Direito Penal Tributário: entre infrações fiscais e delitos

Ocorreu nos dias 21 e 22 de maio de 2025 o 3º Congresso Iberoamericano de Direito Penal Tributário, em Bogotá, Colômbia, coordenado por Juan Manuel Álvares Echague, professor de Direito Tributário da Universidade de Buenos Aires, e por José Manuel Almudi Cid, professor de Direito Tributário e atual Diretor da Universidade Complutense de Madrid. A anfitriã foi a Universidade Javeriana da Colômbia, representada pelo professor de Direito Penal José Carlos Prias, que nos recepcionou em conjunto com outros professores, dos quais destaco o tributarista Maurício Plazas.

Estiveram presentes profissionais de direito penal e de direito tributário de 11 países, sendo, do Brasil, eu e Marcelo Campos. Foi um exercício de interdisciplinariedade e reconhecimento dos diferentes estágios das duas disciplinas acerca desse objeto conjunto, no amplo panorama das Américas. Um livro com cerca de 1.400 páginas foi lançado, incluindo textos de autores brasileiros, sendo Marcelo Campos um dos cocoordenadores da obra. [1]

A parte que me coube naquele latifúndio de conhecimentos foi analisar a diferença entre infrações fiscais delitos com referência ao direito brasileiro. Adaptei o texto que lá expus para ser divulgado nesta ConJur em três textos quinzenais nesta coluna Justiça Tributária.

Sendo publicada em partes, fica parecendo uma série de streaming, com três episódios. Aqui vai o primeiro.

As decisões de política governamental

Machado de Assis, um dos maiores escritores brasileiros, publicou em 1882 um conto denominado O Alienista no qual relata o regresso do médico Simão Bacamarte à pequena cidade de Itaguaí, “filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas”, tendo estudado em Coimbra e em Pádua. Sua especialidade era a psiquiatria e logo passou a observar o comportamento dos habitantes da cidade. Pouco a pouco, foi identificando sinais de loucura em cada um deles, recolhendo-os ao hospício que havia criado, denominado Casa Verde.

“De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde era uma povoação. Não bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar uma galeria de mais trinta e sete.”

O número de pessoas consideradas loucas crescia a cada dia, o que ocasionou diversas rebeliões na cidade, todas em vão. Bacamarte recolheu ao hospício até mesmo sua esposa, por ele considerada louca, além de vários políticos. Em determinado momento 80% dos habitantes da cidade estavam recolhidos à Casa Verde.

Após algum tempo de exame dos pacientes, o psiquiatra declarou que diante dessa quantidade de pessoas recolhidas ao hospício, ele assumira a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela que estava professando, mas a oposta, e, portanto, se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades mentais e como loucos todos os casos em que houvesse um equilíbrio dessas faculdades.

Com isso, Bacamarte libertou todos os que estavam recolhidos ao manicômio e, observando-se, “achou em si as características do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades, enfim, que podem formar um acabado mentecapto”.

Considerou-se, portanto, como sendo o único habitante da cidade com essas características, e decidiu se encarcerar no hospício para estudar a si mesmo e se curar. Faleceu ao final de dezessete meses de autoisolamento.

Este conto de Machado de Assis nos diz muito sobre a diferença entre infrações e crimes. Se toda infração for considerada um crime, as prisões passarão a estar repletas e as ruas vazias. Deve ser adotada com muita cautela a decisão de política governamental que estabeleça a distinção entre o que a sociedade deve considerar como uma infração e como um crime que acarrete o cerceamento da liberdade do indivíduo, e, em alguns casos, até sua vida.

Aqui se identifica um primeiro ponto do problema, que se refere à política governamental: deve-se criminalizar amplamente todas as condutas que violam as normas jurídicas?

Estacionar em local proibido ou não pagar uma conta de energia elétrica são infracções, apenadas com multas ou algum cerceamento de direitos, como se vê na possibilidade de suspensão da carteira de habilitação de motorista ou no cancelamento do fornecimento de energia elétrica. Todavia, se até mesmo essas infrações forem capituladas como delitos e os infratores considerados criminosos e encarcerados, estaremos defronte ao mesmo problema enfrentado pelo psiquiatra do conto O Alienista.

Filosoficamente pode-se afirmar que, se tudo é, nada é. Por outras palavras, se tudo for considerado como crime, sem distinção entre as condutas que atingem de forma mais ou menos intensa alguns direitos, ao final de certo tempo haverá a banalização da prisão, e a ameaça de encarceramento por condutas menos danosas acarretará a necessidade da escalada de maiores penalidades para as condutas mais complexas, fazendo com que o direito penal perca sua função primordial de proteção dos bens jurídicos verdadeiramente essenciais a uma sociedade. [2]

Nesse sentido, um Estado que alarga demais o punitivismo para infrações menores, se constituirá em um Estado policialesco, vigilante ao extremo acerca da conduta de seus cidadãos, sob pena de encarceramento. Em sentido oposto, caso as infrações maiores não sejam devidamente apenadas, haverá um Estado leniente, pois nem mesmo as infrações mais sérias a bens jurídicos sensíveis será considerada como crime.

É necessário fazer distinções de grau infracional, separando as lesões menores das maiores, acarretando que algumas venham a ser punidas com penas mais leves, tão somente pecuniárias (como nas infrações de trânsito), e outras com penas mais severas, como ocorre nos crimes contra a vida, cujo encarceramento é a regra geral em muitos sistemas jurídicos, havendo alguns que atribuem a pena de morte.

Para tanto, existe um limite aplicável aos países que se constituem em verdadeiros Estados Democráticos de Direito, que é o Princípio da Intervenção Penal Mínima, de modo que a atuação do Estado por meio do Direito Penal seja restrita ao mínimo necessário, sendo utilizada apenas quando os demais ramos do Direito se mostrarem insuficientes para proteger os bens jurídicos relevantes. Esse princípio é também conhecido como última ratio e se fundamenta na ideia de que o Direito Penal é a forma mais gravosa de intervenção estatal, evitando o excesso punitivo.

O direito tributário, que regula as relações entre o Fisco e os contribuintes, serve para arrecadar recursos das pessoas privadas, físicas e jurídicas, para os cofres públicos. Sua delimitação encontra-se nos direitos fundamentais dos contribuintes, que podem ser classificados como relativos: (1) à proteção dos contribuintes; (2) ao tratamento isonômico na tributação; (3) à boa administração fiscal, e (4) às garantias para o exercício dos direitos fundamentais.

O principal desses direitos fundamentais de proteção dos contribuintes é a Legalidade, pois a análise de todos os demais parte dele. Fiscalmente é importante o Princípio da Reserva Legal Tributária, que determina que só é possível instituir ou aumentar tributo se lei específica assim o estabelecer. E criminalmente é importante considerar o secular Princípio da Reserva Legal Penal, de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Este conjunto de princípios, que se configuram em direitos fundamentais, é imprescindível para a delimitação do que seja uma infração fiscal e do que seja um delito.

Logo, uma primeira distinção entre infrações e crimes deve ser visualizada na política governamental acerca do direito sancionatório em geral, distinguindo o que deve ser protegido sob o manto do direito penal, o mais rigoroso em uma sociedade, pois, no limite, acarreta a perda da liberdade dos indivíduos. E isso deve ocorrer por meio de lei em sentido estrito, a Reserva Legal Penal, observado o Princípio da Intervenção Penal Mínima, cerne do Estado Democrático de Direito.

Normas brasileiras sobre direito penal tributário

Estabelecida a delimitação político-normativa, deve-se analisar as normas introduzidas no direito positivo de cada país.

A Constituição brasileira de 1988 estabelece no artigo 5º, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. Isso aponta para o fato de que são necessárias normas que tipifiquem condutas como crimes, mesmo nos casos de não pagamento de tributos, que se constituem tão somente como dívidas civis, embora tendo como credor o Estado.

No Brasil foram criadas normas específicas para o direito penal tributário, instituídas pela Lei 8.137/1990, que estabelece como delitos as seguintes condutas, obedecendo a Reserva Legal Penal.

O artigo 1º estabelece que “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas …”. Desse comando normativo são tipificadas diversas condutas que exigem dolo específico de reduzir ou suprimir tributo, em cinco incisos:

(I) “Omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias”; que se constitui em um crime formal, pois independe da obtenção do resultado pretendido.
(II) “Fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal”. Trata-se de crime material, pois depende do resultado, isto é, precisa ter ocorrido a efetiva redução ou supressão de tributo.
(III) “Falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável”; que pode ser crime formal ou material, a depender do caso concreto.

(IV) “Elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato”, que se constitui em um crime material.
(V) “Negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”, que se constitui em um crime formal.

Todos esses tipos criminais previstos do artigo 1º da Lei 8.137/90 são apenados com reclusão de dois a cinco anos, e multa.

