O direito de resposta em um contexto eleitoral distópico

As eleições municipais de São Paulo do ano de 2024 foram marcadas em razão da divulgação, às vésperas do pleito, pelo então candidato a prefeito Pablo Marçal (PRTB), de um laudo médico, posteriormente comprovado como falso, que acusaria o candidato Guilherme Boulos (PSOL) de uso de drogas ilícitas, supostamente comprovando as alegações de Marçal nesse sentido ao longo de toda a campanha eleitoral, oportunidade em que chegou a dizer que possuía um documento para confirmar seu relato, mas que esse só seria divulgado próximo das eleições porque “o brasileiro esquece em duas semanas” [1].

Os efeitos desse fato na paridade da corrida eleitoral são tão catastróficos quanto imensuráveis, dada a natural influência que essa informação potencialmente apresenta para grande parte dos eleitores brasileiros, ao mesmo tempo em que determinar os motivos que levaram o eleitor a sua decisão final é tarefa impossível. A proximidade da divulgação da informação falsa do pleito eleitoral torna ainda maior a gravidade da situação, pois deixa ao candidato e coligação afetados pouco tempo e recursos a serem utilizados a fim de retomar o equilíbrio na disputa eleitoral.

No caso específico, a Justiça Eleitoral determinou, após provocação de Boulos, a derrubada de URLs específicas indicadas pelo candidato e, posteriormente, a suspensão das contas de Marçal. Cabe destacar que, ante a decisão da Justiça Eleitoral, Marçal passou a incentivar que os seguidores o acompanhassem em um perfil alternativo. Após nova avaliação da Justiça Eleitoral, esse segundo perfil também foi suspenso.

Outra medida que poderia ter sido implementada pela equipe de Boulos seria o direito de resposta, que além da sua previsão constitucional (artigo 5ª, V da CF/88) encontra disposição específica da Lei das Eleições (artigo 58 da Lei 9.504/1997). Até a data de publicação deste artigo não se teve notícias se a equipe de Boulos deixou de usar esse instrumento por determinados motivos estratégicos (como o próprio pedido de suspensão da conta do adversário) ou legais (impossibilidade de impulsionamento de propagandas na internet nas vésperas da eleição), ou, ainda, se tal pedido foi realizado e negado pela Justiça Eleitoral, dado que os autos dessa ação não estão plenamente disponíveis ao público, com exceção de decisões pontuais. De toda forma, explora-se abaixo a relevância desse instrumento na atual era de avanço tecnológico e propagação de desinformações.

A própria existência de eleições no contexto de uma democracia representativa, como é o caso do Brasil, pressupõe a possibilidade de aquisição de entendimento esclarecido pelos cidadãos: “dentro de limites razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas principais consequências” (DAHL, 2021, p. 49-50). Assim, em um tipo ideal democrático, os cidadãos teriam sempre acesso a uma educação cívica que os tornassem competentes para proteger seus valores e interesses fundamentais. Contudo, em contraponto a tal dimensão axiológica da democracia, o contexto fático contemporâneo se impõe, e até mesmo os que tiveram acesso a uma educação cívica de qualidade podem enfrentar dificuldades para navegar entre o grande número de notícias falsas propagadas atualmente nos mais diversos meios de comunicação utilizados.

Apesar disso, é importante destacar que o problema da disseminação das notícias falsas não é fenômeno inédito. Na primeira eleição presidencial após a redemocratização, em 1989, Collor levou ao ar na televisão um depoimento de Miriam Cordeiro, mãe de uma das filhas de Lula, dizendo que o petista a teria oferecido dinheiro para que realizasse um aborto da filha. A história foi negada por Lula, que veiculou um vídeo com a filha em horário eleitoral.

Apesar de notícias falsas como as relatadas acima serem inegavelmente desastrosas para a saúde de uma democracia em qualquer contexto histórico, a particularidade do momento atual é pautada pela publicidade feita sob medida. Com as redes sociais e os smartphones, cada consumidor e/ou eleitor tem o seu perfil cuidadosamente traçado por meio de psicometria. No que concerne à prática eleitoral: “Centenas de milhares de variantes de uma propaganda eleitoral [são] testadas quanto às suas eficiências. […] Todos recebem uma notícia diferente, pelo que a esfera pública fica fragmentada” (HAN, 2022, p. 40)

Além de técnicas avançadas de profling, as redes sociais permitem o uso de outras tecnologias que tornam possível influenciar drasticamente o debate eleitoral. Os bots são capazes de, mesmo em pequena porcentagem, alterar gravemente a percepção dos cidadãos acerca do debate político (HAN, 2022). Os robôs podem, de diversas maneiras – seja dando ênfase a assuntos originalmente não tão relevantes ou inflando o número de seguidores – atribuir um poder simulado a uma determinada opinião ou pessoa.

Além disso, apesar de notáveis e elogiáveis, os esforços das provedoras de aplicação das redes sociais e das instituições dos Estados democráticos para realizar a checagem de notícia vêm mostrando-se menos eficientes do que o desejável. Isso porque as consequências das notícias falsas, impulsionadas pela rapidez de disseminação de informações nas redes sociais, dificulta que a verdade supere a mentira já divulgada em números de cliques: “Antes de instaurar o processo de verificação, [as notícias falsas] já tiveram todo efeito. Informações ultrapassam num piscar de olhos a verdade e esta não lhes pode alcançar” (HAN, 2022, p. 46).

Eficácia do direito de resposta

Retomando o contexto apresentado inicialmente acerca das eleições municipais de 2024 e considerando as proposições de Han, é possível concluir pela relevância do uso do mecanismo do direito de resposta para situações similares que possam a vir ocorrer no futuro. Considerando que cada usuário de uma rede social tem acesso a um ambiente de publicidade eleitoral especificamente desenhado para o seu perfil, a contestação da notícia falsa em qualquer outro meio que não seja pelo mesmo usuário que a divulgou em primeiro lugar mostra-se ineficiente.

Não por outro motivo, artigo 32, IV, alínea “d” da Resolução nº 23.608/2019 do Tribunal Superior Eleitoral dispõe especificamente que deferido o pedido do direito de resposta, o ofensor “deverá divulgar a resposta da ofendida ou do ofendido em até 2 (dois) dias após sua entrega em mídia física e empregar nessa divulgação o mesmo impulsionamento de conteúdo eventualmente contratado nos termos referidos no art. 57-C da Lei nº 9.504/1997 e o mesmo veículo, espaço, local, horário, página eletrônica, tamanho, caracteres e outros elementos de realce usados na ofensa, podendo a juíza ou o juiz usar dos meios adequados e necessários para garantir visibilidade à resposta de forma equivalente à ofensa”.

O instrumento do direito de resposta aparece, portanto, como mecanismo relevante a fim de garantir-se a paridade entre os candidatos nas disputas eleitorais da contemporaneidade. Ainda restam muitos desafios, como, por exemplo, reduzir o tempo de ação da Justiça Eleitoral – que já atua com prazos desafiadores, tanto para os juízes quanto advogados e outros indivíduos envolvidos no processo eleitoral – para limitar os danos que podem ser causados pelas notícias falsas, principalmente se publicadas às vésperas da eleição. Para isso, talvez a evolução tecnológica que tem nos trazido tantos novos dilemas na persecução de um ideal democrático, possa também passar a integrar parte dos novos remédios a serem implementados.


REFERÊNCIAS:

DAHL, Robert. Sobre a Democracia, Brasília: UNB, 2001.

HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson, Editora Vozes, Petrópolis, RJ: 2022.

[1] Disponível em: https://www.aosfatos.org/noticias/falas-marcal-boulos-uso-de-drogas. Acesso em 17 de out. de 2024.

Fonte: Conjur

Juros compensatórios em indenização por área desapropriada só incidem após titularidade

A 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que, no caso de três desapropriações requeridas entre 1974 e 1977 pela Petrobras, os juros compensatórios só devem incidir a partir de 2006, quando uma decisão resolveu a titularidade dos imóveis. A morte do proprietário levou a uma disputa judicial pela herança que durou cerca de 40 anos.

 

A turma julgadora também estabeleceu o patamar de 6% ao ano para os juros compensatórios, nos termos da decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 2.332 e do entendimento firmado pela 1ª Seção do STJ no julgamento da Pet 12.344, em que foram revisadas teses a respeito das desapropriações.

Os imóveis estão localizados às margens do Rio Caputera (RJ) e foram requeridos pela estatal em razão de obras complementares ao empreendimento do Terminal da Baía da Ilha Grande, em Angra dos Reis (RJ).

Somente em 22 de novembro de 2014 as três ações de desapropriação foram reunidas, com os pedidos julgados procedentes. Atualizado o montante devido e subtraído o depósito referente à oferta inicial da expropriante, de R$ 30 milhões, o valor da indenização ficou estipulado em R$ 27.354.891,25, corrigido desde a data da sentença.

O juízo estabeleceu os juros compensatórios em 12% ao ano, a partir de 30 de março de 1977, e os honorários foram fixados em 5% da diferença arbitrada. Os valores foram mantidos pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o que levou à interposição do recurso especial pela Petrobras no STJ.

Momento de incidência

Para o relator, ministro Francisco Falcão, a estatal tem razão ao questionar o momento em que passam a incidir os juros compensatórios. Segundo explicou, esses juros têm por objetivo a reposição da perda do rendimento que o capital propiciaria ao seu proprietário, devendo, portanto, incidir a partir do momento em que foi resolvida a discussão sobre a titularidade dos imóveis.

O ministro verificou que também deve ser alterada a taxa dos juros compensatórios, em razão do julgamento da ADI 2.332. Na decisão, o STF declarou a constitucionalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 15-A do Decreto-Lei 3.365/1941, que trata do percentual de juros de 6% ao ano para remuneração do proprietário pela imissão provisória do ente público na posse de seu bem.

Falcão destacou que, a partir desse julgamento, a 1ª Seção do STJ revisou algumas teses sobre desapropriações para se adequar ao entendimento do STF.

