Audiência no STF debaterá se orçamento secreto persiste em ’emendas pizza’

Nos autos da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 854, o ministro Flávio Dino determinou uma audiência de conciliação para debater denúncia de permanência do “orçamento secreto” no manejo de emendas parlamentares, o que, caso venha a se confirmar, implicaria descumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal proferida em 19 de dezembro de 2022,  que reputou o instituto inconstitucional.

O despacho do novo ministro relator sobre a matéria — que sucedeu a ministra Rosa Weber —, respondeu a pedido dos amici curiae Associação Contas Abertas, Transparência Brasil e Transparência Internacional Brasil. Tais entidades levaram ao conhecimento da Corte, conforme excertos citados pelo próprio ministro Flávio Dino,

elementos que configuram a persistência do descumprimento da decisão adotada por esta Eg. Corte no âmbito das referidas ações, assim como dos preceitos fundamentais que a embasaram”, em função do “uso indevido das emendas do relator-geral do Orçamento para efeito de inclusão de novas despesas públicas ou programações no projeto de lei orçamentária anual da União”; “emendas individuais na modalidade transferência especial (emendas Pix: alta opacidade, baixo controle”; e “descumprimento da determinação de publicar informações relativas à autoria das emendas RP 9 e à sua aplicação.

Foram intimadas a comparecer na audiência do dia 1º de agosto as seguintes autoridades: procurador-geral da República; presidente do Tribunal de Contas da União; ministro-chefe da Advocacia Geral da União; chefe da Advocacia do Senado; chefe da Advocacia da Câmara dos Deputados e advogado do partido autor da ADPF 854/DF (PSOL).

Diante da falta de comprovação de que teriam sido extintas as práticas abusivas nas emendas de relator (RP 9) e dado o risco de descumprimento de ordem judicial por meio da sua continuidade em outros tipos de emendas, o Ministro Flávio Dino alertou enfaticamente que “não importa a embalagem ou o rótulo (RP 2, RP 8, ’emendas pizza’ etc.)”. “A mera mudança de nomenclatura não constitucionaliza uma prática classificada como inconstitucional pelo STF, qual seja, a do “orçamento secreto.”

Como em um sistema de vasos comunicantes, os recursos anteriormente alocados em emendas de relator (RP 9) foram redistribuídos primordialmente em prol das emendas individuais impositivas (RP 6), as quais, por força da Emenda 126/2022, passaram de 1,2% da receita corrente líquida federal para 2% da RCL;  bem como das emendas de comissão (RP 8), além de inicialmente haverem sido remanejados recursos para dotações supostamente discricionárias do Executivo (RP 2), mas que estavam comprometidas  com as indicações feitas pelo Legislativo.

A ironia do ministro Flávio Dino em designar as emendas parlamentares como “emendas pizza” decorre desse contexto de fatiamento dos recursos públicos, de forma opaca, pouco aderente ao planejamento e fisiológica. A imagem de “emendas pizza” traz consigo uma síntese apropriada e bastante didática do polvilhamento irrefletido de recursos, tal como ocorre com a farinha jogada dispersamente sobre a massa da pizza, sem que haja clareza ou intencionalidade planejada de onde cada montante cairá. Quem distribui recursos públicos desse modo o faz mirando primordialmente ganhos de curto prazo eleitoral em conduta que, por vezes, majora o risco de enriquecimento ilícito e dano ao erário, na medida em que opera analogamente como uma espécie de execução privada de dinheiro público.

Entre os cerca de R$ 50 bilhões em emendas parlamentares previstos no orçamento geral da União de 2024, R$ 25 bilhões referem-se a emendas individuais impositivas, R$15,2 bilhões estão alocados em  emendas de comissão e R$ 11,3 bilhões em emendas de bancada impositivas.

Diante da premência do calendário eleitoral municipal, já foram liberados e pagos R$ 30 bilhões das emendas parlamentares, ou seja, aproximadamente 60%. Considerando o contingenciamento que se avizinha na execução orçamentária federal, os outros R$ 20 bilhões em emendas parlamentares começaram a ser um alvo potencial de restrição fiscal, tal como se sucede com as despesas discricionárias a cargo do Executivo.

Dado o estreito calendário das eleições já em curso, tempo é o bem mais precioso do presente exercício financeiro. Todavia, a gestão do ritmo mensal da execução orçamentária é competência privativa do Executivo e ocorre no âmbito do decreto de programação financeira, para resguardar o alcance da meta de resultado primário da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal, tal competência passa pela elaboração de metas bimestrais de arrecadação (artigo 13) e de cronograma mensal de desembolso (artigo 8º), o que deve ocorrer nos primeiros 30 dias após a promulgação da LOA. Ao longo do exercício, o monitoramento da execução orçamentária deve ser realizado mediante relatórios resumidos publicados bimestralmente (na forma do artigo 53, III da LRF).

Caso haja risco de frustração das receitas estimadas, poderão ser contingenciadas as despesas primárias que não forem obrigações legais e constitucionais (marcadas pelo identificador de resultado primário 1 e incluídas formalmente na Seção I do Anexo III da LDO/2024), para que seja cumprida a meta de resultado primário (artigo 9º da LC 101/2000).

Eis o contexto em que o Executivo anunciou que promoverá contingenciamento e bloqueios em 30 de julho de aproximadamente R$15 bilhões, montante que ultrapassa a dotação disponível de 19 ministérios do governo federal.

Diferentemente das despesas obrigatórias a que se refere o §2º do artigo 9º da LRF, as emendas parlamentares, mesmo as que têm natureza impositiva (emendas individuais e de bancada), são suscetíveis de contingenciamento, por força do §18 do artigo 166 da Constituição de 1988,

Apesar de poder vir a ser relativamente elevado o nível de contingenciamento necessário para cumprir a meta de resultado primário equilibrado (“déficit zero”) ao longo de 2024, o Congresso conseguiu antecipar a execução de 60% das suas emendas parlamentares, resguardando-as dos efeitos da incidência dos decretos de programação financeira controlados pelo Executivo.

Não é demasiado reiterar que, em ano de eleições municipais, a opção por assegurar que tais emendas fossem repassadas às bases locais de cada deputado federal e de cada senador, antes de 30 de junho, era uma questão de sobrevivência política que refutava qualquer restrição fiscal. A bem da verdade, tentou-se contornar factualmente a vedação inscrita no artigo 73, inciso VI, alínea “a” da Lei 9.504/1997. Vale lembrar que o artigo 2º da Emenda 105/2019 previra algo semelhante em relação às anteriores eleições municipais, para garantir o efetivo repasse financeiro de 60% do total das transferências especiais (“pix orçamentário”) até 30 de junho de 2020.

Ônus do Executivo

Diante do risco de não atingimento da meta de resultado primário da LDO/2024, as emendas parlamentares podem vir a ser contingenciadas na mesma proporção e na mesma velocidade das demais despesas discricionárias. Ter adiantado a execução orçamentária das emendas parlamentares para garantir sua quitação até 30 de junho foi uma controversa opção que empurrou exclusivamente para o Executivo o colossal ônus de realização do ajuste fiscal esperado para o ano em curso, o que afronta diretamente não só o já citado §18 do artigo 166 da Constituição, como também o §13 do mesmo dispositivo constitucional: “as programações orçamentárias previstas nos §§ 11 e 12 deste artigo não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica”.

Como o §2º do artigo 7º da Lei Complementar 200/2023 previu que “o nível mínimo de despesas discricionárias necessárias ao funcionamento regular da administração pública é de 75% do valor autorizado na respectiva lei orçamentária anual”, a margem de provável contingenciamento das demais despesas discricionárias e, por tabela, das emendas parlamentares impositivas seria de 25%.

Em um raciocínio de fronteira, caso haja risco de frustração da arrecadação (até porque o Congresso tem rejeitado os esforços do Executivo em rever determinadas renúncias fiscais) e, por conseguinte, se houver risco de não atingimento da meta de resultado primário, um quarto das emendas parlamentares individuais e de bancada poderia vir a ter sido contingenciado.

Não obstante isso, como já foram pagos R$30 bilhões de emendas parlamentares até o final de junho, em face do montante inicial previsto de R$50 bilhões, houve uma clara e deliberada preterição das despesas planejadas que o Executivo conduz. Novos contingenciamentos não poderão reverter tal fato consumado e a margem de eventual restrição que venha a incidir sobre os R$ 20 bilhões restantes é bastante menor, algo que provavelmente não virá sequer à tona na audiência do dia 1º de agosto no STF.

Além da preterição, a disparidade de regime jurídico aplicável às despesas a cargo do Poder Executivo em face das emendas parlamentares (essas controversamente mais flexíveis do que aquelas) deveria ser o principal impasse a ser debatido nos autos da ADPF 854/DF. Ilustra tal assimetria desarrazoada e inconstitucional a possibilidade de indicação do beneficiário do repasse decorrente de emendas congressuais na forma do artigo 29 da Lei 13.019/2014, sem que se cumpra o rito da dispensa e/ou inexigibilidade de licitação, o que afronta o artigo 37, XXI da CF. As “emendas pizza” também podem ser empenhadas sem prévia licença ambiental ou projeto de engenharia, além de usufruírem de prazo mínimo de três anos para a resolução de condições suspensivas.

Para tentar aprimorar o regime jurídico de tais emendas, seria necessário alterar a redação do artigo 29 da Lei 13019/2014, ao que sugerimos que lhe seja acrescentado um parágrafo único que obrigasse ao cumprimento dos seguintes comandos legais:

I – conformidade com o artigo 72 da Lei 14133/2021, para que haja processo de motivação/demonstração de economicidade da contratação direta decorrente da emenda parlamentar, em consonância com o artigo 37, XXI da Constituição;

II – vinculação substantiva ao artigo 10 da Lei 13005/2014, ao artigo 36 da Lei 8080/1990 e ao artigo 30 da Lei Complementar 141/2012, que definem parâmetros de aderência aos instrumentos de planejamento setorial dos recursos vinculados à educação e à saúde, respectivamente;

III – ônus de provar o regular emprego dos recursos públicos conforme o artigo 93 do Decreto-lei 200/1967 e artigo 2⁰, parágrafo único da Lei 12.257/2011, de modo a obrigar as entidades beneficiárias da emenda parlamentar a prestarem contas dos recursos recebidos.