Existe ainda o artigo 2º da mesma Lei, prevendo crimes tributários culposos ou omissivos impróprios, embora ainda se exija dolo específico para alguns. O artigo 2º é centrado nas obstruções à fiscalização e descumprimento de obrigações acessórias que viabilizam a correta arrecadação tributária. Os diversos incisos dessa norma tipificam condutas específicas que frustram a ação fiscalizatória da Fazenda Pública, com ou sem a intenção de suprimir tributos, sendo considerados crimes formais ou omissivos próprios, com penas mais leves, entre 06 meses e dois anos de detenção.

É previsto no artigo 2°: “Constitui crime da mesma natureza”, daí surgindo os seguintes incisos:

(I) “Fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo”.
(II) Deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Adiante se analisará a decisão do STF — Supremo Tribunal Federal no RHC 163.334-SC, que estabeleceu o que se deve entender por “tributo descontado ou cobrado” referente ao crime de apropriação indébita fiscal.
(III) “Exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal.”
(IV) “Deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento”.
(V) Utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.”

Como se verifica, os tipos penais estabelecidos pela legislação brasileira são próprios para condutas fiscais, regulando propriamente o direito penal tributário, sem a utilização direta do Código Penal, o que é diverso do que se verifica em outras jurisdições latino-americanas.

*Tal como uma série de streaming, aguardem a 2ª parte (ou episódio), que circulará em 15 dias neste mesmo espaço da coluna Justiça Tributária.

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[1] ÁLVAREZ ECHAGÜE, Juan Manuel et al. (dir.). Derecho Penal Tributario Latinoamericano: Estudio y análisis comparado de los principales regímenes penales que regulan el delito fiscal. Buenos Aires: Editorial Ad-Hoc, 2025.

[2] Nesse sentido, ver: OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

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Não cabe ao juiz limitar benefício firmado em colaboração premiada, decide STJ

O juiz está vinculado ao mínimo pactuado no acordo de colaboração premiada homologado, podendo aplicar prêmio maior, mas nunca menor.

Réu firmou acordo de colaboração premiada e ajudou a identificar responsáveis pela Chacina de Unaí

Com esse entendimento, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu a ordem em Habeas Corpus para determinar a diminuição de pena de um homem condenado por homicídio.

Trata-se de um dos responsáveis pela chacina de Unaí, em que fiscais do trabalho foram assassinados durante fiscalização em fazendas da cidade mineira, em 2004.

Ele firmou acordo de colaboração premiada, que foi homologado pelo juízo com a previsão de diminuição de pena em 2/3. Após a condenação, o juízo resolveu ser menos benevolente, aplicando 1/2.

A menor diminuição da pena foi feita porque a delação, por si só, não foi responsável pela identificação dos demais participantes. Isso apesar de o Ministério Público e o Conselho de Sentença reconhecerem que ele cumpriu sua parte do acordo.

Por maioria de votos, a 5ª Turma do STJ decidiu que o tema poderia ser analisado em Habeas Corpus e concedeu a ordem para que o acordo firmado e homologado seja honrado.

Colaboração nem tão efetiva

Ficou vencido o relator do HC, ministro Ribeiro Dantas. Ele destacou que o acórdão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que referendou a dosimetria da pena feita pelo juiz de primeiro grau já foi atacado em recurso especial.

Trata-se do caso em que a 5ª Turma do STJ, atendendo a determinação do Supremo Tribunal Federal, admitiu o cumprimento antecipado da pena, apesar de a ação penal ainda não ter transitado em julgado.

“Nos termos da jurisprudência desta Corte, a interposição concomitante de dois recursos ou, ainda, de recurso e de writ pela mesma parte e contra a mesma decisão, importa o não conhecimento do segundo, em razão do princípio da unirrecorribilidade e da ocorrência da preclusão consumativa”, sustentou o relator.

Combinado não é caro

Abriu a divergência vencedora a ministra Daniela Teixeira, que foi acompanhada por Joel Ilan Paciornik, Messod Azulay Neto e Reynaldo Soares da Fonseca.

Para ela, o tema do HC pode ser conhecido e a ilegalidade deve ser corrigida. Isso porque o TRF-1 extrapolou os limites do Poder Judiciário na atuação do acordo de colaboração premiada.

“Uma vez constatado, pelo Ministério Público, o cumprimento do acordo homologado por parte do colaborador, seus termos vinculam o Juiz, que não tem espaço para dosar o quantum de diminuição de pena ou mesmo o grau do prêmio que será concedido”, afirmou a ministra.

Essa vedação inclui inclusive uma nova avaliação sobre o grau de importância das provas trazidas pelo colaborador. “Ao contrário, o Juiz deve, no mínimo, aplicar o pactuado entre as partes, podendo aplicar grau superior do prêmio”, acrescentou.

Em voto-vista, o ministro Joel Ilan Paciornik explicou que a cláusula que estipula fração de redução da pena integra o núcleo essencial do acordo de colaboração premiada e que sua aplicação se impõe como decorrência da vinculação jurídica instaurada.

“A atuação judicial deve se limitar à aferição da conformidade entre o cumprimento do acordo e o benefício prometido, sendo inviável modificar unilateralmente o conteúdo da cláusula pactuada, salvo se presente causa superveniente que macule a validade do ajuste”, disse.

HC 897.411

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Inadequação técnica do termo ‘educação sexual’ na infância e na pré-adolescência

No campo das políticas públicas voltadas à infância, especialmente durante o “maio laranja” — campanha que, em tese, busca conscientizar sobre o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes — tem-se promovido com insistência a “educação sexual” nas escolas como estratégia de prevenção.

Mas é necessário, do ponto de vista jurídico e lógico, questionar com rigor essa terminologia. Seu uso indiscriminado, sobretudo quando dirigido a crianças e pré-adolescentes, representa uma ruptura frontal com a doutrina da proteção integral, basilar em nosso ordenamento jurídico.

O primeiro ponto que precisa ser evidenciado é a contradição jurídica entre a concepção da criança como sujeito em peculiar condição de desenvolvimento — consagrada pelo artigo 227 da Constituição, pelo artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelo artigo 19 da Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) — e a ideia de que seria admissível implementar políticas públicas voltadas à “educação sexual” para menores de 14 anos.

O Código Penal, em seu artigo 217-A, estabelece com clareza que qualquer relação sexual com pessoa menor de 14 anos configura estupro de vulnerável, independentemente de consentimento. A presunção de incapacidade, nesse ponto, é absoluta — não se discute, não se relativiza.

Já a Lei 13.431/2017, em seu artigo 4º, inciso III, amplia o conceito de violência sexual para abarcar condutas que envolvam até mesmo a exposição da criança a atos libidinosos ou imagens com conotação sexual. Ou seja: não se pode admitir, sob qualquer pretexto, que essa faixa etária seja submetida a conteúdos que naturalizem ou antecipem experiências sexuais.

Por isso, quando se fala em “educação sexual” para menores de 14 anos [1] — especialmente na forma em que vem sendo implementada, com instruções sobre métodos contraceptivos, zonas erógenas, orientação sexual, expressão de gênero e práticas seguras — o que temos não é uma política de prevenção, mas uma pedagogia do consentimento precoce travestida de instrução cidadã.

Essa aberração jurídica revela não apenas um descompasso entre discurso e norma, mas uma deliberada desconsideração da doutrina da proteção integral, consagrada na Constituição e replicada no Estatuto da Criança e do Adolescente.

A criança e o adolescente, ali, são reconhecidos como sujeito de direitos em condição peculiar de desenvolvimento. Não é um adulto em miniatura, tampouco um corpo disponível para ser moldado conforme as cartilhas ideológicas do momento.

Aliás, ensinar sobre o exercício da sexualidade àquele que não possui sequer capacidade jurídica e biopsicológica para consentir não é educação: é incentivo. É, para usar a linguagem do próprio ECA, uma violação do direito ao respeito e à dignidade (artigo 17), que assegura à criança a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral.

Isso porque a educação é um processo que, ainda que não prescritivo, é formativo: educar implica direcionar, orientar, preparar. E preparar alguém para o exercício de algo que ele não pode legitimamente exercer é, no mínimo, uma forma simbólica de legitimação indireta de uma conduta que o direito se propõe a combater com rigor.

Violação frontal a princípio

A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 99.710/1990, é categórica ao afirmar, em seu artigo 14, que os Estados-parte devem respeitar os direitos e os deveres dos pais de orientar seus filhos conforme a evolução de sua capacidade. Tal princípio é reforçado e assegurado pelo artigo 229 da Constituição, que reconhece que é dever dos pais assistir, criar e educar os filhos menores.

No mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, ao afirmar a dignidade da pessoa e a universalidade dos direitos fundamentais, reconhece expressamente, em seu artigo 26, que “os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos”.

Portanto, o Estado, nesse contexto, não substitui a família, mas a auxilia, jamais a usurpa.

Mais ainda: o artigo 53, § único, do ECA é categórico quando dispõe que “é direito dos pais ou responsáveis ser informados sobre o processo pedagógico, bem como participar da definição das propostas educacionais”.

