o caminho das perdas e danos. A lei transferiu àquele a prerrogativa de avaliar a conveniência da medida.

Aparentemente sutil, a modificação mexe bastante no sistema processual. O que antes foi estruturado para oferecer tutela específica vocacionada ao cumprimento de prestações de cunho não patrimonial a critério do credor, agora está sendo esgarçado para impor obrigações tipicamente patrimoniais a serviço do devedor. Uma supervalorização da tutela específica com mudança no centro de controle.

Múltiplas interrogações estão brotando do novo parágrafo. Qual foi a razão dessa reforma? O Projeto de Lei nº 2.812/2013 nasceu na Câmara dos Deputados por iniciativa dos parlamentares Luciano Bivar (União-PE) e Fernando Marangoni (União-SP). A justificativa era a necessidade de conceder oportunidade para o devedor honrar sua obrigação como forma de preservar a intenção original das partes, especialmente quando o inadimplemento não foi intencional ou foi causado por circunstâncias alheias à vontade do devedor. Registrou-se também que era preciso prestigiar a conservação dos negócios jurídicos e garantir a execução menos gravosa.

Evidente que a motivação política carrega uma crítica às pretensões ressarcitórias. Porém, o projeto parece preocupado com situações muito laterais que não justificam tamanha mudança no regime processual, com reflexo no campo das obrigações. Muitas vezes, o conflito decorrente da inadimplência gerou um estado de coisas tão desgastante que, mesmo sendo possível sua continuidade, o credor não confia e nem aceita mais a presença do prestador de serviço em sua residência ou empresa para continuação de uma obra que não deu certo por uma série de motivos. Não é justo que essa decisão se transforme em direito potestativo na mão do devedor.

Seguros

Avançando um pouco mais, o que têm os contratos de seguro a ver com isso? Os segurados, beneficiários e terceiros prejudicados têm pretensões tipicamente indenizatórias, fundadas no descumprimento de obrigação de pagar quantia certa, sujeitas às condições contratuais e limites de cobertura. Contam-se nos dedos as obrigações de fazer da companhia de seguros: prestar o serviço de regulação do sinistro, proceder à contratação, à prorrogação ou à renovação do contrato em determinadas situações particulares, constituir reserva técnica etc.

Talvez alguma proximidade com o seguro-garantia de obrigações contratuais. Excepcionalmente, em obras e serviços de engenharia, havendo inadimplência no contrato de prestação de serviço, a seguradora pode assumir o compromisso de dar prosseguimento ao projeto para concluí-lo sob sua responsabilidade. É a chamada cláusula de retomada [18], uma experiência da nova Lei de Licitações [19], buscando resolver a crise das obras públicas inacabadas no Brasil [20].

Entretanto, antes de assumir a direção dos trabalhos, a seguradora precisa instaurar o processo de regulação do sinistro à luz do contrato de seguro. Imaginemos então que ela investigue a crise contratual, apure suas causas, mas conclua pela ausência de cobertura, o que significa que não deve assumir a obra e nem pagar indenização ao segurado. Diante desse fato, o segurado ingressa em juízo com ação cominatória para obrigá-la a tocar o serviço mal-acabado, mas depois pede sua conversão em perdas e danos. De acordo com o § único do artigo 499 do CPC, o juiz deve perguntar à companhia de seguros o que ela prefere fazer: executar a obra por meio de terceiros ou pagar a indenização ao segurado?

A essa altura dos acontecimentos, já recusada a cobertura, é muito provável que ela não queira e nem possa assumir a execução do projeto no lugar do agente inadimplente. Aceitará a conversão em perdas e danos. Até pelo princípio da menor onerosidade (CPC, artigo 805), depositar a indenização em juízo, se for o caso, será muito mais palatável à seguradora do que providenciar a execução do contrato por intermédio de empreiteira às suas custas.

Difícil enxergar alguma utilidade prática nessa prerrogativa para os contratos de seguro. Mais estranho ainda ficará essa “consulta” quando o segurado já optou por ajuizar originalmente sua pretensão de cobrança da indenização securitária.

A benesse cria distinções. Parece aplicável a todos os seguros, incluindo contratos de consumo e empresariais, massificados e grandes riscos, mas privilegia corresponsáveis solidários em detrimento dos não solidários. Como fica o princípio da igualdade? É uma boa pergunta formulada por José Miguel Garcia Medina [21]. Aliás, curioso observar que, surgindo a necessidade de conversão na fase de conhecimento, o juiz terá que dizer antecipadamente se existe ou não solidariedade, quando essa seria uma questão a ser dirimida pela sentença ou decisão parcial de mérito.

Na verdade, não havia necessidade de mencionar o artigo 757 do Código Civil numa regra processual com tamanha generalidade. Tampouco se teve preocupação de ouvir especialistas para entender qual seria o impacto da proposta na relação securitária. Esse mesmo dispositivo pode sofrer alterações no futuro próximo, seja pelo processo de atualização do Código Civil no Congresso Nacional, seja por força do Projeto de Lei nº 2.597/2024, que propõe a revogação do seu Capítulo XV para estabelecer uma lei específica em matéria de seguros.

É preciso ter cautela. O acesso à Justiça que prestigiou o sistema de tutelas específicas, com balanceamentos graduais à disposição do credor, é o mesmo acesso à Justiça que pode sair machucado agora com as extravagâncias que essa inversão de papeis pode causar na dinâmica dos litígios. Para dar um tempero ao § único do artigo 499 do CPC, sua leitura poderia ser a seguinte: o juiz deve consultar as partes sobre a possibilidade de cumprimento da tutela específica. Apenas um convite ao diálogo e não uma imposição a contragosto do credor.

Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.


[1] DIDIER JR, Fredie et alCurso de Direito Processual Civil – Execução. 9ª ed., Salvador: Juspodium, 2019, v. 5, p. 593.

[2] Essa crítica vinha em construção: BARBOSA MOREIRA, J. C. Tutela sancionatória e tutela preventiva. Temas de direito processual (2ª série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 21-30.

[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não fazer. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil, v. 2, 1997, p. 111.

[4] CHIARLONI, Sergio. Misure coercitive e tutela dei diritti. Milano: Giuffrè, 1980, p. 102; RAPISARDA, Cristina. Profili della Tutela Civile Inibitoria. Pádova: Cedam, 1987, p. 77.

[5] MARINONI, Luiz GuilhermeTutela inibitória (individual e coletiva). 4ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 272.

[6] GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003, p. 116.

[7] BARBOSA MOREIRA, J. C. A tutela específica do credor nas obrigações negativas. Temas de direito processual (2ª série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 33; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Execução específica das obrigações de fazer e não fazer. In: ARRUDA ALVIM et al (Coord.). Execução civil e temas afins do CPC/1973 ao novo CPC – Estudos em homenagem ao Professor Araken de Assis. São Paulo: RT, 2014, p. 338.

[8] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 527.

[9] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Comentário ao artigo 499. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2ª ed., São Paulo: RT, 2016, p. 898.

[10] Enunciado 525 do FPPC: “A produção do resultado prático equivalente pode ser determinada por decisão proferida na fase de conhecimento”.

[11] STJ, 3ª T., REsp 1.760.195-DF.

[12] CUNHA, Leonardo Carneiro da. CPC comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 778.

[13] STJ, 4ª T., AgInt no Agravo em RESP 2.081.278-SP.

[14] STJ, 4ª T., AgInt nos EDcl no RESP 1.821.265-SP.

[15] Precedentes envolvendo o Facebook: TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado, Agravo nº 2184697-88.2024.8.26.0000, Des. Antonio Rigolin, j. 12.07.2024; 19ª Câmara de Direito Privado, Agravo nº 2144045-29.2024.8.26.0000, Des. Cláudia Tabosa Pessoa, j. 13.08.2024.

[16] TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de entrega de coisa. 2ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 331.

[17] Interessante reflexão à luz do CPC anterior: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. A Tutela Específica e o Princípio Dispositivo – Ampla Possibilidade de Conversão em Perdas e Danos por vontade do Autor – https://blog.grupogen.com.br/juridico/.

[18] Circular SUSEP nº 662/2022, art. 21, inc. II.

[19] Lei nº 14.133/2021, art. 102.

[20] MELO, Roque de Holanda. A busca pela efetividade do seguro garantia nas contratações públicas. In: GOLDBERG, Ilan & JUNQUEIRA, Thiago (Coord.). Direito dos Seguros em Movimento. São Paulo: Foco, 2024, p. 306.

[21] MEDINA, José Miguel Garcia. Tutela específica mitigada: alteração do CPC pela Lei 14.833, de 27/3/2024 – https://www.conjur.com.br/2024-mar-28/a-tutela-especifica-mitigada-a-alteracao-do-cpc-pela-lei-14-833-de-27-3-2024/.

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A quem pertence o ônus de comprovar a cadeia de custódia da prova?

Desde que a Lei 13.964/2019 tipificou regras básicas a respeito da cadeia de custódia da prova, o debate sobre tema se tornou rotineiro nos tribunais.

