A quem pertence o ônus de comprovar a cadeia de custódia da prova?

Desde que a Lei 13.964/2019 tipificou regras básicas a respeito da cadeia de custódia da prova, o debate sobre tema se tornou rotineiro nos tribunais.

Na jurisprudência edificada a respeito do tema, se consolidou o entendimento de que caberia à defesa demonstrar e comprovar a quebra da cadeia de custódia, a título de exemplo: “a defesa não logrou demonstrar prejuízo em razão do alegado vício, tampouco comprovou cabalmente a ocorrência de quebra da cadeia de custódia (…)” [1],

“Para demonstrar a quebra da cadeia de custódia é imprescindível que seja demonstrado o risco concreto de que os vestígios coletados tenham sido adulterados.(…)”[2], “(…) A configuração da quebra da cadeia de custódia pressupõe a existência de irregularidades no procedimento de colheita e conservação da prova, não demonstrados de plano pelo recorrente. (…)” [3] e outras diversas decisões no mesmo sentido.

Essa visão a respeito do ônus da prova [4] é mais uma das inadequadas importações do processo civil, da qual se extrai a conclusão de que a prova do fato incumbe a quem a fizer. Logo, se é a defesa quem alega a quebra da cadeia de custódia, cabe a ela comprovar a inobservância do rito previsto no artigo 158-A a 158-F do CPP ou qualquer outro vício que contamine a higidez da prova (por exemplo, a inobservância da ABNT/ISSO 27037/2013 que regulamente o tratamento de evidências digitais).

Quando o artigo 156 do CPP repete esta afirmação, está se referindo à prova da alegação acerca da prática de um crime, incumbindo a quem acusa demonstrar através das provas (lícitas) a autoria e materialidade [5], não sendo razoável inverter esta interpretação a ponto de aceitar que caberia a parte adversa comprovar a quebra da cadeia de custódia de uma prova que não foi responsável pela colheita ou produção.

Mais do que inverter o ônus da prova a respeito da cadeia de custódia, o que não se admite por qualquer prisma no processo penal, isso seria o mesmo que exigir da parte adversa uma “prova diabólica”, para utilizar um termo recorrente na linguagem de que acusa.

Controle de confiabilidade

O controle de confiabilidade de uma prova pressupõe a realização de uma “prova sobre a prova” [6] por razões óbvias. Somente quem produziu e colheu a prova poderá (leia-se: deverá) comprovar a higidez e fiabilidade desta prova.

Seria impossível esperar que a defesa comprovasse a quebra da cadeia de custódia de uma prova extraída de um celular ou computador, se não lhe foi fornecido o código hash. Pela mesma lógica, também seria impossível que a defesa comprovasse a quebra da cadeia de custódia de objetos apreendidos na cena do crime, sem que lhe fosse apresentado informações sobre a coleta, acondicionamento, transporte e outras informações no processamento da prova até a perícia.

Diferentemente do que ocorre no direito administrativo, no processo penal não vige o princípio da presunção de veracidade dos atos oriundos da administração pública, pelo qual se justificaria uma confiança pré-constituída na higidez e fiabilidade da prova produzida pelas Polícias, Ministérios Públicos e outras agências de Estado. Não se espera outro comportamento em relação à prova produzida pela defesa, excetuando-se os casos em que a própria jurisprudência admite a prova ilícita pro reo. [7]

No processo penal, os princípios regentes são outros, tais como a legalidade presunção de inocência — não basta qualquer prova, é necessário que seja lícita [8] e colhida sobre égide da legalidade, ou seja, preservando a cadeia de custódia —, e por isso, sobre a prova acusatória apresentada vige aquilo que Geraldo Prado propôs chamar de “princípio da desconfiança” que recai sobre a autenticidade da prova [9].

Quebra da cadeia de custódia

A quebra da cadeia de custódia pode se dar de duas formas, por ação ou omissão: comportamento comissivo: quando se constata algum vício na cadeia de custódia da prova; ou comportamento omissivo: quando sequer é fornecida a cadeia de custódia da prova.

Reconhecendo que a quebra da cadeia de custódia pode ser consequência de um comportamento omissivo de quem colheu ou produziu a prova, ao não comprovar os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado, em decisão da 5ª Turma do STJ, a ministra Daniela Teixeira reconheceu a quebra da cadeia de custódia anotando que “a falha na cadeia de custódia pode resultar na imprestabilidade da prova, sendo que a mera alegação de correção na coleta das provas pelo Estado não é suficiente para garantir sua admissibilidade”, concluindo que “a falta de documentação adequada sobre o local e os objetos periciados gera insegurança jurídica e torna as provas inadmissíveis para fins penais” [10].

Respondendo à pergunta que deu origem a este texto: incumbe a quem colheu ou produziu a prova (acusação ou defesa) o ônus de comprovar a cadeia de custódia, ou seja, a higidez e fiabilidade da prova apresentada. Não por outro motivo a ausência da demonstração de “todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado” (artigo 158-A do CPP) configura, por si só, a quebra da cadeia de custódia e impede que a prova seja admitida e valorada.


[1] STJ, AgRg no AREsp n. 2.684.625/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 16/9/2024.

[2] STJ, AgRg no HC n. 825.126/SP, relator Ministro Otávio de Almeida Toledo (Desembargador Convocado do Tjsp), Sexta Turma, julgado em 9/9/2024, DJe de 11/9/2024.

[3] AgRg no HC n. 870.078/RJ, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 2/9/2024, DJe de 6/9/2024.

[4] Concordamos com Aury Lopes Jr. quando demonstra que a adequação do termo ao processo penal requer o uso do substantivo “carga” e não “ônus” da prova e por consequência não há distribuição de cargas, vide LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 425/427.

[5] Neste sentido, vasta doutrina: BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020, p. 490/496; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Et. Al. Código de Processo Penal Comentado, 4ª Ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 500/501; ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 6ª Ed. Florianópolis: EMais, 2020, p. 662; LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 19ª Ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 425/427 e outros.

[6] BELTRÁN-FERRER, Jordi. Valoração Racional da Prova. Tradução: Vitor de Paula Ramos. Salvador: Editora Juspodivm, 2021, p. 130.

[7] STJ, RHC 173.639/DF, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, decisão monocrática, j. 06/06/2023.

[8] ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiroanálise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 463.

[9] PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 150/153.

[10] STJ, AgRg no AREsp n. 2.460.649/MG, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 10/9/2024, DJe de 13/9/2024.

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Quinto constitucional amplia caminhos para a justiça, dizem ministros do STJ

Nomeados para o Superior Tribunal de Justiça em vagas destinadas à advocacia, os ministros Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Sebastião Reis Júnior exaltaram a cooperação entre advogados e magistrados como sendo algo capaz de criar novos caminhos para a Justiça.

Antonio Carlos Ferreira 2024

Ex-advogado, ministro Antonio Carlos Ferreira foi um dos homenageados – Pedro França/STJ

 

O trio foi homenageado em evento na sede da seccional do Distrito Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, na noite desta segunda-feira (7/10). A cerimônia exaltou o papel do quinto constitucional nos 35 anos de instalação do STJ.

Também receberam homenagens o ministro João Otávio de Noronha, que está em viagem a serviço do STJ, e as ministras Maria Thereza de Assis Moura e Daniela Teixeira, que estavam em compromisso no tribunal.

O quinto constitucional é a previsão de que uma parcela da composição dos tribunais de apelação seja de advogados e membros do Ministério Público, como forma de oxigenar posições e democratizar julgamentos. No STJ, ele é maior: um terço da composição tem essa origem, ou seja, 11 dos 33 ministros.

Os três foram indicados, sabatinados e nomeados conjuntamente em 2011. Todos eram registrados na OAB-DF, e foram elogiados pelo presidente do Conselho Federal da OAB, Beto Simonetti, e pelo presidente da seccional distrital, Délio Lins e Silva Jr.

Quinto constitucional

Antonio Carlos Ferreira destacou que chegou ao STJ reiterando o compromisso de respeitar as prerrogativas da advocacia, uma missão assumida ao receber a carteira da OAB e reforçada na sabatina no Senado, quando da indicação para a vaga na corte superior.

Para ele, o exercício diário da advocacia leva a compreender que as prerrogativas pertencem ao cidadão, que tem direito ao exercício da defesa de seus interesses por um advogado altivo, independente e seguro de que pode atuar sem receio algum.

“Juntos com nossos trabalhos, independentes, mas com harmonia, podemos criar caminhos para atenuar e suprimir as dores de quem procura Justiça, pelo bem comum, paz social e construção de uma sociedade que seja verdadeiramente melhor para todos”, disse Ferreira.

Villas Bôas Cueva, por sua vez, destacou que os indicados pelo quinto constitucional carregam consigo a bagagem do advogado enquanto engenheiro social, formado para resolver e mediar conflitos, em defesa de valores constitucionais e do Estado de Direito.

“Hoje, não há mais ninguém que ouse falar contra o quinto constitucional. Até mesmo entidades representativas de juízes não falam, porque veem como isso os complementa na busca de vozes diferentes que produzam Justiça.”

“Advogados, promotores e juízes, somos todos atores auxiliares de processos complexos. A cooperação entre todos é fundamental. Essa tradição brasileira de ter sempre nos tribunais de apelação representantes da advocacia e do Ministério Público contribuiu muito para que essa pluralidade continue a existir”, complementou Cueva.