Às anomalias no âmbito da despesa se soma o fato de que as emendas parlamentares aspiram, cada vez mais, influenciar direta e imediatamente o processo eleitoral. Assume-se, com isso, o risco de proliferação irrefreada de toda sorte de abuso de poder político com recursos do orçamento, na medida em que as regras foram redigidas por quem sabia exatamente o que estava fazendo para dificultar ao máximo os controles.

É incontroverso que o Congresso tem buscado fugir ao controle, evitando a rastreabilidade dos recursos públicos pulverizados nas emendas parlamentares. A bem da verdade, as emendas parlamentares, sobretudo sob a modalidade de transferências especiais (vulgarmente conhecidas como “pix orçamentário”) potencializam os riscos de apropriação privada dos recursos públicos, tanto para os que almejam apenas satisfazer ao seu curto prazo eleitoral, quanto para o que buscam, por vezes, enriquecer-se ilicitamente.

Como antídoto parcial a isso, cabe resgatar o dever universal de transparência inscrito na Lei de Acesso à Informação em relação às entidades privadas beneficiárias dos repasses, no que se incluem, por óbvio, também aqueles oriundos de emendas parlamentares:

“Art. 2º. Aplicam-se as disposições desta Lei, no que couber, às entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.

Parágrafo único. A publicidade a que estão submetidas as entidades citadas no caput refere-se à parcela dos recursos públicos recebidos e à sua destinação, sem prejuízo das prestações de contas a que estejam legalmente obrigadas.”

A sujeição universal aos deveres da transparência e de prestar contas precisa ser resgatada, inclusive com segregação de contas bancárias nas entidades beneficiárias dos repasses, sob pena de que seja negado o próprio sentido republicano da Lei de Acesso à Informação. É urgente que exigirmos a plena sindicabilidade das emendas parlamentares, submetendo-as aos influxos constitucionais do controle que regem toda a Administração Pública.

Muito embora as emendas parlamentares, em sua concepção teórica, visassem oxigenar democraticamente o processo de elaboração da lei orçamentária, algumas delas passaram a se comportar como instrumento de captura de significativa parcela do ciclo decisório estatal.

Como divulgado aqui, o Tribunal de Contas da União já havia alertado que: “O Executivo e o Legislativo estão retirando recursos das despesas obrigatórias para cobrir as emendas dos parlamentares. Isso significa que a dívida vai aumentar e, para saldá-la, será necessário recorrer ao endividamento”.

Ora, postergar a aplicação dos recursos vinculados, parcelar o pagamento de precatórios como feito nas Emendas 113 e 114/2021, gerar fila de espera nos benefícios assistenciais e previdenciários, dar causa a passivos judicializados por deliberada omissão quanto à regulamentação e à efetiva oferta de serviços públicos essenciais que amparam a consecução dos direitos fundamentais são exemplos dessa burla à ordenação legítima de prioridades inscrita na Constituição e nas leis de planejamento setorial e orçamentário que direcionam o percurso das políticas públicas.

Quando despesas discricionárias (a exemplo das emendas parlamentares, independentemente de serem individuais — RP 6, de bancada — RP 7 ou de comissão – RP 8) passam à frente e, por isso, direta ou indiretamente implicam o inadimplemento das obrigações legais e constitucionais de fazer, isso deveria gerar uma presunção de irregularidade do gasto, que deveria demandar o ônus da prova, na forma do artigo 93 do Decreto-lei 200/1967.

O que o país tem vivido é um paulatino retorno ao regime pré-Constituição de 1988 de execução privada do orçamento público: impessoalidade, moralidade, publicidade e legalidade não têm sido referências fortes de controle, tampouco há qualquer limite fiscal ou eleitoral na distribuição subjetiva/coronelista de novas benesses em meio ao pleito.

É preciso, nesse sentido, ressituar o debate em seus pilares óbvios: sem planejamento, impera o caos de curto prazo eleitoral e o risco de apropriação privada dos recursos públicos. Até porque, sem controle e com opacidade, o diagnóstico da corrupção resta pragmaticamente impossível. Aliás, a maior corrupção é exatamente essa: o rebaixamento institucional que nega a própria possibilidade de haver controle, transparência, impessoalidade e limites da lei.

A flexibilização irrefreada do regime jurídico das emendas parlamentares ao longo dos anos não foi contida sequer pela declaração do STF de inconstitucionalidade do orçamento secreto. O problema não só persiste, como tem se agravado, já que agora envolve a expressiva cifra anual de R$ 50 bilhões.

A cada burla hermenêutica em relação às vedações eleitorais e ao dever de contingenciamento equitativo, a cada ato de fuga ao controle e de opacidade, a cada indicação do CNPJ da entidade beneficiária sem devido processo de dispensa ou inexigibilidade, a cada desprezo pelo planejamento setorial das políticas públicas, entre outras burlas, as emendas parlamentares aceleram o processo de rebaixamento da credibilidade do arcabouço constitucional e literalmente implodem a noção de “limite da lei”.

Infelizmente, porém, é improvável que esse venha a ser o diagnóstico da audiência de “conciliação” do 1º de agosto, razão pela qual o decorrente prognóstico tenderá a ser aquém do necessário para que se possa estruturalmente enfrentar o problema.

Sem respostas abrangentes e consistentes, ao fim e ao cabo, o risco é de que, mais uma vez, todo esse esforço institucional do STF venha a acabar, mais cedo ou mais tarde, em normalização dos abusos das emendas parlamentares e, com o perdão do trocadilho, em pizza… O maior indicativo de fragmentação, por ora, reside no fato de que o ministro Flávio Dino apartou, de plano, o debate do Pix orçamentário no presente exame de descumprimento do julgamento pela inconstitucionalidade do orçamento secreto.

O post Audiência no STF debaterá se orçamento secreto persiste em ’emendas pizza’ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Empresa de fachada criada para frustrar Receita é ato lesivo à administração pública

A criação de uma empresa de fachada com o objetivo de frustrar fiscalização tributária é conduta que se amolda ao ato lesivo contra a administração pública, previsto na Lei Anticorrupção (Lei 12.846/2013).

Com esse entendimento, a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça confirmou a condenação de uma empresa pertencente ao Grupo Líder, que integra organização criminosa responsável por sonegar R$ 527,8 milhões.

A condenação e os valores foram reconhecidos pelas instâncias ordinárias em diversos processos. No caso concreto, a empresa teria sido criada exclusivamente para dificultar as atividades de investigação e fiscalização tributária da Receita Federal.

A pessoa jurídica recorreu ao STJ, apontando ofensa ao artigo 5º, inciso V, da Lei Anticorrupção. A norma diz que dificultar investigação ou fiscalização é ato lesivo à administração pública.

Precedente aplicado

Relator da matéria, o ministro Herman Benjamin destacou que o tema foi enfrentado em outro caso relacionado ao Grupo Líder, no REsp 1.803.585, julgado em 2020.

Nele, a 2ª Turma concluiu que a previsão do artigo 5º, inciso V, da Lei Anticorrupção abrange a constituição das chamadas empresas de fachada com o fim de frustrar a fiscalização tributária.

“A Lei 12.846/2013 não condiciona a apuração judicial das infrações nela descritas à prévia instauração de processo administrativo, mas apenas reitera o consagrado princípio da independência das instâncias”, explicou o relator.

Isso porque o artigo 18 da mesma lei define que, “na esfera administrativa, a responsabilidade da pessoa jurídica não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial”.

Clique aqui para ler o acórdão
REsp 1.808.952

O post Empresa de fachada criada para frustrar Receita é ato lesivo à administração pública apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Regulação das big techs deve coibir abuso sem inibir inovação, diz presidente do Cade

O mercado digital deve ser regulado de forma equilibrada, para que seja possível coibir abusos sem inibir a inovação. Se assim não for feito, normas excessivamente rígidas tendem a sufocar o dinamismo necessário para o desenvolvimento de novas tecnologias.

Essa interpretação é de Alexandre Cordeiro Macedo, presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Em uma consulta pública aberta pelo Ministério da Fazenda, o órgão manifestou interesse em ser o regulador das big techs em matéria econômica.

Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Cordeiro afirmou que o Cade manifestou interesse porque tem expertise e “capacidade de lidar com as complexidades do mercado digital”.

“O Cade possui um histórico robusto na análise de questões concorrenciais no âmbito da economia digital, demonstrando capacidade de implementar remédios eficazes para restaurar a competitividade em mercados complexos. Essa expertise permite ao Cade não apenas identificar e corrigir distorções de mercado, mas também antecipar problemas e agir de maneira preventiva.”

Segundo ele, uma boa regulação deve coibir práticas anticompetitivas que criem concentração de mercado, sem com isso impedir a adoção das novas tecnologias.

“O desafio reside em encontrar um equilíbrio delicado entre a regulação que protege contra abusos e a flexibilidade que permite a inovação. A criação de uma regulamentação adaptativa e responsiva, que evolua juntamente com o mercado digital, é uma solução para esse dilema.”

De acordo com o presidente do Cade, o Projeto de Lei 2.786/2022, que discute o tema, é insuficiente porque não fornece uma noção explícita de “concorrência justa” nos mercados digitais, diferentemente de iniciativas internacionais. Ainda assim, ele defende uma abordagem brasileira para a regulação.

“Essa avaliação ainda precisa ser cuidadosamente aprofundada no caso brasileiro, considerando as especificidades do nosso arcabouço jurídico-institucional. Não podemos cair na armadilha da mera importação de princípios estrangeiros, sem adaptá-los às nossas demandas.”

O projeto, de autoria do deputado João Maia (PL-RN), atribui à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) o poder de regular a operação das plataformas digitais, mas resguarda a atuação do Cade no controle de atos de concentração econômica envolvendo as plataformas.

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — O Cade manifestou interesse em ser o regulador das plataformas digitais no Brasil. Como se daria a atuação do órgão nessa função?
Alexandre Cordeiro — A manifestação de interesse se deu devido à expertise do Cade e à capacidade de lidar com as complexidades do mercado digital. A proposta é baseada em diversas justificativas e planos detalhados para a implementação dessa regulação. A experiência acumulada ao longo dos anos confere ao Cade uma compreensão profunda das dinâmicas e dos desafios específicos dos mercados digitais, o que é essencial para uma regulação eficaz. Essa expertise permite ao Cade não apenas identificar e corrigir distorções de mercado, mas também antecipar problemas e agir de maneira preventiva.