Na jurisprudência edificada a respeito do tema, se consolidou o entendimento de que caberia à defesa demonstrar e comprovar a quebra da cadeia de custódia, a título de exemplo: “a defesa não logrou demonstrar prejuízo em razão do alegado vício, tampouco comprovou cabalmente a ocorrência de quebra da cadeia de custódia (…)” [1],

“Para demonstrar a quebra da cadeia de custódia é imprescindível que seja demonstrado o risco concreto de que os vestígios coletados tenham sido adulterados.(…)”[2], “(…) A configuração da quebra da cadeia de custódia pressupõe a existência de irregularidades no procedimento de colheita e conservação da prova, não demonstrados de plano pelo recorrente. (…)” [3] e outras diversas decisões no mesmo sentido.

Essa visão a respeito do ônus da prova [4] é mais uma das inadequadas importações do processo civil, da qual se extrai a conclusão de que a prova do fato incumbe a quem a fizer. Logo, se é a defesa quem alega a quebra da cadeia de custódia, cabe a ela comprovar a inobservância do rito previsto no artigo 158-A a 158-F do CPP ou qualquer outro vício que contamine a higidez da prova (por exemplo, a inobservância da ABNT/ISSO 27037/2013 que regulamente o tratamento de evidências digitais).

Quando o artigo 156 do CPP repete esta afirmação, está se referindo à prova da alegação acerca da prática de um crime, incumbindo a quem acusa demonstrar através das provas (lícitas) a autoria e materialidade [5], não sendo razoável inverter esta interpretação a ponto de aceitar que caberia a parte adversa comprovar a quebra da cadeia de custódia de uma prova que não foi responsável pela colheita ou produção.

Mais do que inverter o ônus da prova a respeito da cadeia de custódia, o que não se admite por qualquer prisma no processo penal, isso seria o mesmo que exigir da parte adversa uma “prova diabólica”, para utilizar um termo recorrente na linguagem de que acusa.

Controle de confiabilidade

O controle de confiabilidade de uma prova pressupõe a realização de uma “prova sobre a prova” [6] por razões óbvias. Somente quem produziu e colheu a prova poderá (leia-se: deverá) comprovar a higidez e fiabilidade desta prova.

Seria impossível esperar que a defesa comprovasse a quebra da cadeia de custódia de uma prova extraída de um celular ou computador, se não lhe foi fornecido o código hash. Pela mesma lógica, também seria impossível que a defesa comprovasse a quebra da cadeia de custódia de objetos apreendidos na cena do crime, sem que lhe fosse apresentado informações sobre a coleta, acondicionamento, transporte e outras informações no processamento da prova até a perícia.

Diferentemente do que ocorre no direito administrativo, no processo penal não vige o princípio da presunção de veracidade dos atos oriundos da administração pública, pelo qual se justificaria uma confiança pré-constituída na higidez e fiabilidade da prova produzida pelas Polícias, Ministérios Públicos e outras agências de Estado. Não se espera outro comportamento em relação à prova produzida pela defesa, excetuando-se os casos em que a própria jurisprudência admite a prova ilícita pro reo. [7]

No processo penal, os princípios regentes são outros, tais como a legalidade presunção de inocência — não basta qualquer prova, é necessário que seja lícita [8] e colhida sobre égide da legalidade, ou seja, preservando a cadeia de custódia —, e por isso, sobre a prova acusatória apresentada vige aquilo que Geraldo Prado propôs chamar de “princípio da desconfiança” que recai sobre a autenticidade da prova [9].

Quebra da cadeia de custódia

A quebra da cadeia de custódia pode se dar de duas formas, por ação ou omissão: comportamento comissivo: quando se constata algum vício na cadeia de custódia da prova; ou comportamento omissivo: quando sequer é fornecida a cadeia de custódia da prova.

Reconhecendo que a quebra da cadeia de custódia pode ser consequência de um comportamento omissivo de quem colheu ou produziu a prova, ao não comprovar os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado, em decisão da 5ª Turma do STJ, a ministra Daniela Teixeira reconheceu a quebra da cadeia de custódia anotando que “a falha na cadeia de custódia pode resultar na imprestabilidade da prova, sendo que a mera alegação de correção na coleta das provas pelo Estado não é suficiente para garantir sua admissibilidade”, concluindo que “a falta de documentação adequada sobre o local e os objetos periciados gera insegurança jurídica e torna as provas inadmissíveis para fins penais” [10].

Respondendo à pergunta que deu origem a este texto: incumbe a quem colheu ou produziu a prova (acusação ou defesa) o ônus de comprovar a cadeia de custódia, ou seja, a higidez e fiabilidade da prova apresentada. Não por outro motivo a ausência da demonstração de “todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado” (artigo 158-A do CPP) configura, por si só, a quebra da cadeia de custódia e impede que a prova seja admitida e valorada.


[1] STJ, AgRg no AREsp n. 2.684.625/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 16/9/2024.

[2] STJ, AgRg no HC n. 825.126/SP, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do Tjsp), Sexta Turma, julgado em 9/9/2024, DJe de 11/9/2024.

[3] AgRg no HC n. 870.078/RJ, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 2/9/2024, DJe de 6/9/2024.

[4] Concordamos com Aury Lopes Jr. quando demonstra que a adequação do termo ao processo penal requer o uso do substantivo “carga” e não “ônus” da prova e por consequência não há distribuição de cargas, vide LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 425/427.

[5] Neste sentido, vasta doutrina: BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 490/496; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Et. Al. Código de Processo Penal Comentado, 4ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 500/501; ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 6ª Ed. Florianópolis: EMais, 2020, p. 662; LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 425/427 e outros.

[6] BELTRÁN-FERRER, Jordi. Valoração Racional da Prova. Tradução: Vitor de Paula Ramos. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 130.

[7] STJ, RHC 173.639/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, decisão monocrática, j. 06/06/2023.

[8] ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiroanálise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 463.

[9] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 150/153.

[10] STJ, AgRg no AREsp n. 2.460.649/MG, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 13/9/2024.

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Quinto constitucional amplia caminhos para a justiça, dizem ministros do STJ

Nomeados para o Superior Tribunal de Justiça em vagas destinadas à advocacia, os ministros Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Sebastião Reis Júnior exaltaram a cooperação entre advogados e magistrados como sendo algo capaz de criar novos caminhos para a Justiça.

Antonio Carlos Ferreira 2024

Ex-advogado, ministro Antonio Carlos Ferreira foi um dos homenageados – Pedro França/STJ

 

O trio foi homenageado em evento na sede da seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na noite desta segunda-feira (7/10). A cerimônia exaltou o papel do quinto constitucional nos 35 anos de instalação do STJ.

Também receberam homenagens o ministro João Otávio de Noronha, que está em viagem a serviço do STJ, e as ministras Maria Thereza de Assis Moura e Daniela Teixeira, que estavam em compromisso no tribunal.

O quinto constitucional é a previsão de que uma parcela da composição dos tribunais de apelação seja de advogados e membros do Ministério Público, como forma de oxigenar posições e democratizar julgamentos. No STJ, ele é maior: um terço da composição tem essa origem, ou seja, 11 dos 33 ministros.

Os três foram indicados, sabatinados e nomeados conjuntamente em 2011. Todos eram registrados na OAB-DF, e foram elogiados pelo presidente do Conselho Federal da OAB, Beto Simonetti, e pelo presidente da seccional distrital, Délio Lins e Silva Jr.

Quinto constitucional

Antonio Carlos Ferreira destacou que chegou ao STJ reiterando o compromisso de respeitar as prerrogativas da advocacia, uma missão assumida ao receber a carteira da OAB e reforçada na sabatina no Senado, quando da indicação para a vaga na corte superior.

Para ele, o exercício diário da advocacia leva a compreender que as prerrogativas pertencem ao cidadão, que tem direito ao exercício da defesa de seus interesses por um advogado altivo, independente e seguro de que pode atuar sem receio algum.

“Juntos com nossos trabalhos, independentes, mas com harmonia, podemos criar caminhos para atenuar e suprimir as dores de quem procura Justiça, pelo bem comum, paz social e construção de uma sociedade que seja verdadeiramente melhor para todos”, disse Ferreira.

Villas Bôas Cueva, por sua vez, destacou que os indicados pelo quinto constitucional carregam consigo a bagagem do advogado enquanto engenheiro social, formado para resolver e mediar conflitos, em defesa de valores constitucionais e do Estado de Direito.

“Hoje, não há mais ninguém que ouse falar contra o quinto constitucional. Até mesmo entidades representativas de juízes não falam, porque veem como isso os complementa na busca de vozes diferentes que produzam Justiça.”

“Advogados, promotores e juízes, somos todos atores auxiliares de processos complexos. A cooperação entre todos é fundamental. Essa tradição brasileira de ter sempre nos tribunais de apelação representantes da advocacia e do Ministério Público contribuiu muito para que essa pluralidade continue a existir”, complementou Cueva.

Já Sebastião Reis Júnior destacou que os egressos da advocacia têm a oportunidade de levar aos advogados a experiência da magistratura. E relembrou lição do ex-ministro do Tribunal Federal de Recursos e professor da UnB Paulo Távora: o advogado deve ajudar o juiz a ajudá-lo.

“Da mesma forma que juiz não sabe da advocacia, advogado não sabe o que é a magistratura. Esse diálogo é importante e a figura do quinto constitucional facilita. Hoje posso falar que isso incomoda o juiz ou não, que isso pode ou não, porque tenho experiencia desse lado do balcão.”

