Dos graves riscos no julgamento do Tema 1.389 contra a Justiça do Trabalho

Inicie-se pelo começo, como sugere o coelho da Alice (no País das Maravilhas): a competência da Justiça do Trabalho foi ampliada em 2004 (Emenda 45) e o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal exercitaram-se com afinco para reduzi-la, reescrevendo a Constituição.

A nova redação da Carta Política afastou a regra anterior de limitar a apreciação das causas entre empregado e empregador, para abranger as lides decorrentes da relação de trabalho (gênero de que emprego é espécie), como se extrai da ementa, em que a matéria securitária está sob competência trabalhista:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA TRABALHO – SEGURO DE VIDA EM GRUPO CONTRATADO PELO EMPREGADOR – De acordo com o disposto no artigo 114, I, da Constituição Federal, à luz da nova redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, cabe a esta Justiça Especializada dirimir os conflitos oriundos das relações de trabalho. Tratando a lide acerca de contrato de seguro de vida decorrente da relação de trabalho, há de ser reconhecida a competência da Justiça do Trabalho. Agravo de instrumento a que se nega provimento.” (TST – AIRR-95-73.2011.5.05.0133 – 7ª T – rel. min. Cláudio Brandão – Publ. 17.10.2014)

Ou essa, no âmbito do STJ, tribunal encarregado de resolver os conflitos de competência entre ramos diferentes do Judiciário, que reconhece correta a competência trabalhista para execução de acordo extrajudicial firmado depois do fim do contrato de emprego:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA DO TRABALHO. JUSTIÇA COMUM. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO MOVIDA POR EX-EMPREGADO EM FACE DO EX-EMPREGADOR. DANOS MATERIAIS E MORAIS. INADIMPLEMENTO DE ACORDO EXTRAJUDICIAL. PAGAMENTO DE VERBAS RESCISÓRIAS. CAUSA DE PEDIR. LIGAÇÃO COM A RELAÇÃO DE TRABALHO ANTERIORMENTE ESTABELECIDA ENTRE AS PARTES. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO. 1. O autor busca indenização por danos materiais e morais em decorrência do inadimplemento patronal de acordo extrajudicial estabelecido para o pagamento das verbas trabalhistas devidas em virtude do rompimento da relação de trabalho. A causa de pedir remete diretamente ao cumprimento de obrigações que emergem da relação de trabalho. 2. Para a definição da competência material para o julgamento da lide em tela, é desimportante que o crédito perseguido esteja contido em acordo extrajudicial, e não em sentença trabalhista condenatória, pois esse fato, por si só, não tem o condão de elidir a especial natureza laboral. 3. Solução diversa permitiria ao empregador, em casos como esse, modificar, a seu talante, a natureza das quantias devidas, de trabalhista para civil, bem como a própria competência para julgar a lide, matéria de ordem pública, bastando que estabeleça acordo extrajudicial com seu ex-empregado e não o satisfaça. 4. Outrossim, os danos morais reclamados também emergem da mesma fonte, o suposto” engodo “cometido pelo ex-empregador ao se esquivar do pagamento, ainda que não pecuniário, das verbas trabalhistas rescisórias, objeto do acordo extrajudicial.
5. Conflito conhecido para declarar competente a Justiça do Trabalho. (CC 158.231/PR, rel. ministro Lázaro Guimarães (desembargador convocado do TRF 5ª Região), 2ª Seção, julgado em 8/8/2018, DJe 13/8/2018)”

O absurdo do intento chegou ao ponto de reservar a competência material conforme o nome do direito postulado, o que promove a desventura de um empregado “celetista” de empresa pública, se não receber seus direitos, reclamar em dois ramos diferentes do Judiciário (Tema 1.143).

Surge o Tema 1.389

Essa maratona de desmonte do Poder Judiciário Trabalhista tem viés obviamente ideológico, como se depreende dos debates no STF, a partir da premissa de que a Constituição não elegeu um modo de organização da produção, o que é falso, porque ela elegeu como objetivo da República e do sistema econômico o pleno emprego, não a plena ocupação, nem a plena “pejotização”. O emprego é a única forma de organização do trabalho que tem regulamentação constitucional.

Nesse ambiente pujante de destruição dos direitos das pessoas que, nada mais possuindo, vendem sua força de trabalho para subsistir, encaixando-se na atividade empresária de outras, surge o Tema 1.389, relatado pelo ministro, ao qual o tribunal reconheceu repercussão geral para debater a competência de apreciação das miríades de processos em que o empregado é travestido, por fraude, nisso que, de palavrão, virou “meio de organização da força de trabalho”, a “pejotização”.

Essa fraude escancarada — que não se confunde com a contratação de pessoas jurídicas, o que pode ser lícito — mascara o vínculo de emprego, retirando direitos e criando uma narrativa sedutora de que o trabalhador vira empresário de si próprio.

Ao propor o debate, o Tema 1.389 provoca três gravíssimas violação ao Direito e, de novo, tende a esvaziar garantias sociais fundamentais, que têm assento naquela Constituição que ele, STF, tem o dever-poder de proteger.

O primeiro: inverte a lógica processual histórica de que a competência é fixada pelo pedido e pela causa de pedir, não pela defesa.

Se o autor diz que foi empregado e pede direitos trabalhistas, não importam os termos da defesa, pois será da Justiça do Trabalho a competência, nos termos literais do artigo 114, da Carta, para dirimir a controvérsia. Não confirmada a alegação inicial, o pedido será rejeitado, julgado improcedente.

Elevar essa premissa ao absurdo, teríamos que mandar para a justiça de família, os processos em cujas defesas aparecesse a alegação de que os contratantes são familiares. Ou para a justiça criminal, se a defesa cogitar da acusação de que o trabalhador cometeu fato tipificado pelo código penal. Ou para o juiz da falência, se a defesa disser que a empresa não pôde pagar, porque anda em dificuldades financeiras.

Falar isso em voz alta enrubesce, porque todo aluno de Direito que já tenha passado pelo primeiro semestre da teoria geral do processo civil conhece a regra que está sob esse debate artificial.

O segundo: retira, como atestado do amplo preconceito que o Judiciário Trabalhista sofre por parte dos integrantes da atual conformação do STF — confessados em sessão pública e televisionada [1], mais de uma vez — o poder de decidir questões incidentais.

A competência material diz respeito à matéria de fundo: crime, família, falência, trabalho etc. No percurso da demanda, podem aparecer questões transitórias, incidentais, que, obviamente, o juiz precisa resolver, para chegar ao ponto final do litígio em tempo razoável.

Chama-se isso, na pedante linguagem do foro, de decisão incidenter tantum. Ela está sob a competência do juiz e se resolve apenas dentro daquele processo, sem efeitos definitivos (coisa julgada) para outras relações.

Tome-se esse primeiro exemplo: na defesa de uma execução fiscal, o executado oferece um contrato que o isentaria da responsabilidade de pagar o tributo. A Fazenda, exequente, alega que o contrato é simulado, portanto, inválido. Ninguém imagina que a essa altura, o processo saia da justiça em que corre (federal, se o imposto for da União) e vá à justiça comum estadual, para que o juiz generalista analise o contrato e diga se há ou não fraude, para, depois, retomar-se a execução fiscal.

Outra hipótese pode revelar-se na solução de sucessão processual decorrente da morte da parte no processo. Para dizer quem substitui o falecido, o juiz, de qualquer ramo, apreciará a questão a partir das regras do direito de sucessão, ligados, como matéria de fundo, às varas da família. Em estado de sobriedade, ninguém dirá que para decidir essa questão incidental, o juiz da causa comercial, por exemplo, mande o processo ao juiz de família, para que ele diga quem é o sucessor, e, depois, o processo retome seu andamento natural.

Note-se que não há debate na jurisprudência sobre o tema, como se reconhece a partir da ementa do Superior Tribunal de Justiça, no qual a trabalhadora fora posta como sócia formal da empresa empregadora e, na Justiça do Trabalho, reclamou contra a fraude:

“AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. OMISSÃO. EXISTÊNCIA. PEDIDO DE NULIDADE DE ATOS CONSTITUTIVOS DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA FALIDA. QUESTÃO INCIDENTAL NA RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. EFEITOS RESTRITOS ÀS PARTES. PEDIDO PRINCIPAL. RECONHECIMENTO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO COM O PAGAMENTO DAS VERBAS DAÍ DECORRENTES. 1. Constata-se omissão na espécie, porquanto a decisão agravada somente se atém aos aspectos e pedidos de índole tipicamente trabalhista trazidos com a inicial da ação originária, deixando de se manifestar sobre a repercussão do pleito relativo à nulidade dos atos constitutivos da sociedade empresária demandada na definição da competência para o julgamento do feito. 2. Embora se possa alegar que, normalmente, a nulidade dos atos constitutivos de sociedade empresária configura matéria que escapa ao alcance da jurisdição especializada (CF, artigo 114tal não prevalece no presente caso. 3. É que compete à Justiça laboral as ações oriundas da relação de trabalho, sendo, assim, competente para declarar se alguém ostenta a qualidade de empregado de outrem, inserindo-se nas disposições dos arts.  a  da Consolidação das Leis do Trabalho. E, na hipótese, a autora maneja a ação de reclamação trabalhista, afirmando que sua condição formal de sócia da reclamada, constante dos atos constitutivos da empresa, caracterizaria uma simulação, concebida para disfarçar sua real situação de mera empregada daquela, burlando a legislação trabalhista. 4. O pedido de nulidade dos atos constitutivos da falida é decorrente do pleito principal de reconhecimento de vínculo empregatício. Nesse contexto, a declaração incidental acerca do ponto, restrita às partes que compõem a ação trabalhista, está abrangida na competência da Justiça do Trabalho. 5. A lide, assim, também por esse aspecto, tem prevalente caráter obreiro, sob pena de restar prejudicada a própria análise do pedido principal, constante da reclamação trabalhista, por decisão a ser tomada em processo outro, perante a Justiça comum. 6. Agravo regimental parcialmente provido, apenas para suprir a omissão apontada, sem efeito infringente quanto ao mérito do conflito de competência. (sem negritos no original) (AgRg nos EDcl no CC 106.660/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, unânime, DJe de 21.3.2011)”

O terceiro: se passar o intento, a vítima da “pejotização” terá que ajuizar sua causa na Justiça Estadual Comum, que tem prazos de tramitação dos processos muito mais longos do que os que se encontram na Justiça do Trabalho, para anulação do contrato e, depois, sabe-se lá de quantos anos, reapresentar o pedido na Justiça do Trabalho, para obter direitos ‘estritamente trabalhistas’.