Já Sebastião Reis Júnior destacou que os egressos da advocacia têm a oportunidade de levar aos advogados a experiência da magistratura. E relembrou lição do ex-ministro do Tribunal Federal de Recursos e professor da UnB Paulo Távora: o advogado deve ajudar o juiz a ajudá-lo.

“Da mesma forma que juiz não sabe da advocacia, advogado não sabe o que é a magistratura. Esse diálogo é importante e a figura do quinto constitucional facilita. Hoje posso falar que isso incomoda o juiz ou não, que isso pode ou não, porque tenho experiencia desse lado do balcão.”

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Validade da assinatura digital pelo consumidor analfabeto à luz do art. 595 do CC

O direito contratual atravessa um período inédito no Brasil, marcado por formulações doutrinárias que impactaram a conceituação fundamental dos contratos e seus desdobramentos no sistema jurídico. A vontade, elemento crucial e absoluto para a formação dos contratos, já não é suficiente para definir a contratualidade atual, que agora se baseia no princípio da autonomia privada.

É sabido que a teoria geral dos contratos, alinhada ao direito civil, tem sofrido mudanças, direcionando-se cada vez mais pelo viés do direito civil constitucional. Nesse contexto, diversos fatores contribuíram para a evolução da teoria contratual, incluindo a superação do liberalismo jurídico.

Os princípios contratuais desempenham um papel central no desenvolvimento dos contratos, pois a legislação é elaborada com base nos princípios jurídicos aplicáveis, sejam eles positivados ou não, que acompanham as fases de evolução conceitual da teoria contratual.

A liberdade contratual é delimitada pela aplicação dos valores fundamentais da Constituição, sem negar a autonomia privada das partes na relação contratual. As partes têm liberdade para agir na esfera privada, desde que respeitem princípios como lealdade, socialidade e eticidade, em conformidade com o bem comum e os interesses econômicos e sociais.

A vontade é vista como a base da obrigatoriedade dos contratos, em harmonia com a plena liberdade concedida às partes para celebrar seus negócios. Além disso, os princípios do direito contratual ressaltam a importância do contrato como expressão de consenso e da vontade como fonte de efeitos jurídicos.

A par disso, essa vontade deve ser livre e manifestada de forma clara e insofismável, sob pena de anulabilidade do instrumento.

Quando os contratantes são pessoas plenamente capazes e que podem ler e compreender com exatidão os termos da contratação, a forma de manifestação dessa vontade não exige grandes formalidades, manifestando-se com a simples assinatura dos contratantes.

De outro lado, tratando-se de contratante analfabeto, algumas particularidades se apresentam. Não se discute que a pessoa analfabeta é dotada de capacidade para a prática de praticamente todos os atos da vida civil, entre eles o de contratar e ser contratado.

Testemunhas para contratante analfabeto

Contudo, diante da sua impossibilidade de ler e, assim entender perfeitamente o que está escrito nas cláusulas da avença, o legislador criou uma fórmula para que se possa dar credibilidade à contratação realizada pelo analfabeto, de modo a afastar a ideia de que tenha sido enganado ou induzido a contratar algo que não era o pretendido.

Essa fórmula é expressamente consignada pelo artigo 595 do CC/2002, que exige que, na contratação realizada por analfabeto, a sua manifestação de vontade seja expressada por meio de assinatura a rogo e de duas testemunhas.

Apesar do rigorismo da norma, a jurisprudência pátria — atenta à evolução das formas de contratações — tem abrandado essa regra, contemplando a validade dos contratos quando consta a impressão digital do contratante analfabeto, acompanhada da assinatura de duas testemunhas devidamente identificadas por seus documentos pessoais, ainda que ausente a assinatura a rogo.

Em tais casos, consignou-se que a regra do artigo 595 do CC emprega a expressão “poderá”, o que indica que o instrumento pode ser assinado a rogo, como também pode ser assinado por outros meios legais, a exemplo da aposição da digital.

Portanto, a teor do disposto no artigo 595 do CC, a contratação realizada por analfabeto será válida tanto na hipótese da presença de assinatura a rogo, quando nos casos de aposição de sua impressão digital, desde que, em ambos os casos, haja a assinatura de duas testemunhas identificadas por seus respectivos documentos.

Nesse sentido, destacam-se precedentes do TJ-MA, a exemplo: ApCiv 0817336-64.2019.8.10.0001, relator: JAMIL DE MIRANDA GEDEON NETO, Publicação: 12/04/2022; ApCiv 0800454-65.2020.8.10.0074, relator: JOSE JORGE FIGUEIREDO DOS ANJOS, Publicação: 20/05/2022.

Contudo, essa fórmula só pode ser aplicada aos casos de contratos físicos, onde o contratante esteja de corpo presente na formação da avença.

Solução para forma eletrônica de contrato

A celeuma surge, contudo, quando o contrato é realizado de forma eletrônica.

Com efeito, ao longo dos últimos anos acompanhamos uma evolução significativa nos meios de contratação de empréstimos, impulsionada pelo avanço da tecnologia e a necessidade de processos mais rápidos e seguros.

Antes, a contratação de empréstimos geralmente envolvia burocracias e exigia que o cliente se deslocasse até o banco ou instituição financeira para assinar diversos documentos. No entanto, com os avanços tecnológicos, surgiu a possibilidade de realizar todo o processo de forma eletrônica, eliminando a necessidade de papel e agilizando a concessão de crédito.

Isso estabelecido, surge a dúvida: como compatibilizar essas novas formas de contratação com a regra do artigo 595 do CC?

De início, há que se esclarecer que o Código Civil vigente é do ano de 2002, época em que, apesar de já se contemplar diversos avanços tecnológicos, ainda não era possível imaginar todas as inovações digitais que usufruímos hoje em dia, nem as modernas formas de contratação que existem nos dias atuais.

Dessa maneira, afigurava-se impossível ao legislador disciplinar a situação ora em debate. Contudo, não se pode ignorar que os analfabetos, assim como os indígenas, entre outras minorias, não podem estar relegados à invisibilidade digital, de modo a impedir que utilizem as ferramentas modernas trazidas pelas inovações tecnológicas.

Afinal, a Constituição, em seu artigo 3º, estabeleceu como objetivo fundamental da República a erradicação da marginalização e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; e aplicando essa norma ao contexto dos contratos eletrônicos, é imperativo que as pessoas analfabetas não sejam excluídas da esfera digital, garantindo-lhes acesso e inclusão nos meios eletrônicos.

Dinamismo do direito

Doutrinadores como Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho destacam a necessidade de adaptar os institutos tradicionais do direito às novas realidades tecnológicas. Eles afirmam que a interpretação do direito deve ser dinâmica, considerando o contexto social e tecnológico atual, sem perder de vista os princípios fundamentais que regem o ordenamento jurídico.

Nesse sentir, e diante da ausência de disciplinamento específico conferido pelo legislador, ao Judiciário coube, pelo menos por enquanto, o dever de solucionar a questão, em face do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV).

De acordo com a Medida Provisória nº 2.200-2/2001, a assinatura digital deve se operar por meio da “Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira — ICP-Brasil”, para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras.

Por meio das regras da ICP-Brasil, cada assinatura associa uma entidade, pessoa, processo ou servidor a um par de chaves criptográficas, uma associada àquele que assina digitalmente e outra à autoridade certificadora.

Assim, quando adotada a infraestrutura da ICP-Brasil, o entendimento que prevalece é o de que a entidade certificadora faria as vezes das testemunhas elencadas pelo artigo 595 do CC, de modo a satisfazer a formalidade legal e validar a contratação.

Nesse sentido: TJ-PR ApCiv 0004091-58.2017.8.16.0086, relator: Desembargador Fernando Antonio Prazeres, Data de Julgamento: 01/11/2018, 14ª Câmara Cível, Data de Publicação: 06/11/2018.

Contratação bancária

Todavia, tratando-se de contratos bancários, a contratação eletrônica pode se realizar, hodiernamente, de duas formas: ou por meio de caixa eletrônico de autoatendimento, onde há a utilização de cartão físico por meio do contratante, com assinatura digital através de senha de quatro dígitos e código gerado por meio de token; ou, ainda, por meio de aplicativos bancários inseridos em dispositivos eletrônicos individuais (smartphones ou assemelhados), sem usar a estrutura de chaves da ICP-Brasil.

Em casos assim, a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 não desconhece a existência da assinatura, mas impõe, para sua validade, que seja ela admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto o documento. É essa a dicção do artigo 10, § 2º:

O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.”

No mesmo sentido se posiciona o inciso II, do artigo 4º, da Lei nº 14.063/2020, a saber:

II – assinatura eletrônica avançada: a que utiliza certificados não emitidos pela ICP-Brasil ou outro meio de comprovação da autoria e da integridade de documentos em forma eletrônica, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento, com as seguintes características: […].”

Portanto, nesses casos, a assinatura eletrônica só seria válida se aceita pelo contratante; e tendo o consumidor negado a contratação, o documento não possuiria o condão de comprovar a efetiva contratação.

Ocorre que essa fórmula se mostrou de todo imperfeita, porquanto dá margem à atuação de má-fé de pessoas que, mesmo contratando livremente, posteriormente se interessem em não cumprir a avença e, assim, questionar a legitimidade da contratação, ferindo o princípio da boa-fé objetiva encartado no artigo 422 do Código Civil.

Tipos de assinatura digital

Para solucionar o problema, as instituições financeiras passaram a adotar basicamente dois tipos de assinaturas: por chave criptografada e por biometria facial.