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Validade da assinatura digital pelo consumidor analfabeto à luz do art. 595 do CC

O direito contratual atravessa um período inédito no Brasil, marcado por formulações doutrinárias que impactaram a conceituação fundamental dos contratos e seus desdobramentos no sistema jurídico. A vontade, elemento crucial e absoluto para a formação dos contratos, já não é suficiente para definir a contratualidade atual, que agora se baseia no princípio da autonomia privada.

É sabido que a teoria geral dos contratos, alinhada ao direito civil, tem sofrido mudanças, direcionando-se cada vez mais pelo viés do direito civil constitucional. Nesse contexto, diversos fatores contribuíram para a evolução da teoria contratual, incluindo a superação do liberalismo jurídico.

Os princípios contratuais desempenham um papel central no desenvolvimento dos contratos, pois a legislação é elaborada com base nos princípios jurídicos aplicáveis, sejam eles positivados ou não, que acompanham as fases de evolução conceitual da teoria contratual.

A liberdade contratual é delimitada pela aplicação dos valores fundamentais da Constituição, sem negar a autonomia privada das partes na relação contratual. As partes têm liberdade para agir na esfera privada, desde que respeitem princípios como lealdade, socialidade e eticidade, em conformidade com o bem comum e os interesses econômicos e sociais.

A vontade é vista como a base da obrigatoriedade dos contratos, em harmonia com a plena liberdade concedida às partes para celebrar seus negócios. Além disso, os princípios do direito contratual ressaltam a importância do contrato como expressão de consenso e da vontade como fonte de efeitos jurídicos.

A par disso, essa vontade deve ser livre e manifestada de forma clara e insofismável, sob pena de anulabilidade do instrumento.

Quando os contratantes são pessoas plenamente capazes e que podem ler e compreender com exatidão os termos da contratação, a forma de manifestação dessa vontade não exige grandes formalidades, manifestando-se com a simples assinatura dos contratantes.

De outro lado, tratando-se de contratante analfabeto, algumas particularidades se apresentam. Não se discute que a pessoa analfabeta é dotada de capacidade para a prática de praticamente todos os atos da vida civil, entre eles o de contratar e ser contratado.

Testemunhas para contratante analfabeto

Contudo, diante da sua impossibilidade de ler e, assim entender perfeitamente o que está escrito nas cláusulas da avença, o legislador criou uma fórmula para que se possa dar credibilidade à contratação realizada pelo analfabeto, de modo a afastar a ideia de que tenha sido enganado ou induzido a contratar algo que não era o pretendido.

Essa fórmula é expressamente consignada pelo artigo 595 do CC/2002, que exige que, na contratação realizada por analfabeto, a sua manifestação de vontade seja expressada por meio de assinatura a rogo e de duas testemunhas.

Apesar do rigorismo da norma, a jurisprudência pátria — atenta à evolução das formas de contratações — tem abrandado essa regra, contemplando a validade dos contratos quando consta a impressão digital do contratante analfabeto, acompanhada da assinatura de duas testemunhas devidamente identificadas por seus documentos pessoais, ainda que ausente a assinatura a rogo.

Em tais casos, consignou-se que a regra do artigo 595 do CC emprega a expressão “poderá”, o que indica que o instrumento pode ser assinado a rogo, como também pode ser assinado por outros meios legais, a exemplo da aposição da digital.

Portanto, a teor do disposto no artigo 595 do CC, a contratação realizada por analfabeto será válida tanto na hipótese da presença de assinatura a rogo, quando nos casos de aposição de sua impressão digital, desde que, em ambos os casos, haja a assinatura de duas testemunhas identificadas por seus respectivos documentos.

Nesse sentido, destacam-se precedentes do TJ-MA, a exemplo: ApCiv 0817336-64.2019.8.10.0001, relator: JAMIL DE MIRANDA GEDEON NETO, Publicação: 12/04/2022; ApCiv 0800454-65.2020.8.10.0074, relator: JOSE JORGE FIGUEIREDO DOS ANJOS, Publicação: 20/05/2022.

Contudo, essa fórmula só pode ser aplicada aos casos de contratos físicos, onde o contratante esteja de corpo presente na formação da avença.

Solução para forma eletrônica de contrato

A celeuma surge, contudo, quando o contrato é realizado de forma eletrônica.

Com efeito, ao longo dos últimos anos acompanhamos uma evolução significativa nos meios de contratação de empréstimos, impulsionada pelo avanço da tecnologia e a necessidade de processos mais rápidos e seguros.

Antes, a contratação de empréstimos geralmente envolvia burocracias e exigia que o cliente se deslocasse até o banco ou instituição financeira para assinar diversos documentos. No entanto, com os avanços tecnológicos, surgiu a possibilidade de realizar todo o processo de forma eletrônica, eliminando a necessidade de papel e agilizando a concessão de crédito.

Isso estabelecido, surge a dúvida: como compatibilizar essas novas formas de contratação com a regra do artigo 595 do CC?

De início, há que se esclarecer que o Código Civil vigente é do ano de 2002, época em que, apesar de já se contemplar diversos avanços tecnológicos, ainda não era possível imaginar todas as inovações digitais que usufruímos hoje em dia, nem as modernas formas de contratação que existem nos dias atuais.

Dessa maneira, afigurava-se impossível ao legislador disciplinar a situação ora em debate. Contudo, não se pode ignorar que os analfabetos, assim como os indígenas, entre outras minorias, não podem estar relegados à invisibilidade digital, de modo a impedir que utilizem as ferramentas modernas trazidas pelas inovações tecnológicas.

Afinal, a Constituição, em seu artigo 3º, estabeleceu como objetivo fundamental da República a erradicação da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e aplicando essa norma ao contexto dos contratos eletrônicos, é imperativo que as pessoas analfabetas não sejam excluídas da esfera digital, garantindo-lhes acesso e inclusão nos meios eletrônicos.

Dinamismo do direito

Doutrinadores como Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho destacam a necessidade de adaptar os institutos tradicionais do direito às novas realidades tecnológicas. Eles afirmam que a interpretação do direito deve ser dinâmica, considerando o contexto social e tecnológico atual, sem perder de vista os princípios fundamentais que regem o ordenamento jurídico.

Nesse sentir, e diante da ausência de disciplinamento específico conferido pelo legislador, ao Judiciário coube, pelo menos por enquanto, o dever de solucionar a questão, em face do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV).

De acordo com a Medida Provisória nº 2.200-2/2001, a assinatura digital deve se operar por meio da “Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira — ICP-Brasil”, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.

Por meio das regras da ICP-Brasil, cada assinatura associa uma entidade, pessoa, processo ou servidor a um par de chaves criptográficas, uma associada àquele que assina digitalmente e outra à autoridade certificadora.

Assim, quando adotada a infraestrutura da ICP-Brasil, o entendimento que prevalece é o de que a entidade certificadora faria as vezes das testemunhas elencadas pelo artigo 595 do CC, de modo a satisfazer a formalidade legal e validar a contratação.

Nesse sentido: TJ-PR ApCiv 0004091-58.2017.8.16.0086, relator: Desembargador Fernando Antonio Prazeres, Data de Julgamento: 01/11/2018, 14ª Câmara Cível, Data de Publicação: 06/11/2018.

Contratação bancária

Todavia, tratando-se de contratos bancários, a contratação eletrônica pode se realizar, hodiernamente, de duas formas: ou por meio de caixa eletrônico de autoatendimento, onde há a utilização de cartão físico por meio do contratante, com assinatura digital através de senha de quatro dígitos e código gerado por meio de token; ou, ainda, por meio de aplicativos bancários inseridos em dispositivos eletrônicos individuais (smartphones ou assemelhados), sem usar a estrutura de chaves da ICP-Brasil.

Em casos assim, a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 não desconhece a existência da assinatura, mas impõe, para sua validade, que seja ela admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento. É essa a dicção do artigo 10, § 2º:

O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.”

No mesmo sentido se posiciona o inciso II, do artigo 4º, da Lei nº 14.063/2020, a saber:

II – assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: […].”

Portanto, nesses casos, a assinatura eletrônica só seria válida se aceita pelo contratante; e tendo o consumidor negado a contratação, o documento não possuiria o condão de comprovar a efetiva contratação.

Ocorre que essa fórmula se mostrou de todo imperfeita, porquanto dá margem à atuação de má-fé de pessoas que, mesmo contratando livremente, posteriormente se interessem em não cumprir a avença e, assim, questionar a legitimidade da contratação, ferindo o princípio da boa-fé objetiva encartado no artigo 422 do Código Civil.

Tipos de assinatura digital

Para solucionar o problema, as instituições financeiras passaram a adotar basicamente dois tipos de assinaturas: por chave criptografada e por biometria facial.

A assinatura digital por chave criptografada é um método de autenticação que utiliza algoritmos de criptografia para garantir a segurança e autenticidade de documentos eletrônicos.

Funciona através da geração de um par de chaves: uma chave privada, conhecida apenas pelo signatário, e uma chave pública, disponibilizada para verificação. Quando um documento é assinado digitalmente, a chave privada é usada para criar uma assinatura digital única, que pode ser verificada usando a chave pública correspondente. Isso garante que o documento não foi alterado após a assinatura e que o signatário é quem ele afirma ser.