Sobrecarga inútil da máquina judiciária, quebra do princípio constitucional da duração razoável do processo e evidente desestímulo à busca da Justiça. Os gastos com o serviço público de justiça avultam-se inequívocos, também.

Não é difícil entender que a fraude da “pejotização” emerge da constatação de que a relação foi de trabalho subordinado. Dito de outra forma: ao reconhecer que a realidade da contratação mostra que as partes executaram um contrato de emprego (trabalho subordinado), é que a sentença dirá, de passagem, que o contrato de prestação de serviços autônomos deve ser considerado (naqueles autos) nulo. A tendência do STF está apontando, então, para o paradoxo de entregar ao juiz generalista – cuja competência é residual, quer dizer, o que não está atribuído expressamente a outro ramo da Justiça, é que lhe cabe, identificar a matéria especializada, de saber se há ou não contrato de trabalho.

Ayres Britto, constitucionalista, ensina que a Constituição não pode tudo, porque não pode deixar de ser Constituição. Ao moldar o Texto ao bel prazer das ideologias pessoais, sem legitimação política para tanto, as decisões do STF estão a tornar a Constituição uma não constituição. Corrosão interna dos valores ali fixados, sobre todos o social do trabalho (e da livre iniciativa) e da dignidade da pessoa humana.

Nesse debate, não há nada pouco grave, porque está em jogo o modelo constitucional de organização do trabalho da ordem capitalista brasileira, sob o risco de ser reformado sem debate com a sociedade e eliminando a participação do Poder Legislativo.


[1] Como se apura, por exemplo, na manifestação do ministro Gilmar Mendes: “Por ocasião do Jul. em da ADPF 324, apontei que o órgão máximo da justiça especializada (TST) tem colocado sérios entraves a opções políticas chanceladas pelo Executivo e pelo Legislativo. Ao fim e ao cabo, a engenharia social que a Justiça do Trabalho tem pretendido realizar não passa de uma tentativa inócua de frustrar a evolução dos meios de produção, os quais têm sido acompanhados por evoluções legislativas nessa matéria”. (Reclamação – RCL 57.255/BA. DJE publicado em 11/09/2023.

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Cade e Doutrina da Ação Política: curioso caso dos conselhos profissionais

Conselho Administrativo de Defesa Econômica Cade sede prédio

Foi pautado para esta quarta-feira (14/5), na 247ª Sessão Ordinária de Julgamento do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), o julgamento de três casos envolvendo conselhos profissionais que, em 2019, emitiram resoluções contra o registro do diploma de graduados na modalidade “a distância”.

As resoluções foram declaradas nulas pelo Judiciário por violação à liberdade profissional e à legislação sobre educação, que expressamente incumbe ao MEC a competência sobre a formação escolar [1].

Segundo a Superintendência-Geral do Cade, os conselhos federais de medicina veterinária (CFMV), odontologia (CFO) e farmácia (CFF) teriam, com as normativas, também limitado a concorrência em dois tipos de mercado relevantes: o de cursos de graduação EaD e os de serviço relativos a cada umas das áreas.

Com base em renitente jurisprudência, que inclui sobretudo casos de tabelamento impositivo de preços, a tendência do Cade é condenar os conselhos por infração à ordem econômica decorrente de abuso de poder regulamentar [2].

Há, todavia, algo de novo no ar: está pendente de julgamento o caso OAB por tabelamento de honorários mínimos [3].

Se no caso EaD a Procuradoria-Geral do Cade recomenda a condenação dos conselhos profissionais, no caso OAB ela opina pelo arquivamento do feito com base na Doutrina da Ação Política (State Action Doctrine).

Isso pode predispor o Conselho a antecipar algum aclaramento sobre referida doutrina, que é igualmente arraigada na jurisprudência do Cade, em dois pontos relacionados: a) a extensão do artigo 31 LDC; e b) o distinguishing entre entes reguladores e conselhos.

Extensão do artigo 31 LDC

Segundo o dispositivo, que repete o artigo 15 da LDC de 94, a lei aplica-se também às pessoas jurídicas de direito público.

Uma vez que elas agem mediante atos normativos estatais, sua punibilidade implica possuir o Cade competência para controle de legalidade sob alguma forma.

Suas instâncias típicas são ações maliciosas, como e.g. a autarquia que mediante ato executório participa de cartel ou agência reguladora que favorece o corruptor com uma resolução normativa.

A dificuldade aparece quando estamos diante de ato regulamentar próprio, isto é, não dissimulado, no qual o dano à concorrência é resultado da priorização, com boa-fé, de outro princípio da ordem econômica.

Para o constitucionalista, a resposta mais natural seria negar ao Cade o controle de legalidade na hipótese, em analogia ao precedente fixado na ADI 221, que veda aos órgãos do Poder Executivo deixar de aplicar a lei inconstitucional, salvo, excepcionalmente, quando assim determinado pela chefia [4].

Sua justificativa parece clara: a autonomia interpretativa dos órgãos subordinados balcanizaria a política pública levada a cabo pelo mandatário, levando a disputas entre os órgãos que se traduziriam em comandos contraditórios aos administrados [5].

A resposta mais natural ao concorrencialista é nuançada: deve o Cade eximir o ato do Poder Público prejudicial à concorrencial se propriamente regulatório, isto é, se satisfizer os critérios da Doutrina da Ação Política [6].

Essa opção, que é a esposada pelo Cade até aqui, tem o mérito de respeitar a hierarquia móvel dos princípios da ordem econômica, mas traz o revés de permitir os resultados contraditórios que o constitucionalista quer evitar — vide o ocorrido em THC2 [7].

A resolução do caso pelo STJ concluiu pela competência do Cade para controle de legalidade das resoluções da Antaq, sem, contudo, tocar a dificuldade acima [8].

Uma alternativa estreita talvez se encontre na brecha aberta pelo STF ao revisitar sua jurisprudência, permitindo o afastamento de normas patentemente inconstitucionais – ou ilegais, em nossa analogia [9].

Outra seria recorrer à atuação integrativa da AGU, seja por uma conciliação via CCAF, seja por uma resolução via parecer normativo [10].

Distinguishing entre entes reguladores e conselhos profissionais

Como antecipado, o debate acima foi até aqui alheio aos conselhos profissionais, já que o Cade não os equipara às agências reguladoras, mas aos sindicatos — embora as razões para tanto não sejam claras, como evidencia o caso OAB.

Considerando os termos da Doutrina da Ação Política, a tese do Cade deve fundar-se numa disjunção: ou os conselhos não são propriamente poder público ou seus atos não são propriamente regulatórios.

Quanto à subtese estrutural, embora ambos sejam autarquias de direito público, criadas por lei e submetidas a regime jurídico especial que as torna sui generis, os conselhos são ainda menos sujeitos a controle do que as agências, o que lhes valeu a alcunha (infeliz) de “autarquias não-estatais” [11].

Isso significa, entre outras coisas, que a solução integrativa envolvendo a AGU não estaria disponível.

Quanto à subtese funcional, parece claro que ambos se orientam, via de regra, à correção de falhas de mercado, mediante atividade fiscalizatória e regulatória.

A ProCade diverge no ponto: no aludido parecer, defende que a OAB é o único conselho ao qual a lei expressamente usou o termo ‘regulamentar’ entre suas atribuições [12].

Nota-se, todavia, que a legislação dos demais conselhos prevê a expedição de resoluções para sua fiel interpretação e execução das atribuições institucionais – o que nada mais é do que uma forma de regulamentação [13].

Mais promissora para a disanalogia visada é a constatação de que os conselhos nem sempre agem em prol da coletividade, encampando também interesses classistas – vide a OAB.

Embora essas considerações justifiquem escrutínio concorrencial mais intenso de tais entes, segue em aberto se excluem, in abstracto, os conselhos da Doutrina da Ação Política, ou se esse escrutínio deve ser feito originariamente pelo Cade.

A experiência internacional, salvo melhor juízo, é, de um lado, infensa a eximir os conselhos, mas de outro, centralizada no Judiciário [14].

Seja como for, é um debate que merece ser desenvolvido.

* A opinião que ora veiculo surgiu ainda no Cade, em contato com casos relacionados. Toda informação utilizada para o artigo é de fonte pública; a opinião não representa a opinião do conselho sobre o tema, que o autor desconhece.