Honorários e valor em juízo

Falcão também lembrou que a 1ª Seção, em julgamento sob o rito dos repetitivos, firmou o entendimento de que os honorários advocatícios em desapropriação devem respeitar os limites de 0,5% e 5% estabelecidos no parágrafo 1º do artigo 27 do Decreto-Lei 3.365/1941.

No caso, o ministro ponderou que, embora os honorários tenham sido fixados dentro do limite legal, o alto valor da base de cálculo torna a verba excessiva, devendo o percentual ser alterado para 3%.

Por fim, o relator analisou qual o momento em que os R$ 30 milhões já depositados em juízo pela Petrobras devem ser considerados para a atualização do montante devido. O TJ-RJ entendeu que esse valor deveria ser considerado apenas no pagamento final — ou seja, posteriormente à incidência dos juros compensatórios sobre o valor integral da indenização fixado na sentença.

Na avaliação do ministro, esse depósito deve ser considerado “pagamento prévio” e deduzido no momento de seu aporte, em 11 de março de 2015, para que os juros compensatórios incidam a partir daí apenas sobre a diferença não depositada e ainda devida. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

REsp 1.645.687

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Nulidade de interrogatório no Júri: renovação apenas do ato ou de toda a instrução?

Partamos de uma hipótese e da consequente indagação: se reconhecida a nulidade do interrogatório no Tribunal do Júri, por ter sido o réu impedido de responder parcialmente às perguntas, deve-se anular todos os atos da sessão ou somente o referido interrogatório?

De maneira bem direta, a anulação somente do interrogatório acarretará sua renovação, mas perante um conselho de sentença diferente daquele perante o qual foi realizada a produção da prova testemunhal da sessão de julgamento anterior, criando a curiosa, mas também ilegal oportunidade, de sete pessoas leigas julgarem com base em prova oral não produzida em suas presenças.

Esta hipótese é objetável porque a sessão de julgamento é una e os jurados que votam os quesitos — que também prestam compromisso de agir com imparcialidade e de acordo com os ditames da Justiça (CPP, artigo 472) — têm de ser os mesmos que acompanham a produção da prova oral, composta pela inquirição do ofendido, se possível, testemunhas arroladas pela acusação (CPP, artigo 473), testemunhas arroladas pela defesa (CPP, artigo 473, §1º), e o interrogatório do acusado (CPP, artigo 474).

A lógica protege-nos neste ponto, já que os jurados agem também como fiscais da produção da prova oral e nesta finalidade podem requerer acareações, reconhecimento de pessoas e coisas e esclarecimento aos peritos (CPP, artigo 473, §3º), bem como fazer perguntas às testemunhas por intermédio do juiz presidente (CPP, artigo 474, §2º). Assim, é até prosaico que não pode o novo conselho de sentença, formado em nova sessão de julgamento, participar apenas da realização do interrogatório para, após os debates, votar os quesitos.

Deve este novo conselho poder exercer o direito que legalmente lhe cabe na produção da prova para, com isso, afastar o odor da parcialidade e do completo desconhecimento sobre a totalidade da prova e da causa.

Nem se argumente que diante do novo conselho de sentença poderia ser exibida, aos jurados, em áudio e vídeo, a prova produzida na sessão anterior.

Esse expediente é uma maneira dúbia e inexitosa de tentar reverter a burla procedimental, já que, como apontado, o novel conselho de sentença estaria impedido de fiscalizar a prova oral cujas audições foram realizadas na sessão anterior, prova esta que, também, estaria validando eventual condenação.

Lições da doutrina

Mittermaier ensina que como, em geral, a prova testemunhal não tem tanto crédito de per si, segue-se que a testemunha deve ser indagada “sobre o fundamento de seu conhecimento dos fatos” [1], ou seja, das razões, subjetivas e objetivas que a levaram a ter ciência do ocorrido, o que só é possível se quem indaga puder acompanhar o depoimento de quem será indagado.

Também pontifica o professor Tedesco que a convicção de quem julga a causa só pode amparar-se na prova oral prestada “em pessoa perante o tribunal [ou juiz] competente”, pois somente assim “se pode e deve-se supor que foram satisfeitas todas as prescrições indispensáveis da lei e da prudência” [2].

Aliás, a doutrina especializada de Mascarenhas Nardelli assevera que o modelo mais adequado de produção de prova oral perante os jurados é o de inquirição cruzada e direta (cross examination e direct examination) — conforme a inspiração da dinâmica anglo-americana em nossa legislação [3] — a qual só é possível se a testemunha for inquirida na presença de quem for lhe julgar e em tempo real.

Consequentemente, percebe-se que o contato extemporâneo dos jurados com a prova oral transforma o depoimento da sessão anterior de julgamento numa espécie de depoimento de primeira fase, já que este sim é que pode ser exibido ao júri para que conheçam do que ocorreu antes da decisão de pronúncia, contudo, veja: mesmo nesta hipótese não está dispensada a obrigatoriedade da repetição do ato testemunhal na segunda fase, ocorrida perante o conselho de sentença e não mais diante do juiz togado.

O destinatário da prova é o juiz, mas não qualquer juiz, e sim aquele que efetivamente irá julgar (CPP, artigo 399, §2º). Há, no júri, a aplicação inconteste do princípio da identidade física, pois se de acordo com a reforma de 2008 a prova a ser valorada pelo juiz é aquela produzida em contraditório, fortalece-se a regra da imediatidade, reforçando-se o sistema da oralidade [4].

Badaró, inclusive, já alertava para a correta interpretação do artigo 399, §2º, do CPP, a fim de que não parecesse haver apenas a vinculação do juiz da instrução à sentença. Diz o mestre paulista que a efetiva oralidade só será permitida, com todas as vantagens dela decorrentes, na interpretação segundo a qual “toda a instrução deve se desenvolver perante um único juiz, que deverá ser o mesmo que sentenciará o feito”.

E quando a concentração dos atos se realizar na forma de sessões consecutivas, “o princípio da oralidade exigirá que se mantenha a identidade física do juiz durante todas as sessões de julgamento, porque senão o ocorrido perante o primeiro juiz chegaria ao conhecimento do segundo somente através das peças escritas nos autos” [5].

O ministro Francisco Campos também alertava nos idos de 1939 sobre a imediatidade e identidade física na Exposição de Motivos do Código de Processo Civil: “O juiz que dirige a instrução do processo há de ser o juiz que decida o litígio. Nem de outra maneira poderia ser, pois o processo visando à investigação da verdade, somente o juiz que tomou as provas está realmente habilitado a apreciá-las do ponto de vista do seu valor ou da sua eficácia em relação aos pontos debatidos” [6].

Percebe-se que o exame direto e cruzado da prova oral, a oralidade e a imediatidade na construção probatória não são possíveis se o ato processual de inquirição da testemunha se desenvolver perante pessoas física diversa daquela que irá julgar [7] e por isso não há cumprimento do devido processo legal quando, nulificado o interrogatório no júri, renove-se apenas este ato e não toda a instrução plenária, perante o novo conselho sentença.


[1] Mittermaier, Carl Joseph Anton. Tratado da prova em matéria criminal. 5 ed. São Paulo: Campinas, 2008, p. 356.

[2] Idem, p. 360.

[3] Mascarenhas Nardelli, Marcella. A prova no tribunal do júri. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 475.

[4] Badaró, Gustavo Henrique. Juiz natural no processo penal. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 217.

[5] Idem, p. 217-218.

[6] Maya, Andre Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 144, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

[7] Maya, André Machado. Oralidade e Processo Penal. Tirant Brasil, p. 145, 29 dez. 2020. Disponível em: <https://biblioteca.tirant.com/cloudLibrary/ebook/info/9786559080328>

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Problema não é o reconhecimento por foto, mas o modo de sua apresentação

O reconhecimento de suspeitos de crimes por fotografias, por si só, não diminui a confiabilidade do resultado. É preciso garantir que a forma de apresentação seja a mais adequada para permitir o procedimento sem sugestionar a vítima.

William Cecconello 2024
William Cecconello defendeu que fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de suspeitos de crime – Gustavo Lima/STJ

Essa conclusão é do professor de Psicologia e coordenador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Cognição e Justiça, William Cecconello, que falou sobre o tema no Seminário Internacional Provas e Justiça Criminal, sediado pelo Superior Tribunal de Justiça na semana passada.

O uso de fotos para o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal foi o que primeiro motivou uma virada jurisprudencial do STJ.

Em 2020, a corte concluiu que essa prática teria de ser vista como etapa antecedente a eventual reconhecimento pessoal e, portanto, não poderia servir para embasar condenações.

A jurisprudência evoluiu para anular provas em casos de total desrespeito ao artigo 226 do CPP, que traz um rito: a vítima deve descrever o suspeito e reconhecê-lo ao lado de outras pessoas que com ele tenham semelhança.

O tema motivou a criação de um grupo de trabalho no Conselho Nacional de Justiça, resultou na edição de uma resolução para orientar juízes e atores do sistema de Justiça e levou à publicação recente de um manual de procedimentos.

Dados do advogado e pesquisador David Metzker mostram que, neste ano, o STJ concedeu ordem em Habeas Corpus para anular provas por desrespeito ao artigo 226 do CPP em 174 processos. Deles, 141 tratam de reconhecimento feito por fotografia (81% do total).

Ao citar os dados no evento, a ministra Daniela Teixeira, do STJ, deu exemplos que passaram por seu gabinete em que o uso de fotografia prejudicou o procedimento. “Em um deles a fotografia era preta e branca. Era impossível de saber de quem se tratava.”

Segundo Cecconelo, estudos científicos mostram que o uso de fotografia é alternativa válida para o reconhecimento de pessoas. O problema é a forma como essas imagens são apresentadas às vítimas.

 
Daniela Teixeira 2024
Daniela Teixeira citou casos em que a prova foi anulada porque o reconhecimento foi erroneamente feito por foto – Gustavo Lima/STJ

 

Show-up e álbum

Trata-se de uma questão de método. Um dos mais utilizados pelas polícias é o chamado show-up: a pessoa é apresentada isoladamente, por foto ou presencialmente, para que seja reconhecida de maneira informal.

