Eficiência das exportações brasileiras: comentários a partir do novo TRS

No último dia 20 de outubro foi lançado o Estudo de Tempos de Liberação de Cargas para as exportações, internacionalmente conhecido como Time Release Study (TRS) [1].

O trabalho, desenvolvido pela RFB de modo análogo ao TRS importação de 2020, buscou consolidar informações relevantes e relacionadas aos tempos médios de desembaraço, de modo a cumprir com a recomendação contida no Acordo sobre Facilitação do Comércio (AFC) da OMC [2].

A relevância desse tipo de iniciativa reside no fato de que, conforme já indicado pelo Banco Mundial, cada dia de atraso/demora nos processos de logísticos representam cerca de 1% do valor das mercadorias transacionadas. Tais custos, que acabam sendo represados ao consumidor final, trazem prejuízos em termos de competitividade dos exportadores no comércio exterior e dificultam a efetiva inserção econômica do país nos mercados globais.

Em termos de resultados obtidos, o TRS dá destaque para as seguintes conclusões: (1) 88,9% das DU-Es registradas entre junho e julho de 2023 foram parametrizadas em canal verde; (2) o modal marítimo responde por 46,9% das operações de exportação no Brasil; (3) cerca de 85% do tempo consumido no despacho ocorre na etapa entre o desembaraço e o embarque; (4) a participação dos órgãos públicos nos tempos de exportação é de cerca de 3% do total; e (5) apenas 19% das exportações são realizadas por empresas certificadas no Programa Operador Econômico Autorizado (OEA).

A partir desse quadro, as conclusões gerais enfatizadas no estudo foram: (1) o tempo médio de despacho de exportação praticado, de 107 horas, é razoável; (2) o tempo elevado entre desembaraço e embarque indica que a logística é o ponto crucial do processo quando se pensa em redução de tempos significativa; (3) a participação de órgãos públicos no tempo de exportação é pequena; e (4) a adesão dos exportadores ao Programa OEA está aquém do esperado, o que enseja a necessidade de ajustes em termos de benefícios e integração para além da RFB, de maneira a ser encarado como uma política de Estado.

Para além dos dados e interpretações apresentadas pela RFB, nos parece que existem outras lições relevantes no estudo e que necessitam ser melhor endereçadas para que o relatório produza os esperados efeitos de promoção de diálogos e aprimoramento dos procedimentos aduaneiros.

Nesse sentido, nos propomos aqui a tratar de cinco pontos que consideramos igualmente relevantes e que, apesar de contidos no relatório, não foram tratados de forma completa ou adequada. São eles: os desafios do modal rodoviário; a necessidade de se continuar investindo em automação; o impacto dos órgãos anuentes na exportação — principalmente o MAPA; a promoção da cooperação e coordenação entre órgãos de fronteira e a questão de mudança de cultura dos envolvidos no processo.

O primeiro ponto a ser destacado se refere às conclusões trazidas sobre as exportações realizadas por meio de fronteiras terrestres, ou seja, sob modal rodoviário. Isso porque, em diversos momentos o TRS traz esse canal como o mais eficiente, tendo consumido menos tempo de despacho, quando comparado aos modais marítimo e aéreo.

Em nossa visão, os números e as conclusões apresentados não refletem a situação real enfrentada nos pontos de fronteira terrestre. A principal causa disso parece ser o recorte metodológico realizado, que considera apenas o tempo despendido entre a entrada da mercadoria no recinto até o seu embarque. Ainda que essa intervalo faça sentido para a análise dos modais aéreos e marítimo, é insuficiente para o rodoviário.

Explica-se. Em razão de problemas logísticos e de infraestrutura, é comum que os principais recintos de fronteira terrestre restrinjam as admissões de mercadorias a serem submetidas ao controle aduaneiro, fazendo com que seja necessária a espera dos caminhões em vias públicas, muitas vezes com a distribuição de senhas, para o início do despacho. Assim, para se analisar o real tempo despendido entre a disponibilização da carga para despacho e a sua efetiva conclusão no canal rodoviário, faz-se necessário que esta espera — que nos demais casos ocorre dentro do recinto em forma de armazenagem — seja contemplada.

A CNI publicou em 2022, em parceria com a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), estudo com diagnóstico da fronteira de Uruguaiana, no qual as questões logísticas e de infraestrutura que dificultam as exportações foram evidenciadas. No documento é possível verificar que há diversos entraves relacionados à entrada e à saída dos veículos dos recintos alfandegados e como os mesmos impactam os tempos da exportação.

Nesse sentido, ainda que deva admitir que o TRS exportação deu maior atenção ao canal rodoviário do que o TRS importação, na medida que buscou analisar uma amostragem maior de operações e ampliar as unidades contempladas — 15 para a exportação contra apenas 2 na importação —, é necessário enfatizar que a fotografia apresentada não traduz a realidade enfrentada nas exportações por via terrestre, que está longe de ser um modelo a ser seguido ou aclamado.

O segundo ponto que merece atenção é a questão da automação. Isto porque, apesar dos significativos e relevantes esforços para a introdução da tecnologia no despacho de exportação, principalmente por meio da implementação do Portal Único de Comércio Exterior (PUComex) e do redesenho das operações por meio do Novo Processo de Exportação (NPE), o TRS deixa claro que ainda temos muitos desafios a serem enfrentados.

Nesse sentido, ainda que timidamente, o relatório destaca que ainda existem etapas manuais que consomem tempo relevante, como o caso da distribuição das DU-Es selecionadas para os canais laranja e vermelho para análise fiscal. A atribuição de um auditor para a realização do exame documental e/ou físico das mercadorias ainda necessita de intervenção de um supervisor, que deve entrar no sistema e designar manualmente o encarregado para a tarefa. Ora, além de não desse funcionamento não fazer sentido se considerada a complexidade e a tecnologia de ponta do PUComex, é de se pontuar que a designação manual coloca em xeque o respeito aos princípios de transparência e impessoalidade que devem guiar todo o processo [3].

Além disso, o TRS ainda aponta a existência de diversas unidades terrestres que adotam procedimentos inadequados em relação a inversão de etapas para o desembaraço e manifestação de dados de embarque. No relatório, a situação é descrita como “crítica” e sugere-se a exclusão das mesmas como forma de demonstrar que, ao serem desconsideradas essas condutas, o tempo médio seria positivo.

Ocorre que os problemas foram identificados em seis das 15 unidades de fronteira avaliadas, o que equivale a 40% das amostras. Portanto, nos parece que a conclusão mais adequada não é a de desconsiderar tais dados ou apenas realizar correções locais, mas de aumentar a automação do processo para evitar que as liberalidades de cada unidade possam intervir no correto desempenho do processo de exportação como um todo.

Essa conclusão de reforça em razão de outra passagem do relatório, em que se constata a existência de divergências de entendimento e interpretação das normas de exportação, levando a exigências e tratamentos discrepantes entre as unidades da RFB. Para que tais situações sejam enfrentadas, além da automação, faz-se necessário aumentar os treinamentos e diretrizes internas.

Ainda neste ponto, vale lembrar que no artigo 10 do Protocolo de Facilitação do Comércio ao Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (Atec), firmado entre Brasil e Estados Unidos, foram previstas diversas ações para aumentar a transparência, a previsibilidade e a consistência nos procedimentos aduaneiros, dentre as quais, destacam-se treinamentos e emissão de guias conduzir os trabalhos dos oficiais.

O terceiro ponto diz respeito ao impacto dos órgãos públicos na exportação, considerada pequena pelo relatório e mensurada em cerca de 3% do total. Precisamos, com a devida vênia, discordar do resultado.

Por mais que o universo de bens sujeitos ao controle administrativo de outros órgãos seja reduzido — e bem inferior ao contexto da importação —, correspondendo a cerca de 27% das operações avaliadas, para a maior parte desses casos a atuação dos órgãos públicos traz efetivo impacto em termos de tempo de desembaraço.

Conforme consta no próprio TRS, dos casos em que o processo de emissão de licenças, permissões, certificados e outros documentos por parte de autoridade administrativa (LPCOs) impacta no tempo de despacho, cerca de 96% se deve à pendência de deferimento.

Neste contexto, o MAPA parece ser o órgão mais problemático, não só por ser aquele que possui maior número de situações de intervenção, mas pelo tempo despendido para liberação. A justificativa para a situação é descrita justamente pela falta de automação e utilização de forma mais estratégica da gestão de risco, o que novamente reforça o ponto que tratamos anteriormente, sobre a importância da tecnologia para o ganho de eficiência.

Nesse sentido, verifica-se que, por mais que o NPE já esteja em vigor desde 2018, como o processo se utiliza de um PUComex que ainda não está plenamente implementado, subsistem gargalos e ineficiências a serem superados e que comprometem, em alguma medida, a noção de um processo realmente “novo”, “integrado” e “eficiente”.

O quarto ponto diz respeito à promoção da cooperação e coordenação entre órgãos de fronteira. Trata-se de assunto já debatido nesta coluna em outras oportunidades, e que se refere à necessidade de uma maior integração e cooperação entre RFB e demais autoridades com a finalidade de promover um processo de despacho que seja verdadeiramente eficiente. Para tanto, reforça-se a necessidade de que haja uma melhor organização no que se refere às vistorias de carga pelas diversas autoridades envolvidas, com compartilhamento de equipamentos e, principalmente, dos resultados de modo a se evitar múltiplas intervenções e atrasos que poderiam ser evitados.

Por fim, tem-se como um último tópico a necessidade de uma mudança de cultura dos envolvidos no processo, ou seja, tanto dos operadores, quanto das autoridades. No lado do setor privado, chamou a atenção a baixa adesão à chamada Licença Flex — também já tratada anteriormente —, que permite a utilização de uma mesma LPCO para múltiplas operações. Segundo relatos, verificou-se que, embora a maior parte das licenças de exportação sigam modelos que permitam o reaproveitamento para mais de uma exportação, a maior parte das empresas continuam solicitando novas LPCOs, mesmo possuindo licença vigente e com saldo passível de aproveitamento.

A nosso ver, a situação narrada necessita de maiores aprofundamentos para compreensão das causas desse comportamento, mas, certamente, existem um componente comportamental que precisa ser trabalhado, de modo a incentivar os exportadores e seus prestadores de serviço a fazerem melhor uso das novas tecnologias e benefícios oferecidos.

Do lado das autoridades, verifica-se que a mudança de cultura se faz necessário principalmente quando se trata dos órgãos anuentes, os quais ainda resistem à mudança/revisão de procedimentos para fins de simplificação, maior automação e integração ao PUComex e, principalmente, uso eficiente da gestão de risco.

Essa resistência se traduz, por exemplo, nos dados trazidos no estudo quando trata do OEA. Isto porque, embora exista espaço para melhoria do Programa no que se refere às competências e benefícios da RFB, é fato que sua pouca atratividade e aderência se dá pela não concretização do OEA-Integrado, visto o não envolvimento das demais autoridades administrativas. Conforme ponderado, ainda que as intervenções da RFB nos despachos aduaneiros de empresas certificadas sejam reduzidas, observou-se que as seleções para canais laranja ou vermelho pelas autoridades de controle administrativo foi maior para OEAs do que não OEAs, na proporção de 16% e 11%.

A partir dos pontos acima tratados, buscou-se trazer comentários e ponderações entendidas como necessárias para ampliar a discussão em torno do atual cenário das exportações brasileiras.

Cabe reforçar que iniciativas como a publicação do TRS são essenciais à promoção da transparência, do diálogo público-privado e da melhoria dos processos administrativos. O documento recém-lançado, ainda que não consiga refletir de forma completa o cenário atual, é ferramenta relevante ao avanço dos trabalhos em torno da facilitação do comércio e, como tal, precisa ser amplamente divulgado e avaliado pela comunidade do comércio exterior.

De nossa parte, buscamos agregar, à análise oficial, comentários e informações que julgamos relevantes, com vistas à iluminar questões muitas vezes marginalizadas do debate e que merecem ser devidamente conhecidas e endereçadas em prol do ganho de eficiência e da redução dos custos de transação.

Esperamos que a iniciativa continue sendo fomentada e que o TRS seja publicado de forma periódica e reiterada, com vistas a permitir o devido acompanhamento dos temas e avanços realizados e garantir a disponibilidade de dados fieis e atualizados sobre o universo aduaneiro brasileiro.


