Caixa deve ressarcir em dobro por juros de obra cobrados após atraso na entrega

A Caixa Econômica Federal deve ressarcir em dobro pelos juros de obra cobrados dos adquirentes de imóveis no âmbito do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) durante o período de atraso na entrega.

No caso, juros de obra foram cobrados no período de atraso de entrega do imóvel financiado pelo SFH – Freepik

O ressarcimento deve ser feito para todos os contratos não cobertos pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), independentemente da comprovação de má-fé na cobrança, desde que tenham sido feitas 30 de março de 2021.

A conclusão é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que deu provimento ao recurso especial ajuizado pelo Ministério Público para admitir aplicar o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor ao caso.

A condenação foi reconhecida pelas instâncias ordinárias em ação civil pública ajuizada por conta da cobrança de Taxa de Evolução de Obra (juros de obra) efetuada pela CEF dos adquirentes de imóveis em construção no âmbito do SFH.

O processo trata dos casos em que houve atraso na entrega dos imóveis por causas que não são imputáveis aos mutuários, mas a cobrança dos juros foi mantida pela CEF.

Esses juros são cobrados pelo agente financeiro sobre o valor do crédito repassado às incorporadoras para construção do empreendimento.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região julgou procedente a ação, mas fixou que a devolução em dobro dos valores indevidamente cobrados depende de demonstração da má-fé em cada caso concreto.

Juros de obra

Relatora na 3ª Turma, a ministra Nancy Andrighi observou que essa posição difere da firmada pela Corte Especial do STJ, em outubro de 2020, em relação à aplicação do artigo 42 do CDC..

A tese aprovada é a de que devolução em dobro do valor cobrado indevidamente do consumidor não depende da comprovação de que o fornecedor do serviço agiu com má-fé.

“Em síntese, não é necessária a comprovação de má-fé para o ressarcimento em dobro, na forma do parágrafo único do artigo 42 do CDC, que é devido, independentemente de natureza do elemento volitivo, salvo na hipótese em que o fornecedor comprovar a sua boa-fé objetiva, sendo este um ônus seu”, disse a relatora.

A posição da Corte Especial deve ser aplicada de acordo com a modulação parcial dos efeitos feita na ocasião. Ficou decidido que, para as disputas no âmbito do Direito Privado, ela só vale para os casos posteriores à data de publicação do acórdão (30 de março de 2021).

“A condenação ao ressarcimento do indébito para os contratos regidos pelo CDC deve ser feita em dobro para as cobranças realizadas após 30/3/2021 e de forma simples para as realizadas em momento anterior”, resumiu a relatora. A votação foi unânime.

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REsp 1.947.636

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Reconhecimento de grupo econômico autoriza incluir empresa na recuperação judicial

Em situações excepcionais, o reconhecimento da existência de grupo econômico de fato autoriza que o juiz inclua uma empresa no polo ativo de ação de recuperação judicial.

Recuperação judicial envolve empresas do grupo econômico que produz o refrigerante Dolly – reprodução

A conclusão é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que manteve a inclusão da empresa Ecoserv na recuperação judicial do grupo Dolly. O resultado foi por maioria de votos.

Com isso, o colegiado aponta um caminho a seguir em uma das hipóteses que não tem previsão na Lei de Recuperação Judicial e Falências (Lei 11.101/2205).

O tema envolve a possibilidade da chamada consolidação substancial — o tratamento de duas ou mais empresas como uma única entidade jurídica, devido à confusão entre ativos e passivos dela.

O artigo 69-J prevê a consolidação no âmbito da recuperação judicial, mas só cita os casos em que devedores integrantes do mesmo grupo econômico que já estejam em processo de soerguimento.

A Ecoserv, no entanto, não estava em recuperação judicial. Ela foi uma das quatro empresas que foram incluída no processo que o Grupo Dolly abriu para apenas três de suas companhias, inicialmente.

Ao STJ, a empresa alegou que a inclusão foi indevida devido à ausência de previsão legal, porque não estão presentes os requisitos para configuração do grupo econômico e porque esse ato deveria ser submetido à assembleia-geral de credores.

Recuperação judicial

Relator, o ministro Humberto Martins entendeu indevida a consolidação substancial no caso. Ele apontou no voto vencido que o artigo 69-J da Lei 11.101/2005 estabelece que esse procedimento deve ser precedido da consolidação processual.

Já a consolidação processual consta do artigo 96-G, segundo o qual devedores que atendam aos requisitos previstos e que integrem grupo sob controle societário comum poderão requerer recuperação judicial sob consolidação processual.

“A opção por aderir ao rito da recuperação em regime consolidação para pagamento de seus débitos é dada aos próprios devedores, não sendo esta uma condição que o Judiciário possa considerar para indeferir pedido de recuperação judicial”, disse o relator.

Assim, caberia aos credores e demais interessados usar do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para alcançar os bens da Ecoserv, se assim entendessem, para atingi-la pelo processo de recuperação judicial do Grupo Dolly.

“A consolidação é instrumento em favor do devedor (na via oposta da desconsideração da personalidade jurídica) e não condição a ser imposta ao deferimento da recuperação judicial”, reformou o ministro Humberto Martins.

Voto vencedor

Venceu o voto divergente da ministra Nancy Andrighi, que defendeu uma solução que observe a necessidade de que ativos e passivos de diferentes devedores pertencentes ao mesmo grupo sejam tratados de forma unificada para equalizar os interesses dos credores.

Caso contrário, o Judiciário permitiria que o Grupo Dolly elegesse, dentre as sociedades que o integram quais ativos e passivos estariam sujeitos ao processo de recuperação, manipulando os princípios da Lei 11.101/2005.

O voto cita jurisprudência do STJ na linha de que, em situações excepcionais, o juiz possa determinar a inclusão de litisconsorte necessário no polo ativo da ação, sob pena de, não atendida a determinação, o processo ser extinto sem resolução do mérito.

“O polo ativo da presente ação é ocupado por um grupo empresarial que tentou dissimular sua existência no intuito de proteger interesses escusos e que, a partir da consolidação substancial, será considerado como um único devedor, a fim de garantir o pagamento das vultosas dívidas na forma do plano apresentado”, esclareceu.

“Não se trata, portanto, de obrigar a Ecoserv Ltda a litigar (sobretudo diante da inexistência de litigiosidade nessa via processual), mas, sim, de não permitir que o Judiciário seja utilizado para legitimar o comportamento gravemente disfuncional do grupo empresarial em questão”, concluiu.

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REsp 2.001.535

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Lei Geral de Comércio Exterior: um alinhamento importante

Um alinhamento importante

Hoje, dia 17 de setembro de 2024, a partir das 21h41, brasileiros(as) de todo o país poderão ver um eclipse lunar. Para garantir o acesso de todos, o Observatório Nacional (ON), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), irá transmitir o evento astronômico em seu canal no YouTube [1].

Segundo a gestora da Divisão de Comunicação e Popularização da Ciência (Dicop) do ON, Josina Nascimento, haverá, no evento, o alinhamento, nesta ordem, entre o Sol, a Terra e a Lua Cheia [2]. E, além desse eclipse lunar, parte da população brasileira poderá ainda acompanhar um eclipse solar em 2 de outubro de 2024 (claro, também transmitido pelo canal do ON!).

Mas não é exatamente desses alinhamentos importantes do mundo da física que trataremos aqui!

Existem alinhamentos importantes no mundo da regulação do comércio internacional, como o alcançado no pós-guerra, para se chegar ao Acordo Geral de Tarifas Aduaneiras e Comércio (Gatt), ou o logrado ao final da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Unilaterais, em 1994, que permitiu a criação da Organização Mundial do Comércio. A título exemplificativo, há ainda acordos regionais, como os referentes à União Europeia e ao Mercosul, frutos de um alinhamento característico de seu tempo (em timing perfeito/correto).

Nem sempre se reúnem as condições para que os “astros” (ou atores, no mundo biológico) estejam alinhados, com um propósito comum, buscando o desenvolvimento recíproco, e o bem comum. No mundo aduaneiro, um relevante evento nesses termos, apresentado a seguir, lançou as bases para promover um alinhamento que será de suma importância para o comércio exterior brasileiro, e para o incremento da participação de nosso país no comércio internacional: a divulgação de um anteprojeto de lei que busca alinhar a legislação de comércio exterior brasileira às melhores práticas internacionais.

Lei Geral de Comércio Exterior

Na última semana foi submetido à consulta de diversas entidades brasileiras relacionadas ao comércio exterior um anteprojeto, fruto da construção conjunta de especialistas da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) do Ministério da Fazenda (MF), da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) e da Secretaria-Executiva da Câmara de Comércio Exterior (SE/Camex), ambas do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), e da Consultoria Legislativa do Senado, junto à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CRE) e aos gabinetes dos senadores Renan Calheiros e Espiridião Amin, contemplando demandas dos operadores privados sobre normas gerais para o desempenho das atividades de regulação, fiscalização e controle sobre o comércio exterior de mercadorias.

Na minuta de justificação do documento, destaca-se que o comércio exterior de mercadorias, no Brasil, é disciplinado em mais de uma centena de normas de ordem legal, sendo a principal o Decreto-Lei nº 37/1966, que, à beira de seus sessenta anos de vigência, vem cumprindo a importante tarefa de disciplinar disposições relativas ao imposto de importação e à regulação dos serviços aduaneiros, entre outros temas.

No entanto, ainda segundo o texto da referida justificação, apesar das constantes atualizações ao citado decreto-lei, que se estendem à quase totalidade dos seus 172 artigos, restando apenas 42 deles hoje vigentes em sua redação original [3], as alterações no cenário internacional de comércio, o novo papel das aduanas no século 21 [4], e a necessidade de adequação da legislação nacional aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, principalmente na Convenção de Quioto Revisada (CQR), da Organização Mundial das Aduanas (OMA) [5], promulgada, no Brasil, pelo Decreto nº 10.276/2020, e no Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC), da OMC [6], promulgado, no país, pelo Decreto nº 9.326/2018, demandam um remodelamento da disciplina geral do comércio exterior de mercadorias em nosso país, alinhado às melhores práticas internacionais.

De fato, o novo papel das aduanas, no século 21, é bem distinto daquele que se encontrava à época do Decreto-Lei 37/1966 (e dos primeiros anos da OMA, que ainda nem era conhecida por tal designação [7]), e se estende a diversas atividades que sequer eram cogitadas no século passado, como a preocupação do meio ambiente [8]. E a CQR/OMA e o AFC/OMC objetivam, ambos, aplicar as melhores práticas em comércio internacional, dirigidas não só à aduana, mas a todos os órgãos intervenientes em operações de comércio exterior.

Mais próximos das melhores práticas

No texto do anteprojeto é perceptível a influência dessas melhores práticas internacionais em diversas ocasiões, cabendo aqui expressamente enumerar algumas, a começar pela mais complexa, e que foi responsável pelo maior número de pedidos de assistência no âmbito da OMC: o Single Window (artigo 10.4 do AFC) [9].

O anteprojeto consagra, em seus artigos 28 a 30, a utilização obrigatória do Portal Único de Comércio Exterior brasileiro, com transparência, previsibilidade e publicidade da informação, eliminando barreiras burocráticas ao fluxo de comércio exterior, com uso intensivo de tecnologia, emprego de documentos digitais e digitalizados, e pagamento eletrônico de tributos.