Agradeço a José Levi do Amaral Jr., Matheus Carneiro, Victor Fernandes, Vitor Jardim, Eduarda Militz e Bruno Renzetti pelos debates sobre o tema.


[1]  Os julgados seguem o precedente fixado no REsp 1.453.336/RS.

[2]  Cf., por todos, a Nota Técnica SG 42 no PA 08700.006146/2019-00, o primeiro caso autuado.

[3]  Nota Técnica 102/2022 no PA 08012.006641/2005-63.

[4] ADI-MC-221 DF, Rel. Min. Moreira Alves, 1990.

[5] Embora o contexto seja diferente, vale a menção ao regimento do tribunal vizinho, o Carf (art. 98).

[6] Para a enunciação da doutrina, por todos, AP 08000.013661/1997-95, Rel. Cons. Luís Fernando Schuartz e PA 08012.006507/1998-81, Rel. Cons. Roberto Castellanos Pfeiffer.

Os critérios são bem resumidos pelo Cons. Paulo Burnier no P.A. nº 08012.001518/2006-37: (i) excepcionalidade do afastamento da análise concorrencial; (ii) capacidade de efetiva e ativa supervisão do mercado; (iii) especificidade da norma regulatória em relação à norma concorrencial; e (iv) enquadramento da determinada política pública como manifestação de um poder soberano do Estado.

[7] PA 08700.005499/2015-51, Rel. Cons. Luiz Hoffmann.

[8] REsp 1.899.040-SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, 2024, tópico X.

[9] MS 25.888-Agr, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2023.

[10] Cf. Parecer GM-020, de 2001, no conflito Cade-Bacen, que todavia terminou judicializado (REsp n. 1.094.218/DF).

[11] ADI 5.367, Red. Ac. Min. Alexandre Moraes, 2020.

[12]  Parecer 20/2023 ProCADE no PA 08012.006641/2005-63, §§ 123, 174 e 180.

[13]  Para os conselhos do caso EaD, v. arts. 1º e 6º g, l, m, p da Lei nº 3.820/60 (Farmácia); art. 16 f, j da Lei nº 5.517/68 (Medicina Veterinária); arts. 2º e 4º d da Lei nº 4.324/64 (Odontologia).

[14] Cf. USSC. Goldfarb v. Virginia State Bar, 421 U.S. 773 (1975); e ECJ. Consiglio nazionale dei geologi, C‑136/12 (2013) e Wouters, C-309/99 (2022).

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É abusiva a justa causa por atos de manifestações nas mídias sociais?

É sabido que a legislação trabalhista prevê que a demissão por justa causa deve seguir determinados critérios legais, de sorte que, em casos de eventuais abusos, tal problemática poderá ser levada ao âmbito do Poder Judiciário, e, a depender da situação concreta, ser inclusive revertida.

Nesse sentido, o relacionamento interpessoal entre empregadores e trabalhadores deve sempre se pautar nos deveres da boa-fé objetiva e do respeito mútuo, para além de pressupor a observância das normas previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Dito isso, verifica-se que desde o surgimento das redes sociais e dos aplicativos de mensagens — tais como Facebook, Instagram, WhatsApp, dentre outros —, algumas empresas têm se utilizado dos registros dessas plataformas digitais como pretexto para aplicar demissões por justo motivo.

Por certo, considerando as inúmeras polêmicas que giram em torno da matéria, o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana, na coluna Prática Trabalhista da revista Consultor Jurídico (ConJur[1], razão pela qual agradecemos o contato.

Lição de especialista

Mas o que seria o conceito de justa causa para o Direito do Trabalho? Sobre o assunto, oportunos são os ensinamentos de Adalberto Martins [2]:

“Nas palavras de Wagner Giglio, ‘a justa causa traduz-se no ato faltoso grave, praticado por uma das partes, que autorize a rescindir o contrato sem ônus para o denunciante’.”

Diante do conceito supramencionado, é possível afirmar que nem toda falta justifica a rescisão do contrato de trabalho. A justa causa caracteriza-se pelo dolo ou culpa grave. José Martins Catarino ensina que se a culpa for leve ou levíssima, ou não houver dolo, a despedida por justa causa não se justifica, e sim uma punição menos severa (suspensão ou advertência).

A doutrina concebe a existência de três sistemas legislativos a respeito da justa causa para a rescisão do contrato de trabalho: o genérico, o taxativo e o exemplificativo (…). No que respeita este aspecto, a doutrina é uníssora em assegurar que o legislador pátrio optou pelo sistema taxativo, em detrimento do genérico e do exemplificativo. No Brasil, a lei enumerou hipóteses de justa causa, motivo pelo qual não se permite invocar motivos não previstos legalmente para justificar a rescisão do contrato de trabalho”.

Legislação

Do ponto de vista normativo no Brasil, o artigo 482 da CLT [3] prevê que a demissão por justa causa deve seguir determinados critérios a embasar o encerramento de contrato com o trabalhador de forma motivada, sendo que nesta modalidade de extinção do pacto laboral o trabalhador terá reduzido ao final os seus direitos no momento do pagamento das verbas rescisórias [4].

Casos práticos

Um trabalhador que foi acusado de postar figurinhas “desrespeitosas” num grupo corporativo de WhatsApp teve revertida a sua dispensa por justa causa, sendo a empresa condenada ao pagamento das verbas rescisórias oriundas de uma dispensa imotivada [5]. O então desligamento do trabalhador que se encontrava há mais de 13 anos na empresa do ramo de serviços gráficos se deu em razão da acusação de “mau procedimento e indisciplina”.

Segundo informações extraídas do processo, após a empresa divulgar no WhatsApp a informação de que atrasaria o pagamento do adiantamento salarial aos empregados, o trabalhador postou figurinhas no grupo do qual também fazia parte o proprietário da companhia. As figurinhas foram consideradas “desrespeitosas” pela empresa, e que teriam causado tumulto no ambiente de trabalho, justificando, assim, a aplicação da justa causa.

Porém no julgamento da ação, o magistrado ponderou: “A despedida por justa causa caracteriza-se como a mais grave penalidade aplicada ao trabalhador e, por tal razão, deve ser admitida somente quando comprovada, de forma robusta, a ocorrência de falta grave o suficiente para quebrar, definitivamente, a fidúcia inerente ao contrato de trabalho”. Para além disso, o juiz também levou em consideração o fato de que outro trabalhador que enviou figurinha no grupo, assim como os demais colegas que enviaram mensagens externando indignação, não foram igualmente dispensados.

Portanto, concluiu-se que os argumentos apresentados pela empresa foram frágeis, bem como amplificadas pela decisão unilateral de punir apenas um trabalhador, ignorando outros que tiveram comportamentos semelhantes ao profissional demitido. Nesse diapasão, a demissão por falta grave deve ser excepcional, respaldada por provas robustas e por ações repugnantes que realmente comprometam a relação de confiança no contrato de trabalho.

Aliás, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) também já foi provocado a emitir juízo de valor sobre a mesma temática em um caso semelhante envolvendo publicações inadequadas em grupos de Whatsapp. No caso julgamento pela Corte Superior Trabalhista, determinado trabalhador havia sido dispensado por ato lesivo à honra e à boa-fama do empregador [6], pela conduta de reclamar sobre o atraso no pagamento do 13º salário.

Em seu voto, o ministro relator destacou:

“O reclamante valeu-se de seu aplicativo de mensagens para externar seu sentimento de insatisfação com o suposto atraso do pagamento da parcela do 13º salário — a qual, em realidade, foi quitada tempestivamente. Conquanto a linguagem empregada denote agressividade e suscite repúdio, configurando, portanto, uma conduta reprovável, não se reveste da gravidade necessária à configuração da justa causa, sobretudo quando considerado que o reclamante prestou serviços por oito anos sem ter cometido infração disciplinar e que a publicação foi retirada em poucos minutos. Não há, pois, como concluir que após oito anos de vínculo empregatício, a publicação, mantida por poucos minutos, contendo uma reclamação acerca do atraso de uma das parcelas legais implique na quebra absoluta da fidúcia imprescindível à relação empregatícia.”

Diante de tais casos práticos, infere-se ser necessária prudência para a aplicação da rescisão motivada, eis que tal modalidade de extinção contratual traz uma mácula para o trabalhador, assim como prejuízos severos que poderão impactar fortemente em sua vida pessoal e profissional.

Por tal razão, é preciso que as empresas invistam melhor em medidas preventivas, trazendo regras claras sobre o assunto, bem como promova a capacitação e os treinamentos de seus trabalhadores, de modo a fazer cumprir as normas previamente estabelecidas, fortalecendo o diálogo interno.

Em arremate, para além dessas medidas de cautela, a empresa poderá também adotar outros mecanismos, tais como registros de ocorrências, regulamentos internos e códigos de condutas, tudo, enfim, a evitar a ocorrência de danos, afinal, o investimento na prevenção é muito mais vantajoso que o pagamento pela reparação do prejuízo correspondente.

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[1] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela Coluna Prática Trabalhista da ConJur, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[2] Manual Didático de Direito do Trabalho. 7. Ed. – Leme-SP: Mizuno, 2022. Página 240.