[1] RFB. Time Release Study – Exportações. Disponível em <https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/aduana-e-comercio-exterior/time-release-study-trs/trs-exportacao>. Acesso em 22 de out 2023.

[2] O inciso 1º do artigo 7.6 do AFC estabelece que “os Membros são incentivados a calcular e publicar, periodicamente e de maneira uniforme, o tempo médio necessário para a liberação de bens, pelo uso de ferramentas como, dentre outros, o Estudo sobre o Tempo de Liberação da Organização Mundial de Aduanas (referida no presente acordo como o “OMA”)”.

[3] A este respeito, cabe salientar que endereçamos a questão exatamente como é narrada no TRS, a despeito de que existirem informações de que a Aduana já possui recursos para realizar a distribuição de forma randômica e automatizada. A divergência posta traz um duplo questionamento, a qual cabe apenas à RFB responder: existe uma forma automatizada já disponível e que não é utilizada pela fiscalização? Ou se trata de um erro da equipe que elaborou o TRS?

Fonte: Conjur

STF critica a Justiça do Trabalho ou os “justiceiros trabalhistas”?

Não é de hoje que a Justiça do Trabalho sofre ataques midiáticos, com sugestões, volta e meia, para sua extinção. Lembro bem da época do falecido Antônio Carlos Magalhães, que não apenas pregava o próprio fim da Justiça do Trabalho como ainda, em bravata, dizia para mandar os processos para ele que tudo seria resolvido.

Quem duvida, basta acessar o site do Senado Federal que nas notícias de 3 de março de 1999 vai encontrar o seguinte:

“O presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, defendeu na manhã desta quarta-feira (dia 3) o fim ‘do TST (Tribunal Superior do Trabalho) e de toda a Justiça do Trabalho, que é anacrônica e não pode existir em um país que quer se desenvolver’. O senador lembrou o fato de que ‘ela só existe no Brasil’. Antonio Carlos lembrou ainda que há muito tempo defende a tese de acabar com os juízes classistas, ‘mas alguns conservadores no Senado, e alguns se dizem progressistas, não querem’. Ele enfatizou que sua posição é antiga e acrescentou que se tornou ‘mais radical’, defendendo a proposta de uma extinção completa da Justiça do Trabalho”.

Eu era magistrado trabalhista havia pouco mais de um ano, tendo ingressado na carreira em 28 de novembro de 1997, e fiquei estarrecido. Como assim, extinguir a Justiça do Trabalho? Será que o então presidente do Senado não consegue compreender o papel social deste ramo do Judiciário? Não entende a importância de uma Justiça sensível às questões do conflito capital-trabalho?

Fizemos movimentos, passeatas, abraços ao prédio do tribunal, enfim, atuamos positivamente contra a ideia de extinção, e quero deixar registrado que faria tudo novamente.

A única diferença é que, hoje, após quase 26 anos de magistratura, tenho maturidade suficiente para entender a crítica e, melhor, mudar para evoluir. A defesa ferrenha de um estado de coisas, santificando determinada situação, pode ser apenas obtusidade ou, no mais das vezes, medo e interesse.

O fato é que, ano após ano, as críticas se avolumam quanto à forma como a Justiça do Trabalho atua, prato cheio para seus detratores, pois frequentemente somos protagonistas na mídia de casos difíceis de serem aceitos pelos jurisdicionados e nós, orgulhosos e soberbos, creditamos nossos inimigos como algozes dos trabalhadores, como capitalistas vorazes.

Os exemplos são muitos, mas o que mais chama atenção no momento são as críticas que o próprio Poder Judiciário, pelo seu órgão máximo, o Supremo Tribunal Federal, tem feito aos Juízes do Trabalho no que diz respeito ao descumprimento de suas teses vinculantes.

O ministro Gilmar Mendes talvez seja o que mais levanta o tom contra a Justiça do Trabalho, tendo repercutido em diversas mídias sua recente fala, como na revista Veja, em 20/10/2023:

“Os caprichos da Justiça do Trabalho não devem obediência a nada: à Constituição, aos Poderes constituídos ou ao próprio Poder Judiciário. Observa apenas seus desígnios, sua vontade, colocando-se à parte e à revelia de qualquer controle”, diz Mendes.

O decano critica juízes que afrontam decisões do STF: “Os magistrados do trabalho reconhecem que a todo custo buscam se desviar da jurisprudência desta Corte: ora alegam que o precedente não é específico para a situação dos autos, ora tergiversam sobre a necessidade de valoração do acervo probatório. As justificativas são inúmeras, mas o propósito é único e bem definido: implementar o bypass dos precedentes do Supremo Tribunal Federal. Não causa espanto que tantas reclamações como a destes autos aportem na Corte”.

Óbvio que os juízes ficam incomodados, mas novamente a questão passa não apenas por reação, tentando-se criar justificativas para o comportamento dos magistrados trabalhistas e demais atores, como procuradores do Trabalho, devendo haver uma reflexão sobre como chegamos a este ponto.

Veja, é fácil criar uma narrativa para demonizar o STF: basta dizer que nós compreendemos melhor que todos o conceito de “justiça social”, que nós nos importamos com os direitos fundamentais dos trabalhadores, que nós sabemos analisar se houve ou não fraude em uma contratação de natureza civil, que apenas e tão somente nós podemos analisar os problemas do conflito capital-trabalho.

A verdade, entretanto, passa longe disso. Na minha concepção, o que a sociedade e, agora, o Supremo não aguentam mais é a figura do “justiceiro trabalhista”. O que seria isso? Como identificar essa deturpação de ideia de Justiça na área trabalhista?

Os sintomas são claros. Primeiro, o justiceiro assume uma posição ideológica para aplicar o Direito do Trabalho, moldando sua interpretação àquilo que reafirma sua concepção de mundo, pouco importando se o ordenamento jurídico diz o oposto.

Segundo, o justiceiro se especializa em criar teses sociológicas a partir de normas abstratas previstas na Constituição para embasar, em textos sensíveis, suas posições, deturpando todo o processo cognitivo de uma decisão judicial e destruindo a técnica do pós-positivismo. Basicamente o justiceiro primeiro pensa na solução do caso para depois buscar alguma argumentação justificadora.

Terceiro, o justiceiro não se dá por rogado. Se sai uma lei contrária às suas posições, arruma-se alguma inconstitucionalidade. Se surge uma tese vinculante do Supremo considerada contrária às suas concepções, que se faça uma distinção eterna para o caso concreto. O fenômeno de driblar as decisões vinculantes de tribunais superiores já foi objeto de minha crítica aqui nesse espaço.

Finalmente, o justiceiro trabalhista é dotado de extrema vaidade. Após decidir, é o primeiro a viralizar sua própria decisão. Adota o resultado do seu trabalho como verdadeira criação de obra de arte, a mais fina percepção do mundo do trabalho que ninguém antes conseguir alcançar.

Essa figura, do “justiceiro trabalhista”, é que efetivamente destrói a Justiça do Trabalho. Perdeu-se o limite entre o papel do magistrado, de interpretar e aplicar a ordem jurídica, e o de agente social de mudanças, uma espécie de revolucionário estatal que, no caso, possui ideias reacionárias, pois normalmente essa figura idealiza uma suposto passado glorioso do Direito do Trabalho da época getuliana.

Afinal, o que Antônio Carlos Magalhães e Gilmar Mendes possuem em comum? O que podemos extrair de positivo dessas críticas, do passado e atuais?

A meu ver, é simples. Não cabe aos juízes do Trabalho nenhuma forma de resistência às mudanças legislativas ou jurisprudenciais, gostemos delas ou não. Debater academicamente, discordar das decisões do Supremo, opinar sobre o que deveria ser, faz parte do jogo. O que não se pode admitir é uma postura ideológica de descumprimento da vontade do legislador e da Corte Constitucional.

Eu mesmo não concordo com a ideia de que a Justiça do Trabalho não pode mais analisar alegações de fraude em contratos civis, como hoje o STF fixa em reiteradas reclamações constitucionais e em alguns julgamentos vinculantes (transportador autônomo de carga e representante comercial). E daí? O que minha vontade pessoal importa para análise desses casos? Nada.

Antes de ser um pensador iluminado, detentor da sabedoria máxima, sou um juiz que fez um juramento e que compreende seus limites. Não decido sempre conforme minha concepção e minha vontade. Julgo na forma estabelecida validamente pelo ordenamento jurídico e como reiteradamente cristalizado na jurisprudência.

O jurisdicionado não precisa de um salvador. Ele precisa de coerência e segurança. Precisamos erradicar a figura do “justiceiro trabalhista”.

Fonte: Conjur

Algoritmo e gamificação embasam uma virada de jogo contra aplicativos na Justiça

O mês de setembro consolidou uma virada na Justiça do Trabalho. Corroborando decisões que foram assinadas em primeira instância e em um tribunal regional, a 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu o vínculo empregatício de um entregador com a Uber (Uber Eats), o que resultou em um desempate no TST. Agora, a 2ª, a 3ª, a 6ª e a 8ª Turmas da corte superior reconhecem esses trabalhadores como empregados dos aplicativos, enquanto a 1ª, a 4ª e a 5ª Turmas rechaçam o vínculo.

Turmas do TST se dividem sobre vínculo empregatício entre trabalhadores e apps
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A razão dessa mudança de entendimento está no amadurecimento de dois conceitos que têm aparecido com mais frequência nas jurisprudências trabalhistas: a gamificação do trabalho e a subordinação algorítmica. O primeiro conceito consiste no uso de técnicas de jogos para gerir a relação laboral (metas, premiações etc.); já o segundo trata da substituição da pessoa física responsável por dar ordens (subordinação clássica) pelo algoritmo, que, na prática, funciona como chefe do trabalhador.

Em setembro, magistrados assinaram, com base nesses conceitos, duas decisões sem precedentes na Justiça brasileira, ordenando que as empresas Uber e Rappi registrassem os seus colaboradores no Brasil de acordo com as regras trabalhistas. A primeira veio da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo e a segunda, do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (Grande São Paulo e litoral paulista). As duas foram provocadas por ações civis públicas originadas a partir de extensos inquéritos produzidos pelo Ministério Público do Trabalho, por isso sua extensão nacional.

Já a decisão do TST, assinada no último dia 27 pela desembargadora convocada Margareth Rodrigues Costa, foi provocada por um caso individual. Todas elas carregam argumentos semelhantes, que, de alguma forma, subvertem a maneira como as empresas dizem operar no Brasil (leia, ao final desta reportagem, o posicionamento da Uber).

Por unanimidade, os ministros da 2ª Turma do TST seguiram a fundamentação de Margareth Costa, que diz que a Uber pune os motoristas com bloqueio, coloca-os em uma espécie de ranqueamento de corridas, estabelece as demandas para cada profissional e remunera-os diretamente, “tudo de acordo com as condições empresariais estipuladas unilateralmente por ela”.

“Verifica-se, no âmbito da programação inscrita no software do aplicativo, que o modelo de gestão do trabalho das referidas empresas orienta-se, em um processo denominado de gamificação, (…), na qual trabalhadores são estimulados e desestimulados a praticarem condutas, conforme os interesses da empresa-plataforma, a partir da possibilidade de melhorar seus ganhos e de punições indiretas, que respectivamente reforçam condutas consideradas positivas e reprimem condutas supostas negativas para a empresa, em um repaginado exercício de subordinação jurídica”, diz a relatora em sua argumentação.

A cizânia na Justiça do Trabalho pode culminar em intervenções do Supremo Tribunal Federal, que, a despeito de não ter competência para tal, tem se posicionado como a última instância em questões trabalhistas, influindo nas decisões sobre vínculo. Além disso, um grupo de trabalho interdisciplinar discute uma regulamentação específica para esses trabalhadores.

À revista eletrônica Consultor Jurídico, no entanto, procuradores do Trabalho, professores e outros especialistas no assunto dizem que, caso seja formulada, uma nova norma deve partir dos direitos já consagrados pela Convenção das Leis do Trabalho (CLT), e não da redução destes. 