Considerando a realidade brasileira, a avaliação inicial do Cade é que seria adequado pensar em uma estrutura regulatória flexível, com ajuste individual das disposições e monitoramento contínuo. Isso permitiria uma abordagem regulatória mais eficaz e informada, capaz de se adaptar rapidamente às mudanças no mercado digital e às novas práticas empresariais que possam surgir. Essa flexibilidade regulatória é essencial para lidar com a rápida evolução tecnológica e as mudanças nas dinâmicas de mercado, permitindo que o regulador responda de maneira ágil e eficiente a novos desafios.

Para implementar a regulação, o Cade considera a criação de uma unidade especializada dentro de sua estrutura organizacional dedicada exclusivamente aos mercados digitais. Essa unidade seguiria o modelo de outras iniciativas internacionais, como a Digital Markets Unit (DMU) no Reino Unido, que opera dentro da autoridade antitruste e é especializada em questões relacionadas a mercados digitais. A criação de uma unidade especializada permitiria ao Cade concentrar recursos e expertise nas peculiaridades dos mercados digitais, aumentando a eficácia da regulação. Essa unidade seria responsável por monitorar continuamente o mercado, identificar práticas anticompetitivas e propor intervenções regulatórias quando necessário.

Outra parte crucial do plano do Cade é fortalecer a colaboração com órgãos internacionais de competência similar. Essa cooperação facilitaria a troca de conhecimentos e práticas, contribuindo para uma abordagem mais alinhada às tendências globais na regulação da concorrência. Participar de fóruns e redes internacionais permite ao Cade aprender com as experiências de outros países, adaptar soluções bem-sucedidas e evitar armadilhas comuns.

ConJur — Na consulta pública aberta pelo Ministério da Fazenda, o Cade defendeu uma regulação preventiva e assimétrica, que leve em conta o tamanho de cada plataforma. Como se daria essa forma de regulação e por que essa seria a melhor opção?
Alexandre Cordeiro — O Cade defende um modelo de regulação ex-ante assimétrico para plataformas digitais, baseado em uma abordagem flexível e adaptável. Nossa proposta é motivada pelo reconhecimento de que plataformas digitais possuem características econômicas e concorrenciais distintas, que podem gerar riscos à competição e à inovação, exigindo um escrutínio regulatório mais intenso para aquelas com maior poder econômico e função de gatekeepers.

A regulação assimétrica é preferida porque a imposição indiscriminada de obrigações regulatórias a todas as plataformas, independentemente de seu porte e posição de mercado, poderia gerar custos de compliance desproporcionais e desincentivar a inovação e a entrada de novos competidores. Portanto, a regulação deve se concentrar nas plataformas que apresentam maior capacidade de adotar condutas anticompetitivas​​.

Para a implementação dessa regulação, o Cade propõe uma análise de impacto regulatório detalhada, para avaliar os efeitos potenciais das opções regulatórias. É fundamental abordar com cautela o paradoxo que permeia os mercados digitais. Por um lado, esses mercados são caracterizados por sua natureza disruptiva e rápida evolução, o que significa que um excesso de regulação pode resultar em barreiras que inibem a inovação. A inovação é o motor do crescimento econômico e da competitividade, e regulamentações excessivamente rígidas podem sufocar o dinamismo necessário para o desenvolvimento de novas tecnologias e modelos de negócios.

Por outro lado, a ausência de regulamentação adequada pode levar a um cenário onde o enforcement é insuficiente para conter abusos de posição dominante no futuro. Empresas digitais têm o potencial de crescer rapidamente e atingir um tamanho que lhes permite exercer um poder de mercado significativo, o que pode resultar em práticas anticompetitivas e prejudiciais ao consumidor. Sem uma estrutura regulatória eficaz, torna-se difícil intervir de maneira preventiva e corretiva para garantir um mercado justo e competitivo.

Portanto, o desafio reside em encontrar um equilíbrio delicado entre a regulação que protege contra abusos e a flexibilidade que permite a inovação. A criação de uma regulamentação adaptativa e responsiva, que evolua juntamente com o mercado digital, é uma solução para esse dilema.

ConJur — Quais são as outras medidas necessárias para superar esse desafio?
Alexandre Cordeiro — Não apenas para as redes sociais, mas para mercados digitais em geral, a regulação ex-ante pode ser importante devido às suas características (dos mercados), como externalidades de rede e tendências de concentração de mercado. Tais práticas precisam ser prevenidas proativamente para evitar danos significativos ao mercado. A abordagem ex-ante visa precisamente a essa antecipação, essencial em um ambiente onde um único ator pode rapidamente dominar o mercado devido aos chamados efeitos de rede.

Como exemplo, facilitar a portabilidade de dados e a interoperabilidade entre plataformas é uma medida importante para aumentar a contestabilidade do mercado. Isso significa permitir que os usuários transfiram seus dados facilmente de uma rede social para outra, reduzindo os custos de troca e promovendo uma concorrência mais saudável. A interoperabilidade também diminui as barreiras à entrada de novos competidores.

Outro ponto é a regulação das práticas de autopreferência. Plataformas que favorecem seus próprios produtos ou serviços em detrimento de concorrentes podem abusar de seu poder de mercado, e a regulação dessas práticas ajuda a evitar tais abusos.

É necessário ressignificar condutas abusivas convencionais, como práticas de exclusividade e vinculação de produtos, para o contexto das redes sociais. Isso pode incluir a pré-instalação de aplicativos de determinada empresa em sistemas operacionais móveis ou a imposição de serviços conjuntos de redes sociais e anúncios de e-commerce. Tais práticas podem excluir rivais e levantar preocupações sobre abusos de exploração, como a imposição de termos de uso abusivos e a coleta excessiva de dados.

Esses aprimoramentos visam não apenas a garantir uma concorrência justa e promover a inovação, mas também a proteger os consumidores no ambiente digital dinâmico das redes sociais.

ConJur — Há modelos estrangeiros que poderiam ser adotados por nosso país ou o Cade defende uma solução totalmente brasileira?
Alexandre Cordeiro — Atualmente, existem diversas propostas de regulação ex-ante de mercados digitais que estão sendo discutidas ou já estão sendo implementadas ao redor do mundo. A legislação mais conhecida é o Digital Markets Act (DMA), da União Europeia, que foi aprovado em 2022 e cujas regras começaram a ser aplicadas em março deste ano. Mas existem outros modelos de regulação, como o artigo 19 da Lei Alemã de Defesa da Concorrência e o Digital Markets, Competition and Consumers Bill (DMCC Bill), aprovado em maio deste ano no Reino Unido.

O Cade entende que devem ser avaliadas as vantagens comparativas de cada uma dessas experiências internacionais. Enquanto o DMA apresenta uma extensa lista de obrigações para os gatekeepers, os modelos alemão e inglês apostam em estratégias de regulação mais responsivas.

De toda forma, essas experiências internacionais apontam para a importância de adotar uma abordagem de intervenção mais abrangente do que a aplicação das leis antitruste tradicionais, complementando a legislação com regulamentos específicos para o setor digital. É crucial encontrar um equilíbrio entre a promoção da inovação e a garantia de concorrência, evitando que a regulação prejudique a inovação.

O Brasil pode se inspirar em modelos estrangeiros, especialmente o europeu, mas o Cade defende uma abordagem brasileira, que leve em conta as particularidades do nosso mercado.

ConJur — Alguns especialistas defendem a expansão do escopo de atuação de órgãos como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e Anatel, para que atuem no conteúdo concorrencial das big techs. O que o senhor acha dessa ideia?
Alexandre Cordeiro — Até o momento, na maioria das jurisdições analisadas, as autoridades de defesa da concorrência têm sido as principais responsáveis pela implementação das novas regras ex-ante para plataformas digitais, refletindo uma tendência de fortalecimento dessas autoridades já existentes, ao invés da criação de novos órgãos reguladores.

A expansão do escopo de atuação de órgãos como ANPD e Anatel para incluir questões concorrenciais relacionadas às big techs não parece ser a melhor opção em termos de política pública. Na minha visão, o Cade deve continuar sendo o principal responsável pela regulação concorrencial dessas empresas.

Primeiramente, o Cade possui uma expertise específica e uma competência legal, definida pela Lei 12.529/201, para tratar do bem-estar do consumidor e da livre concorrência no mercado. Essa especialização torna o Cade apto a enfrentar as complexidades do mercado digital, onde as big techs operam. A consistência nas decisões é fundamental para garantir um ambiente competitivo, e a dispersão de responsabilidades entre múltiplos órgãos pode resultar em uma aplicação menos eficaz das leis antitruste.

Expandir o papel da ANPD e da Anatel poderia gerar sobreposições regulatórias e conflitos de competência, criando um cenário onde a clareza e a eficiência regulatória são comprometidas. Cada agência tem um foco e especialização próprios — proteção de dados e telecomunicações, respectivamente —, e desviar dessas áreas pode reduzir a qualidade de suas atuações principais. Alargar seus escopos para incluir a regulação concorrencial poderia diluir seus recursos e comprometer a eficácia de suas funções originais.

Entendo que a cooperação entre diferentes órgãos é essencial, mas a regulação da concorrência das big techs deve permanecer com o Cade. Isso garante uma abordagem especializada, coesa e eficaz, que assegura tanto a inovação quanto a competição no mercado digital. Portanto, fortalecer o Cade nessa função é a melhor estratégia para lidar com os desafios concorrenciais impostos pelas big techs, promovendo um ambiente econômico mais justo e dinâmico.

ConJur — O senhor afirmou que o Cade tem expertise no tema. Pode citar exemplos da atuação do órgão no mercado digital?
Alexandre Cordeiro — O Cade tem demonstrado uma expertise significativa no tema das plataformas digitais, desenvolvendo uma série de iniciativas, estudos e casos práticos focados na concorrência em mercados digitais.

Quanto aos casos, o número envolvendo plataformas digitais aumentou significativamente nos últimos anos. Entre 1995 e abril de 2023, foram notificados 233 atos de concentração em mercados digitais, sendo aproximadamente 26% destes relacionados ao varejo online, e 24% concernentes ao segmento de publicidade online.