Já a biometria facial consiste no reconhecimento da face do indivíduo por meio de um software e tem se mostrado uma solução eficiente e segura para garantir a identidade do solicitante do empréstimo. Por meio de algoritmos sofisticados, a tecnologia é capaz de analisar diversos pontos faciais únicos, como o formato dos olhos, nariz e boca, criando uma assinatura digital exclusiva para cada pessoa.

Esse método traz inúmeras vantagens tanto para os clientes como para as instituições financeiras. Primeiramente, a utilização da biometria facial proporciona maior segurança na identificação do cliente, reduzindo consideravelmente a possibilidade de fraudes. Além disso, a agilidade no processo de contratação é um diferencial importante, permitindo que o empréstimo seja solicitado e aprovado rapidamente, sem a necessidade de deslocamentos ou envio de documentos físicos.

A praticidade proporcionada pela assinatura através da biometria facial também contribui para uma experiência mais satisfatória para o cliente. Não é mais necessário enfrentar filas, enviar documentos pelo correio ou digitalizar papéis, o que simplifica e agiliza todo o processo, tornando-o mais conveniente.

Videoconferência registrada

Além dessas duas formas de assinatura digital, também já se contempla a utilização de videoconferência com registro audiovisual, além de plataformas adaptadas para incluir suporte inclusive a analfabetos, com interfaces de voz e instruções audiovisuais, garantindo que o usuário compreenda e valide o contrato de forma consciente.

É importante destacar que, para garantir a segurança e proteção dos dados dos clientes, as instituições financeiras adotam medidas de criptografia e segurança robustas para proteger as informações pessoais, de modo que o consumidor pode se sentir tranquilo ao utilizar esse meio de contratação de empréstimos, já que oferece maior segurança contra falsificação e adulteração de documentos, elimina a necessidade de armazenamento físico e transporte de papéis e é reconhecida legalmente como equivalente à assinatura física, conforme expressamente consagrado pela Lei nº 14.063/2020.

Em recentes decisões, o Superior Tribunal de Justiça tem manifestado entendimento pela validade dos contratos onde se constata a aposição de assinatura digital, quando ambas as partes, no legítimo exercício de sua autonomia privada, elegeram meio diverso de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, com uso de certificado não emitido pela ICP-Brasil. Nesse sentido o REsp 2.159.442 / PR, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, publicado em 27/09/2024).

Conclui-se, portanto, que o artigo 595 do Código Civil deve ser reinterpretado à luz do contexto atual, em que os contratos eletrônicos são uma realidade consolidada, assegurando que os analfabetos não sejam excluídos do meio eletrônico. A exigência de duas testemunhas ou assinatura a rogo para analfabetos pode e deve ser flexibilizada, desde que se adotem medidas tecnológicas que assegurem a autenticidade e a integridade da manifestação de vontade do analfabeto.

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Referências bibliográficas

1 – GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. In Novo Curso de Direito Civil – Contratos. São Paulo: Saraiva, 2019.

2 – VENOSA, Silvio de Salvo Venosa. In Direito Civil – Contratos em Espécie. São Paulo: Atlas, 2020.

3 – GOMES, Orlando Gomes. In Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

4 – SOARES, Sávio de Aguiar. In Teoria Geral dos Contratos e funcionalização no Direito Privado contemporâneo. Disponível em http://www.lfg.com.br 04 julho. 2008.

5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Manual de Assinatura Eletrônica. Disponível online.

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Decisão da Suprema Corte está fazendo um estrago no poder regulatório do governo dos EUA

Na decisão de 28 de junho da Suprema Corte dos Estados Unidos que revogou o precedente Chevron Deference — o que criou a Doutrina Chevron, segundo a qual os juízes federais deveriam acatar a interpretação dos órgãos governamentais de leis que são ambíguas ou omissas, desde que a interpretação fosse razoável — e passou essa responsabilidade para os tribunais, a ministra Elena Kagan previu, em seu voto dissidente, que haveria “uma ruptura em grande escala” no poder regulatório do governo.

Sede da Suprema Corte dos Estados Unidos, Suprema Corte dos EUA, SCOTUS
Suprema Corte dos EUA revogou o precedente Chevron Deference – Pacamah/Wikimedia Commons

Pouco mais de três meses depois, a previsão da magistrada se confirmou: empresas e outras organizações moveram 110 ações em que alegam que órgãos federais excederam a autoridade que lhes foi conferida pelo Congresso. E, de acordo com a decisão em Loper Bright Enterprises v. Raimondo (referida como Loper Bright), seus regulamentos devem ser revogados.

De um modo geral, juízes federais de primeiro e segundo graus têm concordado com esse argumento — e vêm ajudando essas organizações a se livrar de regras federais de que não gostam —, tudo em nome da extinção da Doutrina Chevron, em uma decisão que trocou a expertise de técnicos e cientistas dos órgãos públicos pela expertise jurídica dos juízes.

Entre as ações que tramitam nas cortes, há pedidos de revogação de regulamentos que tratam da poluição do ar e da água; da emissão de gases de efeito estufa; da mudança do clima; da discriminação em tratamento da saúde; da segurança alimentar e de medicamentos; do controle da compra de armas; do aborto; do pagamento de horas extras; de taxas “escondidas” das companhias aéreas; e da honestidade do mercado financeiro.

Algumas publicações, como a Courthouse News Service, a Earthbeat (National Catholic Reporter) e a ProPublica, reuniram alguns desses casos que já tramitam pela Justiça Federal dos EUA — e são precursoras das muitas que virão para desmantelar o que essas organizações chamam de “estado administrativo”.

Poluição das caldeiras industriais

Environmental Protection Agency (EPA), agência responsável pela proteção ambiental nos EUA, divulgou, em 3 de setembro, um regulamento que impõe padrões de poluição mais rigorosos para novas caldeiras industriais (deixou as antigas em paz).

Um grupo de empresas do setor, lideradas pela U.S. Sugar Corporation (a maior produtora de cana-de-açúcar dos EUA), contestou a autoridade da EPA para regulamentar a Lei do Ar Limpo (Clean Air Act), em vista da extinção da Doutrina Chevron. E argumentou que os juízes são mais capacitados para interpretar a legislação ambiental.

O grupo inclui empresas que queimam carvão, papel e rejeitos agrícolas para gerar energia e emitem poluentes tais como mercúrio, monóxido de carbono, cloreto de hidrogênio e outras partículas.

O Tribunal Federal de Recursos para o Distrito de Colúmbia (em Washington, D.C.) decidiu que a EPA classificou inapropriadamente as caldeiras industriais como fontes de poluição perigosa, de acordo com seus novos padrões de poluição mais rigorosos. E citou a decisão da Suprema Corte em Loper Bright que aboliu o precedente Chevron Deference para sustentar sua própria decisão.

Pagamento de horas extras

Apenas algumas horas após a Suprema Corte divulgar o fim da Doutrina Chevron, um juiz federal no Texas expediu uma liminar que suspendeu uma nova regulamentação do Departamento do Trabalho dos EUA que expandiu o direito ao pagamento de horas extras.

O regulamento tinha a finalidade de conter uma “malandragem” de alguns empregadores, que classificavam empregados comuns como “executivos” — uma classe que não recebe pagamentos por horas extras trabalhadas —, e estabelecia que empregados com salários inferiores a US$ 43.888 por ano, em 2024, e a US$ 58.656 por ano, em 2025, e que exercem o mesmo trabalho de outros assalariados, não podem ser classificados como “executivos”.

O juiz decidiu que o Departamento do Trabalho excedeu a autoridade que lhe foi concedida pelo Congresso na lei Fair Labor Standards Act. E, em observância à decisão da Suprema Corte em Loper Bright, bloqueou a nova regra. E prometeu uma decisão final em questão de meses.

Discriminação contra transgêneros

Em julho, três juízes federais, em estados diferentes, sustentaram-se na decisão de Loper Bright para bloquear a implementação de uma nova regra do Departamento de Saúde e Serviços Humanos que proibia a discriminação baseada em identidade de gênero em tratamento de saúde.

O juiz federal Louis Guirola Jr. emitiu uma liminar válida para todo o país contra a nova regra, segunda a qual a identidade de gênero é protegida pela Affordable Care Act — lei mais conhecida como Obamacare (que garante seguro-saúde a quem não pode pagar uma empresa privada).

O juiz argumentou que a lei proíbe discriminação “com base em sexo”, mas não usa a frase “identidade de gênero”. Além disso, escreveu o juiz, o Departamento de Saúde excedeu sua autoridade ao expedir a nova regra, o que vai contra a decisão da Suprema Corte em Loper Bright.

Taxas ocultas de companhias aéreas

Para atrair compradores, várias companhias aéreas adotaram a prática de anunciar passagens por um preço baixo, para bater a concorrência. Mas, no processo de compra, começam a aparecer taxas que devem ser acrescidas ao preço, tais como taxa para marcar assento, taxa para despachar malas etc. E, nas linhas finas, taxas de cancelamento ou de mudança de datas dos voos.

Em abril, o Departamento de Transporte emitiu uma regra que proíbe essas “surpresas desagradáveis, que rendem a elas meio bilhão de dólares anualmente”. E determinou que todas as taxas devem ser explícitas na primeira vez que a companhia aérea oferece o preço da passagem ao consumidor.