“O debate de outra classificação, um meio termo, um terceiro tipo, é prejudicial. Nós precisamos de regulação específica para questões específicas: controle digital, dados e gamificação. A classificação é clara, só não é aplicada pela legislação que já temos”, diz Viviane Vidigal, advogada, professora de Direito do Trabalho e estudiosa da gamificação, com teses de mestrado, doutorado e livros de doutrina que abordam o tema.

“A subordinação jurídica é um conceito que tem dinâmica. Nós o conceituamos à luz de fatos contemporâneos. Lá atrás, quando a subordinação é conceituada pela primeira vez, a gente estava olhando para uma outra forma de organizar o trabalho: o fordismo. Fábricas, uniformes, chefe dando ordem… Isso porque não havia outra possibilidade de fazer valer as regras de uma empresa. Agora, a tecnologia tirou a necessidade de uma pessoa física dando ordens para que os funcionários cumpram as regras.”

Para a professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), doutora em Direito pela UFMG e servidora da Justiça do Trabalho Ana Carolina Paes Leme, hoje “a subordinação é gamificada”.

“A ordem não é direta, não se fala para o motorista do Rio de Janeiro: ‘Vá à praia do Leblon’. Eles falam: ‘Hoje está sol, você vai deixar de ir lá?’. Ou: ‘70% da base foi para o Jardim Botânico no evento X, você vai ficar de fora?’. Então não é uma ordem direta, é uma ordem gamificada. Isso tudo é subordinação, isso são ordens. Tem cara de que não é ordem, mas, na verdade, induz ao comportamento.”

O inquérito conduzido pelo MPT que culminou na condenação na 4ª Vara de São Paulo mostrou ainda que a Uber precifica os pagamentos (que eles chamam de repasses) de acordo com o salário mínimo brasileiro. Além disso, oito em cada dez motoristas, conforme já publicado por várias pesquisas acadêmicas, têm como renda principal o trabalho no aplicativo, o que afasta as argumentações de liberdade e de que a prática é um complemento financeiro. 

Disse um ex-gerente-geral da Uber no Rio de Janeiro, conforme mostrado no inquérito contra a empresa: “Há um time de precificação global na matriz; a cidade realiza planilha propondo determinado preço, que deve ser aprovado pelo presidente global; a planilha leva em conta distância, número de viagens por hora, trânsito, salário mínimo, combustível e o valor do carro e respectiva depreciação; que também é comparada a tarifa com as praticadas pelos táxis; que quanto mais barato, mais o negócio cresce”.

Dano à arrecadação e falsa liberdade
A decisão da 4ª Vara paulistana estabeleceu uma multa bilionária à Uber a título de danos morais coletivos, o que gerou ruído no Poder Judiciário, tendo em vista que é uma sentença de primeira instância. A condenação, no entanto, partiu de uma investigação do MPT que já dura sete anos, e leva em consideração fatores como a ausência de arrecadação por parte do Estado nesse período (incluindo valores previdenciários) e a prática de fraude trabalhista por parte da Uber. 

A atuação do MPT nesse terreno é ampla. Em novembro de 2021, quando o órgão ajuizou a ação que no mês passado resultou em condenação na Justiça do Trabalho de São Paulo, corriam 625 inquéritos contra aplicativos, mais de um terço deles contra a Uber. 

De acordo com os estudiosos entrevistados pela ConJur, as decisões favoráveis aos aplicativos tinham como base duas alegações: não há subordinação a uma pessoa física, portanto esta não resta configurada em nenhuma hipótese; a empresa não presta serviços de transporte, mas de tecnologia, conduta que é apontada como fraudulenta pelo MPT. A companhia ainda alegou em suas argumentações que não contrata os motoristas, mas que eles a contratam.

A análise dos dados produzidos pelas próprias empresas, que estão sob sigilo no processo, foi fundamental para mudar essas percepções, segundo o procurador do MPT Renan Kalil, que chefia a Coordenadoria Nacional de Combate à Fraude nas Relações de Trabalho (Conafret) e atua na ação.

“Não existe liberdade. Estamos diante da empresa impondo regras que o motorista deve cumprir, e se ele não cumprir há consequências, que afetam diretamente seu trabalho. Dizer que é um trabalho apenas porque a pessoa pode escolher quando liga o aplicativo é um pouco distante do que acontece de fato a partir do momento em que você está conectado trabalhando.”

No caso que envolve a Rappi, cuja origem também é um inquérito conduzido por Kalil, as informações fornecidas pela empresa mostram que os entregadores têm pontuações e, a partir desses números, os trabalhos são distribuídos. Para receber mais trabalhos em determinado bairro no horário de pico, é necessária determinada quantidade de pontos. Esses pontos são acumulados a partir das circunstâncias de cada entregador. Na prática, os trabalhadores não sabem como funciona essa distribuição.

“É uma série de regras que eles colocam para te fazer trabalhar conforme os interesses deles, de direcionamento de entregadores.” 

Em relação à possível regulamentação, Kalil diz que “o ponto de partida deveriam ser os parâmetros de proteção trabalhistas que temos hoje em dia”. O procurador cita o artigo 6º da CLT, parágrafo único, implementado na reforma de 2011, que, em tese, já deveria ser utilizado para reconhecimento de vínculo:

“Artigo 6º — Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.
Parágrafo único — Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

Sobre as experiências de outros países (na Alemanha, por exemplo, os motoristas de aplicativos são tratados como empregados formais), Kalil cita algumas normativas aprovadas na Espanha, que colocam regras sobre o algoritmo, inclusive sobre sua transparência, como dispositivos interessantes para serem aplicados no Brasil. “A capacidade de produzir provas do trabalhador e da plataforma é muito discrepante. A plataforma tem todos os dados, organiza o negócio, ela está melhor posicionada para argumentar que há outra relação que não a de emprego.”

Também procurador do MPT e membro do grupo de trabalho que discute o tema em Brasília, Ilan Fonseca foi, por quatro meses, motorista da Uber para escrever sua tese de doutorado. Ele observou empiricamente as estratégias da empresa para tentar burlar o vínculo, além de outras situações que configuram subordinação. 

“A Uber consegue fiscalizar não apenas a velocidade do carro, o trajeto do carro, mas até o comportamento do motorista dentro do carro.” Ele afirma que toda a relação de trabalho se dá nos moldes tradicionais, com recompensas, caso as metas sejam cumpridas, e punições, caso não sejam.

“Se a ordem é dada, ela é supervisionada. Se não é cumprida, aí você vai ter, na sequência, esse poder punitivo. Esse poder punitivo virá na forma de bloqueios, de penalidades impostas no rendimento desse trabalhador, na impossibilidade de você ascender profissionalmente. A Uber trabalha com planos de carreira, onde, à medida em que você vai cumprindo mais tarefas, você vai subindo de posto, vai podendo se posicionar em aeroportos, vai podendo ter acesso a melhores corridas”, conta Fonseca. 

No fim, diz o procurador, “se você é um trabalhador que não atende aos interesses da empresa, você pode vir a ser desligado, e o que a gente tem visto é que essas condições geralmente não têm nenhuma transparência. Então, esses requisitos, que para o Direito de Trabalho são muito tradicionais, eles se encontram todos presentes nessa relação entre aplicativos e motoristas”.

No caso dos bloqueios, a Justiça já reconheceu em várias decisões que a Uber não explica o porquê das punições, ou seja, não há transparência em relação às restrições impostas aos trabalhadores. Essa prática reforça a ideia de que a empresa tem poder de punição semelhante à demissão sem justa causa, traço das relações de emprego celetistas. 

A estratégia, de acordo com a pesquisadora Viviane Vidigal, faz parte de um organograma para mascarar o vínculo. Depois da subordinação, a empresa usa sua atividade-fim para tentar burlar a CLT. 

“As empresas se afirmam como da área de tecnologia, para afastar a sua outra atividade-fim. Por quê? Parte da magistratura sabe que subordinar-se é estar na atividade-fim da empresa, integrado a seus fins. Se eu entendo que a empresa é de tecnologia e minha atividade é de transporte, eu não me enquadro como empregado atrelado à atividade-fim. Portanto, a subordinação estrutural está afastada, e isso aparece nas decisões expressamente.”

Outro lado
Em nota enviada à ConJur, a Uber diz que “não usa ‘gamificação’ nem aplica ‘punições’ para obter ‘subordinação algorítmica’, tese interpretativa sem qualquer respaldo na legislação e que não se sustenta ao ser confrontada com a realidade”.

“A Uber esclarece que vai recorrer da decisão proferida pela 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, que representa entendimento isolado e contrário ao de outros casos já julgados pelo próprio Tribunal, pelo STJ e pelo STF. A empresa considera que o acórdão da 2ª Turma não avaliou adequadamente o conjunto de provas produzido no processo e se baseou, sobretudo, em posições doutrinárias de fundo ideológico que já foram superadas, inclusive pelo Supremo”, diz a nota. 

“As pessoas que se cadastram na plataforma são trabalhadores independentes que utilizam a plataforma de intermediação digital da Uber para gerar renda com autonomia e flexibilidade. Escolhem livremente os dias e horários de uso do aplicativo, se aceitam ou não viagens/entregas e, mesmo depois disso, ainda existe a possibilidade de cancelamento. Não existem metas a serem cumpridas, não se exige número mínimo de viagens/entregas, não existe superior hierárquico nem encarregado de supervisão do serviço, não há obrigação de exclusividade, não existe controle ou determinação de cumprimento de jornada mínima”, continua a empresa.

Processo 1001416-04.2021.5.02.0055 (Rappi)
Clique aqui para ler o acórdão

Processo TST-RR-536-45.2021.5.09.0892 (Uber Eats)
Clique aqui para ler o acórdão 
Processo 1001379-33.2021.5.02.0004 (Uber)
Clique aqui para ler a decisão

Fonte: Conjur

Fintech & Crypto: Afinal, o que é um ativo virtual?

Lei nº 14.478/2022 sequer foi regulamentada e já tramita um Projeto de Lei do Senado para redefinir ativo virtual, buscando uma melhor delimitação do campo de aplicação da norma. Trata-se do PL nº 4.365/2023, protocolado em 6 de setembro pela senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS).

A senadora também está à frente do Projeto de Lei nº 3.706/2021 que traz regras penais para pirâmides financeiras e a previsão de segregação do patrimônio dos prestadores de serviços de ativos virtuais e de seus clientes. O PL 3.706/2021 já foi aprovado pelo Senado e remetido à Câmara dos Deputados, enquanto o PL 4.365/2023 ainda aguarda designação de relator.

Neste texto, exploro a definição vigente de ativo virtual, suas limitações e o que a nova proposta legislativa tenta remediar.

O conceito de ativo virtual
A Lei nº 14.478/2022 traz uma definição de ativo virtual por exclusão para definir a sua incidência. Ou seja, sabemos que não são ativos virtuais:

  1. Valores mobiliários, ativos financeiros e “quaisquer ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento”;
  2. Moeda fiduciária nacional ou estrangeira;
  3. Moeda eletrônica definida na Lei nº 12.865/2013 (em seu artigo 6º, VI);
  4. Pontos e recompensas de programas de fidelidade, bem como “instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços”.

Sujeita-se ao regime da norma, portanto, qualquer representação digital de valor de emissão e circulação eletrônica usada para pagamento ou investimento que não se enquadrar nas exclusões indicadas. A lei traz, ainda, uma delegação normativa para que a regulamentação infralegal determine que ativos virtuais serão efetivamente regulados.

Há, pelo menos, dois problemas relevantes na abordagem adotada pelo legislador.

Primeiro, para definir a aplicação da lei ou das regras da CVM, é preciso analisar se determinado token é um valor mobiliário, o que não é uma tarefa trivial — já escrevi sobre o tema anteriormente. Para contornar essa dificuldade, a CVM tem acolhido projetos que assumam, desde o início, que os tokens são valores mobiliários e, com isso, os ofertem segundo regimes mais flexíveis, seja pela norma de crowdfunding ou no contexto do sandbox regulatório da autarquia. Esse é o caso, por exemplo, de vários tokens de renda fixa.

O segundo problema diz respeito à potencial ineficácia da lei, que pode deixar de fora quase todos os principais tokens em circulação, com base em volume e capitalização de mercado, segundo o portal CoinMarketCap.