Assim, qualquer política pública educacional que incida diretamente sobre a formação moral e sexual da criança sem consulta, ciência ou concordância dos pais, é ilegítima e inconstitucional. Trata-se de violação frontal ao princípio da proteção integral em sua dimensão familiar, pedra angular do Estatuto da Criança e do Adolescente, e ainda, de conduta que pode ser caracterizada como ato de alienação parental, haja vista a ingerência indevida sobre a formação psicológica e emocional do menor, mediante afastamento arbitrário do papel parental legítimo.

Não se trata aqui de ignorar a importância de medidas preventivas contra a exploração sexual, mas de apontar que a forma e a linguagem com que isso tem sido conduzido, em especial por meio do termo “educação sexual”, é tecnicamente inadequada e juridicamente perigosa.

A terminologia em si carrega uma ambiguidade que compromete o princípio da legalidade e permite que conteúdos impróprios para a idade infantil sejam introduzidos no ambiente escolar com aparência finalidade pública. Sob o manto da educação, institucionaliza-se a possibilidade de um tipo de exposição precoce à sexualidade que viola os princípios básicos da hermenêutica garantista. O Estado — que deveria tutelar a infância com zelo redobrado — assume postura permissiva e até promotora de uma transgressão ontológica: a da inocência infantil.

É aqui que reside o perigo: o termo “educação sexual” opera como uma armadilha semântica. Por fora, proteção; por dentro, doutrina. A expressão é ambígua, escorregadia, e abre margem para que conteúdos inapropriados sejam inseridos no ambiente escolar com aparência de política pública legítima. Nas entrelinhas, legitima-se a quebra da barreira entre a infância e a sexualidade. E o que deveria ser escudo se converte em lança.

Não estamos mais falando de lapsos pedagógicos, mas de um projeto de engenharia social com linguagem higienizada.

Porta aberta

A substituição da abstinência pela “instrução sexual” — ridicularizada pela academia [2] — revela a real intenção por trás desse projeto. Não se trata de impedir a sexualização precoce, mas de aceitá-la, desde que regulamentada, estéril, profilática. A pedagogia dominante grita: ‘Transar, pode. Engravidar, não’. A preocupação não é com o ato sexual precoce em si, mas com suas consequências físicas dele. Um raciocínio tão torpe quanto aquele que defenderia o ensino de mixologia nas escolas como política pública contra o alcoolismo juvenil.

E os arautos dessa mentalidade, com ares de ciência, ainda declaram: “A decisão de começar a vida sexual é uma questão de foro íntimo. As famílias já falam ‘não tenha, não faça [sexo agora]’, as religiões já dizem. O que cabe como política pública é oferecer todos os caminhos para os adolescentes.” Todos os caminhos — menos o da inocência. Menos o da proteção integral.

Ora, se a legislação brasileira proíbe o consentimento sexual antes dos 14 anos, é logicamente inadmissível permitir qualquer instrução pedagógica que normalize, estimule ou antecipe esse comportamento. Existe uma diferença clara e intransponível entre orientar crianças e pré-adolescentes sobre autoproteção contra abusos, o que é absolutamente legítimo e necessário – quando concretizado com participação ativa das famílias – e prepará-los para o exercício da sexualidade, o que é perverso e criminoso.

O uso persistente e institucionalizado do termo “educação sexual”, sem delimitações claras, sem balizas legais claras, sem fiscalização pedagógica, sem a participação das famílias, não é apenas um erro técnico — é uma autorização tácita para a desconstrução da vulnerabilidade. E, sim, estamos falando de uma porta aberta à pedofilia, ainda que disfarçada de política pública. Porque qualquer política que insinue à criança e o pré-adolescente a ideia de que ela é um ser sexual em potencial, passível de “educação” nesse sentido, antes mesmo do despertar natural e biológico da puberdade, está abrindo a margem para que a infância seja sexualizada em nome da prevenção.

Por isso, é preciso afirmar com clareza: o uso da expressão “educação sexual” para políticas públicas voltadas a crianças e pré-adolescentes é tecnicamente impreciso, juridicamente incabível e, na prática, um permissivo para a erosão silenciosa da proteção integral à infância.

É hora de rever, com seriedade e responsabilidade, não apenas as práticas pedagógicas, mas os próprios conceitos que as sustentam. Porque o primeiro passo para proteger a infância é não permitir que se legitime, sob o manto da prevenção, aquilo que a lei repudia como violação.


Bibliografia:

BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível aqui.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível aqui.

BRASIL. Decreto nº 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 nov. 1990.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. Marco Legal da Primeira Infância. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 mar. 2016.

BUENO, Rita Cássia Pereira; RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da educação sexual no Brasil: apontamentos para reflexão. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, [S. l.], v. 29, n. 1, p. 49–56, 2018.

JORNAL DA USP. Abstinência sexual em adolescentes já foi testada e não trouxe resultados. Disponível aqui.

REGINA, P. Corpos, gêneros e sexualidades: questões possíveis para o currículo escolar. Furg.br, 2013.

SUWWAN, Leila. ‘Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal’. Folha de São Paulo, 16 mar. 2005. Disponível aqui.

UNICEF. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível aqui.

[1] SUWWAN, Leila. ‘Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal’. Folha de São Paulo, 16 mar. 2005. Disponível  aqui.

[2] JORNAL DA USP. Abstinência sexual em adolescentes já foi testada e não trouxe resultados. Disponível aqui.

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Pela segunda vez, STF derruba vínculos empregatícios reconhecidos pelo TRT-4

Os ministros do Supremo Tribunal Federal Cristiano Zanin e Luiz Fux precisaram anular novamente vínculos empregatícios reconhecidos entre uma imobiliária gaúcha e duas corretoras de imóveis após o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (Rio Grande do Sul) ignorar decisões anteriores.

 

Os magistrados decidiram ao analisar reclamações (Rcls) ajuizadas pela defesa da empresa. Como acontece em outros processos sobre reconhecimento de vínculo de trabalho, as peças apontavam violação da jurisprudência firmada pelo STF nos julgamentos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 324, da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 48, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.625 e do Tema 725.

Além disso, porém, sustentaram que decisões anteriores de Zanin e Fux, que já haviam afastado a existência de vínculo entre as partes no mesmo processo, foram desrespeitadas pela 8ª e pela 2ª Turmas do TRF-4, respectivamente.

Ao cassar os acórdãos pela primeira vez, os ministros do STF determinaram o reenvio do processo ao tribunal de origem para a realização de novos julgamentos que respeitassem a jurisprudência do Supremo.

Os colegiados da corte regional, então, voltaram a analisar os recursos pelos quais a imobiliária contestava os vínculos reconhecidos em primeira instância e chegaram ao mesmo entendimento dos primeiros julgamentos.

De volta ao Supremo

“Constato que o TRT-4, ao reanalisar o feito, descumpriu a decisão expressa proferida por esta Suprema Corte na Rcl 65.991, que havia afastado o vínculo de emprego entre as partes, e, sob os mesmos fundamentos antes utilizados, insistiu em manter o vínculo empregatício entre a beneficiária, corretora de imóveis, e a reclamante”, escreveu Cristiano Zanin em sua nova decisão, proferida em 30 de abril.

“Posto isso, com fundamento no artigo 992 do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) e no artigo 161, parágrafo único, do Regimento Interno do STF, julgo procedente o pedido para cassar a decisão reclamada e, desde logo, julgar improcedente a reclamação trabalhista de origem”, concluiu o magistrado.

O ministro Luiz Fux, na decisão proferida em 2 de maio, também voltou a validar a argumentação da imobiliária.

“Diante do cotejo analítico entre o paradigma invocado e a decisão reclamada, proferida pelo TRT-4, constata-se claro descompasso entre o que restou decidido na origem e o quanto afirmado na Rcl 65.647, na medida em que o acórdão ora impugnado reconheceu novamente a existência de vínculo empregatício entre as partes”, escreveu.

Ex positis, julgo procedente a presente reclamação, para cassar o acórdão proferido pelo TRT-4, julgando improcedente a reclamação trabalhista de origem”.

“Desserviço”

O escritório Corrêa da Veigas advogados representou a imobiliária. O sócio Luciano Andrade Pinheiro falou sobre a importância das decisões à revista eletrônica Consultor Jurídico:

“Algumas turmas isoladas dos TRTs insistem em descumprir a decisão do Supremo que já está mais que sedimentada. É um desserviço. O sistema de precedentes veio para evitar decisões conflitantes para que haja estabilidade e segurança. Esse tipo de decisão do TRT-4 mostra de um lado a incompreensão do regime de precedentes e de outro um inaceitável desafio à autoridade do STF.”