Segundo o CNJ, essa apresentação isolada faz com que a vítima ou testemunha não tenha rostos para comparar, e essa falta de opções pode levá-la a reconhecer alguém inocente com muita confiança.

Outro método indevido é o uso do chamado álbum de suspeitos: um conjunto de fotografias de pessoas previamente investigadas que esteja nos arquivos policiais. Trata-se de um procedimento sugestivo e, portanto, parcial.

As pessoas apresentadas pela polícia, absolvidas ou não, tornam-se potenciais autoras do crime e ficam à mercê de um reconhecimento errôneo. A conduta também tem potencial para reforçar preconceitos e estereótipos raciais.

“O reconhecimento fotográfico não é o problema. O problema é usar álbum de suspeitos e show-up. É importante esclarecer isso, senão a gente elimina a foto e parece que resolveu o problema. Se, em vez de mostrar a foto, você apresentar a pessoa, o risco é o mesmo”, disse Cecconello.

“É importante que a gente olhe para os procedimentos, não só para o meio que é utilizado para o reconhecimento, porque senão talvez a gente não avance nessa questão”, acrescentou o pesquisador.

 
Evento reconhecimento pessoal
Anderson Giampaoli mostra fillers produzidos com ajuda de inteligência artificial – ConJur

 

Fillers

São vastos os exemplos de injustiças praticadas por meio do uso de álbuns ou show-ups. Eles são comuns porque permitem uma identificação rápida pela polícia, por vezes no momento da ocorrência, por meio do uso de aplicativos de mensagens ou redes sociais.

Um dos casos mais graves é o de um homem negro do Rio de Janeiro que teve a foto retirada do Facebook e exibida em álbum de suspeitos da polícia. Ele foi reconhecido por 70 vítimas, foi alvo de 62 ações e condenado 11 vezes até o STJ determinar o reexame dos casos.

Presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Adalberto José Queiroz Telles de Camargo Aranha Filho destacou que esse tipo de conduta colabora para a ocorrência de erros judiciais.

“Mais grave é o reconhecimento fotográfico. Quando você apresenta uma foto, você induz a vítima. E quando apresenta várias, cria a possibilidade de eleger um suspeito errado.”

Responsável pela Secretaria de Cursos de Formação da Academia de Polícia Civil de São Paulo, o delegado de polícia Anderson Giampaoli destacou que o método show-up foi proibido em São Paulo e levantou uma reflexão: como e onde encontrar os fillers?

Fillers são as pessoas que aparecerão lado a lado com o suspeito, para o reconhecimento — seja pessoalmente ou por foto. Elas precisam ter semelhanças com a pessoa a ser reconhecida, sob risco de sugestionar a escolha da vítima.

Giampaoli apresentou no evento duas soluções tecnológicas possíveis. A primeira usa inteligência artificial para vasculhar os dados da polícia em busca de pessoas parecidas com o suspeito ou que se enquadrem na descrição dada pela vítima.

A segunda é usar a IA para criar imagens a partir do suspeito: pessoas parecidas, vestidas da mesma maneira, mas com semelhanças suficientes para dar à vítima a oportunidade de apontar quem, de fato, cometeu o crime.

“A reflexão que deixo é: diante dos avanços, a pergunta que São Paulo enfrenta é como encontrar e onde encontrar os fillers. São muitas iniciativas. Isso não está normatizado.”

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Instituição e custeio suficiente do Sistema Único de Meio Ambiente

Articular e coordenar os esforços de combate às mudanças do clima com os demais ministérios e entes federados é um desafio tão gigantesco quanto urgente. As mudanças climáticas não são o “novo normal”, são o início de uma era dos extremos que demandam medidas e mudanças igualmente extremas na forma de planejar, articular e financiar as políticas de meio ambiente e clima.

O anúncio da criação da Autoridade Climática, com quase dois anos de atraso, é um alento após sucessivas e trágicas enchentes, como as do Rio Grande do Sul e em outras cidades, e em meio ao fogaréu que faz arder quase todo o país. Mas o Estatuto da Emergência Climática que está sendo anunciado como principal instrumento é pífio frente à magnitude do desafio. O que o referido estatuto busca fazer é tão somente antecipar, ainda que em meses, a “licença para gastar” fora do limite dos gastos primários.

Ao decretar estado de emergência e calamidade, tem-se a liberação legal para edição de créditos extraordinários. Trata-se de um paliativo mal remendado contra o arcabouço das finanças sustentáveis, o qual, na prática, torna insustentável a condução de políticas ambientais e climáticas na escala, velocidade e permanência requeridas para mitigar emissões e prevenir e reduzir os danos causados pelos extremos climáticos.

Não é viável para um país com estas dimensões continentais e de problemas econômicos e sociais – que só se agravarão com os extremos climáticos – construir uma ação articulada, permanente e contundente apoiada em sucessivas antecipações de estados de calamidade, e financeiramente egocentrada no governo federal. Os extremos climáticos serão cada vez mais diversos e intensamente sentidos nos lugares onde as pessoas vivem, em espaços profundamente marcados por desigualdades sociais, de raça e de gênero.

A necessidade de sistema único

E o estado quase permanente de calamidade não poderá ser enfrentado sem ampliação significativa de recursos finalísticos e capacidade estatais em todo o território nacional e em todos os níveis federativos. Está na hora de colocar o discurso do federalismo e da governança climáticos em prática. A Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA) e o novo Plano Clima, prestes a ser lançado, precisam resolver o dilema da repartição de responsabilidades e recursos entre os entes. É preciso dar o passo que falta na construção interrompida da Política Nacional de Meio Ambiente, incorporando a dimensão climática junto com o equacionamento da repartição de recursos condicionada a metas estabelecidas nacionalmente e pactuadas entre todos os entes.

Precisamos de um Sistema Único de Meio Ambiente e Clima (Sumac), inspirado e aperfeiçoado a partir do arranjo construído na política de saúde. Com todos os problemas e desafios, temos uma política pública que funciona e salva vidas neste país: o Sistema Único de Saúde (SUS). E faz isso porque viabiliza que responsabilidades e recursos sejam compartilhados entre os entes federativos. No caso do meio ambiente e clima, já temos no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 760 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 54, as quais estabelecem a vedação ao contingenciamento e a obrigação de destinação de recursos orçamentários suficientes para o enfrentamento da crise climática. Essas decisões são base para que possamos ter um planejamento ambiental e climático com pactuação federativa, capaz de ser implementada efetivamente e estruturalmente.

Não podemos enfrentar esses eventos extremos sem uma política ambiental e climática tão ampla quanto profunda, que esteja pautada na ciência, na fina capacidade de coordenação e cooperação, na divisão de responsabilidades e de recursos. Uma política capaz de fiscalizar e punir, mas também de prever extremos e se antecipar a eles, de regular atividades poluentes e impactantes, de incentivar a preservação e, não menos importante, de mudar mentes incendiárias.

Não serão os créditos extraordinários abertos em Brasília, com a segurança jurídica do Estatuto da Emergência Climática, que resolverão os dilemas da construção interrompida de uma Política Nacional de Meio Ambiente e Clima, cuja fragilidade nos colocou onde estamos, sem ar para respirar.

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Novo tipo penal de feminicídio e outras alterações

Com o fundamento na necessidade de reforçar a proteção jurídica das mulheres no Brasil diante da evidência dos altos índices de violência de gênero, o Projeto de Lei nº 4.266/2023 foi proposto pelo parlamento com a finalidade de corrigir deficiências no tratamento penal dos crimes cometidos contra a mulher, especialmente em relação ao feminicídio.

Além de criar um tipo penal autônomo do feminicídio e recrudescer a moldura penal para a mais alta do ordenamento jurídico brasileiro, o projeto visava a preencher as lacunas legislativas existentes e garantir que a violência de gênero, seja ela doméstica ou em contexto de discriminação ou menosprezo, seja combatida de forma integral, dura e eficaz.

A violência contra a mulher é um fenômeno multifacetado, que envolve questões culturais, sociais e institucionais. Ao transformar o feminicídio em crime autônomo e ampliar sua pena e as medidas de proteção, além do efeito pedagógico e preventivo, a nova norma se alinha a esforços internacionais e nacionais de promoção dos direitos das mulheres, em especial sua vida e sua autonomia.

Contudo, ainda que se reconheça a necessidade de repressão penal na contenção da violência feminicida, sabe-se ser algo secundário, porque o problema guarda grande complexidade. As reflexões sobre o tema não podem ser reducionistas, criando a fantasia da solução com o Pacote Antifeminicídio, porque termina desviando o foco dos motivos determinantes da violência contra a mulher.

Os motivos determinantes do feminicídio são profundamente estruturais, culturais e históricos. Os círculos de criminalidade espelham a sociedade. A violência de gênero encontra-se espelhada na sociedade que historicamente desvaloriza e discrimina a mulher. O menosprezo e a discriminação de gênero integram as relações sociais e familiares. A desigualdade de poder entre homens e mulheres permanece enraizada na estrutura da sociedade brasileira, apresentando-se como um dos principais fatores que contribuem para ações feminicidas.

A diminuição da distância do idealismo constitucional para a realidade prática é o desafio para a redução do feminicídio no Brasil. O Estado deve concretizar políticas públicas eficazes e abrangentes que promovam os direitos das mulheres, garantindo sua segurança e igualdade de condições. A educação desempenha um papel central nesse processo, porque a baixa qualidade do ensino sobre questões sensíveis como igualdade de gênero e respeito às diferenças impede as mudanças culturais necessárias. A educação, quando orientada de maneira inclusiva e transformadora, pode desconstruir estereótipos e promover novas formas de relação entre os gêneros, baseadas no respeito e na equidade.

Não se pode perder de vista que o feminicídio é a face mais extrema de um ciclo de violências físicas, psicológicas, sexuais, morais e patrimoniais, muitas vezes negligenciadas pelas agências de controle. Deste modo, o desafio da redução do feminicídio no Brasil é multidimensional. Como fenômeno complexo de violência, o feminicídio jamais será enfrentado com movimentos sediados em ideias de lei e ordem, direito penal do inimigo, dentro outras ideias incompatíveis com a ordem constitucional. O caminho passa por mudanças estruturais profundas e, por seguinte, ainda será longo, mesmo após o Pacote Antifeminicídio.