[3] CLT, Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: a) ato de improbidade; b) incontinência de conduta ou mau procedimento; c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena; e) desídia no desempenho das respectivas funções; f) embriaguez habitual ou em serviço; g) violação de segredo da empresa; h) ato de indisciplina ou de insubordinação; i) abandono de emprego; j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; l) prática constante de jogos de azar. m) perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado. Parágrafo único – Constitui igualmente justa causa para dispensa de empregado a prática, devidamente comprovada em inquérito administrativo, de atos atentatórios à segurança nacional.

[4] Disponível em https://www.conjur.com.br/2025-jan-30/verbas-rescisorias-quais-sao-as-parcelas-e-as-formas-de-extincao-do-contrato-de-trabalho/. Acesso em 05.05.2025.

[5] Disponível em https://portal.trt3.jus.br/internet/conheca-o-trt/comunicacao/noticias-juridicas/revertida-justa-causa-de-trabalhador-acusado-de-postar-figurinhas-201cdesrespeitosas201d-em-grupo-corporativo-de-whatsapp. Acesso em 05.05.2025.

[6] Disponível e https://consultaprocessual.tst.jus.br/consultaProcessual/consultaTstNumUnica.do?conscsjt=&numeroTst=11752&digitoTst=15&anoTst=2020&orgaoTst=5&tribunalTst=18&varaTst=0010&consulta=Consultar . Acesso em 05.05.2025.

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Boas práticas e diretrizes internacionais para o processo legislativo democrático

Há uma crescente atenção de diversas organizações internacionais para a necessidade de democratizar o processo legislativo. Como destaca Tímea Drinóczi, para além da expansão da realização de análises de impacto legislativo ex ante em diversos países, organizações internacionais passaram a se dedicar à disseminação de boas práticas e diretrizes (guidelines) democráticas para o processo legislativo como estabelecimento de padrões de legística, fortalecimento da participação social e aumento da transparência das atividades parlamentares [1].

O presente artigo apresenta em visão panorâmica iniciativas recentes de algumas organizações internacionais que têm apontado boas práticas e diretrizes para o processo legislativo democrático, fazendo-se, quando possível, vinculações com o cenário brasileiro. Apresentam-se, em breves linhas, essas iniciativas com algumas conclusões gerais ao final.

Uma das organizações mais tradicionais é a União Interparlamentar – Inter-Paliamentary Union (IPU). Fundada em 1889, é sediada em Genebra e congrega mais de 180 Parlamentos nacionais, inclusive o Brasil. Sua atuação é destinada a promover a cooperação entre os Parlamentos para fortalecimento de suas capacidades institucionais e suas democracias. Alguns de seus temas de maior atenção são a resiliência democrática e os parlamentos, participação feminina na política, transformação digital e combate à crise climática.

Entre suas iniciativas, destacam-se os World e-Parliament Reports, sendo o mais recente de 2024, em que são apontadas as principais tendências de transição digital dos Parlamentos [2]. Como o Report demonstra, há uma tendência acentuada no período pós-Covid 19 de que as inovações digitais sejam permanentemente incorporadas às práticas parlamentares, gerando desafios de transparência, segurança e inclusão digital e oportunidades de aumento da participação social e resiliência democrática em contextos de crise. Há também o robusto “Indicadores para os Parlamentos Democráticos”, lançado em 202 [3], em que há 25 indicadores do caráter democrático dos parlamentos, já com estudos de casos em que países os utilizaram para avaliar suas instituições e práticas.

Outra instituição que tem se destacado é a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), na qual é o Brasil é um país associado com possível ingresso pleno futuro. Na OCDE, há dois principais órgãos que trabalham o tema das boas práticas e diretrizes em processo legislativo e democracia.

O primeiro deles é o Comitê de Política Regulatória, cuja missão é fortalecer a produção de normas jurídicas – legislativas e administrativas – com base em evidências empíricas de forma estratégica e inovadora. Em 2012, foi adotada a importante Recomendação para a Política Regulatória e Governança [4], que sugeriu a seus membros a adoção de uma política regulatória ampla (whole-of-government) fundada em princípios de transparência e participação social, bem como a adoção de boas práticas como a análise de impacto ex ante e avaliação constante de estoque regulatório. O Comitê também faz regularmente a avaliação de políticas regulatórias de determinados países (Regulatory Police Outlook [5]). O Brasil é um dos países regularmente avaliados, sendo que o Relatório de 2022 (Regulatory Reform in Brazil [6]) ressalta, dentre outras sugestões, a necessidade de criação de uma política nacional de melhoria da qualidade regulatória, inclusive envolvendo o Poder Legislativo. No plano do Poder Executivo federal, a retomada do Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG – Decreto 11.738/2023) e os Decretos 10.411/2020 e 11.243/2022 dialogam diretamente com essas recomendações.

Destaque e conclusões

Ainda no âmbito da OCDE, em 2022 foi criada a “Iniciativa Reforçando a Democracia” coordenada pelo Comitê de Governança Pública, tendo cinco pilares-chave: 1) combate à desinformação, 2) ampliação da participação social, 3) representação política, transparência na vida pública e igualdade de gênero, 4) práticas de sustentabilidade e 5) democracia digital. Um relatório de 2024 sobre a implementação desses pilares por diversos países retrata, entre outros, a necessidade de repensar respostas estatais lentas em face da desinformação digital e formas inovadoras e criativas de ampliar a participação social nas atividades do poder público no geral e dos parlamentos, em específico [7].

Outra instituição que tem ganhado destaque na atuação internacional a respeito da democratização do processo legislativo é o Escritório para Instituições Democráticas e Direitos Humanos – Office for Democratic Institutions and Human Rights (ODIHR) –, da Organização para Segurança e Cooperação na Europa). Atualmente com 57 países membros da Europa, Ásia Central e América do Norte, a Organização tem uma atuação destacada na cooperação com países de transição democrática mais recente na avaliação e produção de sugestões para o fortalecimento de eleições transparente e justas e do caráter democrático das normas jurídicas que regem o processo legislativo.

Uma publicação recente que se destaca é o Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws [8], em que são apresentados 17 princípios para o legislar democrático, entre eles os pré-requisitos do processo legislativo: respeito aos princípios democráticos, aderência ao Estado de Direito e respeito aos direitos humanos. Como já destacado em outra oportunidade [9], trata-se de um documento pioneiro focado especialmente na produção legislativo do direito, do seu potencial democrático, boas práticas parlamentares e desafios contemporâneos. Embora produzido por uma organização com atuação mais regionalizada, podem servir de inspiração para outros países, inclusive o Brasil, uma vez que apresentam rica experiência prática de problemas e soluções enfrentadas por parlamentos.

No âmbito das Américas, há o Parlamericas, entidade instalada em 2001, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), como fórum de compartilhamento de experiências e cooperação entre os parlamentos americanos. Atualmente 35 parlamentos nacionais participam do Parlamericas, inclusive o Brasil. Entre suas publicações, se destacam o Mapa para Abertura Legisaltiva 2.0, de 2021 [10], em que há a descrição de diretrizes e iniciativas para o fortalecimento transparência, accountability, participação social e ética na condução das atividades parlamentares.

Diante desse cenário de multiplicidade de documentos, apontam-se quatro conclusões.

É no mínimo curioso perceber que o debate sobre os princípios – aqui não em sentido jurídico, mas de diretrizes políticas – do processo legislativo seja objeto de maior atenção internacional relativamente a pouco tempo. Desde as revoluções liberais do século 17 e 18, entende-se que os parlamentos são órgãos centrais dos governos representativos e, mais recentemente, das democracias representativas, com suas regras e formalidades.

Contudo, é nas últimas décadas, com as transições democráticas especialmente em países da América Latina, leste Europeu, África e Ásia e as constantes crises da democracia representativa, que se aprofundam as demandas por maior qualidade e democraticidade dos trabalhos parlamentares. Como Elsa Pilichowski, diretora de Governança Pública da OCDE e responsável pelo programa Reforçando a Democracia, destaca: “(..) não é que nossas democracias não estão funcionando como elas costumavam funcionar – são as expectativas dos cidadãos que mudaram” [11]. Há, portanto, novas demandas de transformação democrática do processo legislativo e não apenas um retorno a um idealizado modelo de deliberação do passado.

Em segundo lugar, é possível notar alguns pontos largamente comuns nos diversos documentos e diretrizes sobre o legislar democrático. Diretrizes como respeito à democracia e aos direitos humanos, aumento da participação social e de minorias políticas, legislação com base em evidências e análise de impacto legislativo, igualdade de gênero na política e aumento do uso de ferramentas digitais nas atividades parlamentares, apenas para mencionar alguns, são contemplados nos diversos documentos e apontam para aspectos da transformação dos parlamentos no século 21.

Esses pontos comuns podem oferecer o substrato político para justificar e oferecer alternativas para reformas do arcabouço jurídico a respeito da produção legislativa do direito. Como aponta Edoardo Celeste em relação à grandes declarações de direito do século 18 e, mais recentemente, às diversas declarações de direitos digitais produzidas inclusive por entidades do terceiro setor, há um movimento histórico de que pautas inicialmente políticas do constitucionalismo expressadas em documentos esparsos e não vinculantes sejam incorporadas ao discurso jurídico e, posteriormente, transformadas em direito vigente nos planos nacionais [12]. Essa pode ser justamente a tendência no caso da democratização do processo legislativo a partir dessas diretrizes internacionalmente compartilhadas.