A assinatura digital por chave criptografada é um método de autenticação que utiliza algoritmos de criptografia para garantir a segurança e autenticidade de documentos eletrônicos.

Funciona através da geração de um par de chaves: uma chave privada, conhecida apenas pelo signatário, e uma chave pública, disponibilizada para verificação. Quando um documento é assinado digitalmente, a chave privada é usada para criar uma assinatura digital única, que pode ser verificada usando a chave pública correspondente. Isso garante que o documento não foi alterado após a assinatura e que o signatário é quem ele afirma ser.

Já a biometria facial consiste no reconhecimento da face do indivíduo por meio de um software e tem se mostrado uma solução eficiente e segura para garantir a identidade do solicitante do empréstimo. Por meio de algoritmos sofisticados, a tecnologia é capaz de analisar diversos pontos faciais únicos, como o formato dos olhos, nariz e boca, criando uma assinatura digital exclusiva para cada pessoa.

Esse método traz inúmeras vantagens tanto para os clientes como para as instituições financeiras. Primeiramente, a utilização da biometria facial proporciona maior segurança na identificação do cliente, reduzindo consideravelmente a possibilidade de fraudes. Além disso, a agilidade no processo de contratação é um diferencial importante, permitindo que o empréstimo seja solicitado e aprovado rapidamente, sem a necessidade de deslocamentos ou envio de documentos físicos.

A praticidade proporcionada pela assinatura através da biometria facial também contribui para uma experiência mais satisfatória para o cliente. Não é mais necessário enfrentar filas, enviar documentos pelo correio ou digitalizar papéis, o que simplifica e agiliza todo o processo, tornando-o mais conveniente.

Videoconferência registrada

Além dessas duas formas de assinatura digital, também já se contempla a utilização de videoconferência com registro audiovisual, além de plataformas adaptadas para incluir suporte inclusive a analfabetos, com interfaces de voz e instruções audiovisuais, garantindo que o usuário compreenda e valide o contrato de forma consciente.

É importante destacar que, para garantir a segurança e proteção dos dados dos clientes, as instituições financeiras adotam medidas de criptografia e segurança robustas para proteger as informações pessoais, de modo que o consumidor pode se sentir tranquilo ao utilizar esse meio de contratação de empréstimos, já que oferece maior segurança contra falsificação e adulteração de documentos, elimina a necessidade de armazenamento físico e transporte de papéis e é reconhecida legalmente como equivalente à assinatura física, conforme expressamente consagrado pela Lei nº 14.063/2020.

Em recentes decisões, o Superior Tribunal de Justiça tem manifestado entendimento pela validade dos contratos onde se constata a aposição de assinatura digital, quando ambas as partes, no legítimo exercício de sua autonomia privada, elegeram meio diverso de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, com uso de certificado não emitido pela ICP-Brasil. Nesse sentido o REsp 2.159.442 / PR, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, publicado em 27/09/2024).

Conclui-se, portanto, que o artigo 595 do Código Civil deve ser reinterpretado à luz do contexto atual, em que os contratos eletrônicos são uma realidade consolidada, assegurando que os analfabetos não sejam excluídos do meio eletrônico. A exigência de duas testemunhas ou assinatura a rogo para analfabetos pode e deve ser flexibilizada, desde que se adotem medidas tecnológicas que assegurem a autenticidade e a integridade da manifestação de vontade do analfabeto.

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Referências bibliográficas

1 – GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. In Novo Curso de Direito Civil – Contratos. São Paulo: Saraiva, 2019.

2 – VENOSA, Silvio de Salvo Venosa. In Direito Civil – Contratos em Espécie. São Paulo: Atlas, 2020.

3 – GOMES, Orlando Gomes. In Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

4 – SOARES, Sávio de Aguiar. In Teoria Geral dos Contratos e funcionalização no Direito Privado contemporâneo. Disponível em http://www.lfg.com.br 04 julho. 2008.

5 – Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Manual de Assinatura Eletrônica. Disponível online.

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Decisão da Suprema Corte está fazendo um estrago no poder regulatório do governo dos EUA

Na decisão de 28 de junho da Suprema Corte dos Estados Unidos que revogou o precedente Chevron Deference — o que criou a Doutrina Chevron, segundo a qual os juízes federais deveriam acatar a interpretação dos órgãos governamentais de leis que são ambíguas ou omissas, desde que a interpretação fosse razoável — e passou essa responsabilidade para os tribunais, a ministra Elena Kagan previu, em seu voto dissidente, que haveria “uma ruptura em grande escala” no poder regulatório do governo.

Sede da Suprema Corte dos Estados Unidos, Suprema Corte dos EUA, SCOTUS
Suprema Corte dos EUA revogou o precedente Chevron Deference – Pacamah/Wikimedia Commons

Pouco mais de três meses depois, a previsão da magistrada se confirmou: empresas e outras organizações moveram 110 ações em que alegam que órgãos federais excederam a autoridade que lhes foi conferida pelo Congresso. E, de acordo com a decisão em Loper Bright Enterprises v. Raimondo (referida como Loper Bright), seus regulamentos devem ser revogados.

De um modo geral, juízes federais de primeiro e segundo graus têm concordado com esse argumento — e vêm ajudando essas organizações a se livrar de regras federais de que não gostam —, tudo em nome da extinção da Doutrina Chevron, em uma decisão que trocou a expertise de técnicos e cientistas dos órgãos públicos pela expertise jurídica dos juízes.

Entre as ações que tramitam nas cortes, há pedidos de revogação de regulamentos que tratam da poluição do ar e da água; da emissão de gases de efeito estufa; da mudança do clima; da discriminação em tratamento da saúde; da segurança alimentar e de medicamentos; do controle da compra de armas; do aborto; do pagamento de horas extras; de taxas “escondidas” das companhias aéreas; e da honestidade do mercado financeiro.

Algumas publicações, como a Courthouse News Service, a Earthbeat (National Catholic Reporter) e a ProPublica, reuniram alguns desses casos que já tramitam pela Justiça Federal dos EUA — e são precursoras das muitas que virão para desmantelar o que essas organizações chamam de “estado administrativo”.

Poluição das caldeiras industriais

Environmental Protection Agency (EPA), agência responsável pela proteção ambiental nos EUA, divulgou, em 3 de setembro, um regulamento que impõe padrões de poluição mais rigorosos para novas caldeiras industriais (deixou as antigas em paz).

Um grupo de empresas do setor, lideradas pela U.S. Sugar Corporation (a maior produtora de cana-de-açúcar dos EUA), contestou a autoridade da EPA para regulamentar a Lei do Ar Limpo (Clean Air Act), em vista da extinção da Doutrina Chevron. E argumentou que os juízes são mais capacitados para interpretar a legislação ambiental.

O grupo inclui empresas que queimam carvão, papel e rejeitos agrícolas para gerar energia e emitem poluentes tais como mercúrio, monóxido de carbono, cloreto de hidrogênio e outras partículas.

O Tribunal Federal de Recursos para o Distrito de Colúmbia (em Washington, D.C.) decidiu que a EPA classificou inapropriadamente as caldeiras industriais como fontes de poluição perigosa, de acordo com seus novos padrões de poluição mais rigorosos. E citou a decisão da Suprema Corte em Loper Bright que aboliu o precedente Chevron Deference para sustentar sua própria decisão.

Pagamento de horas extras

Apenas algumas horas após a Suprema Corte divulgar o fim da Doutrina Chevron, um juiz federal no Texas expediu uma liminar que suspendeu uma nova regulamentação do Departamento do Trabalho dos EUA que expandiu o direito ao pagamento de horas extras.

O regulamento tinha a finalidade de conter uma “malandragem” de alguns empregadores, que classificavam empregados comuns como “executivos” — uma classe que não recebe pagamentos por horas extras trabalhadas —, e estabelecia que empregados com salários inferiores a US$ 43.888 por ano, em 2024, e a US$ 58.656 por ano, em 2025, e que exercem o mesmo trabalho de outros assalariados, não podem ser classificados como “executivos”.

O juiz decidiu que o Departamento do Trabalho excedeu a autoridade que lhe foi concedida pelo Congresso na lei Fair Labor Standards Act. E, em observância à decisão da Suprema Corte em Loper Bright, bloqueou a nova regra. E prometeu uma decisão final em questão de meses.

Discriminação contra transgêneros

Em julho, três juízes federais, em estados diferentes, sustentaram-se na decisão de Loper Bright para bloquear a implementação de uma nova regra do Departamento de Saúde e Serviços Humanos que proibia a discriminação baseada em identidade de gênero em tratamento de saúde.

O juiz federal Louis Guirola Jr. emitiu uma liminar válida para todo o país contra a nova regra, segunda a qual a identidade de gênero é protegida pela Affordable Care Act — lei mais conhecida como Obamacare (que garante seguro-saúde a quem não pode pagar uma empresa privada).

O juiz argumentou que a lei proíbe discriminação “com base em sexo”, mas não usa a frase “identidade de gênero”. Além disso, escreveu o juiz, o Departamento de Saúde excedeu sua autoridade ao expedir a nova regra, o que vai contra a decisão da Suprema Corte em Loper Bright.