A grande maioria deles ou consiste em stablecoins, tokens referenciados em ativos financeiros ou tokens de utilidade, definições que, a meu ver, se enquadram nas exceções ao conceito de ativo virtual. Vejamos.

Stablecoins e tokens referenciados em ativos financeiros
As stablecoins, emitidas com (suposto) lastro em dólar seriam ativos virtuais, não são emitidas por bancos centrais ou entidades públicas, são títulos privados que encapsulam uma moeda fiduciária. Nessa hipótese, poderíamos afirmar que um token que, em essência, é uma referência a uma moeda fiduciária — uma das exceções ao conceito de ativo virtual da Lei nº 14.478/2022 — não é um ativo virtual, nos termos dessa lei. Só poderíamos concluir de modo diverso se a natureza de emissão por banco central ou entidade pública fosse inerente ao termo utilizado na lei (moeda nacional ou estrangeira) e, por isso, não precisasse ser expressamente declarada.

Pergunta semelhante poderia ser feita, por exemplo, a respeito de um token de fração de precatório, letra financeira ou, então de CCB que não seja considerado valor mobiliário. Nesses casos, seria o token um ativo financeiro e, portanto, não estaria sujeito ao regime da Lei de Ativos Virtuais?

A dúvida decorre do fato de que o token, em si, é apenas um “envelope”, um container de algum bem ou direito. Desse modo, precisamos determinar se a natureza do bem ou direito encapsulado é ou não imediatamente aplicável ao token. A depender da resposta, tokens referenciados em ativos financeiros e stablecoins podem ficar de fora do campo de incidência da Lei nº 14.478/2022.

E qual seria a consequência prática desta exclusão? Uma exchange que ofereça apenas serviços de negociação relacionados a stablecoins ou tokens que referenciam ativos financeiros, por exemplo, não precisaria obter autorização do Banco Central para oferecer seus serviços no Brasil, não sendo obrigada a prestar informações a autoridades, implementar mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro ou qualquer outra regra exigida dos prestadores de serviços de ativos virtuais, inclusive permitindo transações que, em essência, equivalem a operações de câmbio. Seria esse o objetivo do legislador?

Tokens de utilidade
E o que dizer de um token que referencia um imóvel ou uma fração deste? Nesse caso, o token foi emitido para permitir a fruição do imóvel e de direitos correlatos, aproximando-se da exceção ao conceito de ativo virtual expresso em “instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços”. No jargão do setor, essa é a definição de token de utilidade (utility token), categoria que é a preferida por muitos projetos, por afastar-se de uma natureza puramente financeira (e, com isso, do conceito de valor mobiliário).

A meu ver, tokens como ETH, BNB, SOL, ADA, TRN e outros com o maior volume de negócios e de capitalização podem ser enquadrados nessa definição, porque oferecem a fruição de algum serviço, ainda que de difícil identificação, além da expectativa de valorização em mercado secundário (o que, penso eu, é o motivo determinante de sua aquisição por muitos). Igualmente, tokens como os emitidos no âmbito de carteiras digitais (caso do NuBank e Mercado Livre) também escapariam da Lei nº 14.478/2022.

Ao contrário do regulador norte-americano, a CVM não tem enquadrado esse tipo de token na categoria de valor mobiliário, ainda que exista um mercado secundário para tokens de utilidade e que exista uma expectativa de benefício econômico, por parte de seus adquirentes que decorre de uma entidade responsável pela sua continuidade e, em última análise, pelo ganho dos investidores nas negociações.

Se os tokens de utilidade não são, em regra, valores mobiliários, e, ao mesmo tempo, enquadram-se na exceção ao conceito de ativo virtual da Lei nº 14.478/2022, então podemos concluir que, à semelhança do caso das stablecoins e tokens referenciados em ativos financeiros, exchanges que listem apenas tokens de utilidade não se sujeitarão ao regime que pretende proteger investidores-consumidores nesse mercado.

O que sobra?
Se a argumentação apresentada for válida, um ambiente que ofereça serviços relacionados a stablecoins, tokens referenciados em ativos financeiros e tokens de utilidade (ou seja, a maioria dos tokens existentes), não precisaria se submeter ao regime jurídico dos ativos virtuais no Brasil. Talvez fosse possível enquadrar no conceito de ativo virtual da Lei nº 14.478/2022 apenas o bitcoin, dada a sua completa ausência de fruição de algum tipo de produto ou serviço identificável, conclusão que também poderia ser questionada.

Assim, o campo de incidência da referida lei restaria seriamente comprometido, salvo alguma ginástica hermenêutica pelo regulador ou pelo Poder Judiciário.

O que mudar? É preciso mudar algo?
O PL 4.365/2023 mantém as exceções ao conceito de ativo virtual já vigentes, mas tenta remediar a situação fragmentado o atual caput do artigo 2º em dois incisos. A regra geral atual é:

considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento, exceto (…)

A proposta do PL 4.365/2023 é dividi-la em:

I – qualquer representação virtual de um valor, seja ele criptografado ou não, que não seja emitido por banco central ou qualquer autoridade pública, no país ou no exterior, ou represente moeda eletrônica de curso legal no Brasil ou moeda estrangeira, mas que seja aceito ou transacionado por pessoa física ou pessoa jurídica como meio de troca ou de pagamento, e que possa ser armazenado, negociado ou transferido eletronicamente.

E, ainda:

II – ativos virtuais intangíveis (“tokens”) que representem, em formato virtual, bens, serviços ou um ou mais direitos, que possam ser emitidos, registrados, retidos, transacionados ou transferidos por meio de dispositivo eletrônico compartilhado, que possibilite identificar, direta ou indiretamente, o titular do ativo virtual, e que não se enquadrem no conceito de valor mobiliário disposto no art. 2° da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976.

A proposta do inciso I parece tentar resolver o problema das stablecoins, mas a leitura do dispositivo acaba revelando uma redação ambígua, pois não se saber se a expressão “ou represente moeda eletrônica de curso legal no Brasil ou moeda estrangeira” deve ser negada (destaquei):

I – qualquer representação virtual de um valor (…) que não seja emitido por (…) ou represente moeda eletrônica de curso legal no Brasil ou moeda estrangeira

Assim, uma representação virtual de valor que não represente moeda fiduciária é ou não ativo virtual? E a que representa moeda fiduciária? Em qualquer caso, a redação poderia ser simplificada para garantir que as stablecoins fossem explicitamente incluídas no conceito de ativo virtual pela mera alteração das exceções:

Art. 3º Para os efeitos desta Lei, considera-se ativo virtual (…) não incluídos: I – moeda nacional e moedas estrangeiras, emitidas por bancos centrais e entidades públicas;

A parte final do inciso II proposto é desnecessária, pois valores mobiliários já são exceção mantida pelo próprio Projeto de Lei. A definição deste inciso traz, ainda, a possibilidade de um ativo virtual referenciar bens, direitos e serviços, mas apenas torna mais longa a definição anterior, sem trazer nenhum benefício claro em termos de delimitação do campo de incidência da norma.

Com relação aos tokens de utilidade, pelo que procurei expor nesse texto, penso que o problema não está na definição de ativo virtual, mas nas exceções trazidas pela regra, essas sim merecedoras de reparo.

E daí?
Aqui apresento uma conclusão do raciocínio desenvolvido ao longo do texto: se o objetivo é regular os serviços de emissão, intermediação, custódia e pagamentos envolvendo ativos virtuais, o critério de incidência da norma precisa levar em consideração o “envelope” (ainda que vazio), pois é o ecossistema de emissão e circulação de tokens que traz riscos específicos.

Do mesmo modo que derivativos são regulados à parte de seus ativos subjacentes, a disciplina jurídica dos ativos virtuais precisa tratá-los de modo apartado dos bens e direitos que referenciam ou representam. Destaco que essa visão é contrária, à primeira vista, à ideia de que “a regulação precisa ser neutra com relação à tecnologia”. Porém, pensar de modo diverso resulta em esvaziar completamente o regime da Lei nº 14.478/2022.

Não existem soluções fáceis para problemas difíceis. Porém, nesse caso, a CVM parece ter acertado em cheio ao fornecer, na Resolução nº 175/2023 uma definição de criptoativo (e não ativo virtual) que pode endereçar os problemas apontados nesse texto:

Art. 2º (…) X – criptoativo: ativo representado digitalmente, devendo possuir no mínimo as seguintes características:
a) sua existência, integridade e titularidade são protegidas por criptografia; e
b) suas transações são executadas e armazenadas utilizando tecnologia de registro distribuído;

Poderíamos manter as exceções relativas a valores mobiliários e moedas fiduciárias (deixando expressa a sua emissão por entidades públicas), mas, a meu ver, os serviços relativos a tokens com as características da definição acima, ainda que referenciem ativos financeiros, milhas e pontos de programas de fidelidade, deveriam ser abrangidos pela Lei nº 14.478/2022. Esse seria um excelente ponto de partida para sinalizar ao mercado quais são os negócios e riscos que se pretende regular.

Fonte: Conjur

Os precedentes de subcapitalização do Carf

Nesta semana trataremos dos precedentes do Carf acerca da dedutibilidade das despesas com juros pagos a pessoas jurídicas relacionadas e localizadas no exterior nos períodos anteriores e posteriores à edição da Lei nº 12.249/10, que instituiu as regras de subcapitalização no ordenamento jurídico brasileiro.

Em 1987, a OCDE publicou o relatório “Thin Capitalisation — Taxation of Entertainers, Artistes, and Sportsmen”, no qual foi trazida de forma pioneira a questão do excesso de endividamento de uma pessoa jurídica e a consequente não dedução das despesas de juros excessivas.

As normas específicas sobre subcapitalização somente surgem no Brasil com a edição da Medida Provisória nº 472/09, que trata especificamente de tal matéria nos seus artigos 24 e 25 e que foi convertida na Lei nº 12.249/10.

Consta expressamente na exposição de motivos que seus artigos 24 e 25 têm por objetivo “evitar a erosão da base de cálculo do IRPJ e da CSLL mediante o endividamento abusivo realizado da seguinte forma: a pessoa jurídica domiciliada no exterior, ao constituir subsidiária no País, efetua uma capitalização de valor irrisório, substituindo o capital social necessário à sua constituição e atuação por um empréstimo, que gera, artificialmente, juros que reduzem os resultados da subsidiária brasileira”.

Diz ainda a exposição de motivos que: “a medida torna os juros considerados excessivos indedutíveis, segundo critérios e parâmetros legais”. “O objetivo é controlar o endividamento abusivo junto a pessoa vinculada no exterior, efetuado exclusivamente para fins fiscais.”

A partir da leitura dos referidos dispositivos legais, nota-se que o artigo 24 da Lei n. 12.249/10 diz respeito à situação de endividamento excessivo de pessoa jurídica brasileira com parte vinculada no exterior, ao passo que o artigo 25 da referida lei se refere ao endividamento excessivo de pessoa jurídica brasileira com pessoa física ou jurídica residente, domiciliada ou constituída no exterior, em país ou dependência com tributação favorecida ou sob regime fiscal privilegiado.

Caso haja um endividamento excessivo, a parcela excedente das despesas financeiras será considerada indedutível para fins de apuração do IRPJ e da CSLL.

Ainda que as regras de subcapitalização tenham somente surgido com a Lei nº 12.249/10, havia atuações relativas à indedutibilidade de juros contratados com partes relacionadas em períodos anteriores com base no artigo 47 da Lei 4.506/64, no sentido de que tais despesas não seriam necessárias.

Feitas as considerações gerais sobre o tema, passaremos à análise dos precedentes do Carf sobre o assunto nos períodos que antecedem a edição da Lei nº 12.249/10.

No Acórdão 101-95.014 (de 15/06/05), decidiu-se, por maioria de votos, pelo provimento ao recurso voluntário, garantindo-se a dedutibilidade das despesas financeiras.

A autoridade fiscal entendia que a despesa financeira relacionada ao empréstimo para aquisição da Kolynos deveria ser considerada como não necessária, uma vez que os recursos financeiros deveriam ter sido aportados como capital social e não como empréstimo, além do que a transferência de imediato dos recursos do empréstimo para empresa no Uruguai demonstraria a desnecessidade dos empréstimos.