Em terceiro lugar, há uma percepção compartilhada de que a transformação dos parlamentos depende, de um lado, de estável compromisso político dos representantes parlamentares e, de outro, institucionalização por meio de regras e instituições dedicadas a essas atividades. Embora a produção legislativa não seja uma atividade meramente técnica, mas essencialmente política na qual diversas visões de mundo e ideologias são apresentadas para o debate público antes da tomada de decisão, há uma dimensão crescente da incorporação de boas práticas regulatórias para o processo legislativo, que requerem pessoal e instituições com algum grau de independência para produzirem informações para subsídio dos parlamentares. Além disso, a participação social por meio de canais institucionalizados cada vez mais é percebida como um elemento central do processo legislativo e não apenas algo que pode ou não ocorrer a critério exclusivo da maioria parlamentar.

Por fim, e a título de conclusão, abre-se amplo campo para estudos e pesquisas. Para mencionaram-se apenas alguns deles: 1) comparação entre os documentos e perspectivas das organizações internacionais sobre o caráter democrático do processo legislativo, 2) ) análise da colaboração entre essas instituições entre si e os parlamentos nacionais e regionais, 3) estudos de caso para a incorporação dessas diretrizes aos diferentes parlamentos nacionais e regionais, 4) relação dessas diretrizes com o direito positivo vigente de diversos países, com destaque para sua tradução em normas jurídicas constitucionais, legais e regimentais, bem como a prática de sua revisão judicial, e 5) estudos de caso do impacto dessas diretrizes sobre o processo legislativo de leis em concreto para avaliar suas potencialidades e desafios. Como é fácil perceber, trata-se de empreitada que mobiliza diversas áreas do conhecimento entre elas a teoria política, ciência política, política comparada, direito constitucional, direito parlamentar e direito regulatório. Fica, portanto, o convite.


[1] Tímea Drinóczi, “Quality Control and Management in Legislation: a Theoretical Framework”, KLRI Journal of Law and Legislation 7 (2017), p. 73.

[2] https://www.ipu.org/resources/publications/reports/2024-10/world-e-parliament-report-2024

[3] https://www.parliamentaryindicators.org/

[4] https://www.oecd.org/en/publications/2012/11/recommendation-of-the-council-on-regulatory-policy-and-governance_g1g3fce5.html

[5] https://www.oecd.org/en/publications/oecd-regulatory-policy-outlook-2025_56b60e39-en.html#:~:text=Adopt%20regulatory%20reviews%20to%20revise,potential%20for%20risk%2Dbased%20enforcement.

[6] https://www.oecd.org/en/publications/2022/06/regulatory-reform-in-brazil_da75f3f8.html

[7] https://www.oecd.org/en/publications/2024/10/the-oecd-reinforcing-democracy-initiative_458501ab.html

[8] https://www.osce.org/odihr/558321

[9] Victor Marcel Pinheiro, “Review: ODIHR Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws”, Theory and Practice of Legislation 12 (2024), pp. 344-357.

[10] https://www.parlamericas.org/uploads/documents/Road_map_2.0_ENG.pdf

[11]  Entrevista, “Time to act: Nurturing our democracies for the 21st century”, OECD Podcasts, 2022.

[12] Edoardo Celeste, “Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bill of Rights”, London, Routledge, 2023, pp. 116-7.

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Securitização e reforma tributária: da não cumulatividade do IBS e da CBS

A reforma tributária possui como um dos seus fundamentos a neutralidade fiscal, definida como a mitigação da influência dos tributos sobre as decisões de consumo e de organização da atividade econômica. Ela tende a representar um empecilho para o planejamento tributário das empresas, pois, em tese, o novo sistema é formulado para que, independentemente das estruturas societárias criadas, dos contratos firmados e das nomenclaturas utilizadas, o encargo tributário permaneça o mais constante possível.

A securitização de crédito, conforme Resolução nº 60/2021 da CVM, consiste na aquisição de créditos para utilização como lastro para a emissão de títulos. Em suma, a empresa que possui créditos a receber no longo prazo, aliena-os à securitizadora com deságio a fim de ter uma antecipação do valor a receber. Assim, incrementa seu caixa, viabilizando o aumento de suas operações e outros investimentos.

Apesar de ser uma estratégia eminentemente financeira para as empresas, a securitização também é recorrentemente utilizada como meio de obter benefícios tributários, já que o deságio aplicado na venda do crédito pode ser deduzido na apuração do Imposto de Renda como despesa financeira.

Esta vantagem tributária, no entanto, depende da conjugação e equilíbrio de diversos fatores, incluindo a tributação da própria atividade de securitização. Logo, os contribuintes devem estar atentos à manutenção deste equilíbrio diante da reforma tributária, que prevê a modificação também da tributação dos serviços financeiros.

Securitização

Para uma análise mais completa, é necessário entender alguns aspectos tributários atuais da securitização de crédito.

Em primeiro lugar, a atividade não é submetida à cobrança de ISS, por conta da sua ausência de previsão na Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/2003, o que se confirmou em precedentes dos tribunais brasileiros.

A IN 2.121/22 dispõe que há a incidência de Contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins sobre as securitizadoras com um regime cumulativo com alíquota de 4,65%. A base de cálculo é composta pela diferença entre o custo de aquisição dos direitos creditórios e o valor recebido pela securitizadora, o que permite o desconto das despesas com a captação de recursos.

A LC 214/25, que regulamenta o IBS e da CBS sobre os serviços financeiros, dispõe que, na operação de securitização, a base de cálculo será composta pelo desconto aplicado sobre a liquidação antecipada do crédito com a dedução das despesas com captação de recursos e das despesas com emissão, distribuição, custódia, escrituração, registro, preparação e formalização de documentos, administração do patrimônio separado e atuação de agentes fiduciários, de cobrança e de classificação de risco.

Há uma grande semelhança entre as bases de cálculo antes e depois da reforma, com uma maior definição das despesas passíveis de dedução da receita. Uma eventual majoração dos encargos tributários sobre a atividade, para análise da manutenção do benefício tributário, dependerá, portanto, da alíquota designada para o cálculo dos novos tributos.

Na Reforma, a securitização de crédito está sujeita à incidência de IBS e CBS, calculados conforme a alíquota geral do regime de serviços financeiros. Essas alíquotas serão fixadas de modo a manter a atual carga tributária incidente sobre as operações de crédito praticadas pelas instituições financeiras bancárias.

Considerando a IN 2.121/2022 e a LC 214/25, percebe-se que a definição da base de cálculo para operações de crédito possui semelhanças, porém, a alíquota dos novos tributos será acrescida dos encargos tributários não recuperados, atualmente, pelas instituições financeiras. Assim é provável que a nova alíquota de modo que poderá resultar em valor superior a 4,65%, porém espera-se que não seja um aumento abrupto, de modo que as operações de securitização não devem ser excessivamente oneradas com o novo sistema.

Já sob a perspectiva daquele que cede o crédito, uma novidade da Reforma é a possibilidade de permitir o crédito de IBS e CBS sobre o valor do deságio aplicado sobre o título. Ou seja, além do benefício já existente quanto à dedução do deságio no IRPJ e CSLL, o novo sistema permitirá a dedução (crédito) também em relação aos tributos do consumo, o que atualmente não ocorre com o PIS e a Cofins. Assim, a operação pode se tornar ainda mais atrativa, do ponto de vista fiscal, para os contribuintes.

Em conclusão, ainda não é possível avaliar com precisão o impacto das novas regras sobre a atividade de securitização de créditos. Contudo, a semelhança na composição das bases de cálculos entre o atual e o novo regime, permite vislumbrar uma perspectiva de baixo impacto, salvo diante de variação abrupta da alíquota. Como aspecto positivo, o creditamento sobre o deságio tende a potencializar os benefícios tributários obtidos pela securitização, podendo fazer com que esse tipo de operação se mantenha como uma opção viável de planejamento para as empresas diante do novo sistema.

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‘A única libertação para a Suprema Corte é interpretar a Constituição com integridade’

Em um mundo polarizado e com o Judiciário sob ataques de políticos, “a única libertação para uma Suprema Corte é interpretar a Constituição com integridade, coerência e fundamentação transparente e inteligível”.

Gustavo Moreno/STF

 

É o que afirma o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, no prefácio do livro A autoridade da Suprema Corte e o perigo da política, de Stephen Breyer, ministro aposentado da Suprema Corte dos EUA. A edição brasileira da obra foi traduzida por Georges AbboudGustavo Vaughn e Gabriel Teixeira.

No prefácio, Barroso destaca a importância do respeito às instituições democráticas, mesmo diante de decisões que possam desagradar setores da sociedade. Segundo o presidente do STF, a obra oferece uma análise profunda sobre o papel do Judiciário em democracias contemporâneas.

“As instituições democráticas, e entre elas as Supremas Cortes, devem ser apreciadas em seu conjunto, mesmo quando, eventualmente, não se goste de um ou outro resultado”, ressalta.

De acordo com Barroso, a capacidade de fazer justiça é o trunfo do Judiciário para conquistar a obediência espontânea dos cidadãos e dos demais Poderes.

“Cabe à Constituição o papel de abrigar o ideal de justiça de uma sociedade. Mas, como visto, existem cláusulas constitucionais que não têm sentido unívoco, sendo passíveis de interpretações variáveis. Breyer defende que, em certos casos, a Corte simplesmente evite adentrar questões polêmicas, o que nem sempre é possível. Que, em outras situações, adote uma postura minimalista, construindo argumentos bem limitados ao caso concreto. Em outras, ainda, deve optar por resolver o problema com base em legislação ordinária, escapando de interpretações constitucionais mais complexas”, menciona o ministro.