Lei 14.994/2024

A nova Lei do Feminicídio, agora publicada, promove alterações significativas em várias leis, incluindo o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal, a Lei Maria da Penha e a Lei dos Crimes Hediondos. Essas mudanças visam, em primeiro lugar, a tratar o feminicídio como crime autônomo, além de incrementar as penas, redesenhando as majorantes aplicadas ao delito, ampliando alguns efeitos penais da condenação etc.

A nova lei busca reforçar a responsabilização dos agressores por meio de efeitos penais adicionais, como a proibição de assumir cargos públicos e a perda de direitos familiares em situações de violência doméstica.

A nova legislação também define, sistematiza e incrementa as penas de outros delitos relacionados à violência de gênero, seja com o aumento da moldura penal de qualificadoras, seja com a ampliação de causa de aumento (majorantes). Ocorrem também severas alterações na progressão de regime e relativamente aos benefícios da execução penal.

A novidade legislativa também prevê a adequação de dispositivos processuais para garantir uma tramitação mais célere dos casos que envolvem violência contra a mulher e reflete a intenção do legislador de garantir uma resposta mais eficaz do sistema jurídico à violência de gênero.

Autonomia do crime de feminicídio

O feminicídio estava previsto no ordenamento jurídico brasileiro desde 2015, quando foi incluído pela Lei nº 13.104, com alterações posteriores das Lei nº 14.344/2022 e Lei nº 13.771/2018. Porém, se tratava de uma qualificadora do crime de homicídio, ao lado de outras, embora com a possibilidade de aplicação de majorantes específicas a esta qualificadora.

Agora, com a nova lei, ganha autonomia e se torna um tipo de crime de homicídio, tal como ocorre, desde a redação originária do Código Penal, com o crime de infanticídio. Esse tratamento autônomo reflete uma abordagem mais rigorosa e específica, que visa a destacar a natureza odiosa desses atos. Deste modo, a legislação busca combater a impunidade e a alta prevalência da violência contra a mulher, proporcionando maior proteção às vítimas e punições mais severas aos agressores.

O feminicídio, agora previsto no artigo 121-A do Código Penal, é definido como o ato de matar uma mulher por razões da condição de sexo feminino, repetindo substancialmente a redação anterior e, neste ponto, não trazendo nenhuma novidade legislativa relativamente à previsão típico normativa do caput ou mesmo quanto à introdução ou supressão de alguma elementar.

Como na redação anterior, a previsão típica destaca que o crime ocorre quando há supressão da vida da mulher realizada com violência doméstica e familiar ou quando o homicídio é motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. As elementares do tipo exigem que o crime esteja diretamente, mas não exclusivamente, relacionado a essas condições, estabelecendo uma diferenciação clara entre o feminicídio e outras formas de homicídio.

Quando exige no feminicídio que a motivação do agente esteja atrelada à condição de sexo feminino da vítima — violência doméstica ou familiar; discriminação e o menosprezo — o legislador  toma o cuidado de especificar essas condições para garantir que o crime seja adequadamente distinguido de outros homicídios, reforçando a importância do reconhecimento das causas que levam à prática desse tipo de violência.

O bem jurídico protegido é a vida humana extrauterina, com ênfase especial na proteção da dignidade e integridade física e psicológica da mulher. O tipo penal decorre do reconhecimento de que a mulher, historicamente, foi colocada em uma posição de vulnerabilidade, inclusive pelo próprio Estado, como se pode verificar de inúmeras legislações e práticas que submetiam à mulher uma injusta e irracional posição de inferioridade em relação ao homem.

O sujeito passivo do crime de feminicídio é a mulher, abrangendo a mulher trans, conforme orientação prevalente na doutrina e decisão do STJ (HC 541237). A motivação do crime deve estar diretamente relacionada à condição de mulher da vítima, seja em função de violência física, psicológica ou simbólica.

Já na posição de agressor, pode ser qualquer pessoa de qualquer gênero, inclusive no âmbito de relações homoafetivas entre mulheres quando previu que “as relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual (artigo 5º, Parágrafo único). Neste mesmo sentido, o STJ (HC 277.561) decidiu que o sujeito ativo do crime pode ser tanto o homem quanto a mulher. Embora a violência de gênero possa ser exercida tanto por homens quanto por mulheres, na maioria dos casos o sujeito ativo é pessoa do sexo masculino.

No caso de concurso de agentes, a alteração normativa inclui o § 3º ao artigo 121-A, determinando de forma expressa que “comunicam-se ao coautor ou partícipe as circunstâncias pessoais elementares do crime previstas no § 1º deste artigo”.

Agora considerado como crime autônomo, outro debate poderia se iniciar sobre a incidência da norma penal sobre eventuais coautores ou partícipes sem a mesma motivação do autor. O acréscimo do §3.º ao artigo 121-A não deixa qualquer dúvida, porque se estende aos coautores e partícipes por expressa opção do legislador.

É importante destacar que o feminicídio pode envolver uma série de agressões prévias à morte da vítima, como violência física, psicológica ou ameaças, que podem ser parte do contexto da violência de gênero. Contudo, o crime só se consuma com o resultado morte. Se houver agressões que não resultem em morte, o agente poderá responder por lesão corporal, em concurso de crimes ou de forma continuada, ou tentativa de feminicídio, dependendo da extensão das lesões e da intenção de matar.

Classificação e retroatividade da lei

Doutrinariamente, a nova figura penal do feminicídio possui a seguinte classificação: comum, porque pode ser praticado por qualquer pessoa; simples, porque lesiona apenas um bem jurídico; de dano, porque causa uma lesão efetiva; de ação livre, porque pode ser praticado por qualquer meio; instantâneo de efeitos permanente, porque, na forma consumada, os efeitos da ação de matar são permanentes; material, porque somente se consuma com a ocorrência do resultado morte da mulher.

No tocante à retroatividade, a nova lei que tipifica o feminicídio não pode retroagir para alcançar fatos ocorridos antes de sua entrada em vigor, em obediência ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, previsto no artigo 5º, XL, da Constituição.

A irretroatividade da lei penal garante a segurança jurídica dos atos já praticados, impedindo que os agentes sejam punidos por condutas que, no momento de sua prática, não configuravam feminicídio. Isso não significa, contudo, que os crimes de homicídio contra mulheres antes da vigência da nova lei sejam tratados de forma branda, pois as qualificadoras de homicídio podem ser aplicadas, especialmente em casos que envolvem violência doméstica ou discriminação de gênero.

Por óbvio, não se pode falar em abolitio criminis em face da revogação do inciso VI do § 2º e os §§ 2º-A e 7º, todos do artigo 121 (artigo 9º da nova lei), pois o novel artigo 121-A opera o que se convencionou tratar como Princípio da Continuidade Normativo-Típica, pois a mesma conduta prevista na norma penal revogada continua sendo crime na norma penal revogadora, ou seja, a infração penal continua tipificada em outro dispositivo, ainda que topologicamente ou normativamente diverso do originário (STJ — HC 204.416).

Ampliação da pena aplicada

A pena prevista para o feminicídio é de reclusão, de 20 a 40 anos. Passa a ser a maior pena do ordenamento jurídico brasileiro. Antes, quando era uma qualificadora do homicídio, a pena cominada era de 12 a 30 anos.

Além disso, a nova legislação prevê causas de aumento de pena na terceira fase da dosimetria que podem, inclusive, elevar a pena acima da previsão máxima da moldura penal. Ou seja, com a configuração de uma ou mais destas majorantes, mesmo relativamente a apenas uma conduta de feminicídio consumada, a pena pode chegar ao patamar de 60 anos de privação de liberdade.

Algumas das causas de aumento dispostas no §2º do artigo 121-A já tinham previsão anteriormente na norma revogada, o §7º do artigo 121, outras, como fato de a vítima ser mãe ou responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; ou por ser menor de 14 anos, são novidade na lei.

A nova lei passou a prever como majorante do crime de feminicídio as qualificadoras do crime de homicídio elencadas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do artigo 121 do Código Penal. Como se pode observar, acrescentou três novas causas de aumento de pena:

  • (a) emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;
  • (b) traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; e
  • (c) emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.

A norma penal do feminicídio não estabelece qualquer causa de diminuição de pena. Ao contrário do que ocorreu com algumas das circunstâncias qualificadoras do homicídio, que passaram a ser previstas expressamente como majorantes, o legislador escolheu por não transplantar as hipóteses de homicídio privilegiado para dentro do novo tipo penal de feminicídio.

O feminicídio é classificado como crime hediondo, pois consta na nova lei a inscrição do artigo 121-A na lista dos crimes desta espécie previstos na Lei nº 8.072/1990 (Lei dos Crimes Hediondos). Essa classificação implica uma série de consequências penais, como a proibição de concessão de anistia, graça ou indulto, o início do cumprimento de pena em regime fechado e a progressão de regime mais rigorosa, exigindo o cumprimento de 2/5 da pena para réus primários e 3/5 para reincidentes.

Com a nova lei, a condenação por feminicídio passa a acarretar automaticamente (artigo 92, §2º, III) a perda do poder familiar, da tutela ou da curatela; a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo; e a vedação à nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo desde o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena.

Outras alterações penais

Em relação ao artigo 129, CP, que trata da lesão corporal, houve alteração do patamar mínimo e máximo da qualificadora da circunstância de ser cometido o crime em violência doméstica (§9º), antes com pena de detenção, de três meses a três, agora com pena de reclusão de 1 a 4 anos.

Os artigos 141 e 147, do Código Penal, foram modificados para incluir a duplicação da majorante, e o artigo 21, da Lei das Contravenções Penais, teve causa de aumento triplicada, em casos de crimes cometidos contra mulheres por essa razões da condição de sexo feminino. Relativamente ao crime de ameaça, expressamente impõe ação penal pública incondicionada se for cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino (artigo 147, §3º).