Um exemplo notável é a análise do Cade na aquisição da Activision Blizzard pela Microsoft, que envolveu mercados digitais. Esse caso destacou diferenças significativas na abordagem de várias jurisdições, incluindo os Estados Unidos, a União Europeia e o Brasil, refletindo a capacidade do Cade de lidar com fusões complexas em ecossistemas digitais, considerando as especificidades de cada contexto regulatório e as implicações concorrenciais dessa transação. Também podemos citar como outros casos relevantes já tratados pelo Cade os julgamentos envolvendo a TotalPass e a Gympass e iFood, Rappi e Uber Eats, nos quais o Cade determinou, por exemplo, o encerramento de acordos de exclusividade.

Em parceria com a autoridade de concorrência da Rússia, o Cade também coordenou um grupo de trabalho dos Brics sobre concorrência no mercado digital, culminando na publicação de dois relatórios “BRICS in the Digital Economy: Competition Policy in Practice”, que discutem as práticas e os desafios enfrentados pelas autoridades antitruste dos países-membros em relação à economia digital. O mais recente desses relatórios foi publicado em abril deste ano, e tem sido bastante elogiado pela comunidade internacional.

ConJur — Com a legislação existente no Brasil, já é possível falar em regulação?
Alexandre Cordeiro — Sim, é possível. Entretanto, o modelo atual não basta. Algumas mudanças são necessárias para nos atualizarmos e ganharmos eficiência. Com o modelo atual, estamos restritos a uma abordagem ex-post, falhando em capturar as dinâmicas específicas e inovadoras das plataformas digitais, exigindo uma abordagem regulatória mais refinada e adaptada à realidade do ambiente digital. É importante pensar em uma proposta de regulação ex-ante, visto que as leis antitruste tradicionais não são suficientes para endereçar os riscos de danos aos consumidores e à sociedade em geral decorrentes de problemas concorrenciais verificados nos ecossistemas digitais.

Essa avaliação ainda precisa ser cuidadosamente aprofundada no caso brasileiro, considerando as especificidades do nosso arcabouço jurídico-institucional. Não podemos cair na armadilha da mera importação de princípios estrangeiros, sem adaptá-los às nossas demandas. Contudo, com o espírito de colaborar para o avanço dessa discussão, é importante compreender quais são os focos de insuficiência que têm sido apontados, a fim de que se possa aprofundar essa avaliação em relação ao regime da Lei 12.529/2011.

O post Regulação das big techs deve coibir abuso sem inibir inovação, diz presidente do Cade apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Injustificada exigência de autorização judicial na doação para incapazes

O assunto de que se tratará neste breve escrito tem grande importância prática, afetando a vida de inúmeras pessoas. Há uma norma, passível de críticas, que estava no inciso III, do artigo 427, do Código Civil de 1916, e que foi repetida no Código Civil de 2002: trata-se da regra que exige autorização do juiz, em casos de tutela e curatela, para aceitação de “heranças, legados ou doações, ainda que com encargos” — o inciso II do artigo 1.748 do Código Civil em vigor. A norma indica que inclusive nas doações puras e simples seria necessária a autorização judicial (quanto a isso, a codificação anterior era mais clara em seu artigo 427, inciso III: “Acceitar por elle heranças, legados ou doações, com ou sem encargos”).

No tocante à doação em favor de pessoas absolutamente incapazes, o Código Civil, no artigo 543, estabelece uma dispensa de aceitação, “desde que se trate de doação pura”. No Código Civil de 1916 a redação era outra: “Art. 1.170. Às pessoas que não puderem contratar, é facultado, não obstante, aceitar doações puras”. Discutia-se se a norma se voltava aos absolutamente incapazes, aos relativamente incapazes, ou a ambos. [1]

O que se deseja destacar é o fato de que, neste ponto, o Código parte do pressuposto de que a doação pura e simples não pode gerar nenhum tipo de prejuízo ao donatário, como afirmavam expressamente Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda. [2] Esta presunção, embora questionável, também não será posta em causa neste breve escrito: o que se coloca em questão é a coerência do nosso sistema.

Incoerência

A incoerência pode ser demonstrada com um caso comum na prática. Imagine-se que se pretenda fazer doação pura e simples a uma pessoa relativamente incapaz em razão de curatela (segundo a literalidade da lei vigente, a incapacidade de todos os maiores de idade seria relativa). Neste caso, o artigo 1.774 do Código Civil estabelece que se aplicam à curatela as disposições concernentes à tutela. Isso atrairá a incidência do artigo 1.748, relativo à tutela, que dispõe que “compete também ao tutor, com autorização do juiz: II — aceitar por ele heranças, legados ou doações, ainda que com encargos”.

Como se pode notar, o artigo indica que a aceitação de doação, ainda que pura e simples, por parte de pessoas curateladas, dependeria não apenas da assistência de um curador, mas também de autorização judicial. Chega-se ao ápice da incoerência: se há doação em favor de absolutamente incapaz, dispensa-se a aceitação; porém, havendo tutela ou curatela, o relativamente incapaz não poderia aceitar uma doação pura e simples, nem mesmo com a assistência de seu tutor ou curador — exigir-se-ia, ainda, autorização judicial. Neste caso, supõe-se tanta possibilidade de prejuízo, que não bastam os juízos do relativamente incapaz e do seu curador: impõe-se, mais, a análise de um juiz, movimentando-se o nosso já tão assoberbado Poder Judiciário. E o pior: onera-se, sobremaneira, o incapaz.

Embora a norma pareça merecer urgente reparo, não houve proposta para a sua modificação no relatório final apresentado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Pergunta-se: qual a razão para se exigir a aceitação expressa, mais a assistência do curador, mais a autorização judicial, quando, para o absolutamente incapaz, a própria aceitação é dispensada?

No estado do Rio Grande do Sul, a Corregedoria Geral de Justiça editou uma norma interessante, a pretexto de conciliar os artigos 1.748 e 543 do Código Civil, estabelecendo no artigo 547 de sua Consolidação Normativa Notarial e Registral (CNNR-RS):

“§1º. É dispensada a prova de aceitação nas doações puras feitas em benefício de absolutamente incapazes. Os relativamente incapazes poderão aceitá-las. Em qualquer caso, porém, não consistirá óbice ao registro a inexistência de representação ou assistência destas pessoas no título apresentado. (…) §3º. Não se exigirá alvará judicial para a realização de doação pura e simples para menores, na forma do artigo 543 do Código Civil.”

Acredita-se que o artigo 1.748 deve ser reformado, passando a exigir autorização judicial apenas quando houver encargo. Aliás, a atividade dos notários poderia ser mais bem aproveitada, deixando-se ao Tabelião de Notas a incumbência de aferir se há risco de prejuízo ao incapaz: assim, exigir-se-ia em tais casos a escritura pública e, havendo verdadeira contraprestação, disfarçada de encargo, o Tabelião recusaria a prática do ato.

Este breve escrito não poderia ser finalizado sem uma análise, ainda que superficial, da origem da norma que exige a autorização judicial para aceitação de heranças, legados ou doações. Pontes de Miranda [3] indica como fonte desta regra uma lição do Conselheiro Lafayette, sobre a norma do Direito anterior ao Código Civil, de que compete ao tutor, com dependência de autorização do juiz, “5. Aceitar herança a benefício de inventário”. Comentava Lafayette, em nota de rodapé: [4]

A addição da herança é um quase contracto que póde trazer e ordinariamente traz onus, ainda quando a herança é deferida sem imposição de condições. (Cfr. Mourlon cit., n. 1.190)

A liquidação do activo e passivo importa trabalhos e despezas que talvez o restante dos bens não compense.

Note-se, porém, que a crítica de Lafayette era voltada à herança, não tendo relação com a doação. Os melhores comentários críticos que este estudante conseguiu encontrar, quanto ao tema, foram os de Estevam de Almeida, no volume VI da célebre coleção Manual do Código Civil, coordenada por Paulo de Lacerda, que, depois de destacar que o artigo 506 do projeto primitivo só tratava da aceitação de “doação e legados sujeitos a encargos”, ensinava: [5]

Pelo projecto primitivo, no seu nº 7, a acceitação de legados e doações, pelo pupillo, dependia de autorização judicial, si eram sujeitos a encargo. A revisão extra-parlamentar e a da Camara exigem a autorização judicial na acceitação de heranças, doações e legados, ainda que não sujeitos a encargo. Dir-se-á que é a lição de Lafayette (…). Mas Lafayette refere-se á acceitação de herança, não podendo importar em onus, embora deferida sem imposição de encargo. O mesmo não parece se possa dizer do legado não gravado, da doação pura. Um luxo de cautela, tal exigencia.

Em conclusão, parece contraditório considerar, no regramento da tutela e da curatela, que a doação — ainda que pura e simples — é tão perigosa para o donatário, a exigir intervenção judicial, enquanto no regramento do contrato de doação o mesmo ato se presume inofensivo. Acredita-se que este “luxo de cautela” deveria ser removido do Código Civil, por configurar um obstáculo excessivo para os incapazes, especialmente para as pessoas com deficiência.

* esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

__________________________________

[1] Para Pontes de Miranda, não importava se a incapacidade era absoluta ou relativa: em qualquer dos casos, o ato-fato de recepção da coisa doada importava aceitação (Tratado de Direito Privado. Tomo XLVI. 3. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, §5.016, 2, p. 225-228 – neste local, chega a defender que a desnecessidade de assentimento dos pais, tutor ou curador do relativamente incapaz, quando não há encargo, seria “comum aos sistemas jurídicos”, embora afirme que não haveria contradição entre os artigos 427, III e 1.170). Ainda segundo o tratadista, esta regra adveio do art. 626 do Código Civil espanhol (Fontes e evolução do direito civil brasileiro. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 286-287). Porém, este artigo só exige a intervenção de “representantes” em caso de doações “condicionais ou onerosas”.

[2] PONTES DE MIRANDA, Fontes e Evolução…, cit., p. 287; BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil commentado. Vol. IV. 6. Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1942, p. 335 e p. 336, n. 2).

[3] Tratado de Direito Privado. Tomo IX. 2. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, [s.d.], p. 294 (§1.021, 5).