Clique aqui para ler a decisão de Cristiano Zanin
Clique aqui para ler a decisão de Luiz Fux
Reclamação 78.523
Reclamação 72.552

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Criminalistas contestam visão do STF sobre ocultação de cadáver como crime permanente

O Plenário do Supremo Tribunal Federal se prepara para decidir se a Lei de Anistia também alcança os delitos de ocultação de cadáver cometidos por agentes da ditadura militar — muitos dos quais permanecem sem solução. A ideia é estabelecer se a anistia se aplica a um crime entendido pelos ministros como permanente, mas uma corrente de advogados criminalistas considera que a corte parte de um pressuposto equivocado: segundo esse grupo, a ocultação de cadáver é, na verdade, um crime instantâneo.

Em fevereiro, o STF reconheceu que a discussão tem repercussão geral, ou seja, a tese estabelecida servirá para situações semelhantes nas demais instâncias da Justiça. O julgamento, que ainda não tem data marcada, trata da “possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência”.

A Lei de Anistia, de 1979, perdoou delitos cometidos por militares durante o regime de exceção. Ela abrange crimes políticos e a eles conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Crimes permanentes, no entanto, iriam além do período acobertado pela norma, uma vez que eles continuam sendo cometidos.

“No crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei de Anistia”, disse o ministro Flávio Dino na sessão em que o Supremo reconheceu a repercussão geral do caso.

Escondeu, acabou

Porém, na visão de Fernanda Tórtima, mestre em Direito Penal pela Universidade de Frankfurt, na Alemanha, a ocultação de cadáver, embora tenha efeitos permanentes, é um crime instantâneo — ou seja, é praticado em um único instante e não se prolonga no tempo.

Ela explica que o Código Penal descreve a conduta de ocultar o cadáver, e não de mantê-lo oculto. Assim, uma vez que o corpo é escondido, o autor do crime não está mais praticando a conduta.

Helena Regina Lobo da Costa, professora de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), tem a mesma interpretação: “O crime é instantâneo de efeitos permanentes. Ocultar é a conduta proibida, ou seja, esconder. Não é manter oculto”.

A 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça já entendeu dessa forma em 2020. Na ocasião, o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do caso analisado, afirmou que a intenção da ocultação é esconder o corpo de forma temporária. Assim, considerá-la um crime permanente iria de encontro à finalidade da lei.

“Afirmar que a ação de ocultar cadáver é permanente somente seria possível quando se depreendesse que o agente responsável espera, em um momento ou outro, que o objeto jurídico venha a ser encontrado”, afirmou o magistrado.

A ocultação está prevista no artigo 211 do Código Penal, junto aos delitos de destruição e subtração de cadáver. Segundo Paciornik, não há dúvida de que essas outras duas condutas são crimes instantâneos.

Fernanda Tórtima destaca que quem oculta um cadáver pode, ao menos em determinados casos, indicar onde está o corpo. Pela lógica adotada pelo Supremo, a permanência do crime está relacionada à vontade do autor de não indicar onde está o cadáver.

No entanto, de acordo com a advogada, por essa interpretação, os crimes patrimoniais — como roubo, furto e estelionato — também deveriam ser considerados permanentes, pois o patrimônio permanece subtraído enquanto o autor do delito não o devolve.

Nesses casos, o criminoso pode, mas não quer devolver o que tomou de outra pessoa. Mas isso não torna permanente o crime de furto, por exemplo. Os delitos patrimoniais, em regra, são considerados instantâneos.

Ao reconhecer a repercussão geral do julgamento, os ministros do STF também se basearam em documentos e normas de Direito Internacional que tratam o desaparecimento forçado como crime permanente. Mas Fernanda Tórtima ressalta que essa conduta é diferente da ocultação de cadáver e sequer é criminalizada no Brasil.

O problema da anistia

Em entrevista recente à revista eletrônica Consultor Jurídico, o criminalista Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), também defendeu que “não é possível tratar o crime de ocultação de cadáver como um crime de natureza permanente, como aponta a importante doutrina do professor Juarez Tavares”. Segundo ele, “é, na verdade, um crime instantâneo”.

Melchior ressaltou que isso não significa concordância com a anistia: “O fato de essa anistia ter sido aprovada é uma das causas pelas quais o povo brasileiro não superou, como deveria, o seu passado autoritário. Nunca deveria ter sido feita”.

Mas “não é torturando a dogmática que vamos alcançar nossos objetivos”, completou ele. Na visão do advogado, o fato de uma anistia equivocada existir “não deveria ser enfrentado com teses jurídicas de consistência questionável”.

O caso concreto levado ao STF diz respeito a uma denúncia feita em 2015 pelo Ministério Público Federal contra dois tenentes-coronéis do Exército por homicídios qualificados e ocultação de cadáveres durante a Guerrilha do Araguaia — movimento armado organizado por militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) nas proximidades do Rio Araguaia na década de 1970. Um dos militares já morreu.

A primeira instância da Justiça Federal do Pará rejeitou a denúncia com base na Lei de Anistia. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região manteve a decisão, e o MPF recorreu.

Do cadáver ao dinheiro

A principal preocupação de Fernanda Tórtima é com a possível “transposição” do entendimento do Supremo sobre a ocultação de cadáver para a lavagem de dinheiro, um crime que também envolve o ato de ocultar.

Lei de Lavagem de Dinheiro criminaliza a conduta de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.

Segundo a criminalista, vários tribunais já tratam a lavagem de dinheiro como um crime permanente, o que, na sua visão, é equivocado. Ela vê perigo no precedente a ser estabelecido pelo STF, pois teme que qualquer pessoa possa ser presa em flagrante se estiver “na posse do bem ‘lavado’”.

Assim, alguém poderia ser preso em flagrante ao ser acusado, por exemplo, de comprar um apartamento com dinheiro “lavado”. Isso dificultaria a defesa.

Em precedente de 2017, a 1ª Turma do Supremo já reconheceu a lavagem de dinheiro como um crime permanente. No caso em questão, houve movimentações do dinheiro de origem ilegal em contas no exterior durante o período da ocultação.

Por outro lado, Helena Lobo da Costa acredita que não há como “transmutar” esse raciocínio para a ocultação de cadáver, pois, nesse crime, o autor não segue checando se o corpo continua escondido.

“Não tem nada que a gente possa equiparar por analogia a uma movimentação de conta bancária”, diz a professora. “São situações que têm as suas particularidades.”

Premissa insuperável?

Embora o STF já tenha tratado a ocultação de cadáver como um crime permanente ao reconhecer a repercussão geral da discussão, o constitucionalista Ademar Borges, professor da pós-graduação em Direito do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), explica que isso pode ser revisto no julgamento de mérito.

“Os ministros têm ampla liberdade, seja para revisar a premissa adotada no reconhecimento da repercussão geral, como também para eventualmente fixar uma tese geral ampla (de que os crimes permanentes estão fora do alcance da Lei da Anistia), mas deixar de aplicá-la ao caso concreto (por entender que o crime específico não é permanente)”, esclarece.

Apesar disso, Borges entende que a revisão da premissa já adotada pelos ministros “parece pouco provável nesse contexto específico”.

Diferentes visões

A premissa do STF encontra respaldo em outra corrente de interpretação. Guilherme de Souza Nucci, desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo e professor de Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defende que o verbo “ocultar” diz respeito a condutas permanentes.

Para ele, enquanto o agente estiver escondendo algo, é possível “perpetuar a consumação” do delito.

A ocultação de cadáver significa esconder o corpo e ferir o “sentimento de respeito aos mortos”, pois a sociedade tem interesse em garantir a conduta ética de enterrar ou “dar um fim digno” aos mortos, segundo Nucci. Enquanto o corpo estiver oculto, não há enterro digno.

O ministro aposentado Celso de Mello, ex-presidente do Supremo, também já defendeu à ConJur que, “enquanto não se descobrir o local do sepultamento”, o crime continua “projetando-se no tempo, precisamente ante o seu caráter de permanência”.

ARE 1.501.674

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Imóvel não deve ser alienado sem que haja intimação do devedor

A alienação de um bem imóvel só pode ocorrer se a intimação do devedor for feita pessoalmente. Com esse entendimento, o juiz Thiago Rangel Vinhas, da Vara Federal Cível e Criminal de Formosa (GO), anulou a execução de um imóvel por um banco.

No caso, uma mulher financiou um imóvel e deixou de pagar algumas parcelas por causa de dificuldades financeiras. O banco credor, então, iniciou o processo de execução do bem e o colocou em leilão. Em seguida, a devedora buscou a Justiça, alegando que não foi devidamente intimada sobre a penhora.

Questionado, o banco se defendeu dizendo que todo o procedimento foi feito de forma legal. O juiz destacou que a inadimplência do devedor autoriza a consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, mas disse que devem ser observados os requisitos legais, como a intimação pessoal. E o ônus de provar que o procedimento foi feito devidamente, disse o magistrado, é da instituição financeira.

Como, no caso, o credor não anexou provas da intimação, o juiz classificou como verdadeiros os fatos narrados pela autora e anulou a execução extrajudicial.