O artigo 7º  altera o artigo 24-A da Lei Maria da Penha para ajustar a pena do crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência. A pena prevista que antes era de detenção, de três meses a dois anos, passou a ser de reclusão de seis meses a dois anos.

Modificação na LEP

A nova lei traz alterações à Lei de Execução Penal para vedar ao condenado por crimes contra a mulher o direito à visita íntima (artigo 41); transferência do condenado para estabelecimento penal distante do local de residência da vítima (artigo 86); inclusão de um novo critério para a progressão de regime, sendo primário, após o cumprimento de 55% da pena, sem direito a livramento condicional; obrigatoriedade do uso de monitoramento eletrônico para condenados por crimes contra a mulher, quando estiverem em gozo de qualquer benefício que envolva a saída do estabelecimento penal (artigo 146-E).

Embora essas mudanças busquem garantir uma maior segurança para as vítimas de violência doméstica e familiar, evitando novos confrontos ou ameaças após a condenação, sua generalização é de constitucionalidade  duvidosa, de forma que a aplicação deve ser analisada detalhadamente no caso concreto.

Alterações processuais

A lei também busca garantir a tramitação prioritária de processos que envolvem crimes contra a mulher, de forma a assegurar que a justiça seja aplicada de forma mais ágil e eficiente. Isso diminui o risco de impunidade, responde à urgência da proteção das vítimas, e visa a prevenir novas violências.

Há, ainda, a previsão expressa de isenção de custas judiciais para as vítimas ou seus familiares em casos de feminicídio, reforçando o caráter inclusivo da legislação. A previsão de isenção de custas é uma medida fundamental para garantir o acesso à Justiça para as famílias das vítimas, muitas das quais podem enfrentar dificuldades financeiras após o crime. Essa isenção abrange todos os atos processuais necessários para a persecução penal do feminicídio, garantindo que as famílias possam buscar justiça sem impedimentos financeiros.

A nova legislação reforça a pretensão do legislador de incutir um duvidoso — para não dizer nunca concretizado — caráter preventivo e protetivo ao direito penal, por meio do aumento do rigor na punição, e as mudanças efetivadas refletem justamente o anseio justo, mas de não comprovada efetividade, de garantir a proteção ä mulher por meio de uma resposta penal proporcional à gravidade do feminicídio, considerando as circunstâncias que envolvem maior vulnerabilidade da vítima.

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Extinção do cargo de vogal: retrocesso social

A proposta de extinção do cargo de vogal nas Juntas Comerciais, conforme prevista no Projeto de Lei nº 3.956/2019, ameaça profundamente a pluralidade e a representatividade que são pilares fundamentais dessas instituições.

Desde a promulgação da Lei nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, que regulamenta o Registro Público de Empresas Mercantis, os vogais desempenham um papel essencial ao garantir que as decisões colegiadas sejam embasadas por diferentes setores da sociedade. Eliminá-los seria comprometer a integridade, a imparcialidade e o caráter democrático das juntas.

A justificativa apresentada pelo relator do PL, Alessandro Vieira (MDB), que defende a substituição dos vogais por servidores com conhecimentos técnicos em Direito Comercial, parte de uma premissa perigosa. Ao centralizar o processo decisório nas mãos de poucos servidores, ignoram-se os diferentes olhares e interesses que sempre coexistiram nas Juntas Comerciais, para favorecer uma visão puramente tecnicista e, em última análise, excludente.

É ilusório acreditar que o conhecimento técnico, por si só, assegura decisões justas e equilibradas. A pluralidade proporcionada pelos vogais é o que enriquece o debate e assegura que cada decisão reflita não apenas um saber específico, mas os interesses coletivos da sociedade.

Além disso, vale lembrar que os vogais são indicados a partir de entidades de classe e categorias profissionais, o que garante que diferentes realidades econômicas estejam presentes nas discussões. Em um momento em que o País precisa de mais diálogo e colaboração entre os setores produtivos e o Estado, eliminar esse canal de participação é um verdadeiro retrocesso.

Confiança

A extinção desse cargo não apenas fragiliza a estrutura das Juntas Comerciais, mas também coloca em risco a confiança que o empresariado deposita nesse sistema. Ao reduzir a representatividade, as decisões dessas instituições podem perder legitimidade, afastando-as da realidade e das necessidades do setor produtivo.

Nos últimos anos, a CNC tem se posicionado contra essa tentativa de reforma, seja no âmbito do Projeto de Lei nº 3.956/2019, seja em outras iniciativas legislativas semelhantes, como nas Emendas 20 e 127, ambas de autoria do deputado Alexis Fonteyne (Novo/SP). O mesmo posicionamento foi mantido durante a tramitação da MP nº 876/2019 e da MP nº 1040/2021.

O motivo é claro: as Juntas Comerciais desempenham um papel fundamental na regulamentação e formalização das atividades empresariais no Brasil, e sua estrutura deve ser preservada para garantir o equilíbrio entre as diferentes partes interessadas.

É preciso também destacar o risco de centralização excessiva de poder, caso a proposta avance. A ausência dos vogais, que hoje atuam como contrapeso às decisões dos presidentes e relatores das Juntas, poderia abrir espaço para decisões menos transparentes e menos representativas dos interesses da sociedade. Em vez disso, o aprimoramento do sistema deveria focar em modernizar e fortalecer a atuação dos vogais, preservando o caráter colegiado e a pluralidade que sempre nortearam as Juntas Comerciais.

A CNC defende que qualquer reforma nas Juntas Comerciais deve considerar o equilíbrio entre eficiência técnica e representatividade democrática. A extinção dos vogais é uma medida extrema e desnecessária que, em vez de melhorar, enfraquece a estrutura administrativa dessas instituições.

O próprio governo federal emitiu Nota Técnica SEI nº 303/2024/MEMP defendendo que os vogais desempenham papel essencial na diversidade de opiniões e na legitimidade das decisões e devem ser mantidos. Da mesma forma, somos favoráveis a ajustes pontuais que otimizem o funcionamento das Juntas, mas sem comprometer sua pluralidade.

Por isso, conclamamos o Senado a rejeitar essa proposta e garantir que as Juntas Comerciais continuem sendo um espaço de pluralidade, transparência e equilíbrio, respeitando a importância de cada setor da economia no processo decisório.

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Irresponsabilidade do Congresso é culpada por excesso de emendas constitucionais

Constituição Federal brasileira atingiu em setembro a marca de 134 emendas desde 1988, ano de sua promulgação. É um número excessivo e indesejável. A culpa, porém, é da irresponsabilidade do Congresso, e não do procedimento de reforma da Carta Magna, que não deve ser alterado.

Em setembro, Constituição Federal de 1988 alcançou a marca de 134 emendas

Nos últimos dois meses, o Congresso promulgou duas novas emendas constitucionais. A EC 133/2024 “impõe aos partidos políticos a obrigatoriedade da aplicação de recursos financeiros para candidaturas de pessoas pretas e pardas; estabelece parâmetros e condições para regularização e refinanciamento de débitos de partidos políticos; e reforça a imunidade tributária dos partidos políticos conforme prevista na Constituição Federal”.

Já a EC 134/2024 permite a reeleição para cargos de direção — como as respectivas presidências — dos Tribunais de Justiça com mais de 170 desembargadores, o que enquadra atualmente apenas as cortes de Rio de Janeiro e São Paulo.

Com isso, a Constituição de 1988 chegou à média de 3,7 emendas por ano. O número total chega a 144 caso sejam contadas as seis emendas constitucionais de revisão e os quatro tratados internacionais que têm equivalência ao texto da Carta Magna.

A atual é a Constituição brasileira que mais foi alterada. Em segundo lugar, vem a Constituição de 1946, que recebeu 27 emendas em 21 anos de vigência (média de 1,3 por ano). Completa o pódio a Emenda Constitucional 1/1969, outorgada pela Junta Militar e considerada por juristas uma nova Constituição, já que alterou completamente a Carta de 1967. A norma foi modificada 26 vezes em 19 anos (média de 1,4 por ano).

As Constituições do Império, da República e de 1930 receberam apenas uma emenda cada, em 65, 40 e três anos de vigência, respectivamente. Já a Constituição de 1967, a primeira da ditadura militar, não foi reformada nos dois anos em que vigorou.

Anos eleitorais

Anos de eleições nacionais estimulam alterações na Constituição. O recorde ocorreu em 2022, com a promulgação de 14 emendas constitucionais. A principal foi a EC 123/2022, que reconheceu o estado de emergência em função dos preços dos combustíveis e abriu caminho para o governo de Jair Bolsonaro (PL) promover despesas excepcionais para tentar a reeleição. Mas não deu certo, e ele foi derrotado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

O segundo ano com mais emendas foi 2014, com oito. Nenhuma delas foi tão explicitamente favorável à campanha de reeleição da então presidente Dilma Rousseff, da qual ela saiu vitoriosa — porém, sofreu impeachment após um ano e meio de segundo mandato.

O ano 2000 teve sete alterações na Carta Magna. E outros quatro anos tiveram pelo menos seis emendas constitucionais (2021, 2019, 2015 e 1996) — desde 1992, a Constituição não passa um ano sem ser modificada.

Emendas demais

A Constituição Federal é muito detalhista. Portanto, é de esperar que tenha emendas com mais frequência do que a dos Estados Unidos, por exemplo, que é mais principiológica. Ainda assim, 134 emendas em 36 anos é um número excessivo, de acordo com os constitucionalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, avalia que a proliferação de emendas pode banalizar o sentido de “matéria constitucional”.

“Há uma falsa ideia de que tem de colocar tudo na Constituição Federal, como uma espécie de garantia de efetividade. Se no processo constituinte isso fazia sentido, afinal o passado não recomendava muito por causa da ditadura militar e da inefetividade de direitos, agora essa ‘constitucionalização da banalidade’ aponta para uma perigosa desmoralização daquilo que seja o sentido de ‘matéria constitucional’. Do jeito que vai, logo teremos uma emenda dizendo que ‘somente é matéria constitucional aquilo que…’, como já constava na Constituição de 1824.”