[4] PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de Família. 2. tiragem. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889, p. 284 e nota 4 (§ 153 – em outras edições, nota 103).

[5] ALMEIDA, Estevam de. InManual do Código Civil Brasileiro: Direito de Família (Arts. 330-484) – Vol. VI. Rio de Janeiro: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1925, p. 457 (transcrito como consta no livro).

O post Injustificada exigência de autorização judicial na doação para incapazes apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Projeto de lei deixa dúvida sobre pedido de indenização para vítima de crime

Projeto de Lei 3.777/23, recém-aprovado na Câmara dos Deputados, pretende facilitar a indenização a vítimas de crimes que afetem direitos da personalidade, mas, se sancionado na versão atual, poderá abrir uma controvérsia sobre a altura em que a reparação deve ser solicitada no processo penal, de acordo com os advogados criminalistas ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. O texto foi enviado para a apreciação do Senado Federal no último dia 8.

Dinheiro, moedas, penhora, imposto, calculadora
STJ fixou no ano passado o entendimento de que o pedido de indenização deve estar na petição acusatória – Freepik
 

O PL pretende alterar o artigo 387 do Código de Processo Penal, que, em seu inciso IV, diz que o juiz, ao proferir a sentença, fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido. O projeto aprovado pelos deputados acrescenta ao dispositivo um parágrafo com dois incisos:

§3º — No cumprimento do disposto no inciso IV do caput deste artigo:

I — o pedido de indenização também poderá ser formulado pelo ofendido;

II — o valor mínimo de indenização poderá referir-se ao dano moral, cuja caracterização prescinde de prova diversa da necessária à própria responsabilização penal nos casos em que a imputação envolver afetação de direitos da personalidade, como a vida, a integridade física, a liberdade e a honra.

Como se nota, o texto não esclarece em que momento processual a indenização deve ser requerida.

Jurisprudência do STJ

Em novembro do ano passado, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou, por maioria de votos, o entendimento de que a condenação do réu ao pagamento de indenização por danos morais à vítima do crime ou a seus familiares só é possível se houver pedido expresso na petição acusatória e indicação do valor mínimo pretendido para a reparação.

 

Essa compreensão se valeu de conceitos do Código de Processo Civil que determinam que a apresentação do valor pretendido já na petição inicial permite à defesa exercer o contraditório e contestar de maneira qualificada o pedido.

Por outro lado, os ministros do colegiado do STJ que divergiram desse entendimento na ocasião entenderam que exigir a indicação do valor representa formalismo exacerbado que, se dispensado, não viola os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Controvérsia sobre o prazo

De acordo com Alberto Toron, fundador do escritório Toron Advogados e conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o PL 3.777/23 pode forçar a revisão da jurisprudência da 3ª Seção do STJ sobre o momento em que o pedido de indenização deve ser feito para ser levado em consideração no processo penal.

“Se a lei não fala no prazo no qual se deva formular o pedido de indenização, eu penso que esse pedido poderá ser feito até o momento das alegações finais. Obviamente, sendo resguardado o direito de o acusado se contrapor a esse pedido e também, eventualmente, de fazer prova, se necessário for, a respeito do pedido de indenização.”

Bruno Borragine, sócio do Bialski Advogados, concorda com Toron sobre a possibilidade de revisão do entendimento da corte superior: “Cabe à lei, e não à jurisprudência, a fixação de limite temporal para o pedido indenizatório. E como a indenização só será fixada em caso de condenação, pode ser viável o pedido ao longo do processo”.

Por sua vez, Cristiano Medina da Rocha, fundador da banca Medina da Rocha Advogados Associados, avalia que, já que o texto da lei é omisso sobre o tema, a jurisprudência do STJ deve ser mantida. “Entendo que, na omissão, segue a regra geral.”

O criminalista diz ainda que, em sua versão atual, o projeto de lei inova apenas ao reconhecer o dano moral presumido nos casos que envolvem afetação de direitos da personalidade, o que “simplifica o processo de indenização, dispensando a necessidade de prova exaustiva do prejuízo moral, o que pode ser especialmente relevante em casos de crimes sexuais, onde a prova do dano pode ser particularmente difícil”.

Já José Flávio Ferrari, professor de advocacia criminal, afirma que é positivo o empoderamento dado pelo texto à pessoa ofendida, que passará a poder solicitar a reparação pelo crime. “Isso é particularmente interessante justamente por depositar na vítima mais poder de gestão sobre o processo e sobre o rumo dele.”

Sem novidades

Quanto ao teor do restante do projeto, os especialistas dizem que ele não causará mudança significativa no atual sistema processual brasileiro, que já possibilita a indenização da vítima por qualquer crime. “A sentença condenatória penal é um título executivo no âmbito cível, o que significa que, uma vez que há uma condenação penal, esta pode ser utilizada para pleitear a indenização civil, através da chamada ação cível ex delicto“, explicou Medina da Rocha.

No entendimento de José Flávio Ferrari, o processo civil deveria ser mantido como o instrumento apropriado para avaliar a dimensão do dano, e não o penal, no qual o objetivo é outro, o de dosar a pena aplicada.

“Veja que são dois propósitos diferentes. O processo penal está focado na pena; a ação civil ex delicto, em mensurar o dano gerado. Inclusive, poucos juízes criminais têm proximidade com a matéria a tal ponto de perceber e realmente quantificar, financeiramente, o dano.”

Bruno Borragine concorda que não há maiores inovações no PL. E ele pondera ainda que o texto é apenas mais uma iniciativa de populismo penal, uma vez que a legislação já contempla a reparação dos danos causados por crimes.

“A disposição legal prevista no artigo 387, IV, do Código de Processo Penal, se mostra mais abrangente e de aplicação mais efetiva, já que não se faz distinção de natureza do dano ou prejuízo causado à vítima — se moral ou material — e sua aplicação em casos práticos independe da modalidade de crime atribuído ao acusado, ou seja, a previsão legal de reparação do dano causado à vítima, tal como já modelada e operante no sistema de Justiça Penal, não cria entraves e nem distingue a qualidade do dano ou a modalidade de crime.”

Alberto Toron, por outro lado, não vê populismo na proposta: “Penso que é razoável a ideia de que o Ministério Público e a vítima possam, concorrentemente, pedir a indenização”.

O post Projeto de lei deixa dúvida sobre pedido de indenização para vítima de crime apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Aplicação da LGPD a contratos de seguro: o caso dos dados sensíveis

Não é exagero afirmar que os contratos de seguro e demais atividades que orbitam o universo dos seguros dependem, quase que exclusivamente, de informações e dados fornecidos ou coletados pelos agentes dessa indústria, segurados ou seguradoras.

Sem informações a respeito de condições relacionadas ao segurado ou ao objeto do contrato de seguro (seja uma coisa, seja uma atividade), não há viabilidade para a formação adequada da relação jurídica securitária. Isso se dá essencialmente devido à natureza do próprio contrato de seguro, que visa à cobertura de um risco previamente identificado e associado à descrição do sujeito segurado ou do objeto da relação jurídica.

Determinados dados tornam-se elemento essencial do negócio jurídico realizado, cuja falta impede a sua subsistência. Isso posto, os dados — pessoais ou de natureza diversa — são a matéria-prima da qual são constituídos os contratos de seguro. Seria extremamente dificultoso — senão impossível — a uma seguradora de automóveis, por exemplo, estabelecer o valor adequado e proporcional do prêmio do seguro sem informações básicas, que vão desde a marca, o modelo e o ano do veículo até o gênero e a idade do motorista principal, qualificando, assim, o perfil do segurado.

De mais a mais, a chamada “cláusula perfil”, recurso pré-contratual que viabiliza a identificação do segurado dentro de um grupo determinado, só é exequível ao permitir o conhecimento por parte da seguradora de quais riscos relacionados ao segurado devem integrar os cálculos atuariais para a avaliação dos termos da contratação.

Se, de um lado, a “perfilação” (profiling) depende do fornecimento de dados pelos segurados por meio de mecanismos contratuais ou pré-contratuais, de outro existem fontes adicionais das quais os dados podem ser conhecidos ou coletados, que vão desde informações constantes de redes sociais até aquelas provenientes de objetos conectados por rede (IoT e telemetria). Em não raras vezes, essa coleta de dados — na realidade, verdadeira extração — permite às companhias seguradoras a capacidade de conhecer materiais relevantes para a inclusão do segurado em determinada categoria de perfil, de forma mais íntegra do que se dependesse unicamente da declaração do segurado.

Entre os dados usualmente utilizados por segurados para a avaliação dos riscos, encontram-se os dados sensíveis, quais sejam, aqueles que se caracterizam por uma potencialidade discriminatória por se referirem a informações de natureza personalíssimas. O tratamento de dados sensíveis não está proibido em nosso ordenamento, sendo autorizado, desde que enquadrado em uma das bases legais previstas no artigo 11 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Evidentemente, o consentimento por meio da manifestação do segurado — resultado da proteção de sua autonomia privada — permanece como fundamento para tratamento de dados pessoais. Contudo, não é exclusiva, tampouco hierarquicamente superior às demais bases legais. A inexistência de justificativa legal para o tratamento de dados pessoais configura-se como ilícita ou irregular, a gerar para as seguradoras obrigação de indenizar os segurados por eventuais danos sofridos e sanções aplicadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

A necessidade da inovação no debate em torno do uso de dados pessoais na contratação de seguros é definida especialmente pela realidade de nossa sociedade que associa o fenômeno do big data ao uso de inteligência artificial em sistemas de predição. A atividade das seguradoras é sobremaneira facilitada pelo advento dessas novas tecnologias, pois permite não só a capacidade de tratar os dados de maneira mais eficiente como também, consequentemente, gera uma minimização de custos nas operações e uma maior velocidade nas tomadas de decisão. Essas vantagens, por sua vez, implicam a possibilidade de negociação de preços contratuais mais adequados, visto que os riscos estão previstos, em tese, de forma mais realista.

Ao mesmo tempo que a tecnologia traz vantagens excepcionais para o mercado de seguros, é necessário encontrar um equilíbrio adequado entre o tratamento de dados pessoais dentro desse ambiente e a proteção de direitos fundamentais dos segurados, tais como a privacidade, a proteção de seus dados e a igualdade de tratamento. Em último juízo, a tutela desses direitos visa coibir a potencial discriminação abusiva que o uso dos dados coletados massivamente pode ocasionar no mercado de seguros, segregando e retirando de inteiras parcelas da população a possibilidade de contratação de forma equitativa.