Em maio, um grupo de companhias aéreas moveu uma ação judicial na qual alegam que o Departamento do Trabalho excedeu sua autoridade ao impor a elas essa regra. Em sua petição, elas afirmam que o órgão pode ordenar que parem com práticas injustas ou enganosas depois que elas ocorrem, mas não pode dizer a elas que práticas devem adotar.

Em 1º de julho, advogados que representam as companhias aéreas argumentaram no Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região que, de acordo com a decisão da Suprema Corte em Loper Bright, apenas os tribunais, não um órgão do governo, têm autoridade para interpretar a lei.

No final do mês, o tribunal decidiu que os advogados comprovaram que o Departamento do Trabalho excedeu sua autoridade ao impor essa nova regra. E a bloqueou.

Acordo trabalhista de não concorrência

Depois de cinco anos de estudos, a Federal Trade Commission (FTC) emitiu uma regra que proíbe as empresas de obrigar seus empregados a assinar acordos de não concorrência — os que estabelecem, em contratos de emprego, que o empregado que deixar a empresa fica impedido de trabalhar para uma concorrente por um certo período de tempo.

A FTC argumentou que a regra é necessária porque tais cláusulas contratuais prejudicam “a liberdade fundamental dos trabalhadores de mudar de emprego”, além de serem “exploradoras” e de “impedir a inovação”.

Em agosto, um grupo de organizações, liderado pela Câmara de Comércio dos EUA, moveu uma ação em um tribunal federal no Texas alegando que a FTC excedeu sua autoridade. O juiz federal repetiu tal argumento ao escrever que “a FTC promulgou uma regra de não competição em excesso de sua autoridade legal”, conforme decidido em Loper Bright.

Exigência de antecedentes na compra de armas

Em abril, o órgão governamental encarregado de controlar o comércio de álcool, tabaco e armas de fogo (ATF — Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives) emitiu uma regra destinada a preencher uma brecha na lei. A nova norma estabelece que os compradores de armas vendidas pela internet ou em feiras de armas também devem apresentar atestados de bons antecedentes, como qualquer pessoa que as compra em lojas.

“Todos os comerciantes de armas, que vendem o produto para obter lucro, devem exigir atestado de bons antecedentes, para se assegurar que o comprador não é proibido por lei de adquirir uma arma”, diz a regra.

Uma ação contra a norma foi movida por 21 estados republicanos em um tribunal federal em Arkansas. Outro grupo de interessados foi mais esperto: moveu uma ação no Tribunal Federal do Distrito Norte do Texas, onde atua o juiz de preferência dos republicanos, na prática de judge shopping, Matthew Kacsmaryk.

O juiz emitiu rapidamente uma liminar (antes mesmo de a decisão de Loper Bright ser anunciada) bloqueando a execução da regra. Ele argumentou que havia uma alta probabilidade de os peticionários serem bem-sucedidos no julgamento do mérito porque a ATF excedeu sua autoridade.

O Departamento de Justiça (DOJ) entrou com recurso contra a liminar no Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região — o mais conservador-republicano do país. Sem chances de ganhar a causa nesse tribunal, provavelmente terá de recorrer à Suprema Corte.

Ajuda federal a estados que proíbem o aborto

O governo federal disponibiliza fundos aos estados para financiar programas de planejamento familiar. Tal planejamento inclui a oferta de “aconselhamento neutro e não diretivo sobre aborto a pacientes que o solicitarem.”

Mas diversos estados republicanos baniram o aborto depois que a Suprema Corte revogou Roe v. Wade, o precedente que legalizou o procedimento em todo o país. Por isso, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) determinou, por meio de uma nova regra, que esses estados não terão mais direito ao financiamento.

O Tennessee, um dos estados afetados, baniu o aborto, com exceção apenas para “prevenir a morte da mulher grávida ou o risco sério de comprometimento substancial e irreversível de uma função corporal importante”. Por isso, o estado determinou que só ofereceria aconselhamento sobre o aborto para casos que estivessem em acordo com a lei estadual.

O HHS cancelou a ajuda ao Tennessee. O estado, então, moveu uma ação em um tribunal federal alegando que o Departamento de Saúde excedeu sua autoridade ao exigir aconselhamento imparcial sobre aborto como condição para receber a ajuda federal.

No ano passado, o Tribunal Federal de Recursos da 6ª Região havia decidido, em um caso semelhante, que o HHS tem a autoridade legal para recusar a ajuda, conforme determinava à época a Doutrina Chevron. Agora, com a Loper Bright em jogo, o caso volta ao tribunal.

Propaganda enganosa continua valendo

Uma investigação da FTC concluiu que a empresa Intuit fez propaganda enganosa ao anunciar o TurboTax, software para contribuintes fazerem declarações de Imposto de Renda gratuitamente (graças ao patrocínio de um programa governamental), mas convenceu consumidores de que seria melhor para eles pagar por serviços de ajuda especializada na preparação do documento.

A FTC mandou a Intuit “cessar e desistir” de fazer quaisquer alegações enganosas de “grátis” em sua publicidade. A Intuit moveu uma ação contra a ordem da FTC. No Tribunal Federal da 5ª Região, sustentou seu pedido na decisão de Loper Bright: “Qualquer ‘deferência’ à interpretação da lei pela FTC não sobrevive à decisão interveniente da Suprema Corte”, escreveram os advogados da empresa.

Regulamentação da cannabis

O Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região julgou, ainda em setembro, o caso Anderson v Diamondback Investment Group, que examinou se um empregado pode ser legalmente despedido por usar certos produtos derivados da cannabis — incluindo THC-O, uma substância psicoativa sintetizada a partir do extrato da planta.

A Diamondback argumentou, em sua petição, que o THC-O é inequivocamente legal, de acordo com a lei agrícola. E, sustentando-se na decisão que eliminou a Chevron Deference, esnobou a regulamentação da Drug Enforcement Administration (DEA): “Mesmo que a lei fosse ambígua, não precisamos nos submeter à interpretação da DEA”.

A Justiça pode julgar decisões da imigração?

O caso Bouarfa v. Mayorkas já chegou à Suprema Corte e deve ser julgado no ano judicial 2024/2025. Um cidadão palestino se casou com a cidadã americana Amina Bouarfa e, em algum tempo, conseguiu cidadania no país.

No entanto, dois anos mais tarde o serviço de imigração (United States Citizenship and Immigration Services) revogou a concessão de cidadania ao constatar que foi um casamento falso, só para conseguir documentos americanos.

A mulher moveu uma ação judicial que chegou à Suprema Corte com a pergunta: uma decisão dos Serviços de Cidadania e Imigração pode ser julgada pela Justiça?

Esse caso (como outros que podem surgir) é considerado um tiro pela culatra para os conservadores-republicanos do país, que ficaram felizes com a decisão de Loper Bright que extinguiu a Doutrina Chevron, mas são defensores fervorosos de regras duras contra imigrantes ilegais.

Se a Suprema Corte aplicar a própria decisão em Loper Bright, decidirá a favor do imigrante e contra o serviço de imigração. Afinal, os juízes, não os técnicos dos órgãos públicos, detêm agora a função de decidir se as regras que regulamentam tudo no país são válidas ou não.

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Planos de saúde não podem ser cancelados por inadimplência sem notificação prévia

A judicialização na seara da saúde suplementar, conforme dados registrados pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) [1], tem sido exacerbada por diversos fatores, destacando-se as rescisões unilaterais que não se coadunam com a legislação vigente. A despeito de a Lei Federal nº 9.656/98 prever que a inadimplência do usuário pode ensejar a fulminação do negócio jurídico, desde que haja a sua prévia notificação, abusividades têm sido detectadas, acarretando a crescente busca pelo aparato jurisdicional.

Reprodução

Objetiva-se, assim, examinar as Resoluções Normativas 593/2023 e 613/2024, editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar acerca do tema, pari passu com as regras protetivas dos interesses e direitos dos consumidores. Tenciona-se apontar a evolução das salvaguardas, mas também identificar as lacunas a serem colmatadas e as falhas que suscitam correção.

Os contratos de assistência suplementar à saúde são intitulados “cativos de longa duração”, como apontam  Ghersi, Weingarten e Ippolito, eis que os beneficiários não pretendem usufruir dos serviços prestados por um exíguo espaço temporal, mas, sim, de modo contínuo e indefinido após o cumprimento das carências previstas [2].

Em virtude dessa nota essencial, o artigo 13, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 9.656/98, estabelece que em casos de não pagamento por período superior a 60 dias, será viável o desfazimento do vínculo [3]. No entanto, fixou-se o dever das operadoras de prévia notificação do consumidor até o 50º dia de inadimplência, comprovando-a. A ausência de quitação, nos últimos 12 meses de vigência do contrato, poderá ser de forma consecutiva ou não.

Normas da ANS sobre notificação

Com o desiderato de tratar da suspensão e rescisão unilateral de contratos individuais nas hipóteses de inadimplência, a Agência Nacional de Saúde Suplementar editou a Súmula Normativa nº 28/2015, fixando os pressupostos materiais e formais para que o ato de cientificação fosse considerado válido.

Diante da não localização do beneficiário no endereço fornecido à operadora, o enunciado sumular admitia que a sua notificação fosse formalizada por edital, publicado em jornal de grande circulação do último domicílio conhecido.