“Após a consolidação da propriedade, o credor fiduciário deve promover a alienação do bem em leilão extrajudicial, no prazo de 30 dias, observado o disposto no § 2º-A do artigo 27 da Lei 9.514/1997, que exige comunicação prévia ao devedor sobre as datas, horários e locais dos leilões, inclusive por endereço eletrônico, com o intuito de garantir o exercício do direito de preferência”, escreveu o juiz.

“A inércia do banco, nesse ponto, atrai a incidência do artigo 373, II, do CPC, impondo-lhe o ônus da prova quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito da parte autora. Assim, reputam-se verdadeiros os fatos narrados na exordial. A ausência de prova inequívoca da intimação pessoal invalida o procedimento de consolidação da propriedade fiduciária e, por conseguinte, todos os atos posteriores, inclusive os leilões eventualmente realizados.”

O advogado Daniel Pimenta Queiroz defendeu a autora da ação.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1002560-45.2024.4.01.3506

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Esquerda punitiva e intimação por edital de decisão de medida protetiva

Durante muito tempo, prevaleceu a percepção de que a pauta do punitivismo advinha, predominantemente, de discursos de políticas criminais da direita, especialmente dos movimentos de “lei e ordem” (law and order).

Mas coube à professora Maria Lúcia Karam, em meados de 1996, publicar um precioso ensaio, intitulado “A esquerda punitiva” [1]. Ali, Karam nos provoca a refletir que também há punitivismo em certas políticas criminais da esquerda. É dizer, a ideologia repressora possui vida própria para além de posições à direita ou à esquerda.

Pois bem, posteriormente, Karam revigora o texto em um livro [2], atualizando as pautas punitivistas da esquerda dos últimos anos. E ali se inclui a questão do mau tratamento à violência doméstica pelo sistema penal brasileiro.

Noutra perspectiva, é possível complementar a crítica com a abordagem que Zaffaroni [3] fez ao tratar, no seu indispensável “O inimigo no Direito Penal”, do “autoritarismo cool”, aquele autoritarismo “legal”, “maneiro”, que, por ser assim, se apresenta acima de todas as críticas, “além do bem e do mal”. Então, Zaffaroni nos ensina que este “autoritarismo cool” é popularesco, desmerece a técnica e se vale de um discurso fácil para, rechaçando as garantias constitucionais, nos convencer que: neste campo aqui, tudo pode!

Mas não! A Constituição não permite pretensões jurídicas absolutas, nem mesmo a favor dos mais vulneráveis. Em toda pretensão, há de haver um limite, orientado pelas garantias constitucionais!

Intimação via edital

Neste contexto, visando a suprir a necessidade de intimação de decisões de medidas protetivas para sujeitos não encontrados, o enunciado nº 43 do Fonavid (Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica) regulamentou a modalidade via edital, com a seguinte redação: “ENUNCIADO 43: Esgotadas todas as possibilidades de intimação pessoal, será cabível a intimação por edital das decisões de medidas protetivas de urgência.”

Aqui merece ressalva a banalização da utilização de modalidade de intimação por edital na seara criminal, na medida em que se trata, em essência, de uma intimação ficta, que geraria uma presunção de ciência. A rigor, presunção não é nada além de uma mera ficção. E a ficção, quando produz efeitos jurídicos drásticos — como a presunção de ciência da medida protetiva — no campo penal, o faz, via de regra, com feições autoritárias.

Pois bem, para além da incerteza da ciência através da intimação ficta, faz-se necessária a análise das possíveis repercussões cautelares e dogmático-penais.

No tocante às repercussões cautelares, eventual “descumprimento” da medida protetiva não pode servir, exclusivamente com base na cientificação via edital, de base para o agravamento cautelar, sobretudo quando se trata de fundamento à prisão preventiva. Este entendimento foi seguido no julgamento do habeas corpus pelo Tribunal de Justiça do Paraná: 0002588-22.2024.8.16.0000 Curitiba, Relator: Mauro Bley Pereira Junior, Data de Julgamento: 24/02/2024, 1ª Câmara Criminal, Data de Publicação: 26/02/2024.

Descumprimento de medida protetiva

Já no que diz respeito às repercussões penais, aqui a situação se apresenta de maneira igualmente sensível, na medida em que o artigo 24-A, da Lei 11.340/06 tipifica o descumprimento de medida protetiva, contando com um substancial agravamento do preceito secundário do tipo a partir da Lei nº 14.994/24 (de detenção de três meses a dois anos, para reclusão de dois a cinco anos, e multa).

Neste contexto, imputações de prática do crime do artigo 24-A, calcadas na mera intimação por edital, carecem de materialidade, na medida em que a modalidade editalícia não é medida minimamente segura para atestar a ciência da obrigatoriedade do cumprimento de medida protetiva, notadamente por ser exigido, no aludido tipo penal, o dolo como elemento subjetivo. Entendendo por este caminho, destaca-se o julgamento da Apelação Criminal, pelo TJ-SP, de nº 1503617-91.2022.8.26.0269 Itapetininga, relator: Marcelo Gordo, Data de Julgamento: 26/05/2023, 13ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 26/05/2023.

Desde a perspectiva aqui abordada, a respeito do populismo penal como resposta à violência doméstica, é importante ressaltar que acontece de as partes envolvidas, não raro, voltarem, consensualmente, a se relacionar, mesmo após as medidas protetivas. Não obstante, com certa frequência, as agências penais têm ignorado essa nova conjuntura e seguido, cegamente, o caminho da criminalização (artigo 24-A da Lei 11.340/06).

Contato consensual

Com efeito, ainda que se trate de intimação regular acerca da decisão de medida protetiva, o fato de o contato ser consensual não parece permitir a tipicidade, na medida em que, à luz da função conglobante [4] da tipicidade, carece de antinormatividade o fato de a beneficiária da medida protetiva “abrir mão” da ordem judicial. Afinal de contas, o que embasou a decisão foi exatamente o medo/receio do contato, ou seja, não há lesividade na conduta!

Ainda que entendesse típico, estamos diante de pelo menos duas causas evidentes de exclusão de crime. Temos o consentimento da ofendida (como causa supralegal de exclusão da ilicitude), bem como o erro de proibição (artigo 21, CP).

Seguramente, não dá pra se exigir, de um leigo, que perceba que continua prevalecendo a medida protetiva se a beneficiária busca — ou ao menos consente com — o contato.

Do contrário, que sistema penal é este, que age numa situação que nem a separação de corpos do direito de família é confirmada?

A pauta da esquerda punitiva para a violência doméstica possui como pano de fundo a ideologia da repressão, de tal sorte a, embalada pelo “autoritarismo cool”, colocar o poder punitivo como prima ratio!


[1] KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Revista Discursos Sediciosos – Crime, Direito e Sociedade, nº 1, ano 1, 1º semestre de 1996, p. 79-92.

[2] KARAM, Maria Lucia. A ‘Esquerda Punitiva’: vinte e cinco anos depois. São Paulo: Tirant Lo Blanch Brasil, 2021, p. 102ss.

[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3ª Ed. 5ª reimp. Rio de Janeiro: Revan, 2017.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro. Volume II. Tomo I. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2016.Fonte: Conjur

Fonte: Conjur

Ideias fora do lugar e realismo mágico: relações de trabalho sob a ótica do STF

“… Tem que bater, tem que matar, engrossa a gritaria. Filha do medo, a raiva é mãe da covardia.
Ou doido sou eu que escuto vozes. Não há gente tão insana, nem caravana, nem caravana, nem caravana do Arará. Não há!”
Chico Buarque

O Brasil é um país de eternas contradições socioeconômicas, sendo o contexto trabalhista atual um bom exemplo. Se, por um lado, o debate público se aquece em torno de pautas sociais — como a proposta de redução da jornada de trabalho sem corte de salário e o eventual abandono do regime 6×1 —, o Poder Executivo divulga recordes de desemprego e geração de postos formais, além da expansão da massa salarial e, simultaneamente, lança um robusto programa de crédito consignado destinado aos empregados regidos pela CLT. Por outro lado, na contracorrente, o Supremo Tribunal Federal se prepara para julgar o Tema 1.389, cujo desfecho pode consolidar a “pejotização” (neologismo criado para designar uma espécie de simulação contratual fraudulenta de natureza trabalhista, tributária e previdenciária) como modalidade contratual ordinária, facultando ao empregador o uso de modalidades contratuais que escapam do arcabouço protetivo constitucionalmente assegurado ao trabalho humano subordinado.

Assim, o país celebra avanços na formalização e na renda, mas, contraditoriamente, ensaia permitir que a própria formalidade se torne opcional — quadro que revela a complexa tensão entre políticas públicas e programas de inclusão socioeconômica de quem vive da oferta de sua mão de obra no mercado econômico (o que é o caso da esmagadora maioria da população) e tendências de desregulação do mercado de trabalho.