Segundo ele, não existe uma “fórmula mágica” para preservar a confiança na Corte, nem para impedir acusações de que os ministros são políticos sem legitimidade popular.

“Tal percepção se tornou inevitável num mundo crescentemente polarizado, em que um dos lados do espectro político nutre ojeriza a cortes independentes, que não tenham sido capturadas pelas maiorias eventuais. Nesse cenário conflagrado, a única libertação para uma Suprema Corte é interpretar a Constituição com integridade, coerência e fundamentação transparente e inteligível. E ter em conta que a legitimidade da sua missão não se confunde com a popularidade de seus membros. O certo, justo e legítimo nem sempre é popular. Mas é o que deve ser feito”, opina Barroso.

Experiência na Suprema Corte

O livro A autoridade da Suprema Corte e o perigo da política examina a interação entre a Suprema Corte norte-americana e a política e aborda os desafios enfrentados pelo Judiciário em um contexto de crescente polarização.

Stephen Breyer atuou por mais de 28 anos na Suprema Corte e foi nomeado pelo então presidente Bill Clinton em 1994. Aposentou-se em 2022 e, atualmente, leciona Direito Administrativo em Harvard.

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Defesa da democracia não pode depender do Judiciário, diz pesquisador

Embora seja visto como uma barreira ao autoritarismo no Brasil e no exterior, o Judiciário tem poder limitado para proteger a democracia e os direitos individuais. A avaliação é do pesquisador britânico Chris Thornhill, professor de Direito na Universidade de Birmingham.

 

Especialista em Direito Constitucional Comparado, Thornhill lançou em dezembro passado o livro A Sociology of Post-Imperial Constitutions: Suppressed Civil War and Colonized Citizens, publicado pela editora da Universidade de Cambridge.

Na obra, que não foi lançada em português, o professor estuda a evolução das constituições pelo mundo desde o século 18. No livro, ele argumenta que os regimes constitucionais têm retomado, nos últimos anos, um caráter militarizado que era uma tendência histórica até a Segunda Guerra Mundial, mas que havia se enfraquecido.

O pesquisador, que está no Brasil como professor visitante do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), falou à revista eletrônica Consultor Jurídico sobre as constituições modernas, avaliou a solidez das democracias pelo mundo e tratou do papel e dos limites do Judiciário nesse processo.

“No Brasil, o Judiciário tem conseguido, em linhas gerais, preservar as condições institucionais, políticas e normativas para a democracia. Não digo que o STF acertou em tudo, mas tem sido melhor do que as supremas cortes em outras democracias ameaçadas ou sob pressão. Melhor do que a Suprema Corte dos EUA, por exemplo”, diz.

Thornhill sustenta que o Judiciário tem poder limitado para conter crises democráticas. “Os tribunais não conseguem fazer isso sozinhos. Se eles sofrem pressão política por um longo período, capitulam. E a composição desses tribunais pode ser alterada com muita facilidade. A capacidade das instituições judiciais de proteger os direitos individuais, que são um requisito básico da democracia, foi corroída ao longo do tempo.”

Leia a seguir a entrevista:

ConJur — Seu livro mais recente trata da história das constituições modernas. Pode resumir o teor da obra?
Chris Thornhill — O livro é uma tentativa de reconstruir o desenvolvimento do Direito Constitucional desde o século 18. Meu argumento, em essência, é que a elaboração de constituições é orientada por imperativos de segurança. As constituições refletem o ambiente internacional de segurança do momento histórico em que foram criadas.

Até o final da década de 1980 as constituições eram, em geral, guiadas pela necessidade de mobilizar a força militar para conflitos internacionais, um fenômeno que está ligado ao imperialismo. A partir desse período, início dos anos 1990, vimos um declínio da pressão do imperialismo sobre o Direito Constitucional. As constituições foram, então, estabilizadas com base em direitos individuais e no Estado de bem-estar social.

Esse panorama, porém, voltou a mudar em anos recentes. Podemos observar uma nova tendência de militarização nas constituições, ou formas de constitucionalismo em que os militares têm papel importante. O ambiente de segurança internacional está novamente influenciando o Direito Constitucional.

ConJur — Em que países ou regiões o sr. notou a retomada da militarização no Direito Constitucional?
Chris Thornhill — O livro faz uma distinção entre dois tipos de militarização: vertical e horizontal. Na vertical, que tem foco na segurança externa, os governos buscam legitimidade integrando os cidadãos aos exércitos regulares e tratando o conflito militar como a maior ameaça a essa legitimidade. Já a militarização horizontal é uma resposta a um possível conflito civil. Nesse caso, os governos se legitimam por meio da gestão desse conflito, ou tomando partido nele.

A dimensão vertical tem sido observada na Europa. Vários governos europeus caminham para uma remilitarização constitucional principalmente devido à guerra na Ucrânia, mas também pelas mudanças nas políticas de segurança dos EUA. Processos semelhantes têm aparecido na Índia e em países da Ásia Central.

Também temos exemplos a nível horizontal. Nos EUA, o aparato constitucional criado a partir de 1945 vive uma crise de legitimidade porque o governo promove o descrédito do Direito Internacional. O resultado disso é uma clara incubação de conflitos internos na sociedade americana. A democracia constitucional está mais ameaçada pela intensificação desses conflitos do que pela militarização externa.

ConJur — Como o Brasil se posiciona nessa análise?
Chris Thornhill — O Brasil é uma das democracias constitucionais mais importantes do mundo. Desde 1988, o sistema democrático no Brasil teve conquistas extraordinárias, particularmente no combate à pobreza. É um caso incomum de Constituição que não foi criada por pressões militares e lançou bases para um Estado de bem-estar social.

Mas podemos ver, nos últimos anos, que esse investimento no bem-estar social tornou-se um estopim para vários tipos de movimentos radicais. E estes movimentos assumem uma forma parcialmente militar, ou são apoiadas por atores com força militar.

ConJur — As democracias atuais têm conseguido preservar sua integridade?
Chris Thornhill — Acho importante não ser apocalíptico nessas análises. Não vejo, pelo menos por enquanto, uma crise constitucional global. Nos últimos anos, alguns Estados com grandes populações tornaram-se mais democráticos.

Mas muitos Estados tornaram-se menos democráticos. Eu diria que já é questionável se os EUA são uma democracia. A Rússia claramente não é mais uma democracia. E vários sistemas constitucionais na Europa não correm necessariamente o risco de um colapso democrático, mas podem enfraquecer as estruturas da democracia por influência de regimes populistas.

Já o Brasil, como sabemos, sobreviveu a um desafio muito sério à democracia. Em alguns aspectos, o sistema constitucional brasileiro se mostrou mais resistente que o de países europeus.

ConJur — O Judiciário tem conseguido exercer seu papel na preservação da democracia?
Chris Thornhill — Uma coisa que venho repetindo em minhas publicações, nos últimos anos, é que não sabemos muito sobre democracia. Não temos um arcabouço teórico muito forte sobre como ela se desenvolve e como pode ser estabilizada.

O que sabemos com bastante segurança é que a democracia geralmente tem dois pré-requisitos: ela precisa estar pautada pelo Direito Internacional dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, ter um sistema robusto de bem-estar social, que englobe renda, saúde e educação. A questão, portanto, é saber se os órgãos judiciais nacionais são capazes de preservar essas condições.

No Brasil, o Judiciário tem conseguido, em linhas gerais, proteger as condições institucionais, políticas e normativas para a democracia. Não digo que o STF acertou em tudo, mas tem sido melhor do que as supremas cortes em outras democracias ameaçadas ou sob pressão. Melhor do que a Suprema Corte dos EUA, por exemplo.

Mas o que podemos ver a nível global é que os tribunais não conseguem fazer isso sozinhos. Se eles sofrem pressão política por um longo período, capitulam. E a composição desses tribunais pode ser alterada com muita facilidade. A capacidade do Judiciário de preservar um requisito básico da democracia, que é a proteção dos direitos individuais, foi corroída ao longo do tempo.

O que podemos observar pelo mundo, de maneira praticamente invariável, é que ataques ao Judiciário são um sinalizador de crise democrática. Quando governos começam a se voltar contra a democracia, ou são influenciados por movimentos antidemocráticos, a hostilidade ao Judiciário é o primeiro indicador disso.

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Acidente com lombada e iluminação irregulares resulta em indenização

A 3ª Câmara de Direito Público e Coletivo do Tribunal de Justiça de Mato Grosso manteve, por unanimidade, a condenação do município de Sinop por danos morais e materiais decorrentes da morte de uma mulher, vítima de um acidente de trânsito causado por uma lombada fora dos padrões técnicos e a ausência de iluminação pública adequada. A decisão foi proferida na sessão do dia 5 de fevereiro de 2025, sob relatoria do desembargador Luiz Octávio Oliveira Saboia Ribeiro.

O acidente ocorreu em junho de 2009. Conforme os autos, a vítima trafegava de motocicleta quando foi surpreendida por uma lombada recém-instalada e com dimensões superiores às permitidas pelas normas de trânsito. O laudo pericial confirmou que o quebra-molas foi construído em desacordo com a Resolução nº 39/1998 do Contran e que a via não possuía iluminação pública no momento do acidente, o que comprometeu a visibilidade.

Diante das evidências, o juízo de primeira instância condenou o município ao pagamento de R$ 50 mil a título de danos morais para cada um dos autores da ação — os filhos da vítima — e pensão mensal de dois terços do salário-mínimo, rateada entre os três filhos até que completem 25 anos.