A média global é de uma emenda constitucional por ano, enquanto no Brasil há a promulgação de quase quatro alterações, um número elevado, conforme destaca Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

“Mas como a Constituição é muito detalhista, e a realidade, muito dinâmica, seria impossível que o sistema funcionasse aqui como o norte-americano, que, nesse particular, inclusive, é bastante disfuncional. No Brasil, o que acaba protegendo o núcleo fundamental da Constituição são as cláusulas pétreas e o entendimento — que não é frequente no Direito Comparado — de que o STF pode controlar a constitucionalidade das próprias emendas, como já fez diversas vezes.”

É uma particularidade brasileira que uma emenda constitucional, aprovada por três quintos dos parlamentares, possa ser suspensa por decisão monocrática de um ministro do STF, que não foi eleito pelo voto popular, ressalta Pedro Estevam Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ele também considera elevado o número de emendas à Constituição de 1988, embora diga ser natural que cartas analíticas sofram mais modificações do que as sintéticas.

“Pouquíssimos países permitem controle de constitucionalidade, pelo Judiciário, de emenda à Constituição. E creio que só o Brasil permite que um ministro isolado suspenda os efeitos de emenda. Isso e o excessivo número de reformas banaliza a edição de emendas constitucionais.”

A culpa (não) é do sistema

Apesar disso, os constitucionalistas ouvidos pela ConJur entendem que não é necessário alterar o sistema de aprovação de propostas de emenda à Constituição.

As PECs podem ser apresentadas pelo presidente da República, por pelo menos 171 deputados ou 27 senadores (um terço do total) ou por mais da metade das Assembleias Legislativas.

A tramitação começa na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da casa legislativa, que é responsável pela análise da admissibilidade da proposta. Com o aval da CCJ, a PEC é examinada por uma comissão especial. Depois disso, é encaminhada para votação no Plenário.

A PEC só é aprovada se tiver votos favoráveis de três quintos dos deputados (308) e senadores (49), em dois turnos de votação. Após a primeira votação em uma das casas legislativas, a PEC é enviada para a outra. Se o texto for aprovado sem alterações pelas duas casas, ele é promulgado como emenda constitucional em sessão do Congresso Nacional. Não é necessária a sanção presidencial, como ocorre com as leis ordinárias.

Lenio Streck diz que a culpa pelo excesso de emendas é da irresponsabilidade do Congresso, e não do procedimento de tramitação delas.

“O fato de o Parlamento, de forma irresponsável, entulhar o texto da Constituição com emendas sobre vaquejada e reeleição de cargos de Tribunais de Justiça não quer dizer que devemos alterar o quórum da Constituição Federal. Não vamos jogar a água suja fora com a criança dentro. Precisamos fazer constrangimentos epistemológicos. As faculdades de Direito devem discutir isso.”

Na opinião de Pedro Serrano, o quórum exigido para proposição e aprovação de PECs é adequado, o problema é a relação entre os poderes.

“No Brasil, o Judiciário pode decidir casos concretos de controle de constitucionalidade e anular atos do Legislativo e do Executivo. Isso torna o Judiciário excessivamente forte. Nos EUA, a Suprema Corte decide casos concretos, que acabam repercutindo de forma geral por causa do sistema de precedentes. Mas ela não anula atos dos outros poderes. Na Europa, onde se anula atos dos poderes, isso é feito por uma corte constitucional que não é ligada a nenhum dos três poderes”, explica ele.

Não é necessário alterar o quórum de deliberação, somente tornar imperativo o cumprimento de regras regimentais “hoje com frequência desprezadas”, afirma Daniel Sarmento. Entre elas, as que preveem um intervalo mínimo entre cada votação de emenda em cada casa legislativa.

“Com isso, dificulta-se a aprovação de mudanças sobre assuntos importantes sem dar tempo para que a sociedade tome conhecimento do tema debatido e exerça pressão legítima sobre os parlamentares. O STF já foi provocado para examinar essa questão, que envolve às vezes duas votações da emenda no mesmo dia, uma imediatamente depois da outra, sem qualquer intervalo, mas afirmou que o assunto seria de natureza interna corpore do Parlamento, não invalidando o procedimento, no que discordo.”

Desconstitucionalização de matérias

Uma iniciativa positiva seria a desconstitucionalização de algumas matérias, afirma Daniel Sarmento, ressaltando que a Carta Magna de 1988 é a segunda mais extensa do mundo, ficando atrás apenas da Constituição da Índia.

Ele cita o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, que afirmou que “a Constituição se perdeu no varejo das miudezas”.

“A Constituição é excessivamente detalhista em matérias como servidores públicos, regras previdenciárias e orçamentárias. Entre outros problemas do excesso de detalhismo, está o fato de que se confunde a matéria constitucional com questões políticas de menor importância, que deveriam ser resolvidas pelas maiorias de cada momento. E aí governar passa a depender da formação de coalizões políticas muito amplas, o que dificulta a governabilidade. Mas é essencial preservar os direitos fundamentais, inclusive os de grupos sociais vulnerabilizados”, analisa o professor da Uerj.

Pedro Serrano também é da opinião de que é preciso desconstitucionalizar algumas matérias. Como exemplo de tema que não deveria estar na Carta Magna, ele menciona a disposição de que o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, seja mantido na órbita federal (artigo 242, parágrafo 2º, da Constituição).

Por sua vez, Lenio Streck entende que não há nada a desconstitucionalizar. “Também não há como evitar a proliferação de emendas, a não ser de dois modos: ou se copia a Constituição de 1824 (com emenda dizendo que ‘somente é matéria constitucional aquilo que…’) ou o Congresso faz uma autocontenção.”

Brasil x EUA

Em 36 anos, a Constituição de 1988 já recebeu 134 emendas. Em comparação, a Constituição dos EUA recebeu 27 emendas em 235 anos — a última foi promulgada em 1992. Outras seis emendas foram aprovadas pelo Congresso americano, mas não foram ratificadas por três quartos dos estados (38), quórum exigido para a reforma.

Os especialistas, porém, afirmam que não faz sentido comparar o número de emendas da Constituição brasileira com o da Carta dos Estados Unidos.

“São sistemas jurídicos diferentes. Até porque poderíamos dizer que, cada vez que a Suprema Corte decide algo com efeito vinculante (stare decisis), ela está aumentando o tamanho da Constituição”, ressalta Lenio Streck.

E a Constituição dos EUA dificulta o processo de modificação, aponta Daniel Sarmento. “A enorme dificuldade de emendar a Constituição — o que exige a votação de dois terços das duas casas congressuais e de três quartos dos estados — gera vários problemas, como a manutenção, até hoje, de um sistema completamente ultrapassado de eleição presidencial, em que o mais votado nacionalmente pode perder.”

A Carta Magna americana é sintética, principiológica e estabelece diretrizes gerais sobre o Estado, diz Pedro Serrano. Já a brasileira é analítica, detalhista. “E somos regrados pelo Direito positivo, ao passo que os norte-americanos são regulados pela common law, em que há prevalência dos precedentes judiciais. Esses fatores explicam por que o Brasil tem um número muito mais elevado de emendas constitucionais do que os EUA”, pondera o professor da PUC-SP.

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O caso Gusttavo Lima e a falta de isonomia ou ‘o diabo mora nos detalhes’

1. Explicando o caso

Uma juíza de Pernambuco decretou a prisão de Gusttavo Lima e da influencer Deolane – a notícia está em todos os jornais e sites. Deolane chegou a ser recolhida por alguns dias. Já Gusttavo Lima obteve habeas corpus antes de ser preso.

Gusttavo é suspeito de ter ligação com pessoas investigadas na operação “integration”, da Polícia Civil de Pernambuco, que apura um esquema de lavagem de dinheiro de jogos de azar pela internet (bets). Ele estava nos Estados Unidos em viagem com sua família, quando recebeu a notícia da concessão da ordem.

Na mesma decisão, o desembargador derrubou a decisão que suspendeu o passaporte e o porte de arma do cantor.  Para o desembargador, a decretação da prisão de Nivaldo Batista Lima, nome do cantor, foi justificada com base em ilações (deduções).

2. O desdobramento da concessão de habeas corpus — liminarmente

Houve um frisson sobre a (quase) prisão de Gusttavo Lima. Ainda há juízes no Brasil, disseram alguns causídicos. OK. Correta a decisão do HC concedido pelo desembargador pernambucano.

Então, qual é o problema? Causa finita, certo? Sim e não.  O busílis é que, em cem pedidos de habeas corpus apreciados desde 2023 até a semana em que houve a concessão da ordem a Gusttavo Lima, o desembargador pernambucano ou não conheceu ou não deferiu (nenhuma) liminar. No mérito, os HC relatados pelo desembargador, com raras exceções, são negados à unanimidade. Portanto, a comemoração pela concessão do habeas corpus em favor de Gusttavo e Deolane fica, digamos assim, ofuscada pelas notícias que darei na sequência. Já explicarei.

3. Uma questão de isonomia ou “isonomia – eu quero uma para aplicar no Direito”

Lembro-me que fui pioneiro, como procurador de Justiça, em lançar uma tese pela qual se deveria aplicar, por isonomia, a benesse concedida aos sonegadores de tributos – extinção da punibilidade pelo pagamento do prejuízo – aos acusados de furto e estelionato. Há dezenas de acórdãos nesse sentido, da lavra da 5ª. Câmara criminal do TJ-RS em que eu atuava. Um dos acórdãos teve a seguinte ementa:

“Lição de Lenio Luiz Streck: os benefícios concedidos pela Lei Penal aos delinquentes tributários (Lei 9.249/95, artigo 34) alcançam os delitos patrimoniais em que não ocorra prejuízo nem violência, tudo em atenção ao princípio da isonomia. Recurso provido para absolver o apelante. (TARS. 2ª Câmara Criminal. Apelação criminal nº 297.019.937. Relator: Amilton Bueno de Carvalho. Data do julgamento: 25 de Setembro de 1997)”.

Portanto, minha crítica não era (e não é) contra a concessão de favor legis aos sonegadores de tributos (como não sou contra, por óbvio, à concessão de habeas corpus a Gusttavo Lima); minha crítica era — e continua sendo —, sim, a não aplicação da isonomia. É disso que se trata.