Outros temas modernos e presentes internacionalmente, com os quais o leitor está acostumado a conviver aqui no Território Aduaneiro, como gestão de riscos [10] (artigos 36 e 37), Operador Econômico Autorizado [11] (artigo 20), licenças flex (artigo 87), autorregularização (artigo 76), cooperação e parcerias [12] (artigo 24), registro antecipado de declarações/apresentação antecipada de documentos (artigos 26 e 31), e informação antecipada sobre cargas (artigo 44). Há ainda influências regionais, como o instituto do “depósito temporário” (artigos 47 a 50), derivado do Código Aduaneiro do Mercosul, aprovado pela Decisão CMC 27/2010, e a classificação das “pessoas intervenientes” (artigos 14 a 23).

É ampliado o universo das Soluções Antecipadas (hoje conhecidas no Brasil como Soluções de Consulta e de Divergência) em matéria aduaneira, em consonância com o artigo 3º do AFC/OMC, e efetuada ampla reclassificação terminológica das categorias referentes a regimes aduaneiros.

Aliás, a terminologia é um dos pontos de destaque do anteprojeto, que apresenta, logo ao início (artigo 2º), um importante e uniformizador glossário [13], aclarando o significado de “ despacho aduaneiro”, de “despacho para consumo”, de “exportação” e “importação”, de “reexportação” e “reimportação”, de “mercadoria” (e de mercadoria “nacional”, “estrangeira”, “nacionalizada” e “desnacionalizada”), com definições que se somam a outras mais apropriadas a tópicos específicos da norma, como “território aduaneiro” (artigo 5º), “alfandegamento” (artigo 7º), “despacho de importação” e “de exportação” (artigos 51 e 61), “fiscalização aduaneira” (artigo 72), “repressão aduaneira” (artigo 77), “regime aduaneiro” (artigo 90), “regime aduaneiro comum” (artigo 91) e “regime aduaneiro especial” (artigo 92).

Fruto do multicitado alinhamento internacional, são superados termos vetustos da legislação, como “desembaraço aduaneiro” (que dá lugar à “liberação da mercadoria”) e “revisão aduaneira” (substituído por “auditoria posterior à liberação”), havendo ainda melhor adequação dos regimes aduaneiros brasileiros às classificações internacionais [14], e aproximação das normas referentes aos regimes de aperfeiçoamento ativo.

No entanto, a presença mais forte das melhores práticas internacionais está no artigo 4º, que funcionará como um verdadeiro “norte” para o comércio exterior brasileiro, estabelecendo diretrizes para a regulação, a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior de mercadorias no Brasil, seja para os temas tratados no anteprojeto, ou ainda para outros, que ainda demandam disciplina futura.

As ausências no anteprojeto

Três grandes grupos de temas que demandam disciplina futura são indicados no parágrafo único do artigo 4º: a tributação sobre o comércio exterior, as infrações e penalidades aduaneiras, e o contencioso administrativo aduaneiro. Além desses, ficaram de fora temas não afetos a uma lei geral de comércio exterior, por tratarem de tópicos específicos e pontuais, como proibições e restrições, e regras procedimentais, além da disciplina relativa a importação e exportação de serviços.

Os três temas expressamente excepcionados possuem algo em comum, e que os retira do escopo de alinhamento às melhores práticas internacionais (principal objetivo do Anteprojeto). À exceção de tópicos pontuais (já presentes nas citadas diretrizes do artigo 4º), não são especificamente disciplinados em atos internacionais vinculantes, o que torna mais complexa e pouco consensual sua redação, demandando aprofundamento dos estudos de diversos sistemas jurídicos, para encontrar uma melhor solução.

Veja-se, por exemplo, o tema das infrações e penalidades aduaneiras, que a União Europeia tentou uniformizar (sem sucesso) na Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho 432/2013, que detalha, em três artigos, 35 infrações, categorizando-as em “infrações aduaneiras com responsabilidade objetiva” (artigo 3º – 17 infrações), “infrações aduaneiras cometidas por negligência” (artigo 4º – 11 infrações), e “infrações aduaneiras cometidas dolosamente” (artigo 5º – 7 infrações) [15], e que o Mercosul também reconheceu a dificuldade em harmonizar, no texto do artigo 180, 1 do Código Aduaneiro (Decisão CMC 27/2010): “O descumprimento das obrigações impostas neste Código será sancionado conforme a legislação dos Estados Partes [16].

Tentar uniformizar em curto prazo temas complexos como esse, ou o tributário [17] (em pleno trâmite da reforma tributária [18] brasileira sobre o consumo, que afetará substancialmente a incidência de tributos niveladores na importação), ou ainda o relativo a contencioso administrativo aduaneiro (em meio ao trâmite legislativo de diversos projetos de lei tratando de contencioso administrativo incluindo – às vezes, e ainda sem distinção objetiva — o “aduaneiro” no “tributário” [19]), não parece estar no alinhamento buscado com as melhores práticas.

Afirmar que nosso sistema tributário de comércio exterior, nosso sistema sancionatório aduaneiro e nosso sistema de contencioso administrativo aduaneiro estão desalinhados das melhores práticas internacionais implicaria, em primeiro lugar, identificar quais são essas melhores práticas, o que os tratados internacionais só lograram fazer dentro dos limites traçados nas diretrizes que figuram no artigo 4º. Ir além disso, de forma sistemática e responsável, é desejável e possível, mas não no presente alinhamento de astros e atores.

Futuramente (e tratamos de futuro no próximo tópico!), em um próximo (ou em próximos) alinhamento(s), a complementação desses três capítulos poderia transformar o texto atual em um verdadeiro “Código Aduaneiro” brasileiro.

O futuro do anteprojeto

O anteprojeto, após o recebimento das sugestões encaminhadas nas consultas ao setor privado, que já estão em andamento, será apresentado para trâmite nas casas legislativas, e o que se pode adiantar é que em caso de aprovação nos moldes em que se encontra, e com o acréscimo de contribuições na mesma esteira de alinhamento internacional, representará um avanço substancial rumo à modernização normativa das atividades aduaneiras, em consonância com as melhores práticas internacionais. É de se recordar que durante os trabalhos de confecção do Anteprojeto já foram tomadas em conta diversas sugestões de temas/textos apresentadas previamente pelo setor privado, que agregaram importantes conteúdos.

Esse exercício de futurologia [20] relativo ao anteprojeto, no entanto, deve ser feito com moderação. Por hoje, sabemos apenas qual é o texto inicial do anteprojeto, e que a partir das 21h41 haverá o alinhamento que provoca o eclipse lunar, havendo ainda em outubro um eclipse solar.

Aliás, a mesma gestora do Dicop/ON e pesquisadora referida no início deste texto faz um alerta em relação ao eclipse solar: “Em hipótese alguma olhe diretamente para o Sol. Se fizer isso, sua retina ficará com pontos queimados para sempre… Só pode olhar para o Sol com filtro soldador 14, que se compra em lojas de ferragens ou óculos próprios para observação do Sol, fornecidos por órgãos certificados” [21].

Da mesma forma, o anteprojeto deve ser visto apenas com lentes internacionalistas, alinhadas e com as melhores práticas, presentes em tratados internacionais sobre os temas, sob pena de desvirtuar o objetivo do texto normativo proposto, bem sintetizado ao final da Justificação: “…o Anteprojeto permite a modernização da regulação do comércio exterior de mercadorias, no Brasil, em aspectos que já encontram substancial uniformidade internacional, alinhando a disciplina brasileira às melhores práticas internacionais, contribuindo para maior inserção do País na corrente de comércio mundial, e, por consequência, para o desenvolvimento nacional, com segurança e facilitação do comércio”.


[1] Disponível em: https://www.youtube.com/@observatorionacional. Acesso em 15.set.2024.

[2] “Como a sombra da Terra é bem grande em relação à Lua, quando a Lua entra na sombra da Terra, quem estiver vendo vê a Lua eclipsada. Ou seja, para os locais onde é noite na hora do eclipse, será visível: o que vai diferir de um local para outro é a altura da Lua no céu”. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2024/09/brasileiros-conseguirao-ver-eclipse-lunar-dia-17-de-setembro-evento-sera-transmitido-pelo-observatorio-nacional. Acesso em 15.set.2024.

[3] TREVISAN, Rosaldo. Uma contribuição à visão integral do universo de infrações e penalidades aduaneiras no Brasil, na busca pela sistematização. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 622. Em relação aos demais artigos do Decreto-Lei no 37/1966, 39 tiveram nova redação dada por leis posteriores, como a Lei nº 10.833/2003 e a Lei no 12.350/2010; 24 foram expressamente revogados; e 67 já não produzem efeitos, e sequer foram disciplinados no Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759/2009).

[4] A OMA produziu, ainda em 2008, o documento intitulado “Customs in the 21st Century: Enhancing Growth and Development through Trade Facilitation and Border Security”, no qual apontava quais seriam os temas protagonistas nas atividades aduaneiras após a virada do Século, antecipando, entre outros, os debates que ainda ocorreriam na Rodada Doha, no âmbito da OMC, sobre facilitação do comércio. Disponível em: https://www.wcoomd.org/~/media/wco/public/global/pdf/topics/key-issues/customs-in-the-21st-century/annexes/annex_ii_en.pdf?la=en. Acesso em 15.set.2024.

[5] Sobre a CQR/OMA, remete-se a: BASALDÚA. Ricardo Xavier. El Convenio de Kyoto Revisado: Antecedentes y Principios Aduaneros InvolucradosIn: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 81-120; e MORINI, Cristiano. A Convenção de Quioto Revisada e a Modernização da Administração Aduaneira. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Lex, 2015, p. 163-198.

[6] Sobre o AFC/OMC, remete-se a: NEUFELD, Nora. The long and winding road: how WTO members finally reached a Trade Facilitation Agreement. Disponível em: https://www.wto.org/english/res_e/reser_e/ersd201406_e.htm; acesso em 15.set.2024; TREVISAN, Rosaldo. O Acordo sobre a Facilitação do Comércio e seu Impacto na Legislação Aduaneira Brasileira. In: CASTRO JUNIOR, Osvaldo Agripino de (Org.). Constituição, Tributação e Aduana no Transporte Marítimo e na Atividade Portuária. 1. ed. Belo Horizonte: Forum, 2020, v. I, p. 37-67; e FERNANDES, Rodrigo Mineiro. A implementação do Acordo sobre Facilitação Comercial no Brasil. In: TREVISAN, Rosaldo (org.). Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022, p. 431-468.

[7] A ideia do Conselho de Cooperação Aduaneira de adotar o nome de trabalho “Organização Mundial das Aduanas” surge apenas em junho de 1994, nas 83ª/84ª Sessões do Conselho, em Bruxelas, sendo a nova denominação introduzida nos documentos da OMA a partir de 03/10/1994.

[8] Destacada, aqui nesta coluna, em TREVISAN, Rosaldo; OLIVEIRA, Dihego Antônio Santana de.  “Aduanas verdes e ‘uma verdade inconveniente’”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-14/aduanas-verdes-e-uma-verdade-inconveniente/. Acesso em 15.set.2024.

[9] Das 125 notificações disponíveis na base de dados da OMC, 82 categorizaram o art. 10.4 do AFC (XX) como “C” (necessita de assistência). Disponível em: https://tfadatabase.org/en/notifications/categorization-by-member. Acesso em 15.set.2024.

[10] V.g., na coluna de Fernanda Kotzias e Yuri da Cunha (Por uma gestão de risco madura e integrada para o comércio exterior), disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-11/por-uma-gestao-de-risco-madura-e-integrada-para-no-comercio-exterior-brasileiro/. Acesso em 15.set.2024.