 

Daí a necessidade de impor às seguradoras — agentes de tratamento de dados — o cumprimento de forma estrita dos princípios relacionados ao tratamento de dados pessoais, especialmente os que se referem à finalidade, à igualdade e à não discriminação.

Formalização do contrato

O fornecimento de dados para a formação do contrato de seguro encontra-se fundamentado em três princípios inerentes a toda e qualquer atividade securitária, quais sejam, o reconhecimento do princípio da boa-fé objetiva em sua aplicação aprimorada; o princípio da solidariedade social, por meio do qual se reconhece a natureza solidarista do contrato de seguro e a necessária delimitação dos riscos segurados; e o princípio do mutualismo.

Pelo princípio da boa-fé objetiva e sua interpretação ampliada, entende-se que as partes contratantes devem fornecer, de maneira clara, informações que irão compor a função contratual e que determinarão, em última instância, o equilíbrio na contratação. A seguradora, por um lado, deve oferecer ao segurado o conhecimento prévio dos termos da contratação, e o segurado deve fornecer dados verdadeiros, necessários e suficientes para que a seguradora seja capaz de fielmente fazer cumprir a contratação de forma a respeitar o mutualismo e o equilíbrio da relação contratual.

De outro lado, os princípios da solidariedade social e do mutualismo impõem que os segurados indiquem, de modo acurado, as informações e os dados que sejam relevantes para a contratação, para que haja uma verdadeira proporcionalidade na construção do fundo social e da divisão equitativa entre os membros do grupo segurado dos valores devidos em caso de sinistro. Em interpretação conjunta, esses princípios e os previstos na LGPD reforçam a necessidade de que os dados pessoais devem ser protegidos de forma a alcançar, ao mesmo tempo, a igualdade numa contratação equilibrada e a proteção de direitos fundamentais.

Dada a evidente capacidade de uso de dados pessoais — sensíveis ou não — de maneira a violar os princípios da igualdade e da não discriminação — ambos previstos tanto em nossa Constituição quanto na LGPD —, é fundamental que se analise se os dados dos segurados tratados pelas seguradoras têm a capacidade de gerar uma discriminação abusiva.

Percebe-se, assim, que a tutela dos dados sensíveis, mais do que garantir o “sigilo” e a “anonimidade” de dados pessoais sensíveis — por se referirem a especiais categorias de dados “existenciais” —, tem como objetivo a proteção da pessoa humana contra tratamentos desiguais, que inibem a possibilidade real de acesso a direitos, como aqueles referentes à contratação. Evidentemente, não se quer com esse argumento usurpar das seguradoras o direito ao exercício de sua autonomia contratual, isto é, definir o que, como e com quem contratar.

O que se defende é que, baseada no princípio da finalidade do tratamento de dados, haja uma justificativa adequada para essa recusa e que os dados pessoais sensíveis não sejam utilizados como fundamento para a inviabilidade do exercício de sua autonomia privada, garantida, nesse caso, pelo princípio da igualdade e da não discriminação.

*esta coluna é produzida pelos professores Ilan Goldberg e Thiago Junqueira, bem como por convidados

O post Aplicação da LGPD a contratos de seguro: o caso dos dados sensíveis apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Banco é responsável por dano a cliente em fraude na contratação de empréstimo

A fraude em procedimento de contratação de empréstimo faz parte do risco do empreendimento das instituições financeiras, de modo que não pode ser suportada pelo cliente, mas pelos operadores do crédito.

caixa eletronico de banco
Banco alegou que contava com contrato e havia depositado valor na conta de cliente – Freepik
 

A partir dessa fundamentação, o juiz Marcelo Marcos Cardoso, da 1ª Vara Cível de Toledo (PR), condenou um banco e uma intermediadora financeira a, solidariamente, restituir em dobro os valores descontados indevidamente dos rendimentos de um aposentado, em função de um empréstimo consignado que não foi contratado por ele.

A empresa intermediária havia feito um primeiro contato com o aposentado se dispondo a negociar uma dívida de cartão de crédito dele com um banco, ocasião em que o cliente cedeu, por aplicativo, documentos pessoais.

Posteriormente, o aposentado identificou que um outro banco depositou em sua conta o valor de R$ 28.467,99. Ele questionou, então, a intermediadora sobre a origem daquele dinheiro, ocasião em que foi orientado a repassar para ela o montante, a fim de cancelar o que supostamente havia sido um empréstimo liberado para o cliente.

Após repassar o dinheiro para a intermediária, o autor da ação notou que o banco que havia feito o depósito passou a fazer descontos mensais em sua aposentadoria, a título de empréstimo consignado. O aposentado buscou a Justiça após não ter a resolução do caso de forma extrajudicial.

Por força da inversão do ônus probatório, o banco acostou aos autos, ao tentar provar a legalidade do empréstimo, um contrato da operação e um comprovante de transferência do crédito para a conta do aposentado. Já a intermediária não se manifestou, apesar de ter sido citada.

Risco do empreendimento

O juiz entendeu haver comprovação suficiente de que a contratação do empréstimo foi irregular e que o cliente foi vítima de fraude da intermediadora, com a posse dos documentos dele.

A contratação foi feita por conversação eletrônica e, conforme indicam os registros geográficos, a partir de um aparelho celular presente no Rio de Janeiro, onde está sediada a intermediária financeira.

Nesse contexto, segundo o juiz, o banco “não adotou as balizas necessárias para diminuir a probabilidade de dano decorrente do seu negócio, já que, conforme exposto, a contratação do empréstimo consignado não partiu do autor, que foi enganado pela intermediadora”. Portanto, a instituição financeira teve responsabilidade civil objetiva no caso.

O julgador declarou, então, a nulidade do contrato de empréstimo. O banco e a intermediadora também foram condenados a, solidariamente, indenizar o aposentado em R$ 10 mil por danos morais. Eles ainda deverão arcar com as custas processuais e os honorários advocatícios, no equivalente a 10% do valor da condenação.

Atuou na causa o advogado Mateus Bonetti Rubini.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 0011994-13.2022.8.16.0170

O post Banco é responsável por dano a cliente em fraude na contratação de empréstimo apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Os reflexos dos parâmetros para a cannabis no Poder Judiciário

Quase dez anos após o início da discussão (Recurso Extraordinário 635.659), o Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento sobre a descriminalização da cannabis sativa com a fixação de parâmetros para diferenciar o usuário do traficante.

Paulo Pinto/Agência Brasil

Os ministros, embora não tenham agradado a gregos e troianos, decidiram que quem portar até 40 g ou seis plantas-fêmeas de cannabis comete ilícito administrativo e será penalizado nas sanções do artigo 28, incisos I e III, da Lei 11.343/06, ressaltando que o critério objetivo é relativo, ou seja, o indivíduo que portar quantia inferior ainda pode ser considerado traficante e vice-versa.

Chama atenção o fato de que não há modulação de efeitos na decisão, ou seja, ela retroagirá para beneficiar os milhões de réus e apenados espalhados pelo país, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição, como referido pelo ministro Luís Roberto Barroso ao final do julgamento.

Assim, engana-se quem pensou que o novo entendimento do Supremo implicaria apenas na extinção da punibilidade de usuários condenados, no arquivamento de alguns processos de tráfico em curso e na soltura dos indivíduos que foram, equivocadamente, enquadrados como traficantes e presos preventivamente.

Os reflexos dessa decisão vão além e podem gerar uma série de revisões e recursos no Poder Judiciário. Vejamos:

Reabilitação criminal

Primeiramente, cita-se a reabilitação criminal (artigos 93 a 95 do CP), que prevê a possibilidade de o indivíduo que já cumpriu sua pena buscar judicialmente o sigilo da sua condenaçãonuma espécie de “limpeza” de sua ficha criminal.

Embora a condenação por porte de cannabis não acarrete as consequências previstas no artigo 92 do CP (e.g. perda de cargo, função pública ou mandato eletivo), ainda pode impactar na vida civil do indivíduo, ao constar em seus antecedentes criminais. Isso porque sua consulta é procedimento comum em entrevistas de emprego, contratações, concursos públicos, empréstimos bancários e até mesmo na tentativa de retirada de visto para visita, moradia ou trabalho em países estrangeiros.

A questão que se coloca é, portanto, se as pessoas que possuem anotação em seus antecedentes criminais em razão da prática da conduta descriminalizada poderão eliminá-la de suas fichas ou rever decisões prejudiciais, como, por exemplo, a desclassificação de um concurso público.

Revisão criminal

Em seguida, tem-se a revisão criminal, que permite que condenados solicitem a revisão de sua sentença já transitada em julgado, desde que o caso se amolde às hipóteses do rol taxativo do artigo 621 do CPP.

Das hipóteses previstas no artigo 621, verifica-se que os indivíduos condenados por tráfico de drogas, que traziam consigo até 40g de cannabis ou seis plantas-fêmeas, poderão solicitar a revisão com base em seu inciso primeiro (“Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I – quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos;”), uma vez que o STF reconheceu a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06.

É sabido que os tribunais superiores entendem que a mudança de entendimento jurisprudencial não dá ensejo à revisão criminal [1]. Todavia, o STF declarou a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06 para fins criminais, tornando a lei inválida neste âmbito, isto é, a sancionou com a perda de todos os seus efeitos, logo, tais sentenças condenatórias devem ser entendidas como “contrárias ao texto expresso de lei”. Não se trata, portanto, de mera alteração da interpretação jurisprudencial do dispositivo ou dos fatos relevantes à sua aplicação, estes mutáveis com o tempo, mas de verdadeira invalidade plena da lei para efeitos criminais desde sua promulgação.

Não somente isso. Com fulcro no mesmo inciso, o indivíduo que teve sua pena aumentada em razão conduta descriminalizada poderá pleitear a sua revisão. Afinal, com a descriminalização, tal condenação não poderia ter sido utilizada como fundamento para o magistrado exasperar a pena-base do réu ou reconhecer a agravante da reincidência.