Por sua vez, o voto vencedor do referido acórdão se pautou nos seguintes pontos: (i) efetividade do empréstimo; (ii) inexistência de regra jurídica específica para limitação de dedutibilidade em casos de subcapitalização; (iii) possibilidade jurídica de uma empresa nacional contrair empréstimos de sua controladora no exterior; e (iv) haveria a tributação de tais juros pelo imposto de renda na fonte no momento de remessa de tais valores ao beneficiário no exterior.

Dessa forma, entendeu-se que não haveria óbice na legislação brasileira à tomada de empréstimos por empresas relacionadas, de forma que as despesas financeiras relacionadas seriam dedutíveis.

A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional interpôs recurso especial contra o referido acórdão, sendo que a decisão foi reformada no âmbito no Acórdão 9101-00.287 (de 24/08/09), pelo qual foi dado provimento ao recurso fazendário pelo voto de qualidade.

Constou no voto vencedor do referido acórdão que ainda que inexistisse à época norma de subcapitalização, havia regra sobre o critério geral de dedutibilidade das despesas, que exige que elas sejam necessárias para sejam dedutíveis.

Nesse sentido, foram entendidas como desnecessárias (e consequentemente indedutíveis) as despesas com juros relativas a empréstimo efetuado por meio de um contrato de mútuo, em que a mutuante era sócia que detinha 99,99% do capital social da mutuária e dispunha de recursos para integralizar o capital. Por mais que houvesse a possibilidade de dedução de juros sobre o capital próprio se os recursos tivessem ingressado por meio de aumento de capital, isso não teria o condão de equalizar os efeitos tributários advindos de uma eventual capitalização.

No Acórdão 1101-001.180 (de 28/08/14), a turma negou provimento ao recurso voluntário de forma unânime, considerando que as despesas financeiras de empréstimo em favor da matriz no exterior seriam indedutíveis na base da CSLL, uma vez que tais despesas teriam sido incorridas por mera liberalidade por serem desnecessárias para a manutenção da fonte produtora.

No Acórdão 1103­001.181 (de 3/3/15), a turma decidiu, por unanimidade, pela dedutibilidade de despesa financeira decorrente de empréstimo da contribuinte com sócia no exterior.

Por mais que a autoridade fiscal tenha manifestado o entendimento de que não ficou comprovada a real necessidade da geração de despesas financeiras, dado que elas não guardavam relação com a atividade da contribuinte e com manutenção da fonte produtora, a turma concluiu pela dedutibilidade tendo em vista que houve o cumprimento dos requisitos do mútuo, tais quais o registro no Banco Central e a adequada contabilização.

No Acórdão 1402-002.780 (de 17/10/17), foi negado provimento ao recurso voluntário por voto de qualidade. Para tanto, as despesas financeiras com partes relacionadas foram consideradas desnecessárias também para a CSLL, com base no artigo 13 da Lei n. 9.249/95, dispositivo no qual há menção da expressão “independentemente do disposto no artigo 47 da Lei 4.506/64”, o que implicaria que o referido artigo 47 também se aplicaria para a CSLL.

Com relação aos acórdãos que se referiam a períodos posteriores à edição da Lei nº 12.249/10, destaque-se que no Acórdão 1402-002.342 (de 05/10/16), a turma negou provimento ao recurso de ofício, de forma unânime, em caso envolvendo a dedutibilidade de despesa financeira incorrida no ano-calendário de 2010.

Assim, prevaleceu o entendimento de que as regras de subcapitalização deveriam obedecer ao princípio da anterioridade sendo aplicáveis tão somente de 2011 em diante considerando que a conversão da Medida Provisória nº 472/09 somente ocorreu em 2010. Além disso, somente houve regulamentação da subcapitalização em 2011 com a edição da Instrução Normativa RFB nº 1.154/11, que não previa a aplicação do seu teor para o ano de 2010, expressamente prevendo que sua vigência se inicia a partir de sua publicação.

No Acórdão 1302-002.011 (de 24/01/17), foi dado provimento, por unanimidade, ao recurso voluntário em caso que a credora do empréstimo no exterior era uma sociedade holding sediada na Dinamarca.

A autuação fiscal se baseava no fato de que a Instrução Normativa RFB nº 1.037/10 estabelecia que seria um regime fiscal privilegiado aquele aplicável às pessoas jurídicas constituídas sob a forma de “holding company” que não exercessem atividade econômica substantiva.

Todavia, a turma firmou convicção de que no caso analisado não haveria comprovação por parte da autuação fiscal de que a sociedade holding não exercia atividade econômica substantiva, constando no voto que cabia ao autuante perquirir se a entidade tinha capacidade operacional e instalações para o exercício da gestão e efetiva tomada de decisões relativas à administração.

No Acórdão 1402-002.443 (de 10/04/17), a turma decidiu dar provimento ao recurso voluntário, por maioria de votos.

Nessa linha, a turma manifestou o entendimento de que as relações de endividamento internacional intragrupo são permitidas, desde que observadas as regras de subcapitalização instituídas pela Lei nº 12.249/10 e pela Instrução Normativa RFB nº 1.154/11. 

Ademais, como resposta à premissa da autuação de que os recursos que ingressaram por meio de empréstimos deveriam ter sido internalizados como aumento de capital, a turma ponderou que as despesas com juros dos empréstimos equivaleriam aos valores de juros sobre o capital próprio a serem pagos à sócia investidora, que poderiam ser deduzidos se a contribuinte tivesse optado por aportar o mesmo montante do empréstimo no capital social da companhia.

No Acórdão 1201-003.083 (de 13/8/19), foi dado provimento, por maioria de votos, ao recurso voluntário. No presente caso, o acórdão recorrido da DRJ mencionava que a recorrente utilizou-se de um artifício contábil de registrar como empréstimo recursos que poderiam ter sido capitalizados.

Prevaleceu no Carf o entendimento de que os recursos do empréstimos foram incorporados ao patrimônio e empregados nas atividades da contribuinte, inexistindo comprovação de que haveria desproporção entre o mútuo e o capital social.

Assim, estaria errada a premissa da fiscalização de que houve a simulação de mútuo como forma de dissimular uma integralização de capital, uma vez que a possibilidade de aumento de capital seria uma opção e não uma obrigação.

Constou ainda no voto que não há que se perquirir o motivo do contribuinte ter optado pela forma de mútuo, visto que este é um procedimento usual e que haveria ainda a possibilidade de dedução de juros sobre o capital próprio caso os recursos tivessem ingressado por meio de aumento de capital.

No Acórdão 1301-004.133 (de 15/10/19), a turma deu provimento ao recurso voluntário por maioria de votos.

A autuação fiscal menciona que a opção do recebimento de recurso pela forma de mútuo em detrimento de aumento de capital teria acarretado a dedução indevida a títulos de despesas de juros.

Contudo, prevaleceu o entendimento de que a forma de recebimento de recursos por uma entidade é uma decisão totalmente discricionária dos sócios, não havendo qualquer impedimento legal que obrigue ao aumento de capital da empresa como alternativa à realização de mútuo.

Caberia tão somente à autoridade fiscal observar se os contratos de mútuo com empresa ligada sediada na Holanda atenderam ou não os preceitos da Lei n. 12.249/10, sendo que no caso concreto a fiscalização sequer tangenciou a matéria ainda que a referida lei já estivesse vigente.

No Acórdão 1201-003.203 (de 16/10/19), foi dado provimento ao recurso voluntário por maioria de votos.

Para tanto, foi preponderante o entendimento de que em nenhum momento a autoridade fiscal descaracterizou a existência e a efetividade do empréstimo, assim como não houve fundamentação pela fiscalização de descumprimento das regras de preços de transferência ou de subcapitalização.

Desse modo, a premissa de que a recorrente poderia ter recebido os recursos como aumento de capital ao invés de empréstimos carece de base legal, inexistindo dispositivo legal que autorize a desconsideração de ato jurídico lícito e efetivo, como a operação de empréstimo externo sob a equivocada alegação de que a contribuinte poderia receber recursos como aumento de capital.

No Acórdão 1201-003.320 (de 12/11/19), foi negado provimento ao recurso voluntário por voto de qualidade.

No caso em tela, a atuação fiscal se fundamentou tanto na regra de subcapitalização considerando que o credor era beneficiário de regime fiscal privilegiado, quanto no fato que a despesa não seria necessária.

Nessa linha, a Instrução Normativa RFB nº 1.037/2010 incluiu as “holding companies” holandesas como regime fiscal privilegiado, no entanto, a Instrução Normativa RFB nº 1.045/10 retificou este dispositivo de modo a incluir a ressalva de somente estaria abrangida no regime privilegiado a holding que não exercesse atividade econômica substantiva.

Ainda em 2010 por meio do Ato Declaratório Executivo nº 10/10, foi suspensa a execução do disposto na mencionada Instrução Normativa, sendo que o referido ato declaratório só veio a ser revogado em 2015 pelo Ato Declaratório Executivo nº 03/15.

No voto vencedor, o relator pontuou que a recorrente já sabia em 2011 que a sua credora era “holding company” holandesa e que havia restrição por conta da sua classificação como regime fiscal privilegiado, devendo arcar com as limitações de dedutibilidade de subcapitalização, bem como entendeu que a fiscalização conseguiu comprovar que a credora não tinha atividade econômica substantiva.

No que tange ao Ato Declaratório Executivo nº 10/10, constou no voto vencedor que a classificação como regime fiscal privilegiado permanecia vigente, estando apenas com a sua eficácia suspensa.

Em sentido oposto, houve declaração de voto no qual constou o entendimento de que não seria possível atribuir os efeitos de regime privilegiado até a edição do Ato Declaratório Executivo nº 03/15, sendo que a análise do pedido de revisão da condição de regime fiscal privilegiado somente produziria efeito a partir da data da publicação do ato declaratório que revoga o efeito suspensivo nos termos da Instrução Normativa nº. 1.530/14.

Nos Acórdãos 1402-004.360 e 1402-004.361 (de 21/01/20), foi negado provimento ao recurso voluntário por maioria de votos sob fundamento de que a subcapitalização estaria presente no ordenamento jurídico desde 1964 a partir da regra geral de dedutibilidade da despesa necessária, ainda que não houvesse regras específicas estabelecendo limites objetivos, o que só veio a surgir com a Lei nº 12.249/10, que já seria aplicável ao próprio ano-calendário de 2010.

No Acórdão 1401-006.291 (de 16/11/22), foi dado provimento ao recurso voluntário por maioria de votos.

A autuação fiscal partia da premissa que não se aplicaria o princípio da anterioridade (anual ou nonagesimal) às regras de subcapitalização instituídas pela então Medida Provisória nº 472/09, pois não haveria majoração de tributo, mas tão somente a definição de nova hipótese de incidência. No que tange à falta de regulamentação da referida norma para fins de determinação exata do cálculo do endividamento, constou no Acórdão da DRJ que em casos de dúvidas na aplicação da norma, a recorrente deveria ter formulado consulta sobre os dispositivos da legislação.

Por sua vez, preponderou no Carf o entendimento de que tendo em vista que a Medida Provisória foi convertida em lei em 11/6/10, ela não poderia ser aplicada em 2010. Ademais, a aplicação efetiva das normas de subcapitalização somente poderia ocorrer após a edição da Instrução Normativa RFB nº 1.154/11, visto que até tal regulamentação, os artigos 24 e 25 da Lei nº 12.249/2010 careciam de eficácia técnica.

Diante do exposto, nota-se que com a edição da Lei n. 12.249/10 foram criados limites objetivos à dedutibilidade dos juros, de forma que a maior parte dos acórdãos sobre o tema se refere aos primeiros períodos de aplicação da referida norma, mas ainda discute-se também a questão mais subjetiva sobre a necessidade da despesa financeira quando os recursos dos empréstimos poderiam ter ingressado nas entidades como capital social.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

Fonte: Conjur

Sistema acusatório: o juiz das garantias e o interesse dos juízes

O juiz das garantias, quando for introduzido no sistema inquisitorial brasileiro em vigor, deve servir — quem sabe tão só — aos juízes; quando, por evidente, deveria servir a todos. É razoável tentar explicar tal assertiva de modo a que, antes de tudo, os próprios juízes possam melhor esclarecer a situação e, depois, aderiram ao acolhimento da refundação do sistema, a fim de que se faça vivo, de fato, o sistema acusatório.