A primeira vez em que defendi a tese (é uma de tantas) foi no caso de uma bicicleta furtada e que foi recuperada em seguida. Zero de prejuízo. E a tese foi aplicada, a partir de meu parecer. Isso em 1990, portanto, há 35 anos. Lutei muito por essa isonomia de tratamento. Coerência e integridade — que depois consegui incluir no CPC de 2015, artigo 926.

Portanto, insisto, não está errada a decisão que concedeu o HC em favor de Gusttavo Lima. Porém, talvez não tão corretas estejam muitas das decisões do desembargador (ou do tribunal) que não concederam liminar (e/ou o habeas corpus no mérito) a acusados presos cautelarmente no estado de Pernambuco (sim, sei que no restante do Brasil isso se repete).

Veja-se que a mesma Câmara que concedeu habeas corpus — liminar e monocraticamente — a Gusttavo Lima e para a influencer Deolane, negou o remédio heroico em um caso em que o acusado está preso desde 25/6/2019 – encarcerado há cinco anos (aqui, para além dos cem casos de não concessão de liminar, foram examinados apenas os últimos 40 acórdãos da Câmara em sede de habeas corpus) [1]. Mesmo se fosse crime de júri, ainda assim há um problema, certo?

Ou quem sabe a Câmara tenha acertado no caso de Gusttavo e errado ao negar habeas corpus (mesmo relator), à unanimidade, de um réu preso desde 13/10/2021. Portanto, recolhido há mais de três anos.

Os casos são muitos. Lembro de outro, em que o réu está preso desde 28/10/2022. E a mesma Câmara que concedeu liminar em habeas corpus para Gusttavo, negou o remédio heroico à unanimidade, seguindo voto do desembargador relator do caso Gustavo.

Também tenho notícia de que a Câmara negou habeas para acusado que está preso por não ter dinheiro para pagar fiança de um salário-mínimo (proc. 0022911 21.2023.8.17.9000). Sim, ficou preso (e parece que continua assim) porque não tinha o valor para pagar fiança. O tribunal alega que a questão da fiança não tem relevância porque há outros motivos para a prisão (contumácia delitiva). Há outro caso de pessoa presa deste 6/1/2021. E por aí afora.

Por justiça, registro que nos casos de um preso recolhido há 900 dias e de outro recolhido há mais de 400 dias, houve a concessão da ordem para ambos. Também foi concedida a ordem em um caso de tráfico de drogas (77 g de maconha).

É disso que falo quando escrevo em busca de coerência e integridade. Por isso lutei para incluir no CPC o artigo 926. Garantismo é fazer democracia no Direito e por meio do Direito. Garantias processuais são para todos, inclusive para os não-gustavos.

Só para registrar, pelo levantamento minha assessoria apontou que nenhuma liminar foi concedida pelo desembargador na centena de decisões monocráticas em sede de habeas corpus analisadas, desde 2023 até a semana em que foram proferidas as de Gusttavo Lima e da influencer Deolane (pode até existirem concessões nas cem decisões anteriores a essas últimas cem)Algum problema legal? Não. O desembargador pode alegar que cada caso é um caso. E que decide assim levando em conta a jurisprudência do tribunal. Portanto, tudo dentro da legalidade. OK. De minha parte, apenas falo de isonomia. Por mais graves que sejam os crimes dos réus que tiveram habeas negados, há uma coisa que salta aos olhos: o excesso de prazo (sem contar o caso da falta de dinheiro para fiança). No caso de Gusttavo Lima, não houve sequer a concretização da prisão ilegal. Que bom. Porém, nos casos dos não-gustavos, é provável que o excesso de prazo já tenha extrapolado qualquer razoabilidade e proporcionalidade – mesmo aquela “proporcionalidade raiz”, a do Código prussiano.

É disso que se trata.

Há mais de 30 anos eu dizia nas palestras e textos: no Brasil, la ley es como la serpiente; solo pica al descalzos. A frase é de um camponês salvadorenho, repetida por Jesus José  de La Torre Rangel.

O resto é autoexplicativo pela modernidade tardia brasileira.

No Brasil, pessoas como Gusttavo Lima sabem se defender (meus cumprimentos ao trabalho eficaz dos seus advogados); minha preocupação é com os não-gusttavos. De todo o Brasil.


[1] Foram analisados os últimos 40 acórdãos encontrados a partir da busca de jurisprudência no site do TJ-PE com os requisitos de busca por “PESQUISA LIVRE” (Defensoria Pública), “CLASSE CNJ” (Habeas Corpus Criminal) e “RELATOR” (Eduardo Guilliod Maranhão). Admite-se, por consequência, que, por outros meios, talvez pudesse ser alcançado outro resultado.

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Tutela específica de obrigação de fazer nos contratos de seguro

O Direito Processual Civil brasileiro disciplina o julgamento dos conflitos relacionados com o descumprimento de obrigações de fazer, não fazer e entregar coisa. Quando julga procedente o pedido, o juiz deve conceder a tutela específica ou determinar providências que assegurem a obtenção do resultado prático equivalente ao adimplemento (CPC, artigo 497).

O regime da tutela específica foi introduzido em 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigo 213) e pelo Código de Defesa do Consumidor (artigo 84), seguidos pela Lei nº 8.952 de 1994, uma das micro reformas por que passou o CPC/73 naquela época (artigo 461). Foi uma reação do sistema. A tutela ressarcitória (sancionatória) tradicional se mostrou insuficiente para atender às pretensões insatisfeitas quando o bem da vida perseguido não era pagamento em dinheiro, mas sim uma atividade pessoal do devedor [1]. Em muitos casos, sobretudo nas obrigações infungíveis, o ressarcimento do dano já consumado não passa de um melancólico “prêmio de consolação”, na expressão de Barbosa Moreira, para quem “nem todos os tecidos deixam costurar-se de tal arte que a cicatriz desapareça por inteiro” [2].

Era preciso imprimir mais efetividade à prestação jurisdicional para torná-la capaz de inibir a ameaça do ilícito, evitar sua repetição ou cessar sua continuidade, campo de trabalho das tutelas inibitórias e reintegratórias (de remoção) [3], movimento iniciado na doutrina italiana apontando um catálogo de “novos direitos” que reclamavam proteção especial. A falta de procedimento para regular a execução de obrigação de fazer e não fazer constituía uma obscura terra de ninguém (“un’ambigua terra di nessuno”), queixava-se Sergio Chiarloni nos anos 80 [4].

As preocupações se voltaram para os direitos não patrimoniais da personalidade (vida, integridade física e psíquica, liberdade, honra, imagem), da concorrência, da propriedade intelectual, práticas abusivas no mercado de consumo, degradações ao meio ambiente, conflitos de família [5] etc. Com ênfase no direito fundamental do credor [6], a preferência do sistema pela tutela específica convoca o devedor a produzir resultado igual, ou o mais próximo possível, ao que produziria se tivesse a prestação sido cumprida, sob pena de medidas de pressão psicológica para curvá-lo ao adimplemento [7].

Conversão

Entretanto, existem limites à busca do cumprimento “in natura”. A lei dispõe que a obrigação pode ser convertida em perdas e danos em duas hipóteses: (a) se o autor requerer essa conversão ou (b) se for impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente (CPC, artigo 499). Vale dizer, se a tutela específica não puder ser realizada, porque se tornou inviável, o interessado pode requerer um resultado prático equivalente. Mas se não quiser nem uma coisa nem outra, ou seja, nem o objeto específico nem algo que lhe faças as vezes, o credor pode requerer uma indenização que compense o prejuízo gerado pela inadimplência.

Na técnica processual, ele pode ajuizar diretamente sua pretensão ressarcitória ou formular seus pedidos em cumulação eventual (se não me der o bem A, quero a indenização B[8]. Nada impede também que solicite a conversão no curso do processo quando a tutela específica não tiver mais aderência à realidade material [9], seja na fase de conhecimento [10], seja no cumprimento de sentença [11].

Aqui, a grande discussão era a seguinte: o órgão judicial pode converter a pretensão específica para o procedimento de perdas e danos sem requerimento do credor? A resposta é sim. As hipóteses são alternativas: requerimento do autor ou impossibilidade de cumprimento da prestação. A conversão pode ser voluntária, se o autor preferir, mas pode também ser aplicada de ofício diante das circunstâncias pessoais ou materiais que impossibilitam o cumprimento da obrigação original (conversão compulsória) [12], gatilho que vem do Código de 1973 [13], seguido pelo atual [14].

Nada impede também o devedor de requerer a conversão em perdas e danos, desde que prove a impossibilidade de cumprir a obrigação. É o caso do provedor de internet que, condenado a reativar o perfil do usuário indevidamente excluído da plataforma, consegue demonstrar que é tecnicamente inviável a recuperação do conteúdo apagado do sistema [15].

Agora façamos o caminho inverso. Uma vez pleiteada a conversão pelo autor, pode o órgão discordar para manter o pleito de recebimento do objeto específico? A resposta é negativa. Não se pode impor prestação original a quem já desistiu dela pelos desgastes da inadimplência. A conversão constitui um direito do credor de preferir o ressarcimento e seguir nele até o fim (CC, artigo 247 e 249). Se ficar evidenciado algum abuso de sua parte, isso não lhe retira a pretensão ressarcitória, podendo render algum reflexo negativo na liquidação do dano por falta de mitigação do próprio prejuízo [16].

Portanto, o fato de a lei autorizar a conversão da demanda em perdas e danos, quando houver requerimento do autor ou quando impossível a tutela específica, não significa que, na situação contrária, a demanda de ressarcimento pode ser “convertida” de ofício em tutela específica. Uma vez realizada a conversão, ou preenchidas as condições para tanto, nem o juiz pode impor e nem o réu pode “insistir” no cumprimento de uma obrigação a contragosto do autor. Seria muita invasão em sua esfera de disponibilidade [17].

Como lembrado de início, tudo foi pensado para resolver a crise dos direitos não patrimoniais, o que justifica o esforço pela tutela específica dentro de certos limites. Fora do seu raio, o sistema abre a porta da pretensão ressarcitória.