Taxas ocultas de companhias aéreas

Para atrair compradores, várias companhias aéreas adotaram a prática de anunciar passagens por um preço baixo, para bater a concorrência. Mas, no processo de compra, começam a aparecer taxas que devem ser acrescidas ao preço, tais como taxa para marcar assento, taxa para despachar malas etc. E, nas linhas finas, taxas de cancelamento ou de mudança de datas dos voos.

Em abril, o Departamento de Transporte emitiu uma regra que proíbe essas “surpresas desagradáveis, que rendem a elas meio bilhão de dólares anualmente”. E determinou que todas as taxas devem ser explícitas na primeira vez que a companhia aérea oferece o preço da passagem ao consumidor.

Em maio, um grupo de companhias aéreas moveu uma ação judicial na qual alegam que o Departamento do Trabalho excedeu sua autoridade ao impor a elas essa regra. Em sua petição, elas afirmam que o órgão pode ordenar que parem com práticas injustas ou enganosas depois que elas ocorrem, mas não pode dizer a elas que práticas devem adotar.

Em 1º de julho, advogados que representam as companhias aéreas argumentaram no Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região que, de acordo com a decisão da Suprema Corte em Loper Bright, apenas os tribunais, não um órgão do governo, têm autoridade para interpretar a lei.

No final do mês, o tribunal decidiu que os advogados comprovaram que o Departamento do Trabalho excedeu sua autoridade ao impor essa nova regra. E a bloqueou.

Acordo trabalhista de não concorrência

Depois de cinco anos de estudos, a Federal Trade Commission (FTC) emitiu uma regra que proíbe as empresas de obrigar seus empregados a assinar acordos de não concorrência — os que estabelecem, em contratos de emprego, que o empregado que deixar a empresa fica impedido de trabalhar para uma concorrente por um certo período de tempo.

A FTC argumentou que a regra é necessária porque tais cláusulas contratuais prejudicam “a liberdade fundamental dos trabalhadores de mudar de emprego”, além de serem “exploradoras” e de “impedir a inovação”.

Em agosto, um grupo de organizações, liderado pela Câmara de Comércio dos EUA, moveu uma ação em um tribunal federal no Texas alegando que a FTC excedeu sua autoridade. O juiz federal repetiu tal argumento ao escrever que “a FTC promulgou uma regra de não competição em excesso de sua autoridade legal”, conforme decidido em Loper Bright.

Exigência de antecedentes na compra de armas

Em abril, o órgão governamental encarregado de controlar o comércio de álcool, tabaco e armas de fogo (ATF — Bureau of Alcohol, Tobacco, Firearms and Explosives) emitiu uma regra destinada a preencher uma brecha na lei. A nova norma estabelece que os compradores de armas vendidas pela internet ou em feiras de armas também devem apresentar atestados de bons antecedentes, como qualquer pessoa que as compra em lojas.

“Todos os comerciantes de armas, que vendem o produto para obter lucro, devem exigir atestado de bons antecedentes, para se assegurar que o comprador não é proibido por lei de adquirir uma arma”, diz a regra.

Uma ação contra a norma foi movida por 21 estados republicanos em um tribunal federal em Arkansas. Outro grupo de interessados foi mais esperto: moveu uma ação no Tribunal Federal do Distrito Norte do Texas, onde atua o juiz de preferência dos republicanos, na prática de judge shopping, Matthew Kacsmaryk.

O juiz emitiu rapidamente uma liminar (antes mesmo de a decisão de Loper Bright ser anunciada) bloqueando a execução da regra. Ele argumentou que havia uma alta probabilidade de os peticionários serem bem-sucedidos no julgamento do mérito porque a ATF excedeu sua autoridade.

O Departamento de Justiça (DOJ) entrou com recurso contra a liminar no Tribunal Federal de Recursos da 5ª Região — o mais conservador-republicano do país. Sem chances de ganhar a causa nesse tribunal, provavelmente terá de recorrer à Suprema Corte.

Ajuda federal a estados que proíbem o aborto

O governo federal disponibiliza fundos aos estados para financiar programas de planejamento familiar. Tal planejamento inclui a oferta de “aconselhamento neutro e não diretivo sobre aborto a pacientes que o solicitarem.”

Mas diversos estados republicanos baniram o aborto depois que a Suprema Corte revogou Roe v. Wade, o precedente que legalizou o procedimento em todo o país. Por isso, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) determinou, por meio de uma nova regra, que esses estados não terão mais direito ao financiamento.

O Tennessee, um dos estados afetados, baniu o aborto, com exceção apenas para “prevenir a morte da mulher grávida ou o risco sério de comprometimento substancial e irreversível de uma função corporal importante”. Por isso, o estado determinou que só ofereceria aconselhamento sobre o aborto para casos que estivessem em acordo com a lei estadual.

O HHS cancelou a ajuda ao Tennessee. O estado, então, moveu uma ação em um tribunal federal alegando que o Departamento de Saúde excedeu sua autoridade ao exigir aconselhamento imparcial sobre aborto como condição para receber a ajuda federal.

No ano passado, o Tribunal Federal de Recursos da 6ª Região havia decidido, em um caso semelhante, que o HHS tem a autoridade legal para recusar a ajuda, conforme determinava à época a Doutrina Chevron. Agora, com a Loper Bright em jogo, o caso volta ao tribunal.

Propaganda enganosa continua valendo

Uma investigação da FTC concluiu que a empresa Intuit fez propaganda enganosa ao anunciar o TurboTax, software para contribuintes fazerem declarações de Imposto de Renda gratuitamente (graças ao patrocínio de um programa governamental), mas convenceu consumidores de que seria melhor para eles pagar por serviços de ajuda especializada na preparação do documento.

A FTC mandou a Intuit “cessar e desistir” de fazer quaisquer alegações enganosas de “grátis” em sua publicidade. A Intuit moveu uma ação contra a ordem da FTC. No Tribunal Federal da 5ª Região, sustentou seu pedido na decisão de Loper Bright: “Qualquer ‘deferência’ à interpretação da lei pela FTC não sobrevive à decisão interveniente da Suprema Corte”, escreveram os advogados da empresa.

Regulamentação da cannabis

O Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região julgou, ainda em setembro, o caso Anderson v Diamondback Investment Group, que examinou se um empregado pode ser legalmente despedido por usar certos produtos derivados da cannabis — incluindo THC-O, uma substância psicoativa sintetizada a partir do extrato da planta.

A Diamondback argumentou, em sua petição, que o THC-O é inequivocamente legal, de acordo com a lei agrícola. E, sustentando-se na decisão que eliminou a Chevron Deference, esnobou a regulamentação da Drug Enforcement Administration (DEA): “Mesmo que a lei fosse ambígua, não precisamos nos submeter à interpretação da DEA”.

A Justiça pode julgar decisões da imigração?

O caso Bouarfa v. Mayorkas já chegou à Suprema Corte e deve ser julgado no ano judicial 2024/2025. Um cidadão palestino se casou com a cidadã americana Amina Bouarfa e, em algum tempo, conseguiu cidadania no país.

No entanto, dois anos mais tarde o serviço de imigração (United States Citizenship and Immigration Services) revogou a concessão de cidadania ao constatar que foi um casamento falso, só para conseguir documentos americanos.

A mulher moveu uma ação judicial que chegou à Suprema Corte com a pergunta: uma decisão dos Serviços de Cidadania e Imigração pode ser julgada pela Justiça?

Esse caso (como outros que podem surgir) é considerado um tiro pela culatra para os conservadores-republicanos do país, que ficaram felizes com a decisão de Loper Bright que extinguiu a Doutrina Chevron, mas são defensores fervorosos de regras duras contra imigrantes ilegais.

Se a Suprema Corte aplicar a própria decisão em Loper Bright, decidirá a favor do imigrante e contra o serviço de imigração. Afinal, os juízes, não os técnicos dos órgãos públicos, detêm agora a função de decidir se as regras que regulamentam tudo no país são válidas ou não.

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Planos de saúde não podem ser cancelados por inadimplência sem notificação prévia

A judicialização na seara da saúde suplementar, conforme dados registrados pelo Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus) [1], tem sido exacerbada por diversos fatores, destacando-se as rescisões unilaterais que não se coadunam com a legislação vigente. A despeito de a Lei Federal nº 9.656/98 prever que a inadimplência do usuário pode ensejar a fulminação do negócio jurídico, desde que haja a sua prévia notificação, abusividades têm sido detectadas, acarretando a crescente busca pelo aparato jurisdicional.

Reprodução

Objetiva-se, assim, examinar as Resoluções Normativas 593/2023 e 613/2024, editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar acerca do tema, pari passu com as regras protetivas dos interesses e direitos dos consumidores. Tenciona-se apontar a evolução das salvaguardas, mas também identificar as lacunas a serem colmatadas e as falhas que suscitam correção.

Os contratos de assistência suplementar à saúde são intitulados “cativos de longa duração”, como apontam  Ghersi, Weingarten e Ippolito, eis que os beneficiários não pretendem usufruir dos serviços prestados por um exíguo espaço temporal, mas, sim, de modo contínuo e indefinido após o cumprimento das carências previstas [2].

Em virtude dessa nota essencial, o artigo 13, parágrafo único, inciso II, da Lei nº 9.656/98, estabelece que em casos de não pagamento por período superior a 60 dias, será viável o desfazimento do vínculo [3]. No entanto, fixou-se o dever das operadoras de prévia notificação do consumidor até o 50º dia de inadimplência, comprovando-a. A ausência de quitação, nos últimos 12 meses de vigência do contrato, poderá ser de forma consecutiva ou não.