[11] V.g., na coluna de Fernando Pieri (OEA e e-commerce: novidades à base do pilar aduana-empresa), disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/territorio-aduaneiro-oea-commerce-novidades-base-pilar-aduana-empresa/. Acesso em 15.set.2024.

[12] V.g., na coluna de Rosaldo Trevisan (Parcerias no setor aduaneiro facilitam comércio internacional), disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-30/parcerias-no-setor-aduaneiro-facilitam-comercio-internacional/. Acesso em 15.set.2024.

[13] Sobre a necessidade de uniformização da terminologia aduaneira, remete-se a: TREVISAN, Rosaldo; VALLE, Maurício Dalri Timm do. A “Babel” na Tributação do Comércio Exterior: mais Próximos de um Glossário Aduaneiro? In: TREVISAN, Rosaldo; VALLE, Maurício Dalri Timm do (coordenadores). Perspectivas e Desafios do Direito Aduaneiro no Brasil. São Paulo: Caput Libris, 2024, p. 15-48.

[14] Sobre a classificação dos regimes aduaneiros, remete-se a: ANDRADE, Thális. O conceito de regime aduaneiro especial no Brasil. In: TREVISAN, Rosaldo; VALLE, Maurício Dalri Timm do (coordenadores). Perspectivas e Desafios do Direito Aduaneiro no Brasil. São Paulo: Caput Libris, 2024, p. 67-86.

[15] Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52013PC0884R(03). Acesso em 15.set.2024.

[16] Disponível em: https://www.mercosur.int/pt-br/documentos-e-normativa/normativa/. Acesso em 15.set.2024.

[17] Cabe destacar que alguns temas sobre o imposto de importação já estão detalhadamente disciplinados em tratados, como a base de cálculo (no AVA-Gatt), restando apenas margem residual à legislação nacional. E até os tributos niveladores encontram disciplina no Artigo III do Gatt (“Tratamento Nacional”). Ademais, as taxas, que encontram regulação tanto na CQR/OMA como no AFC/OMC estão contempladas no anteprojeto).

[18] Sobre a reforma tributária, o leitor já está acostumado a ler colunas no território aduaneiro, v.g., a de Liziane Angelotti Meira (A reforma tributária está saindo, mas como fica o comércio exterior?), disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-ago-01/territorio-aduaneiro-reforma-saindo-fica-comercio-exterior/. Acesso em 15.set.2024. E a coluna de Fernando Pieri (A incidência do IBS e da CBS nas importações), disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-13/incidencia-do-ibs-e-da-cbs-sobre-as-importacoes/. Acesso em 15.set.2024.

[19] Tratados, v.g., na coluna de Rosaldo Trevisan (Contencioso aduaneiro: uma luz no fim do túnel?), disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-set-20/territorio-aduaneiro-luz-fim-tunel-contencioso-aduaneiro-2022/. Acesso em 15.set.2024.

[20] Para uma visão de futuro com mais embasamento científico e dados oficiais de organizações internacionais, remete-se à coluna de Fernando Pieri (2050: uma odisseia aduaneira), disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-04/2050-uma-odisseia-aduaneira/. Acesso em 15.set.2024.

[21 “Como a sombra da Terra é bem grande em relação à Lua, quando a Lua entra na sombra da Terra, quem estiver vendo vê a Lua eclipsada. Ou seja, para os locais onde é noite na hora do eclipse, será visível: o que vai diferir de um local para outro é a altura da Lua no céu”. Disponível em: https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2024/09/brasileiros-conseguirao-ver-eclipse-lunar-dia-17-de-setembro-evento-sera-transmitido-pelo-observatorio-nacional. Acesso em 15.set.2024.

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Pedido de justiça gratuita relativiza direitos fundamentais?

A quem atua no contencioso judicial, são cada vez mais comuns as dificuldades enfrentadas para se alcançar os benefícios da justiça gratuita, visto que parece haver ajuste de entendimento entre órgãos do Judiciário de que a concessão gratuidade de justiça deve ser precedida de verdadeira devassa na intimidade e vida privada daquele que a requereu.

Despachos que determinam, de ofício, a apresentação de documentos fiscais, bancários e familiares, antes mesmo de qualquer outro ato do processo, incluindo o exame de tutelas de urgência, têm sido cada vez mais comuns na práxis forense.

Adverte-se a parte de que seu pedido de gratuidade de justiça será indeferido se não apresentar documentos como: declaração de imposto de renda, holerites e demonstrativos de pagamentos, extratos bancários e faturas de cartões de crédito de determinados períodos, além de outros, que variam conforme a criatividade do Juízo.

Há casos, ainda, em que se tem exigido que os tais documentos se refiram tanto à parte que requereu o benefício, como a seu cônjuge ou companheiro ou, ainda, a pessoas jurídicas das quais a parte componha o quadro societário, embora sejam estes estranhos ao processo.

O ponto de tensão do entendimento acima mencionado e o ordenamento jurídico vigente é a possível ilegalidade e inconstitucionalidade dessas exigências, principalmente como vêm sendo realizadas. Analisá-las é a finalidade central deste artigo.

A justiça gratuita é corolário do direito de acesso à jurisdição (CF, artigo 5º, XXXV) e, em última análise, da própria dignidade da pessoa humana, sendo ferramenta indispensável para a consecução dos objetivos fundamentais constitucionais da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, da erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.

Através dela, é garantido vez e voz aos que não podem arcar com os valores devidos aos cofres públicos pela fruição dos relevantes serviços de natureza forense para a tutela de seus direitos.

Não se trata de assistência jurídica gratuita

Embora compartilhem das mesmas origens, a gratuidade de justiça é instituto distinto da assistência jurídica gratuita, que tem viés de suporte técnico-profissional aos que provarem insuficiência de recursos. A gratuidade de justiça, por sua vez, tem natureza jurídica de isenção tributária (CTN, artigo 175).

 Inicialmente regulada pela Lei nº 1.060/1950, a gratuidade de justiça está hoje disciplinada majoritariamente nos artigos 98 a 102 do Código de Processo Civil. Destes, dois dispositivos nos interessam para o objetivo deste artigo: os parágrafos 2º e 3º do artigo 99 do CPC.

O parágrafo 2º do artigo mencionado tem a seguinte redação: “O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos”. O parágrafo terceiro, por sua vez, dispõe: “Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”.

Ressalvada melhor interpretação dos dispositivos acima transcritos, não há autorização para que o Juízo, de plano e sem amparo nos elementos do processo, exija a apresentação de documentos complementares para o exame do pedido de gratuidade de justiça formalizado, muito menos dos que estão sob o manto do direito fundamental da inviolabilidade da vida privada e intimidade, como, por exemplo, declarações de imposto de renda, faturas de cartões de crédito e extratos bancários.

Abuso ao direito de inviolabilidade da intimidade

Obviamente que não se está aqui a defender o abuso do direito ou a prática desleal de afirmar necessidade que não encontra eco na realidade. Entretanto, o ponto que se coloca — e que, na verdade, intriga — é o absoluto menosprezo ao direito de inviolabilidade da intimidade e vida privada, pautado apenas na premissa nada constitucional de que aqueles que alegam terem direito a este benefício faltam com a verdade, presumindo-se que atuam com má-fé e contrariando antigo e conhecido princípio geral do direito, segundo o qual: “a boa-fé se presume; a má-fé se prova”.

Aliás, esse foi o princípio assumido pelo legislador, quando prescreveu que a alegação de insuficiência é relativamente presumida como verdadeira, desde que formalizada por pessoa natural (CPC, artigo 99, § 3º).

Isso posto, salvo melhor julgamento, a interpretação mais adequada dos dispositivos supramencionados é a de que, se não há elementos nos autos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, a declaração da pessoa natural no sentido de que não tem condições de arcar com os custos do processo e honorários de advogado deve ser considerada verdadeira, competindo à parte ex adversa trazer elementos aos autos que a infirmem, permitindo, com isso, que o Juízo fixe prazo para que aquele que pretende receber o benefício demonstre, da forma que entender, que sua declaração é, de fato, verdadeira.

Ilegalidade ainda mais grave é a exigência de juntada dos mesmos documentos referidos anteriormente, mas relativos ao cônjuge e/ou companheiro daquele que pretende a benesse legal e, ainda, das eventuais pessoas jurídicas das quais esses participem — tanto o sujeito do processo como seu cônjuge/companheiro.

Ora, se o benefício processual pretendido é individual e personalíssimo, e estes são terceiros que não tem relação alguma com o processo, inexiste justificativa plausível para que sua intimidade e vida privada sejam escancaradas nos autos de processo que não trata de cujo objeto não lhes são afetos.

Requisitos para deferir gratuidade

Há no âmbito do Superior Tribunal de Justiça três recursos especiais afetados para tratar sobre a fixação de requisitos objetivos para o deferimento da gratuidade de justiça. Trata-se do Tema 1.178, de relatoria do ministro Og Fernandes que, inclusive, já ofereceu voto no sentido contrário ao estabelecimento de critérios objetivos.

Segundo matéria veiculada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça,[1] o voto do relator do tema citado veio no sentido de fixar as seguintes teses: (…)

  • a) É vedado o uso de critérios objetivos para o indeferimento imediato da gratuidade judiciária requerida por pessoa natural;
  • b) Verificada a existência nos autos de elementos aptos a afastar a presunção de hipossuficiência econômica da pessoa natural, o juízo deverá determinar ao requerente a comprovação de sua condição, indicando de modo preciso as razões que justificam tal afastamento, nos termos do artigo 99, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil (CPC).
  • c) Cumprida a diligência, a adoção de parâmetros objetivos pelo magistrado pode ser realizada em caráter meramente suplementar e desde que não sirva como fundamento exclusivo para o indeferimento do pedido de gratuidade. (…)

Note que a interpretação do relator sobre os dispositivos que ora são examinados é ainda mais restrita que a defendida neste artigo, pois, para além de entender inexistir na lei a faculdade de o Juízo determinar juntada de novos e complementares documentos ex ofício e sem indicar elementos dos autos que ilidam a veracidade presumida da declaração de hipossuficiência, impõe ao magistrado a indicação precisa das razões que justificam tal afastamento e, além disso, impede que sejam utilizados critérios objetivos como fundamento exclusivo do indeferimento.

É um verdadeiro contrassenso exigir que a parte descortine sua vida econômico-financeira para terceiros a fim de fruir de um benefício que, para ser deferido, demanda firmação de declaração com presunção legal de veracidade.

A presunção de que trata a lei (CPC, artigo 99, § 3º) é relativa e só é arrefecida a partir dos elementos que constam dos autos. Por isso mesmo que, caso não constem dos autos esses elementos, compete à parte adversa trazê-los para infirmar a declaração exarada, seja nas preliminares de contestação (CPC, artigo 337, XIII), seja na manifestação sobre a contestação (CPC, artigo 351).

E se o juiz cumpre ônus da parte, violará frontal e diretamente princípios elementares do processo, tais como: devido processo legal, dispositivo/inercia, imparcialidade, e inúmeros outros, ainda que de forma colateral. É, portanto, inadmissível que o juiz tenha a postura que ora se estuda e critica.

Não há, sequer, razoabilidade e proporcionalidade em requisitar a apresentação desses documentos para a apreciação do pedido de gratuidade de justiça, de modo que essa postura é, ainda, inconstitucional por violar esses postulados, que estão implícitos em nossa Carta Política de 1988.