O § único do artigo 499 do CPC

No entanto, as coisas mudaram com a Lei nº 14.833, de 27/3/2024. O Congresso introduziu um § único no artigo 499 do CPC, que ganhou a seguinte redação:

“Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441618 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.”

O novo dispositivo está dizendo agora que, mesmo após formulado o pleito de conversão em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica nos casos de vícios redibitórios (CC, artigo 441), nos contratos de empreitada (CC, artigo 618), de seguros (CC, artigo 757) e na responsabilidade subsidiária e solidária.

A redação não ficou clara. O verbo “conceder” é transitivo indireto. Quem concede, concede algo a alguém. Faculdade conferida a quem? Ao sujeito passivo? Parece que sim. Ora, se o juízo deve consultar o devedor sobre o interesse dele em cumprir a obrigação, então significa, no fundo, que o credor deixou de ser o titular do direito de preferir o caminho das perdas e danos. A lei transferiu àquele a prerrogativa de avaliar a conveniência da medida.

Aparentemente sutil, a modificação mexe bastante no sistema processual. O que antes foi estruturado para oferecer tutela específica vocacionada ao cumprimento de prestações de cunho não patrimonial a critério do credor, agora está sendo esgarçado para impor obrigações tipicamente patrimoniais a serviço do devedor. Uma supervalorização da tutela específica com mudança no centro de controle.

Múltiplas interrogações estão brotando do novo parágrafo. Qual foi a razão dessa reforma? O Projeto de Lei nº 2.812/2013 nasceu na Câmara dos Deputados por iniciativa dos parlamentares Luciano Bivar (União-PE) e Fernando Marangoni (União-SP). A justificativa era a necessidade de conceder oportunidade para o devedor honrar sua obrigação como forma de preservar a intenção original das partes, especialmente quando o inadimplemento não foi intencional ou foi causado por circunstâncias alheias à vontade do devedor. Registrou-se também que era preciso prestigiar a conservação dos negócios jurídicos e garantir a execução menos gravosa.

Evidente que a motivação política carrega uma crítica às pretensões ressarcitórias. Porém, o projeto parece preocupado com situações muito laterais que não justificam tamanha mudança no regime processual, com reflexo no campo das obrigações. Muitas vezes, o conflito decorrente da inadimplência gerou um estado de coisas tão desgastante que, mesmo sendo possível sua continuidade, o credor não confia e nem aceita mais a presença do prestador de serviço em sua residência ou empresa para continuação de uma obra que não deu certo por uma série de motivos. Não é justo que essa decisão se transforme em direito potestativo na mão do devedor.

Seguros

Avançando um pouco mais, o que têm os contratos de seguro a ver com isso? Os segurados, beneficiários e terceiros prejudicados têm pretensões tipicamente indenizatórias, fundadas no descumprimento de obrigação de pagar quantia certa, sujeitas às condições contratuais e limites de cobertura. Contam-se nos dedos as obrigações de fazer da companhia de seguros: prestar o serviço de regulação do sinistro, proceder à contratação, à prorrogação ou à renovação do contrato em determinadas situações particulares, constituir reserva técnica etc.

Talvez alguma proximidade com o seguro-garantia de obrigações contratuais. Excepcionalmente, em obras e serviços de engenharia, havendo inadimplência no contrato de prestação de serviço, a seguradora pode assumir o compromisso de dar prosseguimento ao projeto para concluí-lo sob sua responsabilidade. É a chamada cláusula de retomada [18], uma experiência da nova Lei de Licitações [19], buscando resolver a crise das obras públicas inacabadas no Brasil [20].

Entretanto, antes de assumir a direção dos trabalhos, a seguradora precisa instaurar o processo de regulação do sinistro à luz do contrato de seguro. Imaginemos então que ela investigue a crise contratual, apure suas causas, mas conclua pela ausência de cobertura, o que significa que não deve assumir a obra e nem pagar indenização ao segurado. Diante desse fato, o segurado ingressa em juízo com ação cominatória para obrigá-la a tocar o serviço mal-acabado, mas depois pede sua conversão em perdas e danos. De acordo com o § único do artigo 499 do CPC, o juiz deve perguntar à companhia de seguros o que ela prefere fazer: executar a obra por meio de terceiros ou pagar a indenização ao segurado?

A essa altura dos acontecimentos, já recusada a cobertura, é muito provável que ela não queira e nem possa assumir a execução do projeto no lugar do agente inadimplente. Aceitará a conversão em perdas e danos. Até pelo princípio da menor onerosidade (CPC, artigo 805), depositar a indenização em juízo, se for o caso, será muito mais palatável à seguradora do que providenciar a execução do contrato por intermédio de empreiteira às suas custas.

Difícil enxergar alguma utilidade prática nessa prerrogativa para os contratos de seguro. Mais estranho ainda ficará essa “consulta” quando o segurado já optou por ajuizar originalmente sua pretensão de cobrança da indenização securitária.

A benesse cria distinções. Parece aplicável a todos os seguros, incluindo contratos de consumo e empresariais, massificados e grandes riscos, mas privilegia corresponsáveis solidários em detrimento dos não solidários. Como fica o princípio da igualdade? É uma boa pergunta formulada por José Miguel Garcia Medina [21]. Aliás, curioso observar que, surgindo a necessidade de conversão na fase de conhecimento, o juiz terá que dizer antecipadamente se existe ou não solidariedade, quando essa seria uma questão a ser dirimida pela sentença ou decisão parcial de mérito.

Na verdade, não havia necessidade de mencionar o artigo 757 do Código Civil numa regra processual com tamanha generalidade. Tampouco se teve preocupação de ouvir especialistas para entender qual seria o impacto da proposta na relação securitária. Esse mesmo dispositivo pode sofrer alterações no futuro próximo, seja pelo processo de atualização do Código Civil no Congresso Nacional, seja por força do Projeto de Lei nº 2.597/2024, que propõe a revogação do seu Capítulo XV para estabelecer uma lei específica em matéria de seguros.

É preciso ter cautela. O acesso à Justiça que prestigiou o sistema de tutelas específicas, com balanceamentos graduais à disposição do credor, é o mesmo acesso à Justiça que pode sair machucado agora com as extravagâncias que essa inversão de papeis pode causar na dinâmica dos litígios. Para dar um tempero ao § único do artigo 499 do CPC, sua leitura poderia ser a seguinte: o juiz deve consultar as partes sobre a possibilidade de cumprimento da tutela específica. Apenas um convite ao diálogo e não uma imposição a contragosto do credor.

Esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados.


[1] DIDIER JR, Fredie et alCurso de Direito Processual Civil – Execução. 9ª ed., Salvador: Juspodium, 2019, v. 5, p. 593.

[2] Essa crítica vinha em construção: BARBOSA MOREIRA, J. C. Tutela sancionatória e tutela preventiva. Temas de direito processual (2ª série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 21-30.

[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e obrigações de fazer e de não fazer. Gênesis – Revista de Direito Processual Civil, v. 2, 1997, p. 111.

[4] CHIARLONI, Sergio. Misure coercitive e tutela dei diritti. Milano: Giuffrè, 1980, p. 102; RAPISARDA, Cristina. Profili della Tutela Civile Inibitoria. Pádova: Cedam, 1987, p. 77.

[5] MARINONI, Luiz GuilhermeTutela inibitória (individual e coletiva). 4ª ed., São Paulo: RT, 2006, p. 272.

[6] GUERRA, Marcelo Lima. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo: RT, 2003, p. 116.

[7] BARBOSA MOREIRA, J. C. A tutela específica do credor nas obrigações negativas. Temas de direito processual (2ª série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 33; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Execução específica das obrigações de fazer e não fazer. In: ARRUDA ALVIM et al (Coord.). Execução civil e temas afins do CPC/1973 ao novo CPC – Estudos em homenagem ao Professor Araken de Assis. São Paulo: RT, 2014, p. 338.

[8] SCARPINELLA BUENO, Cassio. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2022, p. 527.

[9] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Comentário ao artigo 499. Primeiros comentários ao novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. 2ª ed., São Paulo: RT, 2016, p. 898.

[10] Enunciado 525 do FPPC: “A produção do resultado prático equivalente pode ser determinada por decisão proferida na fase de conhecimento”.

[11] STJ, 3ª T., REsp 1.760.195-DF.

[12] CUNHA, Leonardo Carneiro da. CPC comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 778.

[13] STJ, 4ª T., AgInt no Agravo em RESP 2.081.278-SP.

[14] STJ, 4ª T., AgInt nos EDcl no RESP 1.821.265-SP.

[15] Precedentes envolvendo o Facebook: TJSP, 31ª Câmara de Direito Privado, Agravo nº 2184697-88.2024.8.26.0000, Des. Antonio Rigolin, j. 12.07.2024; 19ª Câmara de Direito Privado, Agravo nº 2144045-29.2024.8.26.0000, Des. Cláudia Tabosa Pessoa, j. 13.08.2024.

[16] TALAMINI, Eduardo. Tutela relativa aos deveres de fazer e de não fazer e sua extensão aos deveres de entrega de coisa. 2ª ed., São Paulo: RT, 2003, p. 331.

[17] Interessante reflexão à luz do CPC anterior: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. A Tutela Específica e o Princípio Dispositivo – Ampla Possibilidade de Conversão em Perdas e Danos por vontade do Autor – https://blog.grupogen.com.br/juridico/.

[18] Circular SUSEP nº 662/2022, art. 21, inc. II.

[19] Lei nº 14.133/2021, art. 102.

[20] MELO, Roque de Holanda. A busca pela efetividade do seguro garantia nas contratações públicas. In: GOLDBERG, Ilan & JUNQUEIRA, Thiago (Coord.). Direito dos Seguros em Movimento. São Paulo: Foco, 2024, p. 306.

[21] MEDINA, José Miguel Garcia. Tutela específica mitigada: alteração do CPC pela Lei 14.833, de 27/3/2024 – https://www.conjur.com.br/2024-mar-28/a-tutela-especifica-mitigada-a-alteracao-do-cpc-pela-lei-14-833-de-27-3-2024/.

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