Normas da ANS sobre notificação

Com o desiderato de tratar da suspensão e rescisão unilateral de contratos individuais nas hipóteses de inadimplência, a Agência Nacional de Saúde Suplementar editou a Súmula Normativa nº 28/2015, fixando os pressupostos materiais e formais para que o ato de cientificação fosse considerado válido.

Diante da não localização do beneficiário no endereço fornecido à operadora, o enunciado sumular admitia que a sua notificação fosse formalizada por edital, publicado em jornal de grande circulação do último domicílio conhecido.

Ocorre que, na prática, muitas empresas não atentavam para as exigências impostas pela autarquia reguladora, acarretando a intensificação das demandas judiciais que deságuam no Superior Tribunal de Justiça [4].

Nesse emaranhado de volume processual oriundo das irresignações dos consumidores, a ANS optou por editar a Resolução Normativa (RN) nº 593/2023, disciplinando a matéria mediante o cancelamento da sobredita súmula.

Sem embargo do propósito da autarquia de mitigar os impactos das rescisões unilaterais em descompasso com a legislação vigente, o teor daquela RN apresenta-se limitado. Nos termos do seu artigo 2º, restringe-se aos contratos celebrados após 1º de janeiro de 1999 ou que foram adaptados à Lei de Planos de Saúde (LPS), deixando à margem todos os demais vínculos jurídicos anteriores, impactando na excessiva judicialização.

Ademais, determina que os planos de saúde, firmados antes do início da sua vigência, devem atender às regras estabelecidas no próprio instrumento, exceto se houver o aditamento. Não havendo a atualização do contrato, se a operadora utilizar os meios de notificação previstos na RN, mesmo que não dispostos no instrumento, será considerada válida, desde que o destinatário confirme a sua ciência.

Nessa senda, poderá haver a suspensão ou rescisão do plano de saúde, ou seja, visualiza-se regra contraditória e que corrobora com a assertiva do atendimento às demandas mercadológicas [5].

Outra restrição diz respeito ao não alcance de todas as espécies de planos de saúde, aplicando-se tão somente aos individuais, familiares e aos coletivos empresariais contratados por empresário individual. Incidirá também nas hipóteses em que o beneficiário da modalidade coletiva efetiva o pagamento das mensalidades diretamente à operadora, mesmo que haja uma pessoa jurídica contratante, como, por exemplo, nos casos de autogestões, administradoras de benefícios e ex-empregados em exercício do direito previsto nos artigos 30 e 31 da LPS.

Para cumprir a missão de regulamentar o setor, a ANS deveria atentar para maximizar o espectro da aludida RN, abarcando todas as modalidades contratuais.

Prazo para notificação e período de inadimplência

Dispõe o mencionado artigo 13 da LPS que a notificação deverá ser efetivada até o 50º dia de inadimplência e o artigo 4º da Resolução Normativa nº 593/23 reitera esta mesma regra. Todavia, será considerada válida quando recebida após tal prazo “se for garantido, pela operadora, o prazo de 10  dias, contados da notificação, para que seja efetuado o pagamento do débito”.

Ora, constitui benesse que revela a pressão dos agentes econômicos na atuação da ANS, posto que a autarquia reguladora não poderia instituir regra dissonante do texto legal e em prejuízo dos usuários. A expressão “captura das agências reguladoras”, cunhada por Joseph Stigler, infelizmente, tem sido detectada em situações nas quais se identificam posicionamentos contrários aos interesses da coletividade consumerista [6].

De acordo com a Lei de Planos de Saúde, a inadimplência do usuário deverá configurar-se por período superior a 60 dias, consecutivos ou não, nos últimos 12 meses de vigência do contrato. O § 3º do artigo 4º da RN  nº 593/23 admite a suspensão e/ou a rescisão unilateral do contrato mesmo quando apenas duas mensalidades não tenham sido pagas em um mesmo período anual, de forma consecutiva ou não.

Ora, o ideal seria que a autarquia reguladora estabelecesse um maior número de parcelas não quitadas, para admiti-las, optando, assim, por adotar a Teoria de Adimplemento Substancial [7], pois não é cabível que o consumidor — que venha quitando os valores durante anos — seja excluído por causa do débito de número exíguo de parcelas.

Conteúdo e objetivo da cientificação

O conteúdo mínimo da notificação por inadimplência encontra-se delineado no artigo 10 da RN nº 593/23, qual seja: 1) a identificação dos sujeitos do negócio jurídico e do respectivo objeto; 2) os meios de contato com a operadora; 3) o quantum debeatur; e 4) as condições para a quitação.

O artigo 12 contempla inovação que não se encontrava presente naquele enunciado sumular, prevendo-se que, na cobrança de mensalidade em atraso, a multa poderá ser de, no máximo, 2%, e os juros de mora não devem ultrapassar o patamar de 1%  ao mês, sem prejuízo da correção monetária.

Contudo, na parte final, observa-se a expressão “desde que previstos em contrato” e, no plano fático, os contratos de assistência suplementar à saúde, a despeito de passarem previamente pelo crivo da ANS, em regra, não albergam disposições nesse sentido. Mesmo com esta disposição restritiva, os usuários devem se valer do microssistema consumerista, para que obtenham a proteção cabível e o equilíbrio contratual.

O principal objetivo da cientificação por inadimplência deverá ser a sua desconstituição, permitindo que o usuário possa saná-la, razão pela qual a forma e o prazo para a quitação do débito e a regularização da situação do contrato são elementos que devem estar explicitados de modo claro e preciso.

De acordo com o § 3º do multicitado artigo 4º da RN em análise,  a modalidade de pagamento oferecida deve ser, ao menos, a usualmente utilizada para a quitação das mensalidades, possibilitando que o débito seja eliminado, no mínimo, dez dias, a partir da notificação.

A ANS poderia avançar na proteção dos usuários, prevendo parcelamento dos montantes em atraso, evitando-se, assim, a suspensão e/ou rescisão contratual. Relembre-se a incidência do princípio da vulnerabilidade dos consumidores, sobretudo intensificado na seara das saúde suplementar.

Admite-se que, na notificação, sejam registradas outras informações, tais como a possibilidade de inscrição do devedor em cadastros restritivos de crédito e de cobrança da dívida. Será possível também  prever a imputação de novas contagens de carência e de cobertura parcial temporária, desde que sejam factíveis.

Ressalta-se que esta última regra contrapõe-se com a redação atribuída pelo inciso XVIII, do artigo 51 do CDC, instituído pela Lei n.º 14.181/2021, contribuindo para o superendividamento dos consumidores. Vedou-se a recontagem de carências após a purgação da mora com o intento de não gerar prejuízos para os destinatários finais de bens no mercado [8]. A ANS não pode estabelecer contra legem e prejudicial aos vulneráveis.

Meios de notificação e permissão para rescindir o contrato

A evolução do universo digital, nomeadamente após o período pandêmico, conduziu a autarquia reguladora do setor a admitir avançados meios para a efetivação do comunicado sobre inadimplência. As operadoras poderão optar pela notificação presencial, por via postal, mediante áudio e pelos meios informatizados.

A remessa de carta pressupõe o aviso de recebimento dos correios, mas, não será necessária a assinatura do beneficiário. Como se trata de situação que poderá acarretar o cancelamento contratual, caso o usuário não quite o montante em atraso, o mais correto e justo seria que fosse exigida a subscrição no  respectivo AR, harmonizando-se com o direito do consumidor à informação.

Concorda também a ANS que, de forma complementar, seja feita em área restrita da página institucional da operadora na Internet e/ou por meio de aplicativo para dispositivos móveis. São condições que não se congraçam com o direito do consumidor à informação, pois não colimam com o intento de o cientificar satisfatoriamente [9].

Esgotadas, de forma comprovada, as tentativas de notificação por todos os meios comentados nas linhas precedentes, após dez dias da última diligência, a operadora poderá suspender ou rescindir unilateralmente o contrato por inadimplência. Compete-lhe a demonstração inequívoca do exaurimento das diligências, para que não seja invalidado o ato em face do beneficiário.

Caso o consumidor indague acerca do montante devido, a empresa deverá esclarecê-lo  e conceder novo e idêntico lapus temporis para o pagamento do valor em aberto, se efetivamente houver. A negociação e o parcelamento do montante contam como possibilidades, mas o ideal seria que a autarquia reguladora garantisse tais diligências, com vistas a prevenir o cancelamento e/ou a suspensão.

A suspensão e a rescisão unilateral de contrato individual são condutas que constituem infrações tipificadas pelo artigo 106 da Resolução Normativa nº 489/22, sob pena de multa no importe de R$ 80 mil. De acordo com o artigo 17 da RN nº 593/23, o mencionado dispositivo passa a prever a dita penalidade também para a exclusão indevida de beneficiário de plano coletivo.

A ANS não aumentou a sanção pecuniária e não avançou para vedar o cancelamento arbitrário dos contratos coletivos, deixando de cumprir a sua missão a contento. Malgrado a RN nº 593 tenha sido editada em 19 de dezembro de 2023, somente iniciaria a sua vigência  em 1º de abril de 2024. No entanto, a RN nº 613/24 a postergou para 1º de dezembro de 2024.

Apesar das críticas tecidas, observa-se que este conjunto normativo poderá servir para refrear as práticas arbitrárias empreendidas pelas operadoras mediante a aplicação conjunta com o CDC e a efetiva fiscalização pelo Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.