Todos, de uma maneira geral, sabem sobre as diferenças entre os sistemas processuais — muito em voga nos últimos anos — mas, agora, é preciso que não reste dúvida a respeito do tema, de modo a que eventual preconceito contra o sistema acusatório não prejudique sua efetiva implantação. Faz-se tempo, de consequência, de se unir esforços. A matéria referente ao juiz das garantias tem muito a ver com isso. 

De fato, a introdução do juiz das garantias, no ordenamento jurídico brasileiro, como se sabe, foi efetivada pela Lei n° 13.964, de 24/12/19, o chamado “pacote anticrime” que, nascendo no executivo, ganhou alterações (dentre elas as referentes ao juiz das garantias) na Câmara dos Deputados, como obra de uma comissão ali formada.

Era, de certa forma, uma aspiração antiga da doutrina democrática do processo penal, porque o instituto sempre esteve vinculado ao sistema acusatório, e por ele se lutava e luta até hoje. Estava previsto, antes, de lege ferenda, nos artigos 15 a 18, do PLS n° 156/09, o projeto de reforma global do Código de Processo Penal.

Parecia, com a previsão legal, que se estava dando o passo mais importante para a implantação do único sistema processual penal compatível com a Constituição da República. Não era uma refundação propriamente dita porque se tratava de uma reforma parcial mas, mesmo assim, um substancioso primeiro passo. Admitia-se que “o processo penal terá estrutura acusatória…” (artigo 3°-A, primeira parte), ou seja, que todo o processo penal seria regido por tal sistema, de modo a que se não invocasse, contra o dispositivo da lei (plenamente compatível com a CR, repita-se), as inconstitucionalidades, incoerências e maldades do velho sistema inquisitório. Era uma luz no fim do túnel.

A esperança de se ter um processo penal democrático começou a estremecer quando instituições ligadas à magistratura (Associação de Magistrados do Brasil — AMB; e Associação dos Juízes Federais do Brasil — Ajufe), logo depois da publicação da lei, propuseram a ADI n° 6.298, com questionamentos sérios, embora improcedentes; e logo em seguida os partidos políticos Podemos e Cidadania propuseram a ADI n° 6.299, assim como o PLS a de n° 6.300. Por fim, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) propôs a ADI n° 6.305.

Todos, em ultima ratio, não queriam a implantação do juiz das garantias, o que significava manter o status quo, o qual foi mantido em face de liminar concedida pelo relator, ministro Luiz Fux, suspendendo a eficácia de vários preceitos, mormente, quanto ao juiz das garantias, aqueles do artigo 3°-A a 3°-F. A matéria só volta à pauta em junho de 2023, com a conclusão do julgamento em 23/6/23. Nele, a Corte (contra o voto do relator) decidiu, no mérito, pela constitucionalidade e obrigatoriedade do juiz das garantias, o que aparentemente garante que será implementado.

Mas a Corte, porém, mexeu de tal forma no texto referente ao juiz das garantias, com interpretações criativas e outras diatribes que acabou por criar um mostro, uma aberração jurídica. No fundo, confirmou a introdução do instituto (sabidamente ligado ao sistema acusatório), mas glosou (por “interpretações conforme” e declarações de inconstitucionalidade) os preceitos da lei para manter o atual sistema inquisitorial.

Como ele fazia sentido e era adequado aos preceitos que com ele vieram, a perspectiva — não se pode duvidar — é que a experiência não dê certo. E não pelo próprio instituto do juiz das garantias e, sim, pela manutenção do sistema inquisitorial. Por sinal, desde este ponto de vista, pode ser um fracasso como, de regra, acontece com institutos importados do sistema acusatório e alojados no sistema inquisitório, dentre outras coisas pelo fato de terem fundamentos diferentes e, portanto, uma epistemologia que não dialoga com aquela do estranho. Resta o perigo — que sempre ronda situações assim — do instituto ser acusado de não responder ao que veio, embora, com ele fora do devido lugar, seria um despautério.

Por outro lado, se ele vingar, tende a ser por motivo diverso daquele pelo qual responde a sua finalidade.

Ora, o juiz das garantias — pensado como no sistema acusatório — atua basicamente na fase de investigação preliminar e até o recebimento da inicial acusatória, razão por que a ele é dada (inclusive por coerência) o juízo de admissibilidade da acusação. Com isso, decide sobre as questões — começando pelas constitucionais — da referida fase, ou melhor, até o juízo de admissibilidade da acusação.

Deste modo, não tem iniciativa probatória (para se garantir sua imparcialidade em relação às referidas questões), por um lado, mas, pelo outro, impedido de julgar o mérito e remeter o material recolhido (salvo as provas irrepetíveis) para a fase seguinte, garante ao juiz do processo a originalidade cognitiva. E nisso residem os principais pilares de sustentação de um sistema acusatório democrático.

Se tudo isso ficou consumido na decisão do STF, o que sobra de importante ao juiz das garantias tupiniquim?

Por certo que tendo competência funcional, não será — e não deve ser — um mero juiz auxiliar do juiz do processo. Longe disso, embora alguns devam pensar desta forma e, outros, queiram que assim seja na prática, mesmo porque na estrutura inquisitorial do processo penal brasileiro quase tudo é possível. Algo do gênero, então, seria um desastre.

Mas atenção! Ter-se-á, no processo penal, dois juízes atuando no mesmo processo em primeira instância e, portanto, tende a diminuir substancialmente a carga de trabalho do juiz do processo. Não se perde — e isso é muito claro — a jurisdição, logo, o poder; e sim uma parte da competência, ou seja, do trabalho, ou, para ser mais técnico, do exercício jurisdicional. A decisão do STF, deste modo, vem ao encontro de uma demanda histórica da magistratura, qual seja, aquela que aponta para a redução da carga de trabalho.  

O que resta saber é se o juiz das garantias, com o arranjo feito pelo STF, irá  beneficiar tão só aos juízes que, hoje, carregam o trabalho inteiro da persecutio criminis.

A resposta, ao que parece, não se pode dar imediatamente, mesmo porque ela depende — e agora sem a base legal — daquilo que irão fazer os juízes na função de juiz das garantias. A subjetividade, enfim, define o desempenho da função e o que se pode esperar é que todos entendam o instituto como um elemento efetivamente importante do sistema acusatório, fazendo dele algo democrático mesmo que metido na estrutura inquisitorial.

E isso se pode afirmar porque se tratam de situações diferentes. Afinal, o sistema processual penal brasileiro é — reconhecidamente — inquisitorial e muitos — muitos! — juízes são democráticos, inclusive por aplicarem de modo estrito a CR (Constituição da República) e as leis, o que tem sido motivo de larga reputação, mesmo em tempos sombrios.

A decisão do STF, por outro lado, mostrou, escancaradamente, que muitos dos ministros não tinham o conhecimento desejado (em suma: que deveriam ter) sobre o tema dos sistemas processuais penais, o que acabou sendo determinante para a decisão tomada — e ficou estampado nos votos —, a qual se valeu de um decisionismo inconcebível e inaceitável. A exceção — e está registrado — foi o ministro Edson Fachin, que votou contra a maioria em grande parte das questões envolvendo a matéria, sendo sempre vencido. É certo, porém, que se trata de um tempo difícil para discutir tema tão sensível à democracia, o que se percebe pelos inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes no STF.

De qualquer forma — e mais uma vez —, há de se notar que são coisas diferentes; e isso é importante perceber para não se deixar de pensar que as decisões de Brasília, hoje, quase que instantaneamente produzem efeitos no Brasil inteiro. Só Brasília que, não raro, não percebe isso; talvez porque em muitos aspectos siga longe demais do Brasil.

Fonte: Conjur – Por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

Flexibilidade e autonomia descaracterizam vínculo de motorista e Uber, decide TST

A relação de emprego tem como um pressuposto básico a subordinação. Assim, não há que se falar em relação de emprego entre motorista e a Uber nos casos em que há ampla flexibilidade de rotina e autonomia na prestação de serviços. 

Segundo ministro, não há relação de emprego porque motorista não está subordinado
Freepik

O entendimento é do ministro Breno Medeiros, do Tribunal Superior do Trabalho, que negou vínculo entre a Uber e um motorista de aplicativo. A decisão é de 25 de setembro. 

Essa é a décima vez que o Tribunal deixa de reconhecer relação de emprego em casos envolvendo a Uber. As decisões em mesmo sentido foram dadas pela 4ª, 5ª e 8ª Turmas. 

“é possível extrair dos elementos contidos no acórdão regional a ampla flexibilidade do autor em determinar sua rotina, seus horários de trabalho, locais em que deseja atuar e quantidade de clientes que pretende atender por dia”, diz o ministro na decisão. 

Ele também afirma que “tal autodeterminação” é incompatível com o reconhecimento da relação de emprego, que tem “como pressuposto básico”, a subordinação, elemento que diferencia o vínculo e o trabalho autônomo. 

Ainda segundo o ministro, a possibilidade de clientes da Uber avaliarem os motoristas não representa a existência de subordinação, servindo apenas como “ferramenta de feedback para os usuários finais”. 

“Nesse passo, o fato da empresa se utilizar das avaliações, promovendo o descredenciamento do motorista mal avaliado, convém não apenas à reclamada para sua permanência no mercado, mas especialmente à coletividade de usuários, a quem melhor aproveita a confiabilidade e qualidade dos serviços prestado”, prossegue.

“Por fim, não se pode olvidar que é de conhecimento geral a forma de funcionamento da relação empreendida entre os motoristas do aplicativo Uber e a referida empresa, a qual é de alcance mundial e tem se revelado como alternativa de trabalho e fonte de renda em tempos de desemprego (formal) crescente”, conclui o juiz. 

De novo
Essa é a nona vez que o TST reconhece não haver vínculo empregatício de motoristas com a Uber. Já se posicionaram da mesma forma as 4ª, 5ª e 8ª Turmas da corte. Em todo o país, de acordo com a empresa, são mais de 4,1 mil decisões de Tribunais Regionais e Varas do Trabalho afastando o reconhecimento da relação de emprego com a plataforma, além de julgamentos no Superior Tribunal de Justiça e diversas decisões no TST.

Em maio, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, anulou uma decisão da Justiça do Trabalho que reconheceu o vínculo de emprego entre um motorista e a empresa de transporte por aplicativo Cabify (que já não está mais em operação no país).

Para o ministro, a relação estabelecida entre o motorista e a plataforma de transporte por aplicativo mais se assemelha à situação prevista na Lei 11.442/2007, que disciplina a atuação do transportador autônomo e determina que o seu vínculo com os tomadores de serviço é de natureza comercial e não empregatícia.

Clique aqui para ler a decisão
RR 1001543-75.2021.5.02.0043

Fonte: Conjur

Pagamento de benefícios a agentes políticos exige previsão legal

Para que ocorra o pagamento de benefícios em favor de agentes políticos é imprescindível que haja previsão legal. Assim, a juíza Hallana Duarte Miranda, do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro de Eldorado Paulista (SP), negou o pedido feito por três ex-vereadores e de um atual legislador da cidade que pediam o pagamento de valores relativos a férias não desfrutadas, o acréscimo de 1/3 sobre elas e o 13º salário.

FreepikGrupo pedia o recebimento de verbas relativas ao período de atividade

O trio cumpriu mandato de 2017 a 2020. O quarto ocupa o posto de vereador até 2024. Todos pediam a condenação da prefeitura local ao pagamento das verbas.

A Procuradoria municipal alegou que não há lei que possibilite as gratificações. Sustentou que o pagamento depende de previsão orçamentária e adequação ao limite com despesas de pessoal, fixado na Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ao analisar o pedido, a juíza aderiu à interpretação estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal no caso 484, a qual, resumidamente, afirma que o pagamento aos agentes políticos só pode acontecer se houver respaldo na legislação.

“Conforme narra o próprio autor, no RE 650.898 o STF deliberou sobre a matéria em contexto no qual existia lei prevendo o pagamento de adicional de férias e 13º. Ou seja, há claro distinguishing, haja vista que no caso em julgamento inexiste lei local prevendo o pagamento”, disse.

A magistrada destacou que não cabe ao Judiciário determinar pagamento, sem que haja lei no município que institua isso, inclusive por razões de inexistência de respectiva fonte de custeio. “Há muito já pacificou o STF que não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia.”