Ocorre que, na prática, muitas empresas não atentavam para as exigências impostas pela autarquia reguladora, acarretando a intensificação das demandas judiciais que deságuam no Superior Tribunal de Justiça [4].

Nesse emaranhado de volume processual oriundo das irresignações dos consumidores, a ANS optou por editar a Resolução Normativa (RN) nº 593/2023, disciplinando a matéria mediante o cancelamento da sobredita súmula.

Sem embargo do propósito da autarquia de mitigar os impactos das rescisões unilaterais em descompasso com a legislação vigente, o teor daquela RN apresenta-se limitado. Nos termos do seu artigo 2º, restringe-se aos contratos celebrados após 1º de janeiro de 1999 ou que foram adaptados à Lei de Planos de Saúde (LPS), deixando à margem todos os demais vínculos jurídicos anteriores, impactando na excessiva judicialização.

Ademais, determina que os planos de saúde, firmados antes do início da sua vigência, devem atender às regras estabelecidas no próprio instrumento, exceto se houver o aditamento. Não havendo a atualização do contrato, se a operadora utilizar os meios de notificação previstos na RN, mesmo que não dispostos no instrumento, será considerada válida, desde que o destinatário confirme a sua ciência.

Nessa senda, poderá haver a suspensão ou rescisão do plano de saúde, ou seja, visualiza-se regra contraditória e que corrobora com a assertiva do atendimento às demandas mercadológicas [5].

Outra restrição diz respeito ao não alcance de todas as espécies de planos de saúde, aplicando-se tão somente aos individuais, familiares e aos coletivos empresariais contratados por empresário individual. Incidirá também nas hipóteses em que o beneficiário da modalidade coletiva efetiva o pagamento das mensalidades diretamente à operadora, mesmo que haja uma pessoa jurídica contratante, como, por exemplo, nos casos de autogestões, administradoras de benefícios e ex-empregados em exercício do direito previsto nos artigos 30 e 31 da LPS.

Para cumprir a missão de regulamentar o setor, a ANS deveria atentar para maximizar o espectro da aludida RN, abarcando todas as modalidades contratuais.

Prazo para notificação e período de inadimplência

Dispõe o mencionado artigo 13 da LPS que a notificação deverá ser efetivada até o 50º dia de inadimplência e o artigo 4º da Resolução Normativa nº 593/23 reitera esta mesma regra. Todavia, será considerada válida quando recebida após tal prazo “se for garantido, pela operadora, o prazo de 10  dias, contados da notificação, para que seja efetuado o pagamento do débito”.

Ora, constitui benesse que revela a pressão dos agentes econômicos na atuação da ANS, posto que a autarquia reguladora não poderia instituir regra dissonante do texto legal e em prejuízo dos usuários. A expressão “captura das agências reguladoras”, cunhada por Joseph Stigler, infelizmente, tem sido detectada em situações nas quais se identificam posicionamentos contrários aos interesses da coletividade consumerista [6].

De acordo com a Lei de Planos de Saúde, a inadimplência do usuário deverá configurar-se por período superior a 60 dias, consecutivos ou não, nos últimos 12 meses de vigência do contrato. O § 3º do artigo 4º da RN  nº 593/23 admite a suspensão e/ou a rescisão unilateral do contrato mesmo quando apenas duas mensalidades não tenham sido pagas em um mesmo período anual, de forma consecutiva ou não.

Ora, o ideal seria que a autarquia reguladora estabelecesse um maior número de parcelas não quitadas, para admiti-las, optando, assim, por adotar a Teoria de Adimplemento Substancial [7], pois não é cabível que o consumidor — que venha quitando os valores durante anos — seja excluído por causa do débito de número exíguo de parcelas.

Conteúdo e objetivo da cientificação

O conteúdo mínimo da notificação por inadimplência encontra-se delineado no artigo 10 da RN nº 593/23, qual seja: 1) a identificação dos sujeitos do negócio jurídico e do respectivo objeto; 2) os meios de contato com a operadora; 3) o quantum debeatur; e 4) as condições para a quitação.

O artigo 12 contempla inovação que não se encontrava presente naquele enunciado sumular, prevendo-se que, na cobrança de mensalidade em atraso, a multa poderá ser de, no máximo, 2%, e os juros de mora não devem ultrapassar o patamar de 1%  ao mês, sem prejuízo da correção monetária.

Contudo, na parte final, observa-se a expressão “desde que previstos em contrato” e, no plano fático, os contratos de assistência suplementar à saúde, a despeito de passarem previamente pelo crivo da ANS, em regra, não albergam disposições nesse sentido. Mesmo com esta disposição restritiva, os usuários devem se valer do microssistema consumerista, para que obtenham a proteção cabível e o equilíbrio contratual.

O principal objetivo da cientificação por inadimplência deverá ser a sua desconstituição, permitindo que o usuário possa saná-la, razão pela qual a forma e o prazo para a quitação do débito e a regularização da situação do contrato são elementos que devem estar explicitados de modo claro e preciso.

De acordo com o § 3º do multicitado artigo 4º da RN em análise,  a modalidade de pagamento oferecida deve ser, ao menos, a usualmente utilizada para a quitação das mensalidades, possibilitando que o débito seja eliminado, no mínimo, dez dias, a partir da notificação.

A ANS poderia avançar na proteção dos usuários, prevendo parcelamento dos montantes em atraso, evitando-se, assim, a suspensão e/ou rescisão contratual. Relembre-se a incidência do princípio da vulnerabilidade dos consumidores, sobretudo intensificado na seara das saúde suplementar.

Admite-se que, na notificação, sejam registradas outras informações, tais como a possibilidade de inscrição do devedor em cadastros restritivos de crédito e de cobrança da dívida. Será possível também  prever a imputação de novas contagens de carência e de cobertura parcial temporária, desde que sejam factíveis.

Ressalta-se que esta última regra contrapõe-se com a redação atribuída pelo inciso XVIII, do artigo 51 do CDC, instituído pela Lei n.º 14.181/2021, contribuindo para o superendividamento dos consumidores. Vedou-se a recontagem de carências após a purgação da mora com o intento de não gerar prejuízos para os destinatários finais de bens no mercado [8]. A ANS não pode estabelecer contra legem e prejudicial aos vulneráveis.

Meios de notificação e permissão para rescindir o contrato

A evolução do universo digital, nomeadamente após o período pandêmico, conduziu a autarquia reguladora do setor a admitir avançados meios para a efetivação do comunicado sobre inadimplência. As operadoras poderão optar pela notificação presencial, por via postal, mediante áudio e pelos meios informatizados.

A remessa de carta pressupõe o aviso de recebimento dos correios, mas, não será necessária a assinatura do beneficiário. Como se trata de situação que poderá acarretar o cancelamento contratual, caso o usuário não quite o montante em atraso, o mais correto e justo seria que fosse exigida a subscrição no  respectivo AR, harmonizando-se com o direito do consumidor à informação.

Concorda também a ANS que, de forma complementar, seja feita em área restrita da página institucional da operadora na Internet e/ou por meio de aplicativo para dispositivos móveis. São condições que não se congraçam com o direito do consumidor à informação, pois não colimam com o intento de o cientificar satisfatoriamente [9].

Esgotadas, de forma comprovada, as tentativas de notificação por todos os meios comentados nas linhas precedentes, após dez dias da última diligência, a operadora poderá suspender ou rescindir unilateralmente o contrato por inadimplência. Compete-lhe a demonstração inequívoca do exaurimento das diligências, para que não seja invalidado o ato em face do beneficiário.

Caso o consumidor indague acerca do montante devido, a empresa deverá esclarecê-lo  e conceder novo e idêntico lapus temporis para o pagamento do valor em aberto, se efetivamente houver. A negociação e o parcelamento do montante contam como possibilidades, mas o ideal seria que a autarquia reguladora garantisse tais diligências, com vistas a prevenir o cancelamento e/ou a suspensão.

A suspensão e a rescisão unilateral de contrato individual são condutas que constituem infrações tipificadas pelo artigo 106 da Resolução Normativa nº 489/22, sob pena de multa no importe de R$ 80 mil. De acordo com o artigo 17 da RN nº 593/23, o mencionado dispositivo passa a prever a dita penalidade também para a exclusão indevida de beneficiário de plano coletivo.

A ANS não aumentou a sanção pecuniária e não avançou para vedar o cancelamento arbitrário dos contratos coletivos, deixando de cumprir a sua missão a contento. Malgrado a RN nº 593 tenha sido editada em 19 de dezembro de 2023, somente iniciaria a sua vigência  em 1º de abril de 2024. No entanto, a RN nº 613/24 a postergou para 1º de dezembro de 2024.

Apesar das críticas tecidas, observa-se que este conjunto normativo poderá servir para refrear as práticas arbitrárias empreendidas pelas operadoras mediante a aplicação conjunta com o CDC e a efetiva fiscalização pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.


[1] Fórum do Judiciário para a Saúde sugere medidas para reduzir judicialização. Conjur, Melhorias em Debate. 2 de abril de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-02/forum-do-judiciario-para-a-saude-aprova-medidas-para-reducao-da-judicializacao/. Acesso em: 20 ago. 2024.