[1] Fórum do Judiciário para a Saúde sugere medidas para reduzir judicialização. Conjur, Melhorias em Debate. 2 de abril de 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-02/forum-do-judiciario-para-a-saude-aprova-medidas-para-reducao-da-judicializacao/. Acesso em: 20 ago. 2024.

[2] GHERSI, Carlos Alberto; WEINGARTEN, Celia; IPPOLITO, Silvia C. Contrato de medicina prepaga. 2. ed. atual. e ampl. Buenos Aires: Astrea, 1999, p. 55.

[3]  BOTTESINI, Maury Ângelo.; MACHADO, Mauro Conti. Lei dos Planos e Seguros de Saúde. 3. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Gen Forense, 2017, p. 132-138.

[4] Cf.: STJ, AgInt. no AREs. 2133286/SP 2022/0152311-4, 4ª Turma, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, julgado em 15/05/2023, T DJe 18/05/2023. STJ, AgInt no AREs.: 2445180/PA 2023/0304171-0, 4ª Turma, Relator Ministro Raul Araújo, julgamento em 15/04/2024, DJe 18/04/2024.

[5] BAIRD, Marcello Fragano. Saúde em Jogo: atores e disputas de poder na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020, p. 50-60.

[6] STIGLER, G. J. The Citizen and the State: essay on regulation. Chicago: University of Chicago Press, 1975, p. 67-87.

[7] ERRANTE, Edward. Le droit anglo-américain des contrats/The Anglo-American Law of Contracts. 2e édition. Paris : LGDJ – Jupiter, 2001, p. 56; SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 69.

[8] MARQUES, Claudia Lima.; LIMA, Clarissa Costa de. Do Crédito Responsável: a prevenção ao Superendividamento do Consumidor: os novos paradigmas no crédito ao consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman; et al. Comentários à Lei 14.181/2021: A Atualização do CDC em Matéria de Superendividamento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 216 a 224.

[9]  Cf. :  RAYMOND, G. Droit de la consommation. 5. ed. Paris: Lexis Nexis S.A., 2019, p. 37-55.

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STF mantém leis de MT sobre servidores e substituição de conselheiros do TCE

O Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade de duas leis de Mato Grosso relacionadas à estrutura e ao funcionamento do Tribunal de Contas estadual.

Ministro Gilmar Mendes marcou audiência conciliação sobre disputa de terra indígena que se estende desde 2001
Gilmar Mendes validou alteração na nomenclatura do cargo sem mudança nas atribuições e nos requisitos de ingresso – Andressa Anholete/STF

A primeira transformou cargos no quadro permanente de servidores do órgão, e a segunda permite ao auditor substituto de conselheiro receber a mesma remuneração do titular durante a substituição.

Os temas eram objeto das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.615 e da 7.034, julgadas na sessão virtual concluída em 20 de setembro.

Transformação de cargos

Na ADI 6.615, o colegiado seguiu o voto do relator, ministro Gilmar Mendes, e considerou válida a transformação do cargo de técnico instrutivo e de controle em cargo de técnico de controle público externo do Tribunal de Contas de Mato Grosso, promovida pela Lei estadual 9.383/2010.

Segundo o relator, houve somente alteração na nomenclatura do cargo, sem mudança nas atribuições e nos requisitos de ingresso, que permanecem de nível superior. A remuneração também continuou a mesma.

Essas três condições, no seu entendimento, cumprem as exigências do artigo 37 da Constituição Federal em relação ao concurso público e se alinham à jurisprudência do STF.

Substituição de conselheiros

A ADI 7.034 também foi julgada improcedente. Nela, a PGR questionava a equiparação de subsídios e vantagens para os auditores do TCE-MT em caso de substituição dos conselheiros, prevista na Lei Complementar estadual 269/2007 e alterada pela Lei 439/2011.

O relator da ação, ministro Nunes Marques, explicou que, nos tribunais de contas estaduais, o auditor substituto ingressa no cargo especificamente para auxiliar os conselheiros e substituí-los em ausências e impedimentos por licença, férias ou outro afastamento legal ou nos casos de vacância do cargo.

Segundo Marques, as atribuições do auditor substituto são as mesmas dos conselheiros, quando no exercício da função, e diferentes das dos auditores comuns. Se eles têm a função de julgar contas públicas na ausência dos conselheiros, devem ser compensados financeiramente por isso, com base no princípio da isonomia remuneratória.

ADIs 6.615 e 7.034

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Decisões judiciais com perspectiva de gênero e política de cuidados

Política de cuidados

Os cuidados são compreendidos “como as atividades realizadas para o sustento da vida e para o bem-estar das pessoas, apresentem elas algum grau de dependência ou não. São um direito e uma necessidade inerente à vida humana. […] Trata-se de um bem público essencial para o funcionamento da sociedade, das famílias, das empresas e das economias e, portanto, vital para a sustentabilidade da vida humana” [1].

Sendo uma demanda de todos e todas, a responsabilidade pela provisão de cuidados deveria ser igualmente compartilhada, mas, o que se vê, é que uma intensa e injusta desigualdade na distribuição das responsabilidades e tarefas, sobrecarregando as mulheres, que exercem muitas vezes de forma exclusiva o trabalho de cuidado. Dada a importância do tema, em 05/07/2024, o Poder Executivo encaminhou, para o Congresso Nacional, o PL 2762/2024, que “Institui a Política Nacional de Cuidados” [2].

As mulheres, “em especial as mulheres negras, mais pobres e com menores rendimentos, assumem uma grande e intensa carga de atividades relacionadas aos cuidados, geralmente subvalorizadas e, em muitos casos, não remuneradas” [3].

Segundo os dados da Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios Contínua (Pnad-c) do IBGE, em 2022, as mulheres dedicavam, na média, 21,3 horas semanais ao trabalho doméstico e de cuidados não remunerado enquanto os homens dedicavam 11,7 horas.

A mesma pesquisa constata que, em 2021, 30% das mulheres em idade ativa e fora da força de trabalho não estavam procurando emprego devido às suas responsabilidades com filhos/as, outros parentes ou com os afazeres domésticos (entre as negras esse percentual sobe para 32%, enquanto para as brancas é de 26,7%). Entre os homens, esta proporção era de 2%.

A realidade acima descortinada que vivenciam as mulheres brasileiras foi levada em consideração nas razões que serviram de fundamento para as seis decisões com perspectiva de gênero que serão, suscintamente, apresentadas a seguir.

DECISÃO 1. A remissão da pena pela amamentação

Uma detenta teve o prazo para concessão de progressão do regime fechado para o semiaberto reduzido em dois meses devido à amamentação do filho recém-nascido. Isso porque a 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP reconheceu como trabalho este período cuidado com o bebê. Cada três dias de amamentação correspondeu a um dia de remição da pena.

A mulher já havia cumprido dois anos e oito meses em regime fechado. Durante esse tempo, deu à luz e amamentou o filho. A Defensoria Pública solicitou a remição da pena, com base na “economia do cuidado”, teve o pedido negado e recorreu ao TJ-SP.

De acordo com o relator desembargador Sérgio Mazina Martins, “não se trata de dizer aqui que se cuida de maior ou menor elasticidade da norma do artigo 126 da Lei 7.210/1984. É que o conceito de trabalho, na Modernidade, implica sim, e desde sempre, a ideia de atividade que universalize o indivíduo, resgatando-o da sua restrita singularidade e compondo-o em um cenário de compartilhamento. […] Portanto, e nesse sentido mais elevado, a amamentação é sim um trabalho materno que qualifica e dignifica a mulher, a exemplo de todas as outras atividades que, para mulheres e homens, se possam incluir no vasto repertório do artigo 126 da Lei 7.210/1984”.

O julgado encontra-se assim ementado:

“Agravo em execução. Remição. Economia do cuidado. Amamentação. O tempo em que a encarcerada esteve voltada à amamentação, dignificando o trabalho materno e universalizando sua condição de indivíduo e de mulher, comporta sim a remição da pena à luz do artigo 126 da Lei 7.210/1984.”

Dados do processo: TJ-SP; Agravo de Execução Penal 0000513-77.2024.8.26.0502.

DECISÃO 2. Concessão de aposentadoria rural por idade de mulher idosa de 91 anos

O benefício da aposentadoria rural havia sido negado administrativamente pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), mas a justiça mato-grossense entendeu que a mulher exerceu atividades domésticas e de cuidado em meio rural que foram fundamentais para a sobrevivência da família da idosa – enquanto o marido atuava como lavrador.

Os regramentos para aposentadoria de trabalhadores rurais, conforme determina a Constituição, também foram levados em consideração.

O processo tramita em segredo de justiça.

DECISÃO 3. Mulher de 62 anos recebe pensão alimentícia compensatória por ter dedicado quase quatro décadas de cuidado do lar e dependentes

Uma mulher de 63 anos receberá, do ex-marido, o pagamento de alimentos compensatórios. A decisão é do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, em concordância com decisão anterior da 2ª Vara Cível da Comarca de Bonito.

O casamento entre as partes aconteceu em 1980, com regime de comunhão parcial de bens, enquanto a separação deu-se no ano de 2023. Segundo os autos, a mulher se dedicou aos trabalhos de cuidados por mais de quatro décadas e, por conta disso, não possui fonte de renda própria e depende de auxílio financeiro do ex-marido.

Aos 62 anos e sem aposentadoria, a mulher teve direito ao valor de 6,5 salários-mínimos [4].