Acordos penais

Da mesma forma, serão impactados os processos em que a transação penal [2] e a suspensão condicional do processo [3] são viáveis. A leitura dos dispositivos revela que somente serão oferecidos ao réu caso ele não possua antecedentes ou não esteja respondendo por outro processo criminal [4]. De pronto, presume-se que para diversos réus não foram oferecidos estes acordos por não preencherem aqueles requisitos em razão da conduta descriminalizada.

Embora perdure a discussão sobre a faculdade do Ministério Público em ofertar ou não tais acordos, a jurisprudência [5] vem reconhecendo que estes benefícios são um direito subjetivo do acusado. Deste modo, sendo agora a conduta prevista no artigo 28 um ilícito administrativo, tais acusados passaram a fazer jus às benesses mencionadas, devendo o magistrado conceder ao Ministério Público a oportunidade de oferecê-las, de forma similar ao previsto pela Súmula 337 do STJ [6].

Para os processos findos, a discussão pode ser construída em razão da complexidade e unicidade do cenário gerado pela descriminalização, mas, de acordo com STJ, é inadmissível o pleito da suspensão condicional do processo após a prolação da sentença [7].

Falta grave

Por fim, pode-se dizer que, na esfera da execução penal, a decisão repercutirá nas faltas graves aplicadas aos apenados que foram flagrados portando cannabis dentro do sistema prisional.

Isso porque a LEP, em seu artigo 52, dispõe que será considerada falta grave a prática de fato considerado como crime doloso. Assim, não sendo mais tal conduta considerada crime e nem se enquadrando nas demais hipóteses de falta grave previstas no rol taxativo [8] do artigo 50 da LEP, não haverá alternativa aos juízes da execução penal senão a revogação das faltas graves anteriormente impostas por este fundamento.

Aliás, em situação similar, a 13ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP absolveu um apenado pela prática de falta grave por ter se tatuado dentro do presídio, pois tal conduta não se amolda em nenhuma das hipóteses de falta grave constantes na LEP — e, no caso concreto, sequer nas previsões do Regimento Interno Padrão das Unidades Prisionais do São Paulo [9].

O desembargador Marcelo Semer, relator do caso, ressaltou em seu voto que não se poderia permitir a punição de uma autolesão em razão do princípio da alteridade, o que se enquadra perfeitamente na hipótese de o indivíduo ser flagrado portando cannabis dentro do sistema prisional, visto que, fazer o uso da substância, nada mais é do que uma autolesão, o que foi amplamente discutido pelos ministros do STF durante o julgamento do RE 635.659.

Portanto, percebe-se que, além das questões atinentes à saúde e segurança pública, a descriminalização do porte de cannabis para consumo próprio irá causar um grande impacto no Poder Judiciário, que, além de continuar sendo competente — por ora — para processar um ilícito que não é de sua alçada, terá de enfrentar incontáveis revisões e recursos.


[1] “8-A. Alteração na jurisprudência: como regra, não deve provocar a revisão criminal. O entendimento acerca de diversos temas, questões fáticas e jurídicas, pode mudar ao longo do tempo, não sendo causa válida para justificar a revisão da pena aplicada”. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 12 ed. p. 1.087.

[2] “Art. 76 […] § 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: […] III – não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida.”

[3] “Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena.”

[4] O Acordo de Não Persecução Penal ainda pode ser ofertado. O legislador deixou claro na redação do inciso II, do § 2º, do art. 28-A, do CPP: “ Art. 28-A […] § 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses: […] II – se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas.

[5] STJ, HC 131.108/RJ, Relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, j.  18/12/2012.

[6] “Súmula 337. É cabível a suspensão condicional do processo na desclassificação do crime e na procedência parcial da pretensão punitiva.”

[7] STJ, AgRg no REsp 1.503.569/MS, Relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, j. 04/12/2018.

[8] STJ, Jurisprudência em Teses, Edição N. 145, Item 10: “O rol do art. 50 da Lei de Execuções Penais (Lei n. 7.210/1984), que prevê as condutas que configuram falta grave, é taxativo, não possibilitando interpretação extensiva ou complementar, a fim de acrescer ou ampliar o alcance das condutas previstas. Julgados: HC 481699/RS, REsp 1519802/SP; HC 284829/SP; HC 519800/RS; REsp 1806559/RO; e REsp 1789178/TO”.

[9] TJSP, Agravo de Execução Penal 0014132-81.2023.8.26.0996, Relator Marcelo Semer, 13ª Câmara de Direito Criminal, j. 12/01/2024.

O post Os reflexos dos parâmetros para a cannabis no Poder Judiciário apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Vinculação do Carf na reforma tributária: perigo iminente e eminente

vinculação, enquanto mecanismo de garantia da isonomia e da segurança jurídica, apresenta-se de diversas formas no Direito. Temos a vinculação dos juízes e tribunais aos precedentes qualificados dos tribunais superiores (cf. artigo 927 do Código de Processo Civil). Nessa mesma toada, temos a vinculação do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) aos precedentes exarados pelo STJ e pelo STF (cf. artigo 98 do Regimento Interno do Carf). Já no âmbito da legislação infralegal, temos a vinculação das Delegacias de Julgamento da Receita Federal (DRJs) aos atos normativos expedidos pela Receita Federal do Brasil (RFB). Não faltam exemplos nesse sentido.

E no meio do furacão da reforma tributária que temos vivido nos últimos meses, parecem estar passando despercebidos mais dois exemplos de vinculação que se pretende trazer ao contencioso administrativo tributário, no contexto de divergências possíveis em relação ao Imposto sobre bens e serviços (IBS) e à Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).

Apercebamo-lospois as alterações propostas são importantes e se aproximam com celeridade à realidade do contencioso administrativo.

A reforma tributária e um novo contencioso administrativo para o IBS/CBS

Reformado o sistema tributário pela Emenda Constitucional nº 132/2023 (EC 132), já é consabida a profunda mudança da tributação sobre o consumo que viveremos nos próximos anos, que, como regra geral, sofrerá a incidência do chamado “IVA-dual”, representado pelo IBS (imposto cuja arrecadação será direcionada aos estados e municípios por intermédio do Comitê Gestor) e pela CBS (contribuição destinada aos cofres da União). Fala-se em “IVA-dual” porque os dois tributos serão regidos pelas mesmas regras, com relação ao fato gerador, contribuintes, não cumulatividade, princípio do destino, neutralidade, entre todos os outros elementos trazidos pelo PLP nº 68/2024 para disciplinar, conjuntamente, o IBS e a CBS.

Esse é o cenário do direito material, que com razão busca as melhores práticas da experiência internacional nos IVAs modernos (e.g. Nova Zelândia, Austrália, Canadá e África do Sul).

No que tange ao direito processual administrativo fiscal – enquanto conjunto de normas aplicável às lides tributárias deduzidas perante a administração pública, para apaziguar as lides tributárias — com base no nosso novo sistema de mesmas regras para o “IVA-dual”, parece claro que o ideal seria que tivéssemos um contencioso único, integrado e coeso, para o julgamento tanto do IBS como da CBS, conforme permissão trazida pela EC 132, a o artigo 156-B, §8º da CF. A simplicidade, agora alçada como princípio norteador do Sistema Tributário Nacional (cf. artigo 145, §3º da CF), que teríamos em sendo uma única administração e um único contencioso do “IVA-dual” é inquestionável.

Todavia, sem adentrar nas questões políticas que entornam uma reforma tributária, embora seja tentador tratar a nova tributação sobre o consumo como “um único imposto”, não foi essa a escolha do constituinte. O 149-B da CF serve para determinar que as normas gerais do IBS e da CSB sejam idênticas, mas isso não faz com que os dois tributos se tornem um só. São gêmeos univitelinos, mas não são siameses, em razão das origens do federalismo em que se funda a nossa ordem constitucional.

Nesse contexto foi que o contencioso administrativo único, para o IBS e a CBS, não aconteceu.

Contencioso do IBS x Contencioso da CBS x Divergências interpretativas

Assim, de forma não ideal, mas certamente não inconstitucional, o PLP nº 108 de 2024 (PLP 108/2024) cria o contencioso administrativo do IBS, conforme determinação dos artigo 156-A, §5º, VII e 156-B, III da CF.

Ali está bastante clara a inspiração do texto em alguns aspectos do Decreto 70.235/72, outros tantos da Lei nº 9.784/1999, e ainda outros do Ricarf, no que tange à garantia ao contraditório e ampla defesa, sistema paritário de representação de julgadores, duas instâncias de julgamento e uma de uniformização de jurisprudência (artigo 99), subordinação à precedentes qualificados (artigo 92), enfim, inspirações oriundas do Processo Administrativo Fiscal Federal. Há diferenças importantes, mas há muitas semelhanças.

De outro lado, conforme recentemente noticiado [1], o presidente do Carf revelou que os litígios entre contribuintes e União a respeito da CBS serão julgados pela 3ª Seção do Carf. A atribuição de competência é bastante intuitiva, dentro do sistema do contencioso administrativo federal ora vigente. Afinal, é à 3ª Seção do Carf que cabe o julgamento do PIS e da Cofins, que serão exterminadas com o advento definitivo da CBS. É uma competência de julgamento “por sucessão causa mortis” tributária.

Em sendo essa a realidade, de contenciosos administrativos diferentes para o IBS e para a CBS, evidentemente que será possível que exsurjam divergências de interpretação entre o contencioso administrativo federal (Carf) e o contencioso administrativo do IBS. Mas não é só. Pode ser que haja divergência interpretativa fora do contencioso propriamente dito, em nível de edição de atos normativos/interpretativos infralegais, entre a União e o sistema em torno do Comitê Gestor do IBS.

Por isso, há necessidade de dois níveis de harmonização de interpretação do IBS/CBS: o contencioso e o normativo. Vejamos como ambos aparecem nas propostas legislativas em trâmite.

Desde a primeira versão do PLP 108/2024, havia uma promessa, pouco trabalhada nos dispositivos legais do projeto, de que o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias fariam esse papel, especialmente em relação à harmonização em nível de atos normativos infralegais [2].