A defesa do município foi feita pelo procurador municipal Helder Piedade.

Clique aqui para ler as decisões
Processo 1000430-98.2023.8.26.0172
Processo 1000399-78.2023.8.26.0172
Processo 1000401-48.2023.8.26.0172
Processo 1000381-57.2023.8.26.0172

Fonte: Conjur

Lei nº 14.689: fantástica fábrica do metacontencioso tributário

Recentemente, foi promulgada a Lei nº 14.689/23, decorrente da sanção, com vetos, do PL nº 2.384/23 (PL do Carf), alterando profundamente o processo administrativo e judicial tributário e as multas no âmbito federal. Já apresentamos nossas críticas a ele em outra oportunidade [1]. Entretanto, passada a etapa legislativa, devemos ir além e analisar dogmaticamente alguns possíveis problemas concretos na sua aplicação.

1) O §9º-A do artigo 25 do Decreto nº 70.235/72  o voto de qualidade e seus efeitos
a) Restrição a cada capítulo da decisão
O §9º-A foi bastante amplo ao determinar a exclusão de multas e cancelamento da representação fiscal “na hipótese de julgamento (…) resolvido favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade”, pois, pela sua literalidade, bastaria que qualquer um dos capítulos da decisão fosse resolvido pelo método de desempate para se gozar do benefício.

Entre os capítulos do acórdão, podemos ter questões de admissibilidade, preliminares processuais, preliminares de mérito e as questões meritórias. Trata-se, na lição da doutrina processual, de parcelas da decisão autônomas e independentes entre si [2] —daí causar espécie, à primeira vista, que a existência de empate com voto de qualidade (VQ) em um deles gere efeitos sobre outros, a despeito da inexistência de qualquer prejudicialidade interna entre as questões.

Entretanto, é preciso compreender que os novos efeitos do voto de qualidade são de natureza exoprocessual (de direito material) e não endoprocessual (de caráter processual) [3]. Logo, não afetam o conteúdo decisório do julgamento (proclamação do resultado), mas apenas o efeito da decisão proferida, que se dá em uma etapa subsequente, de liquidação do julgado pela Receita Federal, após o encerramento do processo administrativo.

Caberá a esse órgão analisar o teor da decisão a fazer refletir os seus efeitos diretos (e.g. reforma parcial do lançamento) e indiretos (previstos na Lei nº 14.689/23) sobre o crédito. Em rigor, os efeitos das novas regras exonerativas, de caráter material, e não processual, sequer devem ser objeto de proclamação do resultado do julgamento, pois são decorrência posterior dele.

Nessa linha, não há óbice lógico para que esses efeitos exoprocessuais alcancem parcelas da decisão que não foram julgados pelo VQ.

Tanto que o artigo 25-A, que dispõe sobre a exclusão de juros de mora caso se pague no prazo de 90 dias, quando a decisão se deu pelo VQ, estabelece em seu §7º que ele se aplica “exclusivamente à parcela controvertida, resolvida pelo voto de qualidade”, dando a entender que, aqui sim, o benefício estaria restrito à parcela da decisão resolvida por esse instrumento. Há uma evidente distinção de alcance entre os dois dispositivos (artigo 25, §9º-A e artigo 25-A), a despeito de ambos tratarem de efeitos legais sobre o crédito tributário mantido pelo VQ.

Nessa situação, há dois possíveis caminhos para a Administração: 1) adotar uma regulamentação infralegal restritiva do alcance do artigo 25, §9-A (a exemplo da Portaria ME nº 260/2020) ou 2) aplicar por analogia o disposto no §7º do artigo 25-A. A primeira tentativa esbarraria em um problema de legalidade, ao passo que a segunda encontraria óbice na própria distinção feita pelo legislador, afinal “a lei não contém palavras inúteis”.

  1. b) Processos de cobrança de multas isoladas
    Outro problema é a sua aplicabilidade aosprocessos de cobrança de multas isoladas. Isso se daria porque o artigo 25-A estabelece que, após a resolução do julgamento por voto de qualidade, com avitória da Fazenda Nacional, haveria a opção de pagamento do valor remanescente – que inexistiria na hipótese de multa isolada, já que a totalidade da multa seria afastada.

Por outro lado, na esteira da existência de alcances distintos para o artigo 25, §9º-A e o artigo 25-A do Decreto nº 70.235/72, poder-se-ia sustentar também que não há conexão normativa necessária entre os dois dispositivos, sendo o primeiro compatível com os processos de multas isoladas, ao passo que o segundo, por uma questão lógica, seria inaplicável a esses casos. Em outras palavras, da inaplicabilidade lógica do artigo 25-A a esses casos, não se pode derivar a inaplicabilidade do artigo 25, §9º-A.

Essa distinção, que confirmaria a aplicação do artigo 25, §9º-A às multas isoladas, é corroborada pela rejeição expressa, no âmbito legislativo, da proposta do Senador Otto Alencar de restringir a exclusão às multas vinculadas a tributos.

  1. c) Voto de qualidade e recurso especial no Carf
    Na esteira do que sustentamos acima, de que os efeitos previstos pela Lei nº 14689/23 sobre o crédito são denatureza exoprocessual, não afetando o conteúdo decisório do acórdão, entendemos que, à luz do atual Ricarf, não haveria possibilidade de recurso especial fundado em diferentes quóruns de julgamento, pois as decisões seriam convergentes, mudando apenas o tratamento jurídico recebido na etapa de liquidação do julgado.

Por outro lado, caso o contribuinte perca o seu caso no Carf por VQ e opte pela interposição de recurso especial sobre a matéria em que houve o empate, estará sujeito à perda das benesses na liquidação do crédito, caso o julgamento na Carf seja desfavorável por maioria. Não haveria aqui qualquer reformatio in pejus, pois manteve-se integralmente o conteúdo da decisão recorrida, afetando apenas efeitos atribuídos à decisão administrativa final, na etapa de liquidação.

2) Artigo 25-A, §§ 3º a 6º do Decreto nº 70.235/72 — a compensação de prejuízos fiscais
Outra novidade é a possibilidade de compensação de prejuízos de controladas ou controladoras diretas ou indiretas, bem como sociedades sob controle comum, com efeito extintivo sujeito a condição resolutória da sua ulterior homologação (§5º), no prazo de cinco anos (§6º).

A medida gerará a criação de um mercado de empresas inativas com saldos acumulados de prejuízos fiscais, para compensar os débitos mantidos pelo VQ. Entretanto, esse procedimento poderá esbarrar numa dificuldade prática: a comprovação documental da existência do prejuízo fiscal.

O Carf possui jurisprudência no sentido de que o Fisco pode analisar fatos, operações e documentos relativos a períodos já atingidos pela decadência, para fins de verificar a repercussão deles no futuro, como na composição do saldo de prejuízos fiscais (e.g. acórdão nº 1402-003.350 e 1402-006.385), ficando apenas vedado lançar créditos tributários referentes a esses períodos.

Parece-nos razoável esperar que essas compensações passem pelo escrutínio criterioso da Receita, que exigirá a comprovação da formação do saldo de prejuízos para homologar a compensação, demandando documentação de um amplo período, relativo a uma empresa inativa. Na hipótese de não homologação da compensação, parece-nos ser o caso de aplicação do §8º, com a inscrição dos valores já constituídos em dívida ativa da União, para cobrança judicial.

3) Artigo 44 da Lei nº 9.430/96  as alterações no regime das multas qualificadas
a) Multas qualificadas e agravadas
No âmbito federal, as multas poderiam ser majoradas em 50% pela presença de situações agravantes, como não atendimento à fiscalização, reincidência etc., mas eram aumentadas para 150% na hipótese de situações qualificadoras mais graves (sonegação, fraude ou conluio). O PL original, pretendia revogar as hipóteses agravantes e reduzir a multa qualificada para 100% do tributo, mantendo-se na lei apenas a segunda alteração.

Essa situação gerou uma situação esdrúxula, ofensiva à proporcionalidade das penas, que orienta inclusive a aplicação de sanções administrativas, pois situações qualificadoras, mais graves, estarão sujeitas a uma multa de 100%, ao passo que as agravantes, menos graves, serão penalizadas em 112,5%.

Parece-nos, à luz da proporcionalidade que as penalidades devem guardar com relação à gravidade das condutas, que a Administração deverá observar o artigo 2º, parágrafo único, VI, c/c artigo 65, ambos da Lei nº 9.874/99, para promover uma revisão das sanções e adequá-las ao patamar das multas qualificadas. Ademais, parece-nos que não se trata aqui de um afastamento da regra da multa agravada por inconstitucionalidade, mas sim um controle de adequação “in concreto” das sanções aplicadas, considerando a nova moldura normativa punitiva estabelecida, com vistas a manter uma coerência na atuação sancionadora do Estado.

  1. b) A reincidência nas situações qualificadoras
    A lei prevê que a multa qualificada será alçada a 150% nas hipóteses dereincidênciado sujeito passivo, que, nos termos do artigo 44, §1º-A, se dará quando no prazo de dois anos, contado do ato de lançamento em que tiver sido imputada a ação ou omissão tipificada nos artigos 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/64 e ficar comprovado que o sujeito passivo incorreu novamente em qualquer uma dessas condutas.

Essa condição nova, em nosso entender (com o endosso de outra colunista [4]), fulmina retroativamente todas as multas qualificadas aplicadas, obrigando a sua redução ao patamar de 100%, com fulcro no artigo 106, II, “c” do CTN, incluídas aquelas no âmbito judicial. Não nos parece haver espaço para eventuais diligências por parte dos órgãos de julgamento para verificar a existência de reincidência, sob pena de ostensiva e ilegal inovação dos fundamentos do auto.

O dispositivo traz algumas dificuldades de ordem semântica, pois não deixa claro se basta a repetição de qualquer das circunstâncias dos artigos 71, 72 ou 73, ou se deveria haver uma repetição específica da situação qualificadora, para que se possa aplicar a multa de 150%. Por força do artigo 112, II, do CTN, parece-nos que essa dúvida deve ser resolvida da forma mais favorável ao acusado, com a exigência da reincidência específica.

  1. c) A confusão entre lançamento e processo administrativo
    A exigência da reincidência, por descuido do legislador, é passível de ser burlada pela fiscalização de duas maneiras.

A primeira se baseia no fato de que a reincidência se conecta ao “ato de lançamento” que imputou sonegação ou fraude. O dispositivo foi mal redigido e confunde as coisas, pois conforme o artigo 9º e seu §1º do Decreto nº 70.235/72, cada tributo ou penalidade isolada será objeto de lançamentos distintos, que poderão ser formalizados por meio de um único processo administrativo.

Em suma, pela literal redação do dispositivo, poder-se-ia, em um mesmo processo administrativo, realizar vários lançamentos, imputando fraude ou sonegação a todos, e fazê-los em uma sucessão temporal, para justificar a aplicação de multa de 100% apenas para o primeiro, e 150% aos demais, pois seriam — rigorosamente — lançamentos distintos, e não há regra que condicione a reincidência ao lançamento de um mesmo tributo.

  1. d) Ausência de regra antifragmentação das autuações fiscais
    A segunda falha se baseia na possibilidade de se burlar a exigência do interregno de dois anos por meio da realização de autos de infração fracionados no menor período de apuração possível.

Por exemplo, ao invés de lavrar o auto de infração de IRPJ relativo a vários exercícios, o auditor realizaria vários lançamentos baseados no menor período possível para configurar a multa qualificada no primeiro e lançar a multa de 150% nos demais.

Esse possível ardil poderia ser barrado pelo estabelecimento de uma regra específica que vedasse uma fragmentação artificial de autos de infração em períodos menores, ou estabelecimento de períodos mínimos de autuação. A própria Portaria RFB nº 48/2021, que dispõe a respeito da formalização de processos relativos a tributos administrados, nada dispõe a esse respeito.

  1. e) Reflexos do processo penal tributário sobre a multa
    O artigo 44, §1º-C, II, traz uma previsão bastante interessante: nas hipóteses em que haja sentença penal de absolvição com apreciação de mérito em processo do qual decorra imputação criminal do sujeito passivo, deve ser afastada a qualificação da multa. A lógica do dispositivo é a de que a multa qualificada e os crimes tributários possuem condições comuns de incidência [5].