O processo tramita em segredo de justiça e teve o seu julgamento em 12/6/2024.

DECISÃO 4. Trabalho invisível de cuidado das mulheres é levado em consideração no momento da fixação de valor de pensão alimentícia

A 3ª Vara da Família e Sucessões do Foro Regional VII de Itaquera (SP), determinou que o pai deverá pagar alimentos para a filha, levando em conta, para a fixação do montante devido, a “divisão sexual do trabalho” — a atribuição de tarefas distintas entre homens e mulheres com base exclusiva no gênero de cada um.

De acordo com a magistrada, “Historicamente, em nossa sociedade, atribui-se aos homens o trabalho produtivo e remunerado, enquanto que, às mulheres, é relevado o trabalho interno denominado ‘economia de cuidado’, geralmente desvalorizado […]” [5].

O homem contestou o valor fixado, alegando que a mulher deveria também ser “obrigada” a sustentar a criança, mas a magistrada entendeu que ela já fazia isso por estar com a guarda da filha. A juíza, ao analisar tal alegação, asseverou que:

“Diante da assertiva do réu, de que a genitora da autora também é obrigada a sustentar a filha e a obrigação não é só dele, necessárias duas algumas anotações: a primeira é que a genitora do menor já contribui com o sustento da filha, pois a mantém sob sua guarda. A segunda é que ela exerce, com exclusividade, a chamada ‘economia de cuidado’. Esta última envolve muitas horas e tempo dedicado ao cuidado com a casa e com pessoas: dar banho e fazer comida, faxinar a casa, comprar os alimentos que serão consumidos, cuidar das roupas (lavar, estender e guardar), prevenir doenças com boa alimentação e higiene em casa e remediar quando alguém fica ou está doente, fazer café da manhã, almoço, lanches e jantar para os filhos, educar e segue por horas a fio. A economia do cuidado é essencial para a humanidade. Todos nós precisamos de cuidados para existir. Embora tais tarefas não sejam precificadas, geram um custo físico, profissional, psíquico e patrimonial de quem os exerce. No caso in comento, como já dito, é a genitora do menor quem arca com todas estas tarefas e referida contribuição não pode ser menoscabada.” Dados do processo: TJ-SP – 1018311-98.2023.8.26.0007, rel. Felícia Jacob Valente. Data do julgamento: 8/1/2024 [6].

DECISÃO 5. Pensão alimentícia é ajustada para mãe e três filhos para se considerar e validar a importância do trabalho de cuidado não remunerado realizado pela mulher

O Tribunal de Justiça do Paraná reconheceu o trabalho de cuidado não remunerado de uma mulher mãe para com três filhos em idade escolar, refletindo no cálculo da pensão alimentícia.

O relator, o desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi, levou em consideração a Constituição Cidadã — artigo 226, §7° —, que trata da proteção da família por parte do Estado, e do princípio da parentalidade.

De acordo com o seu entendimento, o princípio está relacionado ao reconhecimento dos trabalhos diários para a educação de uma criança e adolescente. Assim, torna-se necessária a superação da desigualdade de gênero, uma vez que a mulher exerce atribuições diárias para o cuidado — limpeza de casa, preparo de alimentos para os filhos etc.

A decisão também considerou a hipossuficiência financeira da mulher. Anteriormente, o valor dos alimentos provisórios correspondia a 50% do salário-mínimo. Agora, reajustado, será de 33% dos rendimentos mensais líquidos do pai.

Dados do processo: TJ-PR – 0013506-22.2023.8.16.0000 – Alimentos – relator: Eduardo Augusto Salomão Cambi, 12ª Câmara Cível. Data do julgamento: 2/9/2024. 

DECISÃO 6. Cadastro de mulheres vítimas do desastre da Rio Doce (2015) serão revistos para incluir benefícios

A Fundação Renova deverá revisar o cadastro de todas as mulheres atingidas pelo desastre do Rio Doce — rompimento da barragem da Samarco, em novembro de 2015. O motivo? Garantir o acesso ao Auxílio Financeiro Emergencial (AFE), ao Programa de Indenização Mediada (PIM) e ao Sistema Indenizatório Simplificado (Novel).

A decisão judicial atende ao pedido feito pela Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES), por meio do Núcleo de Desastres e Grandes Empreendimentos. A concessão do benefício foi definida como urgente pela 4ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte [7]. De acordo com o magistrado, “Como se trata de violação a direitos humanos, há urgência para a concessão da tutela pretendida, pois o tratamento dispensado pela Renova às mulheres ofende a sua própria condição de pessoa do sexo feminino” [8].

Para a DPES, relatórios técnicos e outros documentos, produzidos desde o desastre, mostram que “as mulheres enfrentam grandes dificuldades para serem reconhecidas” e a empresa “adotou um cadastro estático, ilegal e inconstitucional, violando os direitos das mulheres atingidas” [9]. Além disso, pontua: homens foram reconhecidos como pescadores profissionais pela Renova, sendo que as mulheres também exerciam essa atividade.

Dados do processo4ª Vara Federal Cível de Belo Horizonte, Ação Civil Pública 6029634-39.2024.4.06.3800/MG [10].

A importância da perspectiva de gênero nas decisões judiciais

A pesquisa “A cara da democracia”, do Instituto da Democracia (IDDC-INCT) com financiamento do CNPq, Capes e Fapemig [11] questionou aos/às entrevistados/as a definição de feminismo. Do total, 42% disseram que é a luta das mulheres por direitos, enquanto 32% afirmaram ser um movimento para igualdade entre homens e mulheres.

E essa igualdade — há tanto tempo buscada pelo feminismo — deve ser encontrada também dentro dos lares. Mulheres dedicam quase o dobro do tempo que homens aos afazeres domésticos e/ou cuidados de pessoas. É o que mostra a Pnad Contínua – Outras formas de trabalho, uma pesquisa do IBGE feita a partir de entrevistas com pessoas acima dos 14 anos.

Quando há recorte por raça, os números assustam ainda mais: mulheres pretas (38%) são as que mais cuidam de outras pessoas, seguidas por mulheres pardas (36,1%) [12].

Isso reflete significativamente em oportunidades de educação, carreira e bem-estar, que passam a ser afetadas pelo tempo direcionado ao lar e aos cuidados de outras pessoas.

Tais relatos nos mostram a disparidade gigantesca nas divisões de trabalho doméstico e de cuidados, situação que foi levada em consideração nas seis decisões judiciais acima analisadas, e que foram selecionadas com o intuito de (1) mostrar o quanto pode ser inovador, equilibrado e justo um julgamento que leve em consideração as condições específicas das mulheres e (2) levar à compreensão acerca da carga de prejuízo ao gênero feminino trazida pelos papeis que lhes são atribuídos.

Como bem esclarece o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (CNJ, Resolução 492/23), “diariamente, nota-se que a sociedade impõe papéis diferentes a homens e mulheres. Mas o conceito de gênero permite ir além, expondo como essas diferenças são muitas vezes reprodutoras de hierarquias sociais. Isso porque, em muitos casos, aos homens são atribuídos características e papéis mais valorizados, enquanto às mulheres são atribuídos papéis e características menos valorizados, o que tem impactos importantes na forma como as relações sociais desiguais se estruturam” [13].

As decisões analisadas reconheceram e nomearam as violências, injustiças, preconceitos, discriminações, estereótipos de gênero, opressões, sofrimentos e subalternidades que se associam à condição feminina, e buscaram alterar esse brutal quadro que as mulheres brasileiras vivenciam.

Não se trata de estabelecer benefícios para mulheres, mas de, por meio do Poder Judiciário, evitar ou minimizar os prejuízos decorrentes dos papéis sociais (desvalorizados) que persistem em ser atribuídos ao gênero feminino.


[1] Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

[2] O inteiro teor pode ser consultado em:

[3] Disponível em: https://mds.gov.br/webarquivos/MDS/7_Orgaos/SNCF_Secretaria_Nacional_da_Politica_de_Cuidados_e_Familia/Arquivos/Cartilha/Cartilha.pdf

[4] As informações foram retiradas de: https://ibdfam.org.br/noticias/11576/TJMS+mant%C3%A9m+alimentos+compensat%C3%B3rios+%C3%A0+idosa%2C+em+decis%C3%A3o+que+considerou+Protocolo+para+Julgamento+com+Perspectiva+de+G%C3%AAnero.

[5] Inteiro teor disponível em: https://drive.google.com/file/d/1aemzF8jLC3-uuYBaYpGe7Ay1KKzFU8Wl/view?usp=sharing

[6] Disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/1018311-98_2023_8_26_0007-3%20(1).pdf

[7] Saiba mais: https://www.defensoria.es.def.br/justica-reconhece-discriminacao-de-genero-cometida-no-desastre-da-samarco/

[8] Disponível em: https://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/2024/caso-samarco/JFACPMPFCasoSamarcodecisaoFundacaoRenovadiscriminacaogenero.pdf/@@download/file/JF-ACP-MPF-Caso-Samarco-decisao-Fundacao-Renova-discriminacao-genero.pdf

[9] Um desses importantes documentos é representado pelo RELATÓRIO PRELIMINAR SOBRE A SITUAÇÃO DA MULHER ATINGIDA PELO DESASTRE DO RIO DOCE NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, de 2018, disponível em: https://www.defensoria.es.def.br/wp-content/uploads/2016/10/Relato%CC%81rio-questao-de-genero-5-de-nov-de-2018-2.pdf

[10] Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/programa/levantamento-cadastro-dos-impactados/

[11] Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2023/09/enquanto-partidos-tentam-mudar-a-lei-90percent-dos-brasileiros-defendem-equilibrio-entre-homens-e-mulheres-no-congresso.ghtml?fbclid=IwAR0nex4LlKj6eeGVGZlra4rovLqPxIfbreyhluqOzhYvnIZPnvyYwfzfclk

[12] Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/refens-da-vida-domestica/?fbclid=IwAR2KcsUSa65V4rPspc-iLFeCY_PK31B_ufV7hhGZ-TkFkUx02NcJyGfHwFo

[13] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf, p. 17.