Ao admitir que o labor pessoal — ainda que caracterizado por inequívoca subordinação — seja juridicamente enquadrado como prestação de serviços entre pessoas jurídicas, de natureza civil ou comercial, bastando a existência de um simples contrato formal escrito ou até mesmo verbal nesse sentido, o Estado transfere a definição do regime jurídico nas relações de trabalho às forças do mercado e pavimenta o caminho para a consolidação da “pejotização” como padrão hegemônico de contratação e gestão de mão de obra.

Não há dúvidas de que a lógica da competição por custos fará da “pejotização” o caminho dominante, seja pelos benefícios tributários e previdenciários da pessoa jurídica, seja pela supressão de encargos trabalhistas, a exemplo da desconsideração do salário-mínimo e da jornada máxima legal, bem como da possibilidade de ruptura contratual sem ônus, o que reduz o preço do serviço e pressiona empresas concorrentes a adotar o mesmo modelo para preservar margens de ganhos.

O fenômeno tende, portanto, a generalizar-se não porque seja mais eficiente em termos de produtividade — como alegam alguns analistas, ao defenderem o argumento exclusivo da livre iniciativa —, mas sim porque explora distorções fiscais, como a exoneração do FGTS e da cota patronal ao INSS, e transfere riscos econômicos ao trabalhador — inclusive aqueles relacionados à saúde, higiene e segurança no trabalho, que são questões de ordem pública, com forte impacto na saúde da população e no sistema de saúde pública financiado por toda a coletividade.

Os efeitos e as contradições, portanto, transcendem o domínio juslaboral e invadem as esferas tributária, previdenciária, de saúde pública etc.

Um importante ponto a se destacar é que, enquanto o debate fiscal vem dominando a pauta da política econômica do Estado brasileiro nos últimos anos, com a implementação de sucessivas medidas voltadas à busca do equilíbrio fiscal, se prevalecer, no âmbito do STF, o entendimento que torna a contratação empregatícia algo opcional para o empregador — a despeito da presença concreta da subordinação jurídica na relação de trabalho subjacente —, haverá um significativo impacto sobre a arrecadação tributária [1].

Sem liberdade de escolha

Imperioso registrar que não se trata de negar legitimidade ao trabalho autônomo genuíno, historicamente reconhecido pelo ordenamento (artigo 593 do CC e seguintes, entre outros), nem mesmo deixar de se valorizar e fomentar a livre iniciativa e o empreendedorismo criativo, inovador e gerador de riquezas, vantajoso para o contexto socioeconômico como um todo e alçado à condição de fundamento da República, ao lado dos valores sociais do trabalho (artigo 1º, IV, da CF/88).

Formas autônomas de contratação são e sempre foram — legítimas, por meio de pessoa física ou jurídica (a exemplo do MEI, da sociedade unipessoal, da participação societária e das cooperativas). O que não se admite é a fraude, a simulação, pois não é dado às partes escolher, de forma fictícia, a modalidade contratual quando esta não corresponde à realidade dos fatos. Ou seja, as coisas são o que são. Um contrato — sobretudo de adesão —, ainda que pretenda, não tem força para se sobrepor à realidade e transmutar a natureza da relação fático-jurídica pela simples vontade das partes, sobretudo em contextos de assimetria. Por exemplo, se a relação é consumerista no plano fático, não se transmuta em relação civil comum apenas pela nomenclatura formal atribuída no contrato de adesão. É o óbvio ululante, diria Nelson Rodrigues!

O alvo da crítica, portanto, é a simulação de autonomia quando estão presentes os elementos típicos do emprego — pessoalidade, habitualidade, onerosidade e, sobretudo, subordinação jurídica (artigos 2º e 3º da CLT). Tal disfarce infringe toda lógica jurídica construída no Ocidente desde a eclosão da revolução industrial e das revoluções liberais, voltada à proteção e promoção dos valores sociais do trabalho e à garantia de condições dignas labor. Ainda, contraria os comandos da Resolução n. 198 da OIT, de 2006, que preceitua que os países-membros devem formular políticas públicas nacionais para combater fraudes contratuais nas relações de trabalho, capazes de ocultar o verdadeiro status legal do empregado e privá-lo de devida proteção (item 4, alínea ‘b’).

No curso dos dois últimos séculos, as razões filosófica, política e jurídica do Ocidente, pressionadas por conflitos sociais e reivindicações populares, tiveram como um de seus principais desafios a pauta relativa à construção e ao aprimoramento de instituições políticas e de arranjos jurídico-normativos capazes de proteger a pessoa humana e sua dignidade, sobretudo no mundo do trabalho, por meio da garantia de condições de trabalho dignas, justas e humanas. Isso porque, para a grande maioria das pessoas, a inserção socioeconômica e o acesso aos recursos materiais que possibilitam sua subsistência, capacitação para o exercício das liberdades fundamentais, desenvolvimento de suas potencialidades e realização de seus projetos de vida somente são viabilizados por meio da oferta de sua mão de obra no mercado econômico para o exercício de um trabalho juridicamente subordinado/economicamente dependente (artigos 2º e 3º da CLT).

Assim, a dignidade da pessoa humana impõe, como consequência lógica, a tutela jurídica do trabalhado, voltada à preservação da higidez física e psíquica do trabalhador e à harmonização de suas esferas de vida pessoal e profissional.

Nada obstante, como demonstram os marcos históricos, essa arquitetura protetiva não se ergueu exclusivamente para melhorar as condições de vida e de trabalho dos assalariados. O complexo normativo laboral também foi concebido como instrumento de contenção de greves, de neutralização de radicalismos políticos e de prevenção de perdas produtivas — objetivos voltados à pacificação social e à criação de um ambiente econômico favorável à livre-iniciativa, à segurança jurídica e aos investimentos de longo prazo.

As normas trabalhistas, portanto, geram externalidades positivas para o desenvolvimento sustentável da economia. Regras de saúde, higiene e segurança, por exemplo, internalizam riscos que, se lançados sobre a coletividade, resultariam em custos elevados de absenteísmo, rotatividade e pressão sobre o sistema de saúde. De igual modo, a remuneração mínima e o tempo livre assegurados por limites de jornada, intervalos, férias e licenças alimentam a demanda agregada e fortalecem o mercado interno – situação atualmente vivenciada no país, a propósito.

Paradoxo

Nesse contexto, é valioso destacar que o entendimento adotado pelo STF no julgamento de determinadas reclamações constitucionais, ao buscar legitimar práticas fraudulentas e promover a generalização da “pejotização” no mercado de trabalho, caso venha a ser efetivamente consolidado com força vinculante, teria o condão de reavivar, no Brasil do século 21, a teoria contratual vigente nos países centrais do capitalismo nos primórdios da Revolução Industrial — séculos 18 e 19. Nessa lógica, não há dúvidas de que o maior prejudicado seria o trabalhador mais vulnerável, pois, quanto maior a vulnerabilidade de uma pessoa humana, menores são seu poder de barganha e suas condições de pactuação no mercado de trabalho.

Ao adotar a ficção de que trabalhador e empregador se encontram em igualdade de condições para pactuar o regime jurídico aplicável, o STF corre o risco de instituir a figura paradoxal do trabalhador “subordinado, porém autônomo” — um oxímoro que ignora as desigualdades materiais inerentes ao mercado de trabalho brasileiro. Sob essa premissa formalista, bastaria um “contrato de adesão” para conferir ao empregado suposta liberdade de optar, junto com o tomador de serviços, entre o estatuto protetivo do emprego (artigos 2º e 3º da CLT) e o direito civil‑comercial.

Na prática, porém, a subordinação continuaria presente e, com ela, a assimetria de poder de barganha, de modo que a escolha declarada seria apenas retórica. Tal construção esvazia o princípio da primazia da realidade (artigo 9º da CLT), viola a indisponibilidade de direitos trabalhistas (artigo 7º, caput, CF/88) e subverte a lógica do valor social do trabalho (artigo 1º, IV), pois transfere ao indivíduo o ônus de renunciar — sob pressão econômica — às garantias mínimas que a própria Constituição consagra como fundamentais e de ordem pública.

Cabe, aqui, um parêntese para registrar que, no Direito do Trabalho, a premissa jurídica de igualdade de condições entre as partes para negociação contratual manifesta-se no âmbito do direito coletivo, no qual se presume a existência de equilíbrio de poder de barganha entre empresas e sindicatos. Nem mesmo nesse contexto o STF admitiu liberdade contratual irrestrita, tendo resguardado os direitos absolutamente indisponíveis do trabalhador das negociações, conforme tese firmada no Tema 1.046. E mais, a supressão da premissa da hipossuficiência nas relações desiguais abriria, também, as portas para a subversão do Direito do Consumidor, em nome da modernização – ou tal flexibilização ficaria restrita apenas ao ramo juslaboral?