Inviolabilidade de intimidade e vida privada

O elevado nível da proteção dos sigilos fiscal e bancário fica ainda mais evidente quando diante de questões criminais, pois, mesmo em face do relevante interesse público e dever do Estado em tutelar a segurança pública e a proteger os bens jurídicos com o uso da última ratio do direito penal, não se pode irromper a vida privada e intimidade de qualquer forma e por qualquer motivo.

Ao mitigar a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, a lei infraconstitucional elegeu fatos e situações graves que justificassem, do ponto de vista da razoabilidade e proporcionalidade, seu afastamento. Ademais, também fixou procedimentos e formalidades que, se não observados, trazem nulidade ao ato estatal invasivo, responsabilidade por danos deles advindos e até ensejam responsabilização criminal dos agentes envolvidos.

Por exemplo, a Lei Complementar nº 105/2001 estabelece que a quebra de sigilo bancário somente pode ocorrer para apuração de ilícitos e, logo após isso, elenca um rol de crimes que podem justificar a medida excepcional. São eles:

  • (i) de terrorismo;
  • (ii) de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;
  • (iii) de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado a sua produção;
  • (iv)de extorsão mediante sequestro;
  • (v) contra o sistema financeiro nacional;
  • (vi) contra a Administração Pública;
  • (vii) contra a ordem tributária e a previdência social;
  • (viii) lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores;
  • (ix) praticado por organização criminosa. (artigo 1º, § 4º).

Sigilo das comunicações é direito fundamental

O sigilo das comunicações, igualmente elevado ao status de direito fundamental do indivíduo, também vem protegido de violações por questões de ínfima relevância, sendo admitido apenas excepcionalmente e se preenchidas as rigorosas formalidades predeterminadas na Lei Federal nº 9.296/1996.

A toda evidência, portanto, a vida privada e a intimidade não podem ser desprezadas e a sua inviolabilidade não pode ser afastada em casos pouco relevantes e sem expressivo interesse público.

Ao que parece, o pedido de justiça gratuita não se enquadra em situação relevante ou que traga consigo interesse público significativo para que o Juízo, de ofício e sem qualquer fundamentação em elementos do processo que implique afastamento da presunção de veracidade da declaração de pobreza acostada por pessoa natural, condicione o exame do pleito à juntada de documentos que estão protegidos pela inviolabilidade da vida privada e intimidade.

Dito tudo isso, o condicionamento da análise do pedido de justiça gratuita à juntada de documentos que estão protegidos pelos sigilos fiscal e bancário é ilegal e inconstitucional, sendo possível, contudo, que a partir de elementos que constem dos autos desde a petição inicial, ou que tenham sido trazidos em impugnação à concessão da gratuidade de justiça, que o Juízo fixe prazo para que a parte interessada se manifeste e traga documentos complementares que demonstrem a realidade da necessidade alegada, sem, contudo, apontar quais sejam esses documentos ou, ainda, ameaçar o jurisdicionado de indeferimento do pleito se não for apresentado esse ou aquele documento.


[1] Disponível em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/26122023-Relator-vota-para-afastar-criterios-objetivos-na-analise-de-justica-gratuita–vista-suspende-julgamento.aspx> Acesso em 06 de jul. 2024, às 10h06.

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O que diferencia a litigância predatória das ações legítimas no Judiciário?

Nos últimos tempos, o termo “litigância predatória” tem aparecido com frequência nos tribunais e na mídia. Mas o que ele realmente significa? Em resumo, trata-se do uso abusivo do direito de entrar com ações judiciais, geralmente para obter vantagens indevidas, prejudicar a outra parte, ou sobrecarregar o poder judiciário. De outra forma, ações legítimas são aquelas movidas com fundamento e razões, buscando a proteção de direitos reais.

Papéis, processos, pilha de documentos, contratos, acordos, lentidão da Justiça, morosidade

A litigância predatória pode ser bem exemplificada: um advogado ou um cliente que decida processar alguém várias vezes, utilizando-se de documentos fraudulentos, fatiando ações, ou até mesmo ajuizando ações em que o cliente sequer sabe de sua existência, mesmo sabendo que o motivo é fraco ou inválido. O objetivo é forçar a outra parte a gastar tempo e recursos se defendendo, ou mesmo tentando obter um acordo, já que muitas vezes se torna mais fácil para a outra parte pagar a continuar lutando na Justiça. Esse tipo de comportamento é o que chamamos de litigância predatória.

Já as ações legítimas são muito diferentes. Pensemos em uma pessoa ou empresa que realmente teve seus direitos violados —seja porque não recebeu um pagamento devido, sofreu um dano ou teve algum prejuízo que mereça compensação. Neste caso, a ação judicial é movida com base em fatos e objetivos, buscando uma solução justa e proporcional. Essas demandas jamais serão consideradas “predatórias” e terão seu andamento regular perante o poder judiciário com um julgamento imparcial e legítimo.

Como identificar a litigância predatória?

Um sinal claro de litigância predatória é quando um advogado ou cliente entra com várias ações parecidas contra a mesma parte, mesmo depois de perder casos anteriores. O propósito é tentar “cansar” a outra parte, abarroar o Judiciário e obter uma vantagem indevida.

Em muitos casos, a litigância predatória tem como objetivo obter algum tipo de vantagem que não deveria existir, como uma indenização ou um acordo que favoreça a parte que está abusando do direito de ação.

O uso repetitivo de recursos judiciais sem fundamentos tem sido objeto de inúmeros estudos, levantamentos e notas técnicas pelo país. Consiste, normalmente, no ajuizamento ou provocação de lesões em massa.

Como já identificado pelo CNJ e também nas notas técnicas produzidas pelos centros de inteligência de diversos tribunais, tais como do TJ-MT, TJ-MS, TJ-BA, TJ-RN, alguns indicativos de demandas predatórias ou fraudulentas se relacionam com as seguintes características: iniciais acompanhadas de um mesmo comprovante de residência para ações diferentes; sem documentos comprobatórios mínimos ou documentos não relacionados com a causa de pedir, além de procurações genéricas e a distribuição de ações idênticas.

A litigância predatória sobrecarrega o sistema de Justiça, deixando-o mais lento e menos eficiente. Isso afeta todos que precisam da Justiça, desde cidadãos comuns até grandes empresas. Conforme dados do CNJ, entre 2016 e 2021 somente no estado de São Paulo houve a distribuição atípica de 330 mil processos, com impacto de mais de R$ 2,7 bilhões aos cofres públicos.

Grandes bolsos

Bancos e outras instituições financeiras são frequentemente alvos de ações predatórias, pois são percebidos como tendo “grandes bolsos” e propensos a acordos para evitar custos maiores. Isso aumenta as despesas com advogados e pode prejudicar a reputação da instituição.

Quando o sistema judicial é ocupado por processos abusivos, aqueles que têm demandas reais acabam esperando mais tempo para ver suas questões resolvidas, o que pode trazer prejuízos financeiros e emocionais.

O Código de Processo Civil permite que juízes apliquem multas contra quem age de má-fé no processo, tentando desestimular a litigância predatória. Ferramentas tecnológicas, como softwares de análise de dados, podem ajudar a identificar padrões de litigância predatória, facilitando a ação rápida dos tribunais e das partes envolvidas.

Distinguir litigância predatória de ações legítimas é fundamental para garantir a Justiça e o bom funcionamento do sistema judiciário. Saber diferenciar essas práticas permite que advogados, juízes e as próprias partes envolvidas tomem medidas mais eficazes contra litígios abusivos, protegendo aqueles que realmente precisam da Justiça.


Referências

https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/04102023-Entidades-temem-que-combate-a-litigancia-predatoria-prejudique-advocacia-e-defesa-de-interesses-coletivos.aspx

https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/litigancia-predatoria-compromete-garantia-constitucional

https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/#:~:text=O%20fen%C3%B4meno%20da%20litig%C3%A2ncia%20predat%C3%B3ria,uso%20abusivo%20do%20Poder%20Judici%C3%A1rio.

https://www.tjmt.jus.br/noticias/69852#.ZBuka3bMKUk

https://consumidormoderno.com.br/litigancia-predatoria-consumo/#:~:text=Na%20ocasi%C3%A3o%2C%20foram%20expostos%20os,R%24%202%2C7%20bilh%C3%B5es.

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Prisão no plenário do júri e o ‘fator Júlia Roberts’: quando o STF resvala

A decisão do STF no Tema 1.068

O Supremo Tribunal Federal decidiu, no regime de repercussão geral, o Tema 1.068, prevalecendo a tese:

“A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada.”

A decisão deve ser respeitada. O papel dos professores é o de indicar as incoerências e inconsistências da “razão forte” adotada no julgamento do RExt 1.235.340, contribuindo, quem sabe, para revisão futura do desfecho.

‘Fator Júlia Roberts’

O fator ou efeito Julia Roberts é o nome dado à necessidade de superação do argumento de autoridade da Corte Suprema, invocado a partir da festejada atriz de cinema que protagonizou o filme “Dossiê Pelicano” (de 1993, dirigido por Alan Pakula, do livro de John Grishan).

O filme explora os limites da privacidade e a criminalização da sodomia pelo estado da Geórgia, nos EUA (Bowers v. Hardwick), em que a Corte Suprema americana, em 30 de junho de 1986, por apertada votação (5 votos a 4), decidiu pela constitucionalidade da criminalização. Na película, em vez de explicar e debater os argumentos, o professor afirmou que o “precedente” estava dado, no que Darby Shaw, a aluna interpretada por Julia Roberts, diz que a Corte Suprema errou.

A paternidade ou maternidade da interpretação conferida pelo Supremo Tribunal Federal é insuficiente à canonização ou o congelamento das discussões democráticas quanto ao “referente” e “significado” atribuídos aos termos jurídicos.

A batalha de argumentos precisa convencer com fundamentos democráticos, isto é, “boas razões” que autorizem crenças justificadas (válidas e sólidas), com garantias epistêmicas. Aceitar o contrário impediria as discussões posteriores, típicas do espaço democrático. O tema foi trabalhado por Lenio Streck aqui e Alexandre Morais da Rosa aqui.

Objeções antecedentes

Em artigo publicado na ConJur em 11/11/2022, sob o título “O erro lógico da prisão automática no júri: Tema 1.068 do STF”, sublinhamos (Aury e Alexandre) que:

A análise crítica a seguir aborda duas perspectivas: (a) lógica: das inferências realizadas com o suporte normativo da Constituição; e, (b) funcional: o pano de fundo do lugar e da função do STF no que se denomina de Medidas Estruturantes.

Cezar A. Mortari define: “Lógica é a ciência que estuda princípios e métodos de inferência tendo o objetivo principal de determinar em que condições certas coisas se seguem (são consequência), ou não, de outras” [1]. Por isso, a análise primeira consiste em determinar se os argumentos (premissas) invocados na Tese suportam as conclusões apresentadas.

Do ponto de vista topológico do ordenamento jurídico, as normas invocadas são do mesmo patamar constitucional, situadas no artigo 5º, sob o domínio dos “Direitos e Garantias Fundamentais”:

(a) Soberania dos veredictos (artigo 5º, XXXVIII, “c”: é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida); e,

(b) Presunção de inocência (artigo 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória).