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Execução por condomínio exige convenção ou ata de assembleia do período cobrado

A liquidez do título executivo referente a taxas de condomínio não pagas é presumível quando houver a juntada da convenção de condomínio ou da ata de assembleia do período cobrado. Sem elas, não há título executivo.

condomínio residencial
Condômino alegou haver irregularidades de demonstrativo da dívida, o que foi acatado – Freepik

Com esse entendimento, a juíza Maria Luiza de Almeida Torres Vilhena, da 2ª Vara Cível da Comarca de Praia Grande (SP), extinguiu um processo, sem análise do mérito, de um condomínio contra um condômino por carência da ação executiva.

Demonstrativo da dívida

O condômino alegou haver irregularidades de demonstrativo da dívida, o que tornava nulo o próprio título. A execução foi instruída, exclusivamente, com uma ata de julho de 2018 sem especificar valores ratificados em assembleia. Quanto às taxas de 2019 e 2020, não foram juntadas atas ou outros documentos probatórios.

“Ora, sem as atas que instituíram as taxas, ordinárias ou extraordinárias, sem possibilidade de interpretação contrario legis, não há exequibilidade do crédito condominial”, escreveu a juíza.

“Um credor munido apenas de convenção, de atas sem valor das taxas aprovadas e meros boletos, por ele mesmo emitidos, unilateralmente, não pode valer-se diretamente da via executiva, devendo obter declaração do seu crédito em uma ação de cobrança, se caso for”, acrescentou ainda a magistrada.

Atuou na causa o escritório Maschio & Pionório.

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Processo 1003969-35.2020.8.26.0477

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Falta de habilitação não configura agravamento de risco de acidente de trânsito

A ausência de habilitação por um condutor não configura, por si só, agravamento do risco de um eventual acidente de trânsito, mas mero ilícito administrativo.

moto motocicleta
Relatora do caso disse ser necessário comprovar que conduta contribuiu para o acidente – Freepik

Com esse entendimento, a 10ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais reformou sentença para determinar que dois envolvidos em um acidente de trânsito sejam indenizados.

Comprovação sobre conduta

Ambos trafegavam em uma mesma motocicleta quando foram atingidos em um cruzamento de uma área urbana por uma caminhonete.

O motorista do veículo maior alegou, entre outras coisas, que era presumida a falta de conhecimento das normas de trânsito pelo condutor da moto, uma vez que ele não tinha carteira nacional de habilitação (CNH).

A desembargadora Jaqueline Calábria Albuquerque, relatora do caso, destacou, contudo, ser necessário comprovar que a conduta do motociclista foi determinante para o acidente, o que não se sustenta pela mera falta de CNH.

De todo modo, a magistrada reconheceu que ambos os condutores contribuíram, de forma concorrente, para o evento danoso: o motociclista dirigia em uma velocidade inadequada para o cruzamento, e o motorista da caminhonete realizou uma conversão de maneira imprudente, colocando a outra parte em risco.

Análise das indenizações

Por conta disso, a relatora pontuou que seria levado em conta o grau de culpa dos litigantes na análise das indenizações pelo dano moral sofrido pelos ocupantes da motocicleta, evidenciado pelas fraturas que tiveram.

Assim, o passageiro que estava na garupa da moto deverá ser indenizado em R$ 15 mil. Já o condutor dela, que contribuiu de maneira determinante para o acidente, teve o valor reduzido em 50%, para R$ 7,5 mil.

Devido ao condutor da caminhonete ter falecido no curso do processo, a condenação se estendeu à única herdeira dele, a filha. Ela também terá de arcar com metade das custas e os honorários advocatícios fixados em 15%.

Atuou na causa a advogada Vanessa Andreasi Bonetti.

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Processo 1.0000.24.213749-5/001

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Exigência de exame de gravidez no ato da demissão é conduta discriminatória?

É sabido que a empregada gestante possui estabilidade provisória desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, conforme previsto no artigo 10, II, “b”, do ADCT. O que poucos talvez saibam é que essa garantia não visa proteger a gestante, mas assegurar ao nascituro que, a sua mãe tenha uma gravidez tranquila, com condições adequadas de prover os alimentos essenciais para o desenvolvimento do feto.

Diante deste cenário, foram criadas diversas normas para resguardar essa garantia, evitando que a mulher gestante e o feto sofram restrições a seus direitos.

O artigo 373-A, IV, da CLT é um exemplo claro dessa proteção, vedando que as empresas exijam exames de gravidez no momento da contratação e nos exames periódicos durante o emprego. O artigo dispõe:

“Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado: IV – exigir atestado ou exame, de qualquer natureza, para comprovação de esterilidade ou gravidez, na admissão ou permanência no emprego;”

Essa é, portanto, uma vedação expressa. Assim, salvo se a empresa tiver uma justificativa legal, exigir a comprovação do estado de gravidez, seja no ato da contratação, seja durante o contrato de trabalho, é uma prática proibida. A inobservância dessa norma pode sujeitar a empresa à indenização por danos morais.

Justificativa legal para a exigência de exame de gravidez

Um exemplo em que a exigência pode ser justificada é a contratação para trabalho em ambiente insalubre, onde o exame visa salvaguardar a saúde do feto. No entanto, é necessário lembrar que a reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) permitiu que gestantes desempenhassem atividades insalubres em grau médio ou mínimo, assim como lactantes, salvo quando apresentassem atestado médico recomendando o afastamento. Esse entendimento vigorou até maio de 2019, quando o STF, ao julgar a ADI 5.938, declarou a norma inconstitucional.

Segundo o STF, condicionar o afastamento da gestante de ambiente insalubre à recomendação médica fere os direitos fundamentais da gestante e do bebê. Prevalece, assim, o entendimento de que gestantes e lactantes não podem exercer atividades em ambientes insalubres em qualquer grau.

Exigência de exame de gravidez durante o contrato de trabalho: crime

Além da vedação na CLT, a exigência de exames de gravidez durante o curso do contrato de trabalho também é tipificada como crime pela Lei 9.029/1995. Conforme o artigo 2º, I, da referida lei: “Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias: I – a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez; Pena: detenção de um a dois anos e multa”.

Exame de gravidez no ato da demissão: permitido?

A legislação trabalhista não prevê expressamente a proibição de exigir exame de gravidez no ato da demissão. Em 2021, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidiu que a exigência de exame de gravidez no momento da demissão não é considerada uma conduta discriminatória, tampouco viola a intimidade da trabalhadora.

O caso julgado pelo TST envolvia uma empregada que, ao ser demitida, foi surpreendida pela exigência do exame de gravidez. Ela alegou discriminação, argumentando que, caso fosse constatada a gravidez, sua demissão não seria formalizada. O pedido de indenização por danos morais foi negado em primeira e segunda instâncias, e o TST manteve as decisões anteriores, entendendo que a exigência visava garantir segurança jurídica ao término do contrato de trabalho (Processo nº RR-61-04.2017.5.11.0010, DEJT 18/06/2021).

Conforme o ministro relator Alexandre Agra Belmonte, “a exigência do exame demissional visa dar segurança jurídica ao término do contrato de trabalho, pois, em caso de gravidez, o empregador, ciente da estabilidade, poderá mantê-la no emprego ou indenizá-la previamente, evitando a judicialização da questão”.

Inclusive, é prudente que as empresas adotem essa prática como medida preventiva. Isso porque, em diversas ações trabalhistas, é comum que gestantes, ao buscarem a Justiça, não desejem a reintegração, mas apenas a indenização substitutiva do período de estabilidade.

Consequências ao não adotar a prática

Caso o exame de gravidez não seja solicitado no ato da demissão e a trabalhadora esteja grávida, o empregador poderá ser obrigado a pagar todos os salários do período de estabilidade, mesmo que tenha oferecido a reintegração. Nesse sentido, o TST tem jurisprudência consolidada no entendimento de que a recusa à proposta de reintegração não configura renúncia ao direito de indenização substitutiva.

Divergências nos tribunais

Embora a prática de solicitar exame de gravidez no ato da demissão tenha respaldo em decisões judiciais, como no caso do TST mencionado, o tema ainda não é consolidado. Há decisões, inclusive, que consideram a exigência abusiva, por entender que viola a intimidade da trabalhadora. Todavia, esse entendimento não está expressamente previsto na legislação trabalhista, que veda apenas a prática no momento da admissão e durante o contrato de trabalho.

Conclusão

Apesar da controvérsia existente em torno da exigência de exame de gravidez no ato da demissão, a prática encontra respaldo em decisões judiciais e pode ser vista como uma medida preventiva para evitar litígios trabalhistas futuros. Contudo, as empresas devem estar cientes de que o tema ainda é passível de discussão, especialmente a depender das particularidades de cada caso.

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