Esse dispositivo, por uma questão de lógica, destina-se aos casos em que a multa qualificada é objeto de inscrição em dívida ativa e eventual ajuizamento de execução fiscal, tendo em vista que não há tipificação de crime material contra a ordem tributária antes do lançamento definitivo do crédito, inclusive com o encerramento do processo administrativo, nos termos da Súmula Vinculante nº 24 do STF.

Entretanto, a redação do dispositivo levanta questões importantes.

A primeira delas é saber se bastaria a mera prolação de sentença penal de absolvição, sem a necessidade de trânsito em julgado, para que gere seus reflexos sobre a execução fiscal, na forma como dispõe literalmente a lei. Poderia ocorrer, por exemplo, da sentença ser reformada em apelação, e já ter sido afastada a multa qualificada na execução.

A segunda consiste em saber se, a partir da edição da Lei nº 14.689/23, o encerramento do processo penal passa a ser causa de prejudicialidade externa do processo de execução fiscal, impondo a sua suspensão, nos termos do artigo 313, V, “a” do CPC/2015, considerando que o seu desfecho impactará na extensão da relação jurídica discutida.

A terceira é saber se o dispositivo seria aplicável na hipótese de eventual desclassificação do crime contra a ordem tributária para crime comum, que sequer tenha sido imputado pela Receita ou pelo Ministério Público (MP), como falsificação de documentos ou falsidade ideológica, com a subsequente condenação do agente. Nessa situação, pela lógica do dispositivo, parece-nos que a desclassificação do delito teria como efeito secundário afastar então a multa qualificada em execução.

A quarta, na esteira da anterior, é saber se os efeitos do referido dispositivo seriam aplicáveis na hipótese em que o MP, tendo acesso ao lançamento e à representação fiscal para fins penais, entender que não há materialidade delitiva e, na condição de titular da ação penal, deixar de denunciar os contribuintes autuados. Ora, se na hipótese em que houve denúncia e absolvição, a multa deveria cair, parece-nos que, a fortiori, a ausência de denúncia deveria gerar os mesmos efeitos.

Conclusões
Como defendemos em nosso outro artigo, discordamos substancialmente da forma como a nova lei afetou a estruturação do contencioso administrativo e as multas federais.

Deixando de lado nossas vênias e indo além, parece-nos que os problemas redacionais são ainda mais graves. Essa má redação gerará intensas controvérsias a respeito da aplicação de seus dispositivos, estimulando um metacontencioso que prorrogará indefinidamente litígios tributários. Nesse artigo, tentamos antecipar apenas algumas delas.

[1] https://www.conjur.com.br/2023-set-06/direto-carf-pl-carf-analise-critica-alteracoes-paf

[2] DINAMARCO, Candido Rangel. Capítulos de Sentença, p. 42-43.

[3] O §9º do artigo 25 é que apresenta essa característica.

[4] https://www.conjur.com.br/2023-set-27/direto-carf-lei-1468923-voto-qualidade-multas-retroatividade

[5] Premissa essa que não nos parece inteiramente correta, como já falamos em outro artigo: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/1102

Fonte: Conjur

Luta contra a litigância predatória opõe poder de cautela do juiz e limite da lei

O polêmico e difícil tema da litigância predatória está em pauta no Superior Tribunal de Justiça. E sua resolução vai depender dos limites que o juiz, a quem a lei dá poderes para disciplinar a marcha processual, deve respeitar quando identificar indícios de abuso do direito de ação.

Ministro Moura Ribeiro é relator de repetitivo que vai discutir o tema no STJ
Gustavo Lima/STJ

A possibilidade de o magistrado obrigar as partes a apresentarem novos documentos capazes de lastrear minimamente o pedido feito em demandas repetitivas e massificadas está em discussão no Tema 1.198 dos recursos repetitivos, que será julgado pela 2ª Seção do STJ.

Para subsidiar o julgamento, o relator da matéria, ministro Moura Ribeiro, promoveu audiência pública na sede do tribunal na última terça-feira (3/10). O objetivo era ouvir associações, institutos, pesquisadores, entidades, advogados, representantes dos tribunais e a Advocacia-Geral da União.

O recurso ataca um incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) julgado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TL-MS), que fixou a tese segundo a qual o juiz pode exigir a apresentação de novos documentos que entender pertinentes.

O enunciado cita cópias de contratos e de extratos bancários, quando a demanda for contra o consumidor; procuração atualizada; declaração de pobreza; e comprovante de residência. Isso tudo serviria para mostrar que a ação não decorre de uma aventura jurídica.

Para o TJ-MS, isso é possível porque o Código de Processo Civil confere ao juiz o poder geral de cautela, pelo qual ele tem a liberdade de conduzir o feito, determinando a adoção de diligências e providências que entender necessárias ao julgamento da demanda.

Na visão da advocacia, porém, isso é um grande problema, pois abre espaço para o julgador ultrapassar os limites da lei, com o pretexto de combater a litigância predatória, reduzindo o acesso à Justiça e impondo obstáculos processuais, especialmente a pessoas vulneráveis.

Após quatro horas de audiência pública, o ministro Moura Ribeiro destacou o alto nível do debate e disse que havia sido aberta ali uma “caixa de Pandora”, em referência ao objeto da mitologia grega responsável por liberar todos os males do mundo.

Para a juíza Vanessa Mateus, da Apamagis, poder de cautela do juiz vai atingir as fake lides predatórias, não o litigante habitual
Gustavo Lima/STJ

Poder de cautela
Defendem a tese do TJ-MS os representantes do Poder Judiciário, que se vê abarrotado de processos repetitivos e, muitas vezes, temerários, e as instituições financeiras e relacionadas a prestação de serviços, que acabam sendo os alvos preferenciais dessas ações.

Essa posição se baseia no poder geral de cautela conferido ao juiz pelo CPC de 2015. O artigo 319, por exemplo, permite que o magistrado convoque as partes e mande suprir pressupostos processuais. Já o artigo 142 autoriza a proferir decisão que impeça a prática de ato simulado pelas partes.

Para a juíza Vanessa Mateus, presidente da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis), o poder de cautela não servirá para atingir demandas de massa ou escritórios que tenham um nicho de atuação. Ele visará às chamadas fake lides, cuja grande característica é a generalidade.

São ações repetitivas, com petições iniciais absolutamente idênticas, ajuizadas pelo mesmo advogado com pedidos genéricos — um dos relatos na audiência é de processos pedindo indenização por danos sofridos, sem qualquer especificação.

Essas ações são voltadas, não à toa, contra as pessoas jurídicas que mais geram reclamações no Judiciário, como bancos, concessionárias de serviço público e empresas de telefonia, além das causas voltadas à saúde. O pedido de documentos serviria para expor esses litigantes tóxicos.

Sofia Temer, advogada do Santander, alvo da ação julgada pelo TJ-MS, explicou que são ações infundadas, fabricadas a partir de documentos e procurações obtidos ilegalmente ou falsificados. E que, muitas vezes, as pessoas nem sabem que estão processando o banco.

André Jacques Luciano Uchôa Costa, da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC), afirmou que cabe ao advogado instruir a petição inicial com a documentação necessária e, ao juiz, determinar a emenda quando necessário. “Não admitir a tese seria dizer que o juiz está impossibilitado de agir, o que seria inconstitucional.”

A exigência de procuração atualizada ganha relevo porque, muita vezes, um só documento é usado pelo advogado para ajuizar dezenas de ações. “A preocupação não é que a procuração assinada pelo cliente seja de ontem”, destacou Felipe Albertini Nani Viaro, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). “Ela precisa ser específica e não reaproveitada”.

Para Eduardo Mange, da Aasp, confirmar a tese do TJ-MS não vai resolver problema e ainda vai causar incômodos novos
Gustavo Lima/STJ

A lei é o limite
A questão da procuração é um dos pontos que seriam incontornáveis para quem defende que o STJ derrube a tese firmada pelo TJ-MS — em suma, advocacia e entidades de defesa do consumidor. Isso porque o artigo 105, parágrafo 4º, do CPC indica que a outorga feita na fase de conhecimento é eficaz para todas as fases do processo.

Assim, não poderia o juiz, com o pretexto do poder de cautela, extrapolar a lei. O mesmo vale para a hipótese de exibição de contratos. O Código de Defesa do Consumidor determina que eles sejam devidamente informados a quem faz a contratação. E como exigir sua apresentação, nos casos em que a alegação é de fraude?

A exigência de apresentação de extratos bancários, por sua vez, ofenderia o precedente do STJ no Tema 411 dos repetitivos, segundo o qual é cabível a inversão do ônus da prova em favor do consumidor para o fim de determinar aos bancos a exibição desses documentos.

Por fim, os críticos da tese destacam que o Judiciário já tem instrumentos aptos a combater a litigância predatória: a imposição de multa por litigância de má-fé, a punição quando se configurar o chamado ato atentatório à dignidade da Justiça e até persecução criminal, quando houver falsidade, apropriação indevida ou estelionato.

“É uma tese que prejudica a advocacia. Ela, como está, não resolve o problema e certamente criará outros desnecessários, aumentando o tempo do processo, o número de recursos e o congestionamento do Judiciário”, alertou Eduardo Mange, da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp).

Nicolas Santos Carvalho Gomes, da Associação dos Advogados Defensores do Consumidor Amazonense (AADCAM), destaca que não existem dados suficientes sobre ações fraudadas por advogados para permitir que se adote uma tese generalizada sobre o assunto. “Se há ajuizamento em massa de ações é porque há violação em massa de direitos.”

Procurador-Geral da União, Marcelo Eugenio Feitosa Almeida propôs método para identificação de litigância predatória
Rafael Luz/STJ

Possíveis soluções
Pesquisadores independentes e a Advocacia-Geral da União, teoricamente em posições mais neutras sobre o tema da litigância predatória, foram os responsáveis por oferecer ao ministro Moura Ribeiro algumas saídas para o problema.

O procurador-geral da União, Marcelo Eugenio Feitosa Almeida, destacou que o fato de uma demanda ser pulverizada em diversas varas locais, ou até nacionalmente, não é suficiente para configurar demanda predatória. Ele propôs uma forma de identificá-las, baseada em duas perguntas:

  • Há ajuizamento sucessivo e repetitivo de ações relacionáveis entre si?
  • Há elementos de fraude ou abusividade presentes nesse ajuizamento repetitivo que viole juízo natural ou diminua o poder de defesa da parte adversária?

A resposta “sim” para ambas as perguntas vai indicar a ocorrência da litigância predatória. Para atacar o problema, ele citou o jurista italiano Michelle Taruffo: “As garantias processuais não protegem e não legitimam práticas abusivas”.

Em sua análise, o juiz pode usar o poder de cautela para exigir novos documentos, desde que de forma fundamentada. Mas deve ser cuidadoso ao fazê-lo. “Propomos a regra da aplicação do princípio in dubio pro acesso à Justiça.”

Luciano Ramos de Oliveira, da Associação Brasileira de Direito Processual (ABPC), sugeriu que o STJ fixe que cabe à parte demonstrar ao juízo que o processo é abusivo, com base no artigo 139, inciso III, do CPC. E que, na decisão de pedir novos documentos, o juiz seja obrigado a descrever precisamente o vício a ser corrigido, conforme o artigo 321 do CPC.

Já o professor Guilherme Eliano Pinto sugeriu que essa exibição de documentos, se necessária, seja feita como parte de algum dos atos obrigatórios da ação — por exemplo, na audiência de conciliação. Isso serviria para impedir a paralisação do processo, além de evitar prejuízos.

Uma das principais críticas ao exercício do poder de cautela do juiz, como admitido pelo TJ-MS, é obrigar uma parte muitas vezes hipossuficiente a comparecer ao fórum para comprovar que conhece o advogado, que assinou a procuração ou que sabe pormenores da ação.

“Como estamos falando de demandas em massa, o comparecimento deixaria fóruns lotados e servidores abarrotados de trabalho. Isso não coloca o processo para frente. Pensamos que a melhor maneira é que seja colocado em audiência. Se você vai ter o custo de enviar o cliente ao fórum, já faz a determinação de que leve a documentação”, explicou o professor.

REsp 2.021.665

Fonte: Conjur