Os detalhes sobre a composição e as atribuições desses órgãos encontravam-se no PLP 68/2024, cujo artigo 317, inciso I determina que o comitê será formado por quatro representantes da RFB e 4 representantes do Comitê Gestor; e o artigo 319 afirma que compete ao comitê: 1) uniformizar a regulamentação e a interpretação da legislação relativa ao IBS e à CBS em relação às matérias comuns; 2) prevenir litígios relativos às normas comuns aplicáveis ao IBS e à CBS; e 3) deliberar sobre obrigações acessórias e procedimentos comuns relativos ao IBS e à CBS. Ao fórum fica a função de, além de analisar relevantes e disseminadas controvérsias do IVA-dual, atuar como órgão consultivo do comitê.

Em 8 de julho de 2024 tivemos a apresentação, do pelo grupo de trabalho (GT) da regulamentação da reforma tributária, do substitutivo ao texto do PLP 108/2024.

O artigo 111 do substitutivo deixa claro que o órgão que servirá para a solucionar divergências interpretativas em nível de julgamento, vale dizer, de jurisprudência administrativa, é o comitê. Ato contínuo, o artigo 112 determina que as decisões do comitê terão caráter vinculante:

“Art. 111. A uniformização da jurisprudência administrativa do IBS e da CBS será realizada pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias relativas ao IBS e à CBS por encaminhamento pelas seguintes autoridades:

I – o Presidente do Comitê Gestor do IBS; e

II – a autoridade máxima do Ministério da Fazenda.”

“Art. 112. As decisões tomadas pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias terão caráter de provimento vinculante a partir de sua publicação no Diário Oficial da União.”

A dúvida que aparece é sobre os destinatários dessa vinculação. Quais seriam? É aqui que se requer atenção, com itálicos, negritos e sublinhados oportunos.

Depois de apresentar as três instâncias de julgamento administrativo do IBS, o artigo 100 do Substitutivo do PLP 108 coloca que:

“Art. 100. A harmonização do IBS e da CBS será garantida pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias de que trata a Lei Complementar que institui o IBS e a CBS, cujas decisões terão caráter de provimento vinculante para os órgãos julgadores administrativos.

Parágrafo único. No exercício da atividade de harmonização de que trata o caput, o Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias ouvirá obrigatoriamente o Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias, que participará necessariamente das reuniões do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias.”

Paralelamente, o artigo 319, parágrafo único e o artigo 321 do PLP 68/2024 determinam:

“Art. 309. Compete ao Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias: (…)

Parágrafo único. As resoluções aprovadas pelo Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, vincularão as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”

“Art. 311. Ato conjunto do Comitê de Harmonização das Administrações Tributárias e do Fórum de Harmonização Jurídica das Procuradorias deverá ser observado, a partir de sua publicação no Diário Oficial da União, nos atos administrativos, normativos e decisórios praticados pelas administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e nos atos da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e das Procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.”

Aí estão as novas hipóteses de vinculação que se propõe sejam adotadas no âmbito do contencioso tributário: que as decisões do comitê e do fórum, sobre dúvidas interpretativas a respeito de qualquer questão que seja comum ao IBS e à CBS, sejam de observância obrigatória pelos órgãos julgadores das matérias, vale dizer, o Carf [3] e quaisquer das instâncias de julgamento do IBS!

Críticas à vinculação do contencioso ao comitê de harmonização

Pois bem. Do ponto de vista de harmonização da jurisprudência, a regra causa profundo espanto. As decisões proferidas pela Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf não são vinculantes para as turmas ordinárias do mesmo tribunal. Por que então as decisões dessa “instância de uniformização”, exclusivamente quanto à jurisprudência da CBS, seriam vinculantes à 3ª Seção do Carf? Difícil escrever obviedades, mas o Carf julga e julgará tributos diferentes da CBS, que não terão qualquer limitação vinculativa desse jaez, de modo que a previsão do artigo 100 do PLP 108, quando aplicada na prática, torna o Carf um tribunal com regras processuais diversas a depender das matérias sob julgamento, o que não faz sentido, nunca aconteceu, e não tem razão de ser.

Não fosse o bastante, a composição do comitê e do fórum exclusivamente por representes da RFB, da Procuradoria e do Comitê Gestor faz todo o sistema de paridade do julgamento administrativo cair por terra. Do que adianta prever um contencioso administrativo no qual as instâncias de julgamento contam com representantes dos contribuintes, se a decisão final sobre uma matéria será tomada sem a participação desses? Quando do advento do substitutivo, pensamos por um momento que a inclusão de representantes dos contribuintes na Câmara Superior do IBS (cf. artigo 110, §1º, III do PLP 108/2024) demonstrava uma sensibilidade com a questão, mas agora está claro que isso não aconteceu de forma suficiente, permanecendo o problema da falta de credibilidade e coerência no ápice do sistema.

E agora do ponto de vista da harmonização de entendimento por atos normativos infralegais — cuja vinculação aos dizeres do comitê está posta no PLP 68/2024 – trata-se proposta legal que tolhe profundamente a consolidada competência cognitiva que o Carf possui, bem como faz natimorta essa mesma competência no âmbito do contencioso do IBS. Com feito, o Carf e todas as instâncias do contencioso do IBS, ficam com a sua capacidade de verticalização do julgamento prejudicada. Afinal, sabe-se que o Carf está impedido de promover o controle de constitucionalidade das normas que aplica às lides que lhe são dirigidas (cf. Súmula Carf nº 2 e artigo 26-A do Decreto 70.235/72), mas tradicionalmente sempre foi instância com o poder/dever, inclusive dentro do contexto de controle interno dos atos administrativos (cf. artigo 53 da Lei nº 9.78/1999), de afastar atos normativos ilegais. Assim, se aplicada a literalidade do artigo 100 do PLP 108, enquanto vinculação do contencioso administrativo à legislação tributária, parte do Carf (a 3ª Seção de Julgamento) não poderá, como pode hoje em dia, julgar conforme a lei, entendendo que determinado ato normativo é ilegal. Afinal, no que tange à CBS, estará “vinculado” ao que o Comitê diz que é que interpretação adequada.

Para além da necessidade do interesse da própria administração pública na citada autotutela da legalidade dos seus atos, mediante processo administrativo competente, a submissão do contencioso administrativo em sua inteireza aos atos interpretativos exarados pelo comitê vai na contramão do princípio da legalidade, que, até onde essa colunista pode depreender, não foi revogado pela EC 132/2023.

Por fim, vê-se que a proposta é cega ao fato que os contribuintes, se restarem vencidos no âmbito administrativo, sempre podem se socorrer ao Poder Judiciário, pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição [4]. Quer dizer que autuações fiscais feitas com base em legislação tributária desconforme à lei em sentido estrito, invariavelmente levará às Fazendas Públicas a um litígio judicial, o que gerará sucumbência contra o poder público. Certamente não é esse o melhor cenário para a sociedade como um todo.

De tudo isso, vê-se que temos uma reforma do processo administrativo tributário que merece muito mais atenção nos seus detalhes, como o apresentado no presente texto. As novas hipóteses de vinculação, trazidas pelo PLP 108 e pelo PLP 68 podem significar problemas estrondosos para o contencioso administrativo fiscal como um todo. Esperamos que exista tempo de resolvê-los ante da finalização do trâmite legislativo, inclusive tendo a oportunidade de observar bons exemplos de diálogo na relação entre Fisco e contribuinte, sempre no intuito de zelar pelo interesse público, como temos na Sejan (Câmara de Promoção de Segurança Jurídica no Ambiente de Negócios) no âmbito da AGU. O trabalho de harmonização de interpretação entre RFB e Procuradoria da Fazenda Nacional, com a participação da sociedade civil, é de fato inspirador, podendo trazer novos ares para a tão necessária necessidade de harmonização que teremos com a vigência do IBS e da CBS.


[1] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/processos-sobre-cbs-serao-analisados-pela-3a-secao-do-carf-03072024

[2] https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2024/07/01/reforma-preve-mecanismos-para-evitar-litigios-sobre-novos-tributos.ghtml

[3] Também à DRJ, evidentemente.

[4] Onde o problema da uniformização também existirá, haja vista, em princípio, a competência para a Justiça Estadual julgar o IBS e a Justiça Federal a CBS, o que também tem sido objeto de muito debate. Aqui, a função uniformizadora ficaria sob responsabilidade dos Tribunais Superiores (STJ e STF), mas não sem antes perdurar decisões divergentes entre as citadas Justiças Estadual e Federal.

O post Vinculação do Carf na reforma tributária: perigo iminente e eminente apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Auxílio-doença pago junto com aposentadoria não pode ser devolvido

Benefícios previdenciários têm natureza alimentar, ou seja, são voltados à subsistência, e o pagamento de suas parcelas por longo período gera no segurado o sentimento de que sempre poderá contar com esse dinheiro. Assim, não é justo exigir a restituição de valores já consumidos.

INSS deve restituir descontos que promoveu na aposentadoria da autora na tentativa de compensar auxílio-doença – Agência Brasil

Com esse entendimento, o juiz Wesley Schneider Collyer, da 1ª Vara Federal de Cascavel (PR), decidiu que parcelas de auxílio-doença pagas a uma mulher não podem ser devolvidas e ainda condenou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a restituir valores descontados da aposentadoria por invalidez recebida pela autora.

A mulher recebeu auxílio-doença e aposentadoria por invalidez ao mesmo tempo por certo período. Isso porque a data de início da aposentadoria por invalidez retroagiu e atingiu o período em que o auxílio-doença vinha sendo pago.

Devido ao “pagamento em duplicidade”, o INSS promoveu descontos na aposentadoria da autora, para compensar os valores recebidos no auxílio-doença.

Sem má-fé

A mulher, então, acionou a Justiça e alegou que não agiu com má-fé, nem induziu o INSS a erro. Ela pediu a devolução dos valores descontados.

O juiz Wesley Schneider Collyer concordou que “não houve ardil, nem má-fé” da autora, mas apenas a concessão da aposentadoria com data retroativa, que ocasionou o pagamento conjunto do benefício com o auxílio-doença por certo tempo.

Devido à “evidente boa-fé” da autora, somada ao “caráter alimentar do benefício recebido”, o julgador considerou que os valores “pagos em excesso” não poderiam ser devolvidos.

Atuou no caso a advogada Nayara Cadamuro Weber.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 5002966-90.2024.4.04.7005

O post Auxílio-doença pago junto com aposentadoria não pode ser devolvido apareceu primeiro em Consultor Jurídico.