Na apelação, o município de Sinop sustentou a culpa exclusiva da vítima, alegando que ela trafegava em velocidade acima do permitido, sem habilitação e possivelmente sem o uso adequado do capacete. Requereu ainda a dedução do valor recebido pelo seguro DPVAT da indenização, além da redução dos valores fixados a título de danos morais e pensão.

O relator, no entanto, rejeitou os argumentos. Segundo ele, a falta de habilitação constitui mera infração administrativa e, junto com o excesso de velocidade, configura culpa concorrente — e não exclusiva — da vítima. “Mesmo na velocidade permitida, haveria risco de acidente, considerando a lombada fora dos padrões técnicos e a ausência de iluminação”, destacou em seu voto.

O pedido de abatimento do valor do DPVAT foi rejeitado por configurar inovação recursal, ou seja, não havia sido apresentado em primeira instância, o que é vedado pelo artigo 1.014 do Código de Processo Civil.

A Câmara considerou razoável e proporcional o valor de R$ 50 mil fixado a título de danos morais para cada filho da vítima, bem como a pensão mensal estipulada. “Trata-se de compensação mínima diante da gravidade do fato — a morte de um ente querido em acidente provocado por negligência do poder público — e da condição de dependência dos filhos menores à época dos fatos”, afirmou o relator.

A decisão reforça a jurisprudência consolidada quanto à responsabilidade objetiva do Estado por omissão na conservação e sinalização das vias públicas, conforme previsto no artigo 37, §6º, da Constituição Federal. Para o relator, ficou evidente o nexo causal entre a conduta omissiva e comissiva do ente público e o dano sofrido. Com informações da assessoria de imprensa do TJ-MT.

Processo 0012968-25.2009.8.11.0015

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O paradoxo Tostines, as redes sociais e o teste para brain rot: faça aqui!


Nem todos conhecem o “paradoxo Tostines”. Na época, a maioria chamou de “dilema Tostines”. Dilema é quando temos decisões a tomar e qualquer delas é trágica. Um exemplo é o dilema do trem, em que, para não matar dez pessoas, desvia-se o bólido e mata uma. Já o paradoxo trata de algo sobre o qual não podemos decidir.

Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?  Trata-se de um paradoxo. Os mais jovens não sabem o que é, porque só frequentam redes sociais, com o que, paradoxalmente, em face do excesso de informações, acabam sem conhecimento algum. Como dizia T.S. Eliot, informação não é conhecimento; conhecimento não é saber; saber não é sabedoria.

Interessante notar que o número crescente de smartphones e quejandices tecnológicas, face à facilidade com que se tem acesso a informações, deveria diminuir o número de néscios e similares. Porém, mais informação, mais néscios. Informação demais é informação de menos. Eis aí outra questão paradoxal.

Voltando ao paradoxo Tostines: as redes sociais são superficiais e produtoras de ignorância porque se retroalimentam de ignorantes ou os ignorantes são assim porque frequentam as redes sociais?

Na mesma linha, o que veio primeiro? A agnotologia (produção deliberada de ignorância) ou o tik tok? Boa pergunta. De difícil ou impossível resposta.

A jornalista Becky Korich, em artigo na Folha de S.Paulo, faz uma ironia (ou sarcasmo) com os testes que aparecem nas redes sociais. Você pode testar seu QI (coeficiente de inteligência), seu índice de gordura, seu grau de cretinice, seu índice de alcoolismo, assim como fazer o teste para saber se você tem a doença da moda, o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção…). Korich alerta: além de confundir compreensão sobre transtornos, conteúdo de redes sociais enfraquece capacidade das pessoas de lidar com suas emoções.

E lá vem o teste:

(i) você esquece onde deixou as chaves do carro ou o celular? Check.

(ii) Tem dificuldade em manter o foco em tarefas entediantes? Check.

(iii) Lê vários livros ao mesmo tempo e demora para terminar? Check.

(iv) Sente incômodo com música alta quando está concentrado? Check.

(v) Esquece com frequência o que ia dizer? Check.

(vi) Sente sono pela manhã?

Korich conclui: mil checks. Sim para todas. Veredito: TDHA (transtorno do déficit de atenção por hiperatividade).

O resultado é instantâneo, mostra a jornalista: “os mestres em ‘medicina Tik Tok’ não sabem quem eu sou, de onde vim, se bebo, se fumo, se durmo bem – mas, de tão experts que são, sabem muito mais sobre mim. Funciona assim: uma lista de perguntas de ‘sim’ ou ‘não’ é lançada e o resultado vem no final, junto com a prescrição do remédio”.

Um estudo recente feito por pesquisadores da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, revelou um dado alarmante: dos sintomas relatados nos vídeos mais populares sobre TDAH no TikTok, que somam quase meio bilhão de visualizações, menos da metade se apoia em fontes confiáveis.  As redes sociais podem ser aliadas da saúde mental. Podem ajudar a espalhar informação de qualidade, aumentar a conscientização e combater estigmas e preconceitos. Mas, quando se trata de redes sociais, os likes são mais valiosos do que a ciência comprovada.

A jornalista conta que, em um vídeo, uma adolescente dança, aparece na tela uma relação de “sintomas” de autismo, como não gostar de usar meias, não misturar salada com o restante da comida e dormir com a TV ligada. “Coisas que eu achei que todo mundo fazia, mas na verdade são sintomas de autismo“, diz a legenda. Impressionante. A vítima do outro lado da tela deve abaixar os dedos da mão para cada característica com que se identifica. Se fechar os cinco dedos: bingo! Positivo para o espectro. Impressionante de novo.

E o espantoso de tudo isso, diz Korich, é que nos comentários muitos usuários engolem o diagnóstico: “Me identifiquei com todas, socorro“, “Sim para todas, mas fui diagnosticada como TDAH e agora estou confusa“, “estou descobrindo que sou autista com 56 anos“, “me identifiquei com 4, devo me preocupar?”.

Os vídeos sobre TEA (transtorno do espectro autista) e TDAH estão entre as dez hashtags relacionadas à saúde mais visualizadas do TikTok. Dos mais populares com a hashtag #autism, só 27% tinham informações precisas sobre o transtorno. Alguns prometem a “cura” para o autismo, oferecendo pulseiras magnéticas, óleos essenciais e outras tolices. Esqueceram as rezas de pastores. Ou Ora Pro Nobis. Até a ingestão de alvejantes foi recomendada como tratamento, que, pasme, alguns pais tiveram a insanidade de aplicar aos seus filhos.

As redes sociais são o lugar da charlatanice em grau semelhante ao das igrejas com cultos televisivos que todos os dias fazem “curas” até de Covid, como foi o caso de um missionário ou pastor que diz ter curado mais de 100 mil doentes de Covid. O problema é que ele mesmo foi entubado, mostrando que a realidade também produz ironias e sarcasmos. Será que ele esqueceu de orar? Ou de pagar o dízimo? Bom, deixem pra lá. Só estou fazendo perguntas. Ironia e fé às vezes se mesclam…!

Nestes tempos de cérebro podre ou apodrecimento cerebral (grupos de WhatsApp também colaboram para o brain rot), as redes sociais são um prato cheio para os pesquisadores. Redes: o lugar sem filtro. Em que um idiota se transforma em opinador.

Bom , nenhum pesquisador pode dizer que morre de tédio. Há de tudo nessa selva.

Talvez possamos fazer um teste para saber se o usuário da rede está com brain rot. Inventei o teste hoje. Vamos lá?

(i) Check 1: você não lê jornal e se informa no seu grupo de whatsapp e Instagram, Tik Tok ou X?

(ii) Check 2: fica mais de uma hora olhando filminhos de tik tok em um dia?

(iii) Check 3: há mais de dois anos não lê um livro?

(iv) Check 4: não resiste à tentação de esculhambar a postagem da qual não gostou?

(v) Check 5: é radicalmente a favor da linguagem simplificada (se você é da área jurídica ou do jornalismo a coisa é ainda mais grave) e tende a acreditar nas informações que circulam – resumidinhas – no Instagram e se sente atraído pelas imagens de sucesso?

Se você respondeu “sim” para as cinco checagens, você já está com brain rot em estágio avançado; se você respondeu quatro checagens afirmativamente, seu quadro é difícil, praticamente impossível de recuperar. Só tratamento de choque como ler livros pode lhe salvar.

Mas um adendo: livros que são genuinamente livros. Se for da área jurídica, não vale livro que reproduz o senso comum teórico jurídico. E não vale sinopse, resumidinho ou simplificado-mastigadinho. Nem musicado. Porque, se for algo desse tipo, o efeito é adverso: excesso de concursismo causa brain rot severo.

Dá para seguir no teste – um modelo premium:

(vi) Check 6: você acredita que “textão” é sinônimo de arrogância ou intelectualismo, e que qualquer ideia que exija mais de 30 segundos de atenção deve ser descartada?

(vii) Check 7: você compartilha frases de efeito sem saber quem disse (ou atribuindo a Clarice Lispector)?

(viii) Check 8: você é fofinho(a)/poliana nos grupos de whatsapp que participa, concordando com tudo e colocando emojis de positivo para qualquer platitude ou truismo?

(ix) Check 9: não sabe o que é platitude

(x) Check 10: você se sente satisfeito por “não saber dessas coisas aí” – sejam elas políticas, históricas, filosóficas ou qualquer assunto que não caiba em um meme? Parabéns, você é um entusiasta da agnotologia. Não tem cura.