[2] GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Celia; IPPOLITO, Silvia C. Contrato de medicina prepaga. 2. ed. atual. e ampl. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 55.

[3]  BOTTESINI, Maury Ângelo.; MACHADO, Mauro Conti. Lei dos Planos e Seguros de Saúde. 3. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2017, p. 132-138.

[4] Cf.: STJ, AgInt. no AREs. 2133286/SP 2022/0152311-4, 4ª Turma, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 15/05/2023, T DJe 18/05/2023. STJ, AgInt no AREs.: 2445180/PA 2023/0304171-0, 4ª Turma, Relator Ministro Raul Araújo, julgamento em 15/04/2024, DJe 18/04/2024.

[5] BAIRD, Marcello Fragano. Saúde em Jogo: atores e disputas de poder na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020, p. 50-60.

[6] STIGLER, G. J. The Citizen and the State: essay on regulation. Chicago: University of Chicago Press, 1975, p. 67-87.

[7] ERRANTE, Edward. Le droit anglo-américain des contrats/The Anglo-American Law of Contracts. 2e édition. Paris : LGDJ – Jupiter, 2001, p. 56; SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 69.

[8] MARQUES, Claudia Lima.; LIMA, Clarissa Costa de. Do Crédito Responsável: a prevenção ao Superendividamento do Consumidor: os novos paradigmas no crédito ao consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman; et al. Comentários à Lei 14.181/2021: A Atualização do CDC em Matéria de Superendividamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 216 a 224.

[9]  Cf. :  RAYMOND, G. Droit de la consommation. 5. ed. Paris: Lexis Nexis S.A., 2019, p. 37-55.

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STF mantém leis de MT sobre servidores e substituição de conselheiros do TCE

O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade de duas leis de Mato Grosso relacionadas à estrutura e ao funcionamento do Tribunal de Contas estadual.

Ministro Gilmar Mendes marcou audiência conciliação sobre disputa de terra indígena que se estende desde 2001
Gilmar Mendes validou alteração na nomenclatura do cargo sem mudança nas atribuições e nos requisitos de ingresso – Andressa Anholete/STF

A primeira transformou cargos no quadro permanente de servidores do órgão, e a segunda permite ao auditor substituto de conselheiro receber a mesma remuneração do titular durante a substituição.

Os temas eram objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.615 e da 7.034, julgadas na sessão virtual concluída em 20 de setembro.

Transformação de cargos

Na ADI 6.615, o colegiado seguiu o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, e considerou válida a transformação do cargo de técnico instrutivo e de controle em cargo de técnico de controle público externo do Tribunal de Contas de Mato Grosso, promovida pela Lei estadual 9.383/2010.

Segundo o relator, houve somente alteração na nomenclatura do cargo, sem mudança nas atribuições e nos requisitos de ingresso, que permanecem de nível superior. A remuneração também continuou a mesma.

Essas três condições, no seu entendimento, cumprem as exigências do artigo 37 da Constituição Federal em relação ao concurso público e se alinham à jurisprudência do STF.

Substituição de conselheiros

A ADI 7.034 também foi julgada improcedente. Nela, a PGR questionava a equiparação de subsídios e vantagens para os auditores do TCE-MT em caso de substituição dos conselheiros, prevista na Lei Complementar estadual 269/2007 e alterada pela Lei 439/2011.

O relator da ação, ministro Nunes Marques, explicou que, nos tribunais de contas estaduais, o auditor substituto ingressa no cargo especificamente para auxiliar os conselheiros e substituí-los em ausências e impedimentos por licença, férias ou outro afastamento legal ou nos casos de vacância do cargo.

Segundo Marques, as atribuições do auditor substituto são as mesmas dos conselheiros, quando no exercício da função, e diferentes das dos auditores comuns. Se eles têm a função de julgar contas públicas na ausência dos conselheiros, devem ser compensados financeiramente por isso, com base no princípio da isonomia remuneratória.

ADIs 6.615 e 7.034

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Decisões judiciais com perspectiva de gênero e política de cuidados

Política de cuidados

Os cuidados são compreendidos “como as atividades realizadas para o sustento da vida e para o bem-estar das pessoas, apresentem elas algum grau de dependência ou não. São um direito e uma necessidade inerente à vida humana. […] Trata-se de um bem público essencial para o funcionamento da sociedade, das famílias, das empresas e das economias e, portanto, vital para a sustentabilidade da vida humana” [1].

Sendo uma demanda de todos e todas, a responsabilidade pela provisão de cuidados deveria ser igualmente compartilhada, mas, o que se vê, é que uma intensa e injusta desigualdade na distribuição das responsabilidades e tarefas, sobrecarregando as mulheres, que exercem muitas vezes de forma exclusiva o trabalho de cuidado. Dada a importância do tema, em 05/07/2024, o Poder Executivo encaminhou, para o Congresso Nacional, o PL 2762/2024, que “Institui a Política Nacional de Cuidados” [2].

As mulheres, “em especial as mulheres negras, mais pobres e com menores rendimentos, assumem uma grande e intensa carga de atividades relacionadas aos cuidados, geralmente subvalorizadas e, em muitos casos, não remuneradas” [3].

Segundo os dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-c) do IBGE, em 2022, as mulheres dedicavam, na média, 21,3 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado enquanto os homens dedicavam 11,7 horas.

A mesma pesquisa constata que, em 2021, 30% das mulheres em idade ativa e fora da força de trabalho não estavam procurando emprego devido às suas responsabilidades com filhos/as, outros parentes ou com os afazeres domésticos (entre as negras esse percentual sobe para 32%, enquanto para as brancas é de 26,7%). Entre os homens, esta proporção era de 2%.

A realidade acima descortinada que vivenciam as mulheres brasileiras foi levada em consideração nas razões que serviram de fundamento para as seis decisões com perspectiva de gênero que serão, suscintamente, apresentadas a seguir.

DECISÃO 1. A remissão da pena pela amamentação

Uma detenta teve o prazo para concessão de progressão do regime fechado para o semiaberto reduzido em dois meses devido à amamentação do filho recém-nascido. Isso porque a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP reconheceu como trabalho este período cuidado com o bebê. Cada três dias de amamentação correspondeu a um dia de remição da pena.

A mulher já havia cumprido dois anos e oito meses em regime fechado. Durante esse tempo, deu à luz e amamentou o filho. A Defensoria Pública solicitou a remição da pena, com base na “economia do cuidado”, teve o pedido negado e recorreu ao TJ-SP.

De acordo com o relator desembargador Sérgio Mazina Martins, “não se trata de dizer aqui que se cuida de maior ou menor elasticidade da norma do artigo 126 da Lei 7.210/1984. É que o conceito de trabalho, na Modernidade, implica sim, e desde sempre, a ideia de atividade que universalize o indivíduo, resgatando-o da sua restrita singularidade e compondo-o em um cenário de compartilhamento. […] Portanto, e nesse sentido mais elevado, a amamentação é sim um trabalho materno que qualifica e dignifica a mulher, a exemplo de todas as outras atividades que, para mulheres e homens, se possam incluir no vasto repertório do artigo 126 da Lei 7.210/1984”.

O julgado encontra-se assim ementado:

“Agravo em execução. Remição. Economia do cuidado. Amamentação. O tempo em que a encarcerada esteve voltada à amamentação, dignificando o trabalho materno e universalizando sua condição de indivíduo e de mulher, comporta sim a remição da pena à luz do artigo 126 da Lei 7.210/1984.”

Dados do processo: TJ-SP; Agravo de Execução Penal 0000513-77.2024.8.26.0502.

DECISÃO 2. Concessão de aposentadoria rural por idade de mulher idosa de 91 anos

O benefício da aposentadoria rural havia sido negado administrativamente pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas a justiça mato-grossense entendeu que a mulher exerceu atividades domésticas e de cuidado em meio rural que foram fundamentais para a sobrevivência da família da idosa – enquanto o marido atuava como lavrador.

Os regramentos para aposentadoria de trabalhadores rurais, conforme determina a Constituição, também foram levados em consideração.

O processo tramita em segredo de justiça.

DECISÃO 3. Mulher de 62 anos recebe pensão alimentícia compensatória por ter dedicado quase quatro décadas de cuidado do lar e dependentes

Uma mulher de 63 anos receberá, do ex-marido, o pagamento de alimentos compensatórios. A decisão é do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, em concordância com decisão anterior da 2ª Vara Cível da Comarca de Bonito.

O casamento entre as partes aconteceu em 1980, com regime de comunhão parcial de bens, enquanto a separação deu-se no ano de 2023. Segundo os autos, a mulher se dedicou aos trabalhos de cuidados por mais de quatro décadas e, por conta disso, não possui fonte de renda própria e depende de auxílio financeiro do ex-marido.

Aos 62 anos e sem aposentadoria, a mulher teve direito ao valor de 6,5 salários-mínimos [4].

O processo tramita em segredo de justiça e teve o seu julgamento em 12/6/2024.

DECISÃO 4. Trabalho invisível de cuidado das mulheres é levado em consideração no momento da fixação de valor de pensão alimentícia

A 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional VII de Itaquera (SP), determinou que o pai deverá pagar alimentos para a filha, levando em conta, para a fixação do montante devido, a “divisão sexual do trabalho” — a atribuição de tarefas distintas entre homens e mulheres com base exclusiva no gênero de cada um.