Proteção x informalidade

Retomando o raciocínio, cumpre esclarecer que, nas principais democracias capitalistas, a regra hegemônica de organização do mercado de trabalho continua sendo a proteção jurídica do emprego subordinado — seja por meio de legislação estatal, seja por convenções coletivas negociadas com sindicatos robustos. As economias avançadas demonstram que é possível conciliar, com eficiência, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa. Alemanha, França, países nórdicos e mesmo os Estados Unidos, por exemplo, sustentam alta competitividade em meio à revolução digital, sem abrir mão de pisos salariais, limites de jornada, normas de proteção à saúde e direitos coletivos.

Nesses países, o emprego protegido constitui a principal política pública de inclusão socioeconômica, funcionando como eixo de distribuição de renda, financiamento da seguridade social e ancoragem democrática das relações produtivas. Assim, longe de ser obstáculo à modernidade, o estatuto protetivo do trabalho revela‑se a forma mais abrangente de valorização do trabalho humano e mitigação das desigualdades que fragilizam tanto a dinâmica do mercado quanto a estabilidade das instituições [2].

Dados da OCDE confirmam que, quanto maior o grau de desenvolvimento econômico, social e institucional, menor tende a ser a parcela de trabalhadores que atuam por conta própria, sem cobertura trabalhista ou previdenciária. Nos países‑membro mais avançados, o emprego subordinado — regulado por lei ou por convenções coletivas — predomina amplamente: a participação de autônomos na força de trabalho gira em torno de 6 % a 9 % em economias como Estados Unidos (≈ 6,1 %), Canadá (≈ 6,8 %), Dinamarca (≈ 8,4 %), Alemanha (≈ 8,6 %) e Austrália (≈ 8,7 %). Na outra ponta do espectro, países com menor renda per capita e alta informalidade apresentam taxas substancialmente mais elevadas: Colômbia (≈ 46,6 %), México (≈ 31,4 %), Grécia (≈ 31 %) e Turquia (≈ 28,6 %).[3]

O Brasil situa‑se mais próximo desse segundo grupo. Estimativas recentes indicam que cerca de 33 % da população economicamente ativa trabalha na condição de autônomo, com limitada – ou nenhuma – proteção social.

Esse contraste sugere que economias modernas, democráticas e competitivas não se sustentam sobre trabalho desprotegido. Ao contrário, elas combinam alta produtividade com redes sólidas de seguridade, favorecendo a estabilidade macroeconômica, uma arrecadação tributária robusta e a redução das desigualdades. Onde a autogestão da própria força de trabalho se torna a regra — seja por necessidade, seja por incentivos fiscais distorcivos —, ampliam‑se a volatilidade de renda, o subfinanciamento previdenciário e as barreiras à inclusão social. No Brasil, por exemplo, é nítida a diferença remuneratória e de acesso a benefícios entre o emprego formal e o informal.

Não se trata, aqui, de esmiuçar as múltiplas causas desses indicadores, mas de realçar um ponto: a simples expansão do trabalho autônomo não se traduz, por si só, em ganhos de produtividade, tampouco em melhores indicadores socioeconômicos. Modernizar as relações laborais — se o propósito for genuinamente promover progresso econômico e inclusão social — não equivale a desmontar o arcabouço protetivo forjado, ao longo de séculos, em favor do trabalho subordinado.

Ao contrário, as nações mais desenvolvidas demonstram que competitividade e inovação convivem com redes robustas de proteção ao emprego. Nesses países, a busca do pleno emprego permanece a pedra angular das políticas públicas de trabalho, exatamente como preconiza o artigo 170 da Constituição. Desproteger o vínculo de emprego, portanto, não é sinônimo de modernidade, mas um atalho perigoso que pode aprofundar desigualdades e discriminações, fragilizar a própria base econômica e radicalizar a política, com viés antidemocrático.

Assim, ao flertar com esse caminho, o Brasil se desgarra de toda lógica jurídico-normativa que rege as democracias constitucionais ao redor do mundo — sobretudo nos principais centros capitalistas do Ocidente. Não bastasse o fato de o Brasil ter sido recordista no tráfico de escravizados africanos e o último país das Américas a abolir a escravidão, além de figurar entre os mais desiguais do planeta, agora estamos prestes a ser também os primeiros a inaugurar uma nova ordem trabalhista que, a despeito do discurso da modernização, irá tão somente reavivar a lógica jurídica de séculos passados.

Sob o rótulo de modernização, o Brasil insiste em perpetuar — para lembrar Roberto Schwarz — ideias fora do lugar. O resultado é um futuro que ostenta verniz emancipador, mas repete velhos padrões. Nesse universo invertido, reformas de dantesco impacto social deixam de ser papel do Legislativo e passam a ser ditadas pelo Judiciário; teses de repercussão geral afastam‑se dos fatos e da “ratio” do precedente; reclamações constitucionais, antes circunscritas à defesa da autoridade da corte, tornam‑se atalhos para reexaminar provas, em afronta ao princípio da aderência estrita; e a simulação contratual e a fraude passam a ser fontes de um “realismo mágico”, em que as coisas já não são o que elas são, o fantasioso se naturaliza no ordinário.

Entre o forte e o fraco, a lei converte‑se em instrumento de opressão do fraco, enquanto a suposta liberdade contratual se apresenta como redentora; “pejotização” confunde-se com terceirização lícita; e, após 80 anos, à Justiça do Trabalho já não cabe sequer averiguar a presença dos elementos fáticos‑jurídicos da relação de emprego, pois a sua competência se esvai. Assim, o passado ressurge travestido de vanguarda.

Nessa toada, se a prerrogativa constitucional de proteger e valorizar o trabalho — sobretudo o trabalho subordinado – ceder diante da “pejotização” legitimada, operar-se-á uma inversão digna da crítica de Ferdinand Lassalle. Em sua lição, a Constituição só possui eficácia e força normativa quando exprime os “fatores reais de poder”. Aqui, porém, esses fatores deslocam o centro normativo das relações de trabalho para o mercado, reduzindo a Carta de 1988 a mera “folha de papel”. Simultaneamente, aquilo que antes era justamente “papel” — o contrato individual, submisso à primazia da realidade — ganha estatura quase soberana: a letra contratual passa a definir, por si, o estatuto jurídico do trabalhador, tornando a própria realidade fática “inócua” ou, pior, juridicamente irrelevante. Assim, o Direito do Trabalho deixa de ser contrapeso para se conformar aos novos poderes econômicos, enquanto a Constituição social, através de uma decisão de seu órgão guardião, perde a função de limitar o poder e garantir igualdade material.


[1] Para se ter uma ideia, em nota técnica, pesquisadores da FGV apresentaram dados para concluir que “se supusermos que, dado o avanço da pejotização e com o passar dos anos, 50% da força de trabalho com carteira assinada passe a atuar como conta própria formal, isso é, seja pejotizada, a perda arrecadatória seria da ordem de 384 bilhões de reais por ano. Esta redução corresponde a 16,6% da arrecadação federal de 2023, a valores do ano passado”. Estudo disponível no seguinte endereço eletrônico https://eaesp.fgv.br/sites/eaesp.fgv.br/files/impactos_da_pejotizacao_sobre_a_arrecadacao_de_tributos_-_final.pdf , acessado em 28 de abril de 2025, às 15hs. Nesse sentido, ver também o estudo do IPEA, disponível em https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8327/1/cc_38_nt_desequilibrio_financeiro_MEI.pdf , acessado em 14 de maio, às 16hs.

[2] Para aprofundamento no tema, ver GODINHO DELGADO, M. .; GUSTAVO DE SOUZA ALVES, L. .; PINHEIRO VILAR LIMA, M. . O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O OBJETIVO CONSTITUCIONAL DA BUSCA DO PLENO EMPREGO. Res Severa Verum Gaudium, Porto Alegre, v. 7, n. 1, 2022. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/resseveraverumgaudium/article/view/128972. Acesso em: 14 maio. 2025.

[3] Dados disponíveis no seguinte endereço eletrônico https://www.oecd.org/en/data/indicators/self-employment-rate.html?oecdcontrol-d7f68dbeee-var3=2023 .

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Comunhão parcial não resulta, por si, em responsabilidade por dívida de cônjuge

A 3ª Câmara de Direito Comercial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu, por unanimidade, manter decisão que negou o pedido de penhora de valores depositados em conta bancária da ex-esposa de um devedor. O colegiado reafirmou o entendimento de que o regime de comunhão parcial de bens não implica, por si só, responsabilidade solidária pelas dívidas do outro cônjuge.

 

No caso, um posto de combustíveis buscava executar dívida contraída em 2023, durante o casamento do executado. A tentativa de penhora visava a conta bancária de sua ex-mulher, com o argumento de que os frutos da sociedade conjugal beneficiaram ambos e, portanto, a obrigação deveria recair sobre o patrimônio comum do casal.

O colegiado, no entanto, entendeu que o fato de a dívida ter sido contraída durante o casamento não autoriza, de forma automática, o bloqueio de valores em nome de terceiro não participante do processo de execução.