Muito cuidado. O pior tipo de brain rot é o brain rot performático. Como se fosse bonito. Há algum tempo, ser estúpido era feio. Depois, passou a ser aceitável. Agora, o feio é estudar. E escrever textos difíceis (sic).

Bem, por hoje, é isso. Bocejei uma vez enquanto escrevia este texto. Deve ser TDAH! Check!

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O SUS ainda é política de Estado?

A leitura do jornal do dia 14 de abril de 2025 [1] noticiava a reconfiguração do programa “Mais acesso a especialistas”. A notícia da iniciativa, em princípio louvável, revelava, todavia, bastidores de um conflito interno no Ministério da Saúde, que explicita o quanto ainda temos a amadurecer no tema da construção, monitoramento e avaliação de políticas públicas – não obstante todo o esforço de construção que se tem desenvolvido neste campo. Mais especificamente, o quanto é preciso avançar na visão de que políticas públicas podem não ser de governo, mas sim de Estado.

Vamos localizar o tema. A notícia acima referida, dizia do esforço do Ministério da Saúde, no sentido da reformulação do referido programa. O modelo originário tinha por eixo principal, o desenho de incentivos para que estados e municípios se engajassem em iniciativas para reduzir a fila de espera de procedimentos como exames e cirurgias. A formatação que se baseava no envolvimento dos demais entes federados – é o que diz a notícia – foi reputada indesejável, eis que, dentre outros argumentos, com isso não se tinha o reforço da presença do governo federal como o garantidor da solução do problema. A alternativa agora sob estudo é o uso de parcerias com a rede privada.

A notícia, nos termos em que foi veiculada, desperta algumas perplexidades.

O SUS é política pública de Estado

A primeira delas envolve a naturalidade com que se afirma a relevância de se conferir maior visibilidade a um determinado plano federal, num segmento de serviço público que tem configuração constitucional expressa, a saber, o Sistema Único de Saúde. A execução dos serviços de saúde foi reputada pelo constituinte de 1988, como política pública de Estado, reforçada na sua pretensão de permanência e estabilidade, pelo desenho institucional e principiologia própria, todos explicitados em sede constitucional. A solução de engenharia constitucional foi reforçada, em alguma medida, pela Emenda 20/2000, que assegurava mecanismos de financiamento considerados todos os integrantes do sistema único – ferramenta que indiretamente reforça a viabilidade do sistema, que não sobrevive sem recursos que o sustentem.

A opção, boa ou má sob a perspectiva estritamente política, é do texto constitucional, e até o momento, não foi objeto de qualquer iniciativa de emenda que modifique a escolha constituinte. Nestes termos, segue mandatória, não admitindo flexibilização nos parâmetros fixados na Carta de 1988.

A pretensão de assegurar visibilidade ou identificação pela população, de que o executor do serviço seja este ente federado – ao invés de outro – externa uma visão que entende o SUS como política de governo, que admite reconfiguração conforme a opção estratégica das forças contingencialmente no poder. Afinal, buscar conferir destaque a uma específica camada da federação brasileira é desvincular-se da ideia de sistema único, com o concurso de todos os entes federados em pé de igualdade – alternativa que, a meu sentir, o desenho constitucional pretendeu exatamente evitar.

Segunda perplexidade que a iniciativa causa, está na naturalidade com que se proclamou fosse essa a intenção do esforço de reconfiguração da iniciativa então em já em andamento – alinhada com a oferta de incentivos para que estados e municípios reduzissem as filas de atendimento. A proclamação, com todas as letras, de que se buscava transformar uma iniciativa relacionada à tutela ao direito fundamental à saúde numa “marca” do governo federal revela a naturalização da já apontada visão de que se tenha no SUS não propriamente uma política de Estado. Serviços de saúde, segundo esta visão externa, compreenderiam uma dimensão de discricionariedade em relação ao seu modo de prestação, admitindo atores de maior ou menor relevância, identificados com esta ou aquela iniciativa.

Observe o ilustre leitor, que a crítica aqui formulada valeria igualmente caso se identificasse um estado ou município afirmando pretender maior visibilidade do que a conferida aos demais entes federados na execução de serviços de saúde. Iniciativa dessa natureza, deflagrada por qualquer dos entes federados milita contra uma escolha que não está na esfera de discricionariedade do agente político de plantão, eis que foi delimitado pelo constituinte.

Descaracterização do caráter hierarquizado da rede

Terceira perplexidade que a leitura da notícia desperta, diz respeito ao distanciamento de outro critério que tem sede igualmente constitucional, a saber, o caráter hierarquizado da rede de serviços públicos de saúde (artigo 198 CF).

O deslocamento de exames e cirurgias para um específico integrante do SUS (União) pela circunstância de se cuidar de serviço represado se afasta da estrutura em níveis de atendimento (primário, secundário ou terciário), e pode ainda deitar efeitos negativos em relação à premissa de integração funcional, que é de presidir a atuação do sistema único.

Também aqui é de se apontar que não se tenha alternativa contida numa esfera de livre decidibilidade do agente político. Afinal, a hierarquização da rede, referida em texto constitucional expresso (artigo 198, caput CF) organiza o sistema, referindo o paciente a estruturas específicas que hão de prover o atendimento integral, observado o nível de atendimento que sua condição de saúde exija. Não por outra razão se tem, na saúde, uma política de Estado, que é de operar a partir da premissa de estabilidade, para que as ações de saúde possam se dar de maneira orgânica, segundo um signo de planejamento.

O redirecionamento a outras estruturas – iniciativa privada inclusive – pode impactar adversamente no sistema, determinando uma representação equivocada em relação, por exemplo, a providências de continuidade do atendimento inicialmente empreendido por agente externo ao SUS, neste modelo “reconfigurado” do programa “Mais acesso a especialistas”. Mais ainda, é possível prever um contencioso potencial no que toca aos limites de responsabilidade desses agentes estranhos ao SUS, e daqueles que, por determinação constitucional, têm competência para atuar. No centro do conflito, possivelmente, se terá o paciente…

Direcionando a imaginação para o reforço do SUS

Quarta perplexidade que a notícia evidencia, é a apresentação, como uma espécie de argumento de reforço, da tese de que dificuldades de ordem burocrática tornavam mais lento o processo de incentivo de estados e municípios a aderirem ao esforço de redução das filas de atendimento. Assim sendo, a solução “criativa” seria a execução dos serviços por uma via mais célere – que compreenderia não só o redesenho em si do processo de solicitação e  financiamento da providência médica, mas também a troca dos agentes executores.

Se a operação de serviços de saúde é de se dar, como determinado pela Constituição, por intermédio de sistema único, é de se supor que, transcorridos 37 anos da formalização dessa opção institucional, os mecanismos de controle e financiamento tivessem alcançado já nível de aperfeiçoamento que tornassem menos impactante o peso da burocracia no seu funcionamento.

Em tempos de governo digital, em que a União proclama sua excelência na inserção neste admirável mundo novo, a afirmação de que a burocracia do sistema SUS seja um empecilho suficiente a determinar a reconfiguração de uma política pública desta abrangência e relevância soa paradoxal.

Mais ainda; o problema apontado – burocracia – não guarda uma relação direta de solução, com a troca dos agentes executores do serviço público cogitado. O procedimento de execução dos serviços e respectivos pagamentos não se tem por abreviado ou simplificado simplesmente porque o agente executor não é mais um estado ou município. O esforço de simplificação – princípio do governo digital e da eficiência pública, nos termos do artigo 3º, I da Lei 14.127 de 29 de março de 2021 – determinando a desejada agilidade poderia se verificar igualmente com a preservação dos entes federados integrantes do SUS como executores principais dos procedimentos represados.

Também neste ponto se tem por evidenciada uma compreensão do SUS como política de governo – e não de Estado. Afinal, o investimento de imaginação e criatividade na busca de soluções mais ágeis, que preservem as respectivas esferas de responsabilidade dos integrantes do SUS é a visão que se alinha com uma política de Estado, permanente e estável, que se beneficie desta construção incremental de soluções.

A proposição de mecanismos alternativos de agilização dos procedimentos e respectivos pagamentos, sob o argumento de que se está buscando uma solução pontual para um problema de represamento nos atendimentos, secundariza a importância de esforços de revisão estrutural do relacionamento entre os integrantes do sistema SUS – e com isso, nega em alguma medida a já referida opção constituinte por um modelo que não é de estar sujeito às contingências do cenário político. Políticas públicas de Estado são concebidas exatamente para isso.

Preservar a esfera de discricionariedade de agentes políticos é um desdobramento potencial de regimes democráticos – a proposta vencedora nas urnas é de encontrar espaço para concretização no dia a dia da gestão. Esta ideia, todavia, pode encontrar limites na própria Constituição; e isso assim se dá pela relevância do valor social que se esteja a preservar com o recorte da esfera de decidibilidade do agente político.

O SUS é mesmo um desafio; uma experiência particular no cenário nacional – mas tem se revelado, com todos os seus percalços, um grande avanço para a sociedade brasileira. Saúde é uma conquista sujeita a consolidação incremental, e não por outra razão o constituinte optou por erigi-la como política pública de Estado.

Ao gestor ávido por imprimir a sua marca, sempre restarão as (múltiplas) áreas que a Constituição deixou livre à escolha democrática. Mas não no SUS…

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