De acordo com a magistrada, “Historicamente, em nossa sociedade, atribui-se aos homens o trabalho produtivo e remunerado, enquanto que, às mulheres, é relevado o trabalho interno denominado ‘economia de cuidado’, geralmente desvalorizado […]” [5].

O homem contestou o valor fixado, alegando que a mulher deveria também ser “obrigada” a sustentar a criança, mas a magistrada entendeu que ela já fazia isso por estar com a guarda da filha. A juíza, ao analisar tal alegação, asseverou que:

“Diante da assertiva do réu, de que a genitora da autora também é obrigada a sustentar a filha e a obrigação não é só dele, necessárias duas algumas anotações: a primeira é que a genitora do menor já contribui com o sustento da filha, pois a mantém sob sua guarda. A segunda é que ela exerce, com exclusividade, a chamada ‘economia de cuidado’. Esta última envolve muitas horas e tempo dedicado ao cuidado com a casa e com pessoas: dar banho e fazer comida, faxinar a casa, comprar os alimentos que serão consumidos, cuidar das roupas (lavar, estender e guardar), prevenir doenças com boa alimentação e higiene em casa e remediar quando alguém fica ou está doente, fazer café da manhã, almoço, lanches e jantar para os filhos, educar e segue por horas a fio. A economia do cuidado é essencial para a humanidade. Todos nós precisamos de cuidados para existir. Embora tais tarefas não sejam precificadas, geram um custo físico, profissional, psíquico e patrimonial de quem os exerce. No caso in comento, como já dito, é a genitora do menor quem arca com todas estas tarefas e referida contribuição não pode ser menoscabada.” Dados do processo: TJ-SP – 1018311-98.2023.8.26.0007, rel. Felícia Jacob Valente. Data do julgamento: 8/1/2024 [6].

DECISÃO 5. Pensão alimentícia é ajustada para mãe e três filhos para se considerar e validar a importância do trabalho de cuidado não remunerado realizado pela mulher

O Tribunal de Justiça do Paraná reconheceu o trabalho de cuidado não remunerado de uma mulher mãe para com três filhos em idade escolar, refletindo no cálculo da pensão alimentícia.

O relator, o desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi, levou em consideração a Constituição Cidadã — artigo 226, §7° —, que trata da proteção da família por parte do Estado, e do princípio da parentalidade.

De acordo com o seu entendimento, o princípio está relacionado ao reconhecimento dos trabalhos diários para a educação de uma criança e adolescente. Assim, torna-se necessária a superação da desigualdade de gênero, uma vez que a mulher exerce atribuições diárias para o cuidado — limpeza de casa, preparo de alimentos para os filhos etc.

A decisão também considerou a hipossuficiência financeira da mulher. Anteriormente, o valor dos alimentos provisórios correspondia a 50% do salário-mínimo. Agora, reajustado, será de 33% dos rendimentos mensais líquidos do pai.

Dados do processo: TJ-PR – 0013506-22.2023.8.16.0000 – Alimentos – relator: Eduardo Augusto Salomão Cambi, 12ª Câmara Cível. Data do julgamento: 2/9/2024. 

DECISÃO 6. Cadastro de mulheres vítimas do desastre da Rio Doce (2015) serão revistos para incluir benefícios

A Fundação Renova deverá revisar o cadastro de todas as mulheres atingidas pelo desastre do Rio Doce — rompimento da barragem da Samarco, em novembro de 2015. O motivo? Garantir o acesso ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), ao Programa de Indenização Mediada (PIM) e ao Sistema Indenizatório Simplificado (Novel).

A decisão judicial atende ao pedido feito pela Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), por meio do Núcleo de Desastres e Grandes Empreendimentos. A concessão do benefício foi definida como urgente pela 4ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte [7]. De acordo com o magistrado, “Como se trata de violação a direitos humanos, há urgência para a concessão da tutela pretendida, pois o tratamento dispensado pela Renova às mulheres ofende a sua própria condição de pessoa do sexo feminino” [8].

Para a DPES, relatórios técnicos e outros documentos, produzidos desde o desastre, mostram que “as mulheres enfrentam grandes dificuldades para serem reconhecidas” e a empresa “adotou um cadastro estático, ilegal e inconstitucional, violando os direitos das mulheres atingidas” [9]. Além disso, pontua: homens foram reconhecidos como pescadores profissionais pela Renova, sendo que as mulheres também exerciam essa atividade.

Dados do processo4ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte, Ação Civil Pública 6029634-39.2024.4.06.3800/MG [10].

A importância da perspectiva de gênero nas decisões judiciais

A pesquisa “A cara da democracia”, do Instituto da Democracia (IDDC-INCT) com financiamento do CNPq, Capes e Fapemig [11] questionou aos/às entrevistados/as a definição de feminismo. Do total, 42% disseram que é a luta das mulheres por direitos, enquanto 32% afirmaram ser um movimento para igualdade entre homens e mulheres.

E essa igualdade — há tanto tempo buscada pelo feminismo — deve ser encontrada também dentro dos lares. Mulheres dedicam quase o dobro do tempo que homens aos afazeres domésticos e/ou cuidados de pessoas. É o que mostra a Pnad Contínua – Outras formas de trabalho, uma pesquisa do IBGE feita a partir de entrevistas com pessoas acima dos 14 anos.

Quando há recorte por raça, os números assustam ainda mais: mulheres pretas (38%) são as que mais cuidam de outras pessoas, seguidas por mulheres pardas (36,1%) [12].

Isso reflete significativamente em oportunidades de educação, carreira e bem-estar, que passam a ser afetadas pelo tempo direcionado ao lar e aos cuidados de outras pessoas.

Tais relatos nos mostram a disparidade gigantesca nas divisões de trabalho doméstico e de cuidados, situação que foi levada em consideração nas seis decisões judiciais acima analisadas, e que foram selecionadas com o intuito de (1) mostrar o quanto pode ser inovador, equilibrado e justo um julgamento que leve em consideração as condições específicas das mulheres e (2) levar à compreensão acerca da carga de prejuízo ao gênero feminino trazida pelos papeis que lhes são atribuídos.

Como bem esclarece o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, Resolução 492/23), “diariamente, nota-se que a sociedade impõe papéis diferentes a homens e mulheres. Mas o conceito de gênero permite ir além, expondo como essas diferenças são muitas vezes reprodutoras de hierarquias sociais. Isso porque, em muitos casos, aos homens são atribuídos características e papéis mais valorizados, enquanto às mulheres são atribuídos papéis e características menos valorizados, o que tem impactos importantes na forma como as relações sociais desiguais se estruturam” [13].

As decisões analisadas reconheceram e nomearam as violências, injustiças, preconceitos, discriminações, estereótipos de gênero, opressões, sofrimentos e subalternidades que se associam à condição feminina, e buscaram alterar esse brutal quadro que as mulheres brasileiras vivenciam.

Não se trata de estabelecer benefícios para mulheres, mas de, por meio do Poder Judiciário, evitar ou minimizar os prejuízos decorrentes dos papéis sociais (desvalorizados) que persistem em ser atribuídos ao gênero feminino.


[1] Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

[2] O inteiro teor pode ser consultado em:

[3] Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

[4] As informações foram retiradas de: https://ibdfam.org.br/noticias/11576/TJMS+mant%C3%A9m+alimentos+compensat%C3%B3rios+%C3%A0+idosa%2C+em+decis%C3%A3o+que+considerou+Protocolo+para+Julgamento+com+Perspectiva+de+G%C3%AAnero.

[5] Inteiro teor disponível em: https://drive.google.com/file/d/1aemzF8jLC3-uuYBaYpGe7Ay1KKzFU8Wl/view?usp=sharing

[6] Disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/1018311-98_2023_8_26_0007-3%20(1).pdf

[7] Saiba mais: https://www.defensoria.es.def.br/justica-reconhece-discriminacao-de-genero-cometida-no-desastre-da-samarco/

[8] Disponível em: https://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/2024/caso-samarco/JFACPMPFCasoSamarcodecisaoFundacaoRenovadiscriminacaogenero.pdf/@@download/file/JF-ACP-MPF-Caso-Samarco-decisao-Fundacao-Renova-discriminacao-genero.pdf

[9] Um desses importantes documentos é representado pelo RELATÓRIO PRELIMINAR SOBRE A SITUAÇÃO DA MULHER ATINGIDA PELO DESASTRE DO RIO DOCE NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, de 2018, disponível em: https://www.defensoria.es.def.br/wp-content/uploads/2016/10/Relato%CC%81rio-questao-de-genero-5-de-nov-de-2018-2.pdf

[10] Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/programa/levantamento-cadastro-dos-impactados/

[11] Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2023/09/enquanto-partidos-tentam-mudar-a-lei-90percent-dos-brasileiros-defendem-equilibrio-entre-homens-e-mulheres-no-congresso.ghtml?fbclid=IwAR0nex4LlKj6eeGVGZlra4rovLqPxIfbreyhluqOzhYvnIZPnvyYwfzfclk

[12] Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/refens-da-vida-domestica/?fbclid=IwAR2KcsUSa65V4rPspc-iLFeCY_PK31B_ufV7hhGZ-TkFkUx02NcJyGfHwFo

[13] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf, p. 17.

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