A análise deve se orientar pelo pressuposto de que os incisos declaram “Direitos e Garantias Fundamentais” que devem ser correlacionados de modo coerente e consistente, isto é, sem contradição e de modo a compor unidade lógica da diretriz constitucional.

Aliás, J. J. Gomes Canotilho é claro sobre o dever de: “considerar a Constituição na sua globalidade e procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar“. (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998).

No julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade 43, 44 e 54, em longo acórdão (489 páginas), proferido em 7/11/2019, os ministros deliberaram pela prevalência da “Presunção de Inocência” [2], ainda que equivocadamente igualado ao da não-culpabilidade, em ementa da lavra do ministro Marco Aurélio:

“PENA – EXECUÇÃO PROVISÓRIA – IMPOSSIBILIDADE – PRINCÍPIO DA NÃO CULPABILIDADE. Surge constitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, a condicionar o início do cumprimento da pena ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória, considerado o alcance da garantia versada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, no que direciona a apurar para, selada a culpa em virtude de título precluso na via da recorribilidade, prender, em execução da sanção, a qual não admite forma provisória.”

A decisão reverteu o julgamento operado no Habeas Corpus 126.292, ministro Teori Zavaski, julgado em 17/2/2016, em que as razões então prevalecentes, assumiram a possibilidade de que a cognição sobre a premissa fática se exaure no regime recursal ordinário, restringindo a eficácia suspensiva do recurso especial e do recurso extraordinário.

A consequência foi a eficácia imediata da decisão condenatória, denominada genericamente de “prisão em segunda instância”.

Entretanto, a partir da constitucionalidade do artigo 283 do CPP (Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva), retomou-se o padrão estabelecido quando do julgamento do Habeas Corpus 84.078, da lavra do ministro Eros Grau, operado em 5/2/2009:

“a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar.”

Pode-se concluir a orientação de que a prisão cautelar no domínio do Processo Penal ocorre nas modalidades (a) cautelar (flagrante, preventiva ou temporária); e, (b) sentença condenatória transitada em julgado.

O ponto crucial é o do “estado do acusado”. Do ponto de vista lógico o acusado somente pode assumir dois estados: (a) inocente; ou, (b) culpado. É que a lógica clássica rejeita o “terceiro excluído”, como, aliás, sublinhou o ministro Marco Aurélio:

“Repito: o princípio constitucional da não culpabilidade pressupõe, para ter-se o início do cumprimento da sanção, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória — a revelar a existência de pronunciamento precluso na via da recorribilidade. Ante o princípio do terceiro excluído — uma coisa é ou não é, não havendo espaço para o meio termo —, ou bem se tem título alcançado pela preclusão maior a autorizar a execução da pena, ou não se tem, sendo forçoso reconhecer a natureza provisória da execução daí decorrente — quadro discrepante, a mais não poder, do versado no preceito cuja redação não vai além de reproduzir o previsto no texto constitucional. Revela-se impróprio, presente a garantia estampada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, cogitar da existência de terceiro grupo a partir de argumentos metajurídicos, os quais não seduzem a ponto de suplantar, no controle objetivo de constitucionalidade, a literalidade da norma.” (p. 37-38)

Diante dos valores de verdade logicamente assumidos pela Constituição, o acusado preserva o “estado de inocência” até o ponto de inflexão, ou seja, a causa da alteração do estado de inocente para culpado, demarcado pelo “trânsito em julgado” descrito na Lindb “Art. 6º, § 3º — Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso” (Lenio Streck e Alexandre Morais da Rosa — aqui).

É que se o fluxo processual ainda não se finalizou, com a possibilidade de interposição de recursos (ordinários — CPP, artigo 593 —, especial ou extraordinário), do ponto de vista lógico, ausentes atributos constitutivos do conceito vigente de trânsito em julgado.

Segue-se a ausência de solidez, a partir das normas constitucionais e do conceito de “coisa julgada”, da atribuição do valor de verdade à premissa de que a “autonomia dos veredictos” declarada pelo artigo 5º, XXXVIII, “c”, exclui a incidência do artigo 5º, LVII (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória).

É que a “autonomia dos veredictos” se orienta à intangibilidade da reavaliação dos critérios utilizados pelos jurados, isto é, o tribunal, ao analisar o recurso, está limitado quanto à cognição vertical adotada pelos jurados. Nem mais, nem menos. Em consequência, o lugar e a função da “autonomia dos veredictos” é a de limitar a função “substitutiva” do órgão recursal, impedindo que o tribunal reverta o “conteúdo do veredicto”.

A validade da premissa (prisão imediata) somente poderia ser aceita com a extrapolação dos limites do espaço demarcado pelo art. 5º, XXXVIII, da CR, porque ao “reconhecer” a instituição do júri, o constituinte declarou também que a regulamentação seria objeto de lei, “assegurados”: (a) a plenitude de defesa; (b) o sigilo das votações; (c) a soberania dos veredictos; (d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Em nenhum momento, embora pudesse, o Constituinte estabeleceu regra especial quanto à eficácia imediata das sentenças condenatórias. no subdomínio do Tribunal do Júri. Se não o fez, o disposto no artigo 5º, LVII da CR (ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória) prevalece.

Até porque, do ponto de vista da coerência e da consistência, necessariamente ao final do artigo 5º, LVII, deveria existir uma vírgula, seguida da declaração “salvo nos casos dos crimes dolosos contra a vida”. A ausência de qualquer exceção, por definição, exige a incidência da norma geral e abstrata de maior proteção ao acusado.

Quando as definições estipulativas destoam

Se o Direito opera “na” e “pela” Linguagem, os “conceitos” (gerais) e as “definições” (específicas) são importantes porque estabelecem a conexão (vínculo; relacionamento) entre os termos/nomes, os “referentes” e os “significados” aceitos e reconhecidos pelo domínio do processo criminal.

Os conceitos e definições situam-se no plano semântico (conjunto de referentes e significados possíveis) e no plano pragmático (referente e significado empregado/utilizado em concreto), porque determinam o “conteúdo” do termo/expressão/rótulo atribuído.

No plano da linguagem as definições podem ser de quatro tipos:

(1) Concretas/reais (objetos tangíveis; orientação descritiva: cadeira, carro, maça etc.);
(2) Abstratas/conceitos (objetos intangíveis; orientação propositiva: igualdade, justiça; teoria do crime; proporcionalidade etc.;
(3) Lógicas (estruturas; sistemas; métodos; hipóteses; relação de causalidade etc.); e,
(4) Estipulativas (objetos tangíveis ou intangíveis; orientação inovadora ou distinta do padrão aceito e reconhecido pela tradição, paradigma científico ou do “status quo”).

As três primeiras (concretas; abstratas e lógicas) estabilizam os padrões da representação dos objetos, criando as condições para eficácia comunicativa, justamente por estabelecerem o conjunto de referentes e significados aceitos e reconhecidos pelo paradigma jurídico dominante.

O lugar e a função da “definição estipulativa” é o de apresentar “novo conteúdo˜, submetido à validação dos membros da comunidade jurídica, com a possibilidade de aceitação ou rejeição.

No entanto, os julgadores, em geral, apresentam “definições estipulativas” fora da curva, de surpresa, extrapolando os limites semânticos e pragmáticos construídos pela tradição, desprovidos de coerência e consistência com o ordenamento jurídico visto como um todo, impondo-se “novos” referentes e/ou significados exclusivamente em face do exercício do Poder Jurisdicional.

Embora se aceite, não sem críticas, por exemplo, a mutação constitucional (novo significado normativo para o mesmo texto), o emprego da técnica atrai o ônus da motivação e fundamentação adequadas (válidas e sólidas), sob pena de transferir a produção normativa do Poder Legislativo para o Poder Judiciário.

Mas o ponto que merece ser sublinhado é o de que as “definições estipulativas” (novo referente e/ou significado) promovem o descolamento da premissa democrática de ampliação do espaço de proteção do acusado, com a adoção de orientações limitadoras da presunção de inocência.

Ainda que a Suprema Corte disponha de certo espaço de atribuição quanto ao “referente” e ao “significado” do texto normativo, o espaço decisório faz com que assuma o dever argumentativo de superação das ratio decidendi antecedente (overruling), atividade jurisdicional provida de regras, metodologia e procedimentos restritivos.

A lógica do “stare decisires” parte do pressuposto de que as questões já decididas servem de orientação (previsibilidade) ao comportamento dos submetidos ao Poder Estatal, exigindo, por consequência, “boas razões” à superação, consideradas, necessariamente as anteriores (a nova decisão deve apontar o erro ou insuficiência da anterior).

‘Fator Julia Roberts’ comparece mais uma vez

Em resumo, a Constituição estabelece a garantia da presunção de inocência (artigo 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”) sem qualquer exceção (STF, ADCs 42; 43 e 45).

O acusado pode assumir somente dois estados durante os procedimentos penais:

(a) Inocente (status inicial; hipótese nula); ou
(b) Condenado (verificação da hipótese acusatória/alternativa; se absolvido preserva o status inicial de “inocente).

A existência de prisão cautelar preserva o estado de inocente porque orienta-se por critérios específicos e relacionados ao resultado útil do procedimento, vedada a antecipação da pena (CPP, artigo 283).

Logo, o acusado somente pode ser preso por força de: (a) prisão cautelar (anterior, concomitante ou posterior à sentença condenatória); ou, (2) condenação transitada em julgado. Não há no artigo 5º, LVII, a exceção “salvo nos crimes dolosos contra a vida”.

O argumento prevalecente, entretanto, assume a dominância da “soberania dos veredictos”, também do artigo 5º, da CR, sobre a “presunção de inocência”.

De fato, o artigo 5º, XXXVIII, ao “reconhecer” a instituição do júri, com a “organização” que lhe der a lei, “assegurou”: (a) Plenitude de defesa; (2) Sigilo das votações; (3) Soberania dos veredictos; e, (4) Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

A norma é de mesma hierarquia e topologia constitucional da presunção de inocência, devendo-se lê-las em conjunto. Do ponto de vista constitucional, o “Tribunal do Júri” é regulado por normas processuais de hierarquia inferior (CPP; Legislação Ordinária), observados os quatro atributos constitutivos.

Entretanto, o referente e o significado da “soberania dos veredictos”, na tradição, referem-se à impossibilidade de o órgão recursal “substituir”, como é próprio do regime recursal, o conteúdo do “veredicto” proferido pelos jurados (resultado; votação dos quesitos), sem qualquer vínculo (nexo; relação; implicação lógica) com a garantia individual autônoma “presunção de inocência”.

Em geral, as instâncias recursais ordinárias estão autorizadas a “reformar” ou “substituir” a decisão recorrida (condenando ou absolvendo), salvo nas hipóteses de julgamento pelo Tribunal do Júri (CPP, artigo 593), em que a “soberania dos veredictos” do corpo de jurados somente poderá ser “anulada”, uma única vez, submetendo-se o caso a novo júri “soberano” quanto ao desfecho (ainda que com controvérsias sobre a incidência da reformatio in pejus indireta).

Em consequência, a preservação da “soberania dos veredictos” limita-se a assegurar a eficácia do conteúdo da deliberação dos jurados (resultado da votação dos quesitos), sem qualquer vínculo/conexão com a garantia da presunção de inocência.

Por decorrência lógica, prevalece a norma do art. 5º, LVII (presumido inocente até o trânsito em julgado), em todo e qualquer procedimento, inclusive do júri, por ausência de exceção constitucional, sem prejuízo da decretação da prisão cautelar, desde que preenchidos os requisitos legais (CPP, artigo 312). Aliás, vale ler os votos dos ministros vencidos e o artigo de Bruno César Gonçalves da Silva (aqui).

Em acréscimo, três argumentos sistemáticos:

(a) se a “soberania dos veredictos” já existia na Constituição desde 1988, então, quando do julgamento das ADC 42, 43 e 45, o STF, ao deixar de excepcionar a possibilidade de relativização da presunção de inocência no domínio do tribunal do júri, operou “coisa julgada” (precedente vinculante);

(b) a constitucionalidade da prisão decorrente de decisão do tribunal do júri passa pelo reconhecimento da existência da “antinomia real”, entre normas constitucionais de garantia explícita (artigo 5º, LVII: presunção de inocência) com implícita (artigo 5º, XXXVIII: soberania dos veredictos), subvertendo-se o padrão de controle de constitucionalidade e, principalmente, com o erro lógico: a “norma explicita” é derrotada pela “norma implícita”. Tratar-se, no máximo, de “antinomia” do tipo “aparente”; e,

[c] a tese da constitucionalidade da prisão em decorrência de condenação no tribunal do júri, cria um inovador “estado do acusado” (definição estipulativa), para além dos dois previstos na Constituição (inocente ou culpado), isto é, o do “condenado pelo tribunal do júri sem trânsito em julgado”, submetido à ressuscitada “execução provisória”, em caso de recurso.

No caso do julgamento da constitucionalidade do tema 1068, a Suprema Corte redefiniu os contornos da “soberania dos vereditos” (referente e significado) construídos pela tradição, por meio de nova “definição estipulativa, com a imposição de restrição ao âmbito de proteção da garantia individual de presunção de inocência, criando o efeito prático de ressuscitar a “execução provisória” porque, sem trânsito em julgado, na hipótese de recurso, o acusado cumprirá a pena provisória (ou se trata de prisão cautelar obrigatória?).

Eis porque fazemos coro à objeção apresentada por Júlia Roberts.

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O crime de sonegação à luz da jurisprudência do STJ

É fato típico “suprimir ou reduzir tributo” mediante o emprego de um dos expedientes fraudulentos descritos no artigo 1º da Lei 8.137/1990. Os verbos utilizados no dispositivo legal revelam que a escolha política do legislador foi proteger a ordem tributária, sancionando criminalmente o comportamento do qual resulte concreto prejuízo à arrecadação.

Como ensina Hugo de Brito Machado, nesse sentido, “todas as condutas descritas nos nº I a V do artigo. 1º da Lei 8.137/1990 pressupõe que, por meio delas, haja efetiva supressão ou redução do tributo devido aos cofres públicos” [1], classificando-se os tipos ali dispostos como crimes materiais, isto é, aqueles cuja ação ou omissão estão relacionadas a um resultado naturalístico indispensável à configuração do delito.

Por decorrência dessa opção legislativa, para que a exação possa ser sonegada, ela deve ser tida por devida antes de tudo, o que quer significar que não parece possível caracterizar a supressão ou redução de tributo se, em primeiro lugar, não se reputar obrigatório o cumprimento da obrigação fiscal correspondente, o que está em consonância com o entendimento bastante consolidado pela jurisprudência. [2]

Pagamento

A legislação penal, nessa trilha, determina a extinção da pretensão punitiva quando verificado o pagamento antes do recebimento da denúncia (Lei nº 9.249/1995, artigo 34 [3]), além da suspensão no caso de parcelamento (Lei nº 11.941/2009, artigo 68), tendo o Superior Tribunal de Justiça, fundado no dogma da autonomia da instância penal, construído interpretação no sentido de que essas seriam hipóteses taxativas aptas a impactar a persecução penal (AgRg no RHC nº 173.258/PB, relator: ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Julgado em 14/2/2023).

Na linha dessa interpretação e à míngua de disciplina legal específica, a apresentação de garantia na execução fiscal não repercute sobre a esfera penal, ficando apenas recomendada a paralisação do processo penal nos casos de suspensão da exigibilidade do crédito. [4]

Esse entendimento deve sofrer justas críticas, já que, entre outras razões, suspensa a exigibilidade ou resguardada a exigência por garantia idônea, resta esvaziada a possibilidade de dano ao bem jurídico tutelado pela norma penal, pois ausente o prejuízo à arrecadação.

Assim, com intuito de aprimorar o sistema jurídico, seria de se sustentar a necessidade de modificação da lei penal para determinar a suspensão da pretensão punitiva nessas hipóteses, medida que, embora inegavelmente útil na dimensão prática, alerta sobre a necessidade de questionamento acerca da compatibilidade da posição jurisprudencial restritiva com a unicidade do ordenamento jurídico.

Isso porque, mesmo não havendo dúvidas de que deixar de pagar tributo valendo-se dos expedientes maliciosos elencados no artigo 1º da Lei 8.137/1990 é conduta típica, tal não necessariamente significa que se trate de fato penalmente punível.

É que a tipicidade é elemento necessário, mas não suficiente para a configuração de um crime, impondo-se a verificação da antijuridicidade, que “corresponde determinar se a conduta típica é contrária ao Direito, isto é, ilícita, e constitui um injusto. O termo antijuridicidade expressa, portanto, um juízo de contradição entre a conduta típica praticada e as normas do ordenamento jurídico”. [5]

Sistema jurídico

Quer dizer: para haver crime, não basta que a ação se amolde à descrição de um tipo penal específico. Ela deve, também, contrariar o sistema jurídico, cabendo-se perquirir “se o fato típico é realmente desaprovado pelo ordenamento jurídico ou se, no caso, existe alguma circunstância que o autorize”, isto é, a antijuridicidade é uma “contradição da realização do tipo de uma norma proibitiva com o ordenamento jurídico em seu conjunto (não somente com uma norma isolada)”. [6]

A norma penal, porque é parte integrante de um ordenamento jurídico amplo, toma, entre os comportamentos socialmente inaceitáveis, aqueles considerados mais graves e que, por isso, merecem a cominação de pena como contrapartida.

Assim, por representar ofensa aos bens jurídicos mais relevantes, um ilícito penal não pode ser reputado lícito em outras áreas do direito e “um ato lícito no plano jurídico-civil não pode ser ao mesmo tempo um ilícito penal.” [7]

A conduta, portanto, apenas pode ser punida criminalmente se estiver em descompasso, também, com as regras extrapenais, o que inclui as de natureza tributária. Nesse caminho, aduz Francisco de Assis Toledo que “o que é civilmente lícito, permitido, autorizado, não pode estar, ao mesmo tempo, proibido e punido na esfera penal, mais concentrada de exigências quanto à ilicitude”. [8]

Desse modo, não seria estritamente necessário, embora possa representar um caminho mais fácil, que a lei penal seja modificada para proteger de aplicação da pena prevista no artigo 1º da Lei 8.137/1990 o contribuinte que apresenta garantia na execução fiscal ou obtém decisão judicial suspensiva da exigibilidade do crédito. Basta, para tanto, que a conduta dele, embora típica, não seja classificada como antijurídica, isto é, seja reputada amparada pela lei tributária.

Conduta típica

Vale dizer, a influência de uma norma permissiva, ainda que de cunho extrapenal, impede que a norma penal geral e abstrata se traduza em dever jurídico concreto para o contribuinte. É uma autorização do sistema jurídico para a prática de uma conduta típica, já que, como lembra Cezar Roberto Bitencourt, “qualquer direito, público ou privado, penal ou extrapenal, regularmente exercido, afasta a antijuridicidade.” [9]

E o sistema jurídico é farto em exemplos de comportamentos que, abstratamente previstos na lei penal, estão justificados por normas de outra natureza, que resguardam interesses valiosos e igualmente merecedores de proteção. Esse é o caso, por exemplo, do artigo 1.210 do Código Civil, que permite o uso da força para proteção da posse, o que, desde que realizado nos limites da lei civil, afasta a possibilidade de punição criminal.

Do mesmo modo, embora “fazer justiça pelas próprias mãos” seja fato tipificado no artigo 345 do Código Penal, a lei extrapenal, atendidas determinadas condições, faculta ao hospedeiro a reter bens dos consumidores sem intervenção judicial, descaracterizando a configuração do crime nessa situação.

Garantia

Possível sustentar, com base nessas mesmas premissas, que todos os contribuintes que apresentam garantia idônea em execução fiscal agem de acordo com a norma extrapenal, que acolhe essa conduta como legítima alternativa ao pagamento, sem qualquer restrição quanto a eventual acusação de prática de crime anterior.

A apresentação de garantia, com a aceitação pela fazenda credora e a certificação pela autoridade judicial, por conseguinte, funcionam como norma de assimilação do fato típico ao sistema jurídico, o que autoriza o reconhecimento de que o contribuinte que assim age (apresentando garantia, reitere-se), tal qual o possuidor que usa violência legítima, tem a conduta protegida pelo ordenamento e não pode mais ser considerado criminoso.

A decisão judicial que suspende a exigibilidade do crédito supostamente sonegado, do mesmo modo, é calcada em autorização legal (CTN, artigo 151), e, enquanto perdurar, afasta a antijuridicidade da conduta, o que equivale a dizer: se o contribuinte, ainda que provisoriamente, não está obrigado a efetivar o pagamento, porque a norma tributária assim admite, não há materialmente supressão ou redução de tributo exigida no artigo 1º da Lei 8.137/1990.

Trata-se de um argumento de natureza material, que prestigia a unicidade do sistema jurídico e que oficia como autorizador da conduta do contribuinte, mantida a proclamada independência entre as esferas penal e cível, que se dá no plano processual.

Desse modo, o que podemos inferir, em arremate, é que a jurisprudência do STJ sobre o tema, além de todas as críticas que sofre da doutrina, não parece estar em linha com a opção política do legislador ao criminalizar o contribuinte que, goste-se ou não, atua no exercício de uma posição juridicamente legitimada pelo sistema normativo.

______________________________________

[1] MACHADO, Hugo de Brito. Crimes contra a ordem tributária. 4ª ed. São Paulo: Gen/Atlas, 2015, p. 23 citado por STOCO, Rui; STOCO, Tatiana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 91.

[2] Súmula Vinculante nº 24 – Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.

[3]  Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

[4] AgRg no RHC n. 66.007/CE, Relator Ministro Ribeiro Dantas, julgado em 28/4/2020

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME TRIBUTÁRIO. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA NA AÇÃO CÍVEL ANULATÓRIA. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. ART. 151 DO CTN. PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DA TESE. MATERIALIDADE DELITIVA PREJUDICADA. AGRAVO NÃO PROVIDO.

  1. A orientação desta Corte Superior disciplina que o simples ajuizamento de ação anulatória na esfera cível não configura óbice à persecução penal. Contudo, a procedência da ação anulatória, ou mesmo o deferimento de tutela provisória com suspensão da exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, V, do CTN, prejudica o exame da materialidade do delito tributário. (RHC 113.294/MG, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/08/2019, DJe 30/08/2019).
  2. Nesse sentido, constatando-se dúvida razoável sobre a própria materialidade do delito, materializada com o deferimento da medida liminar na ação anulatória, é aconselhável aguardar a definição da controvérsia no juízo cível, determinando-se a suspensão do inquérito policial.
  3. Agravo regimental não provido.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – v. 1: parte geral (arts. 1 a 120). 17ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2012. P. 147.

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – v. 1: parte geral (arts. 1 a 120). 17ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2012. P. 147.

[7] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – v. 1: parte geral (arts. 1 a 120). 17ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2012. P. 149.

[8] TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 166.

[9] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – v. 1: parte geral (arts. 1 a 120). 17ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2012. P. 161.

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Ocultação do adquirente e interposição fraudulenta: há modalidade culposa?

O equívoco nas modalidades de importação

O equívoco ou omissão na prestação das informações relativas à operação de comércio internacional que resulte na ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, do comprador, ou do responsável pela operação, concretizada ou não por meio da interposição de um terceiro, tem por resultado o perdimento da mercadoria ou a multa equivalente ao seu valor aduaneiro.

Ocorre que, em muitos casos, a ocultação pode ter se configurado sem a real intenção do agente de promover um ardil contra a administração, sendo resultado, em especial, da própria complexidade da legislação aduaneira quanto à adoção, por exemplo, da indicação da correta modalidade de importação, que é diretamente dependente das características envolvidas em cada operação.

Prejuízo ao controle aduaneiro

A declaração incorreta quanto aos elementos da importação ou da exportação pode caracterizar prejuízo ao controle aduaneiro, conjunto de práticas e medidas voltado a assegurar a aplicação da legislação aduaneira, “corpus mechanicus” ou elemento de instrumentalização da vigilância das fronteiras e da própria soberania nacional.

Tal finalidade, subsistente em si mesma, é tutelada no Brasil por um sofisticado e severo mecanismo sancionatório, indiferente a eventuais perdas de receitas tributárias, merecendo destaque a pena de perdimento das mercadorias, ou multa equivalente ao valor aduaneiro da mercadoria, sempre que caracterizado o “dano ao Erário” (§ 1º e § 3º do artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976)

Provas e conjunto indiciário da ocultação

A administração, por meio do exercício do controle aduaneiro, preserva-o, seja na etapa da conferência ou de auditoria posterior ao despacho, sendo-lhe possível desconsiderar a modalidade declarada caso não reflita a realidade documental colocada à disposição da autoridade aduaneira.

Essa análise, de caráter substancialista, tem sido cada vez mais comum e aceita pela jurisprudência, que, mediante a reunião de indícios, considera suficientemente comprovado o comportamento concludente das partes intervenientes.

É importante se analisar esta tendência a partir da perspectiva dos aplicadores (auditores, conselheiros, juízes): nem sempre será simples se demonstrar o ardil simulatório tendente a ocultar o real adquirente de uma mercadoria, e raramente haverá uma “prova cabal”, ou seja, aquela suficientemente irrefutável e dotada de aptidão para, sozinha, formar, de maneira satisfatória e juridicamente eficiente, o convencimento, sendo necessária a referência a um quadro indiciário que, por indução lógica, permita a conclusão minimamente segura a respeito “(…) da respectiva intenção e dos efeitos jurídicos perseguidos” [1].

Análise material das operações

Assim, aspectos materiais assumirão um importante papel para se determinar a correta modalidade adotada pelo interveniente. Neste sentido, a comprovação a respeito da pessoa que efetivamente negocia as condições e os termos da compra internacional, arcando com os custos relacionados à operação, tais como taxas alfandegárias, câmbio, procedimentos de licenciamento de mercadorias, entre outros, podem ser determinantes para se apontar a existência de uma importação direta (importador = adquirente).

Por outro lado, caso o adquirente, participe ele ou não das negociações com o fornecedor exportador, tenha contratado uma trading que realiza o despacho aduaneiro, o câmbio e demais atividades relacionadas à operação, atuando como mera extensão do comprador, sem influência sobre a transação, sendo as despesas arcadas em nome do destinatário efetivo da mercadoria, que assume os riscos do negócio, está-se mais próximo de uma modalidade indireta “por conta e ordem” de terceiro.

Diversa será a situação em que a trading realiza, em seu nome e com seus próprios recursos (ainda que receba valores do encomendante), a importação de mercadoria para um encomendante predeterminado. Se ela, como proprietária da mercadoria, apresenta elementos que permitam considerar a sua etapa na cadeia de circulação da mercadoria passível de consideração autônoma, é possível se afirmar que atua na condição de vera importadora, aproximando a operação de uma modalidade indireta “por encomenda”.

A partir do posicionamento que vem sendo adotado pelos tribunais, será, portanto, não a modalidade declarada (“causa aparente”), mas a avaliação efetiva das provas documentais (tais como a alocação de riscos prevista em contratos, o responsável pelo fechamento do câmbio, o responsável pelo pagamento do seguro, os fluxos financeiros etc.) que será fundamental para revelar de quem foi a intenção de adquirir a mercadoria no exterior e nacionalizá-la – a causa efetiva do negócio.

Interposição fraudulenta e ocultação do real adquirente

A partir da Lei nº 10.637/2002, o Decreto-Lei nº 1.455/1976 passou a prever, como uma das hipóteses de dano ao erário, a “ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros”.

O artigo 23 da norma de 1976 dispôs sobre um rol de condutas sob a denominação “dano ao Erário”, entre as quais acobertar um dos participantes que, potencial ou efetivamente, impactariam o controle aduaneiro, em especial o “responsável pela operação”, para, em seguida, condená-las coletivamente ao perdimento (§ 1º) ou multa equivalente ao valor aduaneiro (§ 3º)

Caso a ocultação seja realizada por meio da interposição de um terceiro, será aplicada a mesma penalidade, seja na modalidade presumida, quando o importador não comprova a origem, a disponibilidade e a transferência dos recursos utilizados na operação de comércio exterior (§ 2º), ou comprovada (inciso V do artigo 23), que demanda a identificação não apenas do resultado, mas também os meios utilizados para o alcançar.

Ocultação “dolosa” ou “culposa” do real adquirente

Para que se aperfeiçoe o consequente da norma (perdimento/multa equivalente), o núcleo do tipo “ocultar pessoa” deve estar acompanhado do complemento indissociável “mediante fraude ou simulação”. Se a responsabilidade por infração independe da intenção (dolo) do agente, “salvo disposição expressa em contrário”, nos termos do § 2º do artigo 94 do Decreto-Lei nº 37/1966, este é justamente o caso excepcionado.

Para fins de aplicação do artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976, portanto, toda ocultação será fraudulenta ou simulada. Entre as suas modalidades, por sua vez, encontra-se uma hipótese específica de ocultação que mereceu ser destacada entre as demais: aquela que se vale da interposição de um terceiro para o atingimento do resultado pretendido (acobertar alguém).

Entre as possibilidades apontadas pelo tipo (fraude ou simulação), afunila-se uma forma por meio do destaque dado à ocultação por interposição: a “fraudulenta”, ocupando-se o legislador em fazer a materialidade portar em seu nomem juris a modalização específica da conduta, ainda que a forma simulada estivesse plenamente contida pela hipótese mais genérica (ocultação mediante simulação).

Assim, o gênero (ocultação) deve ser praticado por meio fraudulento ou simulado, enquanto a espécie (ocultação com interposição de terceiro, seja comprovada ou presumida) deve ser praticada por meio de fraude.

É importante se ter em conta que tanto a fraude como a simulação constituem atos intencionais, o que implica, portanto, o dolo como elemento essencial na medida em que ambas as patologias envolvem a vontade consciente de, mediante um engano ou artifício, prejudicar a administração ou obter vantagem indevida.

Não há, portanto, espaço para inflição de pena na ocultação culposa, em que o agente alcança o resultado em virtude de negligência, imperícia ou imprudência. E muito menos na ocultação “inocente”, o que envolveria pena sem culpa, uma vez que a responsabilidade objetiva não convive com a penalidade, sendo necessário o aspecto subjetivo da conduta para que se cominem as penas (link).

Posicionamento do Carf sobre a ocultação “culposa”

Ainda que a legislação aduaneira estabeleça, de maneira bastante clara, que a ocultação do real adquirente e, muito mais, a interposição fraudulenta, apenas possam ser identificadas como antecedente da pena de perdimento/multa equivalente quando diante da comprovação do uso de meios fraudulentos ou simulados aptos a demonstrar a intenção de ocultar o comprador ou comitente, a jurisprudência do Carf sedimentou o entendimento de que se está diante de um delito “apenas de ato”, não dependente da demonstração da intenção de ocultar terceiros, conforme Acórdão CSRF nº 9303-011.114, julgado em 19/01/2021, que conta com o seguinte trecho em sua ementa: “a penalidade decorrente do delito de interposição fraudulenta desestimula a conduta do contribuinte, não dependendo da eficácia, natureza e extensão dos efeitos do ato ou da demonstração, pelo Fisco, da presença do elemento volitivo nos atos praticados”.

Esse entendimento se baseia, em resumo, no argumento, extraído do Acórdão nº 9303-010.174, sob a relatoria do conselheiro Rodrigo da Costa Possas, de que “(…) condicionar a imposição de uma penalidade à demonstração de dano efetivo ou à demonstração do elemento volitivo prejudicaria sua essência instrumental como meio de permitir o monitoramento fiscal” [2].

O raciocínio parte da premissa de que o “dano ao Erário” deve ser considerado como o conjunto de hipóteses previstas no dispositivo legal, entre as quais se encontra a “ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, sendo bastante a sua demonstração, uma vez que o legislador considerou tal conduta como antecedente da pena de perdimento/conversão em multa equivalente, o que é correto e se encontra expresso pelo enunciado da Súmula Carf nº 160.

No entanto, tornar prescindível a demonstração do elemento volitivo (ou a dissociação entre a causa aparente e causa efetiva do negócio jurídico) é deixar de lado a previsão igualmente prevista no artigo “mediante fraude ou simulação”. Não parece ser possível se concretizar a norma abstrata selecionando os elementos mais convenientes à aplicação. Tampouco se encontra ao longo da argumentação do voto condutor qualquer fundamento para deixar de aplicar a disposição textual da norma.

Posicionamento do STJ: presunção relativa de dano

Percurso ainda diverso foi realizado pelo STJ no REsp nº 1.417.738/PE, sob a relatoria do ministro Gurgel de Faria, com acórdão publicado em 15/5/2019: para o voto condutor, caso verificada uma das hipóteses de dano ao erário, a demonstração do dolo do agente se torna desnecessária. O dolo apenas passaria a ser relevante quando o ato infracional não causasse qualquer dano à Fazenda Pública.

No caso concreto, discutiu-se a aplicação a aplicação da pena de perdimento a sementes de grama destinadas ao exterior sem manifesto e registro de carga no Siscomex, tendo tanto a decisão recorrida como o STJ decidido não ter havido dano. Por tal motivo, seguindo a premissa estabelecida, passou-se a indagar a respeito da intenção do agente, tendo restado “provado que a companhia agiu de acordo com os procedimentos legais”, motivo pelo qual a turma afastou a pena aplicada.

Segundo o posicionamento firmado por unanimidade pela 1ª Turma, as hipóteses do artigo 23 veiculam presunções relativas de prejuízo ao controle aduaneiro e de dano ao erário, podendo, portanto, serem afastadas mediante comprovação em sentido diverso (inexistência de prejuízo efetivo), o que permitiria o afastamento da pena caso a parte interveniente demonstrasse ausência de dolo ou intenção de causá-lo.

Tal raciocínio implicaria o reconhecimento de uma modalidade tentada para aqueles casos em que, apesar de ter havido a intenção do agente de lesar o erário, seu objetivo não foi alcançado.

Por outro lado, a negativa do reconhecimento de produção de resultado poderia ter por consequência a própria impossibilidade do cometimento de qualquer ato antijurídico por parte do administrado.

No caso julgado, se a falta de registro da carga não é causa eficiente de dano ao erário, então, ainda que se vislumbre dolo, depara-se o intérprete com a impossibilidade de consumação do ato ilícito, o que se aproxima da figura do “crime impossível” previsto pelo artigo 17 do Código Penal.

Por estes motivos, tanto o posicionamento do Carf (total irrelevância do elemento volitivo) como o do STJ (dano ao erário como uma presunção relativa que admite, no entanto, modalidade tentada) merecem revisão.

Hipóteses culposas e dolosas de perdimento

É possível o perdimento ou a conversão em multa equivalente independentemente de intenção do agente, como no caso, por exemplo, em que se encontra mercadoria incluída em lista de provisões de bordo em desacordo com as necessidades do transporte (inciso II do artigo 689 do RA/2009), ou não manifestada a bordo (inciso IV), ou trazida ao Brasil ao desamparo de licença de importação ou documento de efeito equivalente, quando a sua emissão estiver vedada ou suspensa (inciso XX).

Em todos estes casos, não se indaga a respeito de intenção, pois será bastante a negligência, ou qualquer outra modalidade de culpa que atraia o elemento subjetivo do tipo para que reste configurada a infração.

Diverso é o caso, ainda exemplificativamente, da falsificação ou adulteração de documento necessário ao embarque (incisos VI a VIII), da mercadoria já desembaraçada “e cujos tributos aduaneiros tenham sido pagos apenas em parte, mediante artifício doloso” (inciso XI), ou daquela “fracionada em duas ou mais remessas postais ou encomendas aéreas internacionais visando a iludir, no todo ou em parte, o pagamento dos tributos”.

Em todos estes casos, assim como na “ocultação do real adquirente mediante fraude ou simulação”, ou sua espécie “interposição fraudulenta” (inciso XXII), atrai-se a excepcionalidade do § 2º do artigo 94 do Decreto-Lei nº 37/1966 (parágrafo único do artigo 673 do RA/2009) e, neles, a inflição da pena (consequente) depende da demonstração da intenção do agente (dolo), não sendo admissível, portanto, a sua modalidade culposa.


[1] Acórdão Carf nº 2301­005.119, proferido em 12/09/2017, de relatoria do conselheiro Fábio Piovesan Bozza.

[2] No mesmo sentido: acórdãos 9303-006.002 (decidido em 3/2/2018), 9303-008.721 (decidido em 12/6/2019), 9303-007.452 (decidido em 20/9/2018), 9303-006.509 (decidido em 14/3/2018), 9303-010.174 (decidido em 13/2/2020).

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STF retoma julgamento sobre validade do trabalho intermitente

O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta sexta-feira (6) o julgamento sobre a constitucionalidade do contrato de trabalho intermitente, inserido na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pela reforma trabalhista de 2017.

Os três processos que tratam da questão são julgados em sessão virtual, que será finalizada no dia 13 de setembro. O julgamento foi suspenso em 2020.

Até as 20h30 desta sexta-feira, o placar da votação era de 3 votos a 2 para manter a validade da modalidade de trabalho intermitente. Os votos foram proferidos na ação protocolada pela Federação Nacional dos Empregados em Postos de Serviços de Combustíveis e Derivados de Petróleo. 

Os ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes e André Mendonça votaram pela validade do modelo. O relator, Edson Fachin, e a ministra Rosa Weber, que se manifestou antes da aposentadoria, consideraram o trabalho intermitente inconstitucional.

A questão também é julgada nas ações protocoladas pela Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações e Operadores de Mesas Telefônicas e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria. Nessas ações, o placar está 2 a 1 a favor do trabalho intermitente.

Para as entidades, o modelo favorece a precarização da relação de emprego e o pagamento de remunerações abaixo do salário mínimo, além de impedir a organização coletiva dos trabalhadores. 

Conforme definido na reforma trabalhista, o trabalhador intermitente recebe por horas ou dias trabalhados, e tem férias, FGTS e décimo terceiro salário de forma proporcional ao período trabalhado. No contrato, é definido o valor da hora de trabalho, que não pode ser inferior ao salário mínimo por hora ou à remuneração dos demais empregados que exerçam a mesma função.

O empregado deve ser convocado com, no mínimo, três dias corridos de antecedência. No período de inatividade, pode prestar serviços a outras empresas.

Fonte:

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STJ discute a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência

Tramita no Superior Tribunal de Justiça recurso especial interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais, que busca reconhecer a natureza jurídica inibitória das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

No caso concreto, o Ministério Público se insurge contra a fixação de prazo definido, de 90 dias, para a vigência das medidas protetivas de urgência concedidas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em sede de agravo de instrumento, além de a decisão mencionar previamente que a situação de risco à mulher poderia vir a ser reavaliada após o período pré-determinado pelo tribunal.

A evolução da jurisprudência no STJ

Há anos a discussão acerca da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha acontece na Corte Superior.

De um lado, há quem defenda que as medidas protetivas de urgência possuem natureza de cautelar penal, argumentando que se justificam como um meio para assegurar a eficácia do processo.

Foi justamente nessa linha argumentativa que em diversas ocasiões a 5ª Turma do STJ decidiu por reconhecer a natureza cautelar penal das medidas protetivas de urgência, ao consignar, por exemplo, que sua aplicação seria restrita “a casos de urgência, de forma preventiva e provisória” [1], ou que a imposição de restrições à liberdade dos acusados via medida protetiva de urgência “de modo indefinido e desatrelado de inquérito policial ou processo penal em andamento, significa, na prática, infligir lhe verdadeira pena sem o devido processo legal, resultando em constrangimento ilegal” [2].

Por outro lado, em julgados mais alinhados com a essência da própria Lei Maria da Penha, a 6ª Turma do STJ, mais recentemente, vem reconhecendo que as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha detêm natureza inibitória satisfativa.

Esse é o caso do julgamento do RHC 74.395/MG, julgado em 2020, de relatoria do ministro Rogerio Schietti, no qual o STJ reconheceu além da natureza inibitória das medidas protetivas de urgência, o seu caráter de caráter autônomo. Ou seja, o STJ consignou que as medidas protetivas de urgência não se destinam à utilidade e efetividade de um processo específico, mas à proteção da vítima, independentemente da existência de inquérito policial ou ação penal.

Na mesma linha, no Recurso Especial 2.036.072/MG, de relatoria da ministra Laurita Vaz, o STJ firmou o entendimento de que, em razão do reconhecimento da natureza inibitória satisfativas, as medidas protetivas de urgência deveriam perdurar enquanto presente a situação de risco à vítima.

Natureza inibitória versus natureza penal

Para avançar na compreensão de que as medidas protetivas de urgência carregam natureza inibitória e, portanto, (1) não haveria prazo para sua vigência vinculado à duração de inquérito policial ou ação penal; além de que (2) as medidas não estão vinculadas a pré-existência de qualquer procedimento processual penal, é imprescindível que seja compreendida a essência dessa Lei.

Em brevíssimas linhas, criada em 2006, a Lei Maria da Penha instituiu verdadeiro sistema de proteção multidisciplinar à mulher ao prever a integração de políticas públicas com o sistema de justiça, perpassando por mecanismos de educação para prevenção da violência doméstica, além de criar o Juizado de Violência Doméstica com caráter híbrido, ou seja, de competência cível e criminal, e prever as medidas protetivas de urgência.

A Lei 11.340/06 não foi criada ao acaso, mas como consequência das recomendações apresentadas ao Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. A  CIDH condenou o Estado brasileiro, e reconheceu o descumprimento de compromissos internacionais ratificados em convenções internacionais no caso de Maria da Penha Fernandes.

Consequentemente, em 2004, o governo federal estruturou o grupo de trabalho interministerial com fins de discutir e elaborar proposta legislativa para coibir a violência doméstica no Brasil.

A proposta de criação da Lei 11.340/06 foi amplamente discutida por diversas pastas do governo federal, em articulação com organizações não governamentais feministas, e culminou na apresentação do projeto de Lei com uma breve exposição de motivos, descritos no EM nº 016, da Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República.

Dentre os motivos, explicações a respeito das medidas protetivas de urgência que importam ao debate sobre a sua natureza jurídica.

Isso porque, o EM nº 016 explicita que as medidas protetivas de urgência “pretendem garantir às mulheres o acesso direto ao juiz, quando em situação de violência e uma celeridade de resposta à necessidade imediata de proteção”, explicitando que se destinam à proteção de mulheres, não de processos.

Esse pensamento está sedimentado na própria estrutura da Lei Maria da Penha, que classifica as medidas protetivas de urgência em dois grupos: as que “obrigam o agressor[3], e as que se destinam “à ofendida” [4].

Ainda, no artigo 4º da Lei 11.340/06 há menção expressa de que “na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar”.

Logo, se na essência da Lei Maria da Penha está a garantia do implemento sistêmico dos direitos humanos das mulheres, com a articulação de um sistema complexo de proteção e combate a toda forma de violência doméstica, é verdadeiro contrassenso cogitar o caráter puramente acessório dessas medidas, em detrimento do reconhecimento de que as medidas de urgência protegem mulheres em risco.

Outro ponto que merece atenção é a diferenciação das protetivas de urgência das cautelares criminais diversas da prisão.

A Lei Maria da Penha foi criada em 2006. A Lei 12.403/2011, que instituiu as medidas cautelares criminais, foi introduzida em 2011.

Portanto, cinco anos antes da existência das medidas cautelares criminais diversas da prisão, já existia no ordenamento jurídico brasileiro o instituto das medidas protetivas de urgência, com conceito delineado.

As medidas protetivas de urgência tutelam a vida das mulheres, direito fundamental intrínseco à natureza humana, enquanto as cautelares criminais se destinam a assegurar a aplicação da lei penal, garantir o andamento da investigação ou instrução criminal e evitar novas infrações penais. Portanto, naturezas diversas, institutos diversos, os quais podem coexistir em nosso ordenamento jurídico.

No mais, o artigo 22, § 4º da Lei Maria da Penha, dispõe sobre a natureza cível das medidas protetivas, ao mencionar a aplicação do artigo 461 do Código de Processo Civil, que previa a tutela inibitória das obrigações de fazer ou não fazer – tanto que os Tribunais já reconhecem o cabimento de recurso de agravo de instrumento quando da concessão ou indeferimento das medidas protetivas de urgência, a teor do artigo 13 da Lei 11.340/06 c/c os artigos 203, § 2º e 1.015 e ss. do Código de Processo Civil.

Por fim, e de forma a esclarecer eventual dúvida existente entre os aplicadores do Direito, bem como garantir maior proteção à mulher vítima de violência doméstica, é que o legislador acrescentou o artigo 19, § 5º à Lei Maria da Penha.

De acordo com a nova legislação, as medidas protetivas de urgência podem ser concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência. Além disso, essas medidas protetivas permanecerão em vigor enquanto houver risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da vítima ou de seus dependentes.

Essa mudança legislativa reforça o compromisso do Estado em garantir a segurança e o bem-estar das vítimas, inexistindo mais qualquer dúvida a respeito da natureza de tutela inibitória, não de cautelar penal das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha em essência

Para debater a aplicação da Lei Maria da Penha, é preciso pensar a complexidade da hibridez da Lei Maria da Penha. Para tanto, um brevíssimo ponto parece bastante esclarecedor.