Segundo o relator, desembargador Gilberto Gomes de Oliveira, não se admite a penhora de ativos financeiros da conta bancária pessoal de terceiro não integrante da relação processual em que se formou o título executivo, só pelo fato de ser casado com a parte executada sob o regime da comunhão parcial de bens.

O voto destacou ainda que o regime adotado pelo casal não torna o cônjuge solidariamente responsável, de forma automática, por todas as obrigações contraídas pelo parceiro, e que impor a penhora a um terceiro que não participou do processo de conhecimento viola o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.

A decisão se alinha ao entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça. Conforme precedentes citados, “a ausência de indícios de que a dívida foi contraída para atender aos encargos da família, despesas de administração ou decorrentes de imposição legal torna incabível a penhora de bens pertencentes ao cônjuge do executado”.

A turma reforçou que, para viabilizar a constrição de valores, seria necessário comprovar que a conta da ex-esposa era usada pelo devedor para movimentações financeiras ou ocultação de patrimônio — o que não foi demonstrado nos autos.

In casu, embora a parte agravante alegue que as dívidas foram contraídas durante a constância do casamento, firmado sob o regime da comunhão parcial de bens, a então esposa não figura como demandada nos autos do cumprimento de sentença originário”, escreveu o relator. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-SC.

Processo 5083697-48.2024.8.24.0000

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Os precatórios e o Arcabouço Fiscal entre despesas e dívidas

Debate-se nas esferas político-financeiras do governo federal se o montante a ser pago de precatórios em 2027 deve ou não compor o limite de despesas a serem consideradas para fins do Arcabouço Fiscal (Lei Complementar 200/23).

Faço logo o spoiler: o montante de precatórios a serem pagos, em 2027 ou em qualquer outro ano, não deve compor a base de despesas para fins do Arcabouço Fiscal.

Justifico a conclusão já exposta. O Arcabouço Fiscal visa controlar as despesas públicas, porém existem despesas que são controladas pelo Poder Executivo e outras que não são. Dois exemplos demonstram esse fato.

O montante a ser pago em razão do serviço da dívida pública não é controlado pelo Poder Executivo, até mesmo porque a taxa de juros é determinada pelo Banco Central, que é autônomo inclusive para essa função, e esse valor não pode ser reduzido ou contingenciado pelo Executivo. Corretamente esse montante não é computado para fins do Arcabouço Fiscal.

Da mesma forma, o montante a ser pago de precatórios não é uma despesa que possa ser controlada pelo Poder Executivo, pois sua quantificação e determinação é são efetuadas pelo Poder Judiciário, fruto de milhares de ações que tramitaram em suas Varas durante décadas e, finalmente, transitaram em julgado, formando coisa julgada contra o Tesouro Nacional. Nem mesmo ao Poder Legislativo é autorizado modificar o valor que o Poder Judiciário remete para inserção na Lei Orçamentária Anual (LOA) – a quantia que tiver sido estabelecida pelo Judiciário deve ser inserida pelo Poder Legislativo na LOA sem nenhuma alteração. Sequer pode haver veto do Poder Executivo referente a essa rubrica ao sancionar a LOA. Tal qual referente ao serviço da dívida pública, o montante de precatórios não pode ser reduzido ou contingenciado pelo Poder Executivo.

Nestes casos o Poder Executivo encontra-se de mãos atadas, nada podendo fazer para reduzir a despesa. O montante do serviço da dívida pública não é computado para fins dos limites de despesas do Arcabouço Fiscal, porém o montante a ser pago de precatórios é computado para fins do Arcabouço Fiscal. Qual a razão do tratamento desigual? Nenhuma.

No caso da dívida pública os credores estão comprando títulos emitidos pelo Tesouro, representativos da dívida pública no mercado. São credores do Tesouro Nacional aquelas pessoas que possuem em sua carteira LTNs ou qualquer outro dos títulos ofertados pela União (conferir no site do Tesouro Direto).

No caso dos precatórios, os credores são os sofridos litigantes que durante décadas disputaram em juízo contra o poder público e venceram a demanda perante o Poder Judiciário, em suas múltiplas instâncias, tornando-se credores do Tesouro Nacional por meio de um título específico denominado precatório, que é uma decisão judicial transitada em julgado – algo que o sistema jurídico considera seguríssimo.

Os credores dos precatórios são tão credores quanto aqueles que possuem títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. O devedor é o mesmo. Por qual motivo a dívida pública representada por títulos emitidos pelo Tesouro Nacional deve ter um tratamento diferente daquela que é emitida pelo Poder Judiciário contra o Tesouro Nacional? A resposta é: não há razão para discriminação. O Tesouro Nacional deve pagar a todos os credores de forma igual.

Não se trata de falta de dinheiro para pagar a uns e não pagar a outros. Não é esse o ponto – dívidas devem ser honradas e há dinheiro para pagar a todos esses credores, sendo que a dívida financeira é milhares de vezes superior que a dívida judicial.

Ocorre que o tratamento contábil é distinto no âmbito do Arcabouço Fiscal, pois ficam fora da limitação de despesas os credores financeiros (dos títulos emitidos pelo Tesouro), e ficam dentro dessa limitação de despesas os credores judiciais (dos títulos emitidos pelo Poder Judiciário contra o Tesouro = precatórios). Não há razão para esse tratamento distinto, o que justifica a conclusão exposta no spoiler, de que o montante de precatórios a serem pagos, em 2027 ou em qualquer outro ano, não deve compor a base de despesas para fins do Arcabouço Fiscal.

Relembre-se que em dezembro de 2023 o STF, por meio da ADI 7.064, relatada pelo ministro Luiz Fux, declarou formalmente inconstitucional parte das Emendas Constitucionais 113 e 114, que criavam o efeito bola de neve no pagamento de precatórios, o que era perverso (um resumo das discussões pode ser lido aqui). A decisão do STF desarmou parcialmente a bomba relógio  pois foi afastada a limitação orçamentária até 2026, o que fará retornar o problema em 2027. O problema foi adiado e não resolvido em definitivo.

O nó é conceitual, pois foi afirmado pelo STF (item 19 da ementa do acórdão da ADI 7.064) que “A dívida pública em matéria de Direito Financeiro, é sempre decorrente ou (i) de empréstimos realizados pelo ente público ou (ii) da emissão de títulos. As dívidas decorrentes do pagamento de condenações judiciais não são classificadas como dívida pública, mas como despesas”.

O problema está nesse ponto, pois precatórios não são despesas, são dívidas, como consta da última frase do próprio texto, que ora grifado: “As dívidas decorrentes do pagamento de condenações judiciais não são classificadas como dívida pública, mas como despesas”.

Isso decorre de uma interpretação imprecisa do artigo 30, §7º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que estabelece: “Os precatórios judiciais não pagos durante a execução do orçamento em que houverem sido incluídos integram a dívida consolidada, para fins de aplicação dos limites”.

A expressão-chave para o entendimento do artigo 30, §7º da LRF é dívida “consolidada”, não havendo referência na norma de que precatórios são despesas. O contraponto à expressão dívida consolidada é dívida flutuante, prevista no artigo 92 da Lei 4.320/64, que inclui no inciso II “os serviços da dívida a pagar”.

Os precatórios que devem ser pagos no exercício corrente são dívida flutuante (Lei 4.320/64, artigo 92, II) e os precatórios que não foram pagos no exercício corrente se constituirão como dívida consolidada (LRF, artigo 30, §7º). Em nenhum momento consta que precatórios são despesas; precatórios são dívidas, ora consideradas como flutuantes (caso sejam pagas no exercício corrente), ora consideradas como consolidadas caso não tenham sido pagas no exercício corrente, mas acumuladas para pagamento nos exercícios posteriores.

A confusão ocorre em razão de uma distinção entre a análise jurídica (que busca a essência dos atos/fatos, comumente denominada de natureza jurídica) e a análise contábil (que busca evidenciar a execução orçamentária e financeira do ente público).  Juridicamente os precatórios a serem pagos no exercício corrente tem a natureza jurídica de dívida flutuante, porém, contabilmente, para fins de execução orçamentária, seu pagamento quita uma despesa realizada no exercício corrente.

Em síntese: o pagamento dos precatórios no exercício corrente quita contabilmente uma despesa, caracterizada juridicamente como uma dívida flutuante.

Na leitura do item 19 da ementa do acórdão da ADI 7.064 deveria constar um parêntesis, que ora aponho: “As dívidas decorrentes do pagamento de condenações judiciais não são classificadas (contabilmente) como dívida pública, mas como despesas”. A partir daí seria necessário distinguir a análise jurídica da contábil, ambas corretas, mas com diferentes abordagens, devendo prevalecer o Direito no julgamento dessa matéria, pois trata da essência dos atos ou fatos jurídicos.

É necessário colocar um ponto final nesse debate em prol da segurança jurídica no país, incluindo a dos credores, sejam os do mercado financeiro, sejam os judiciais, pois isso impacta no risco-país e, consequentemente, na taxa de juros e em toda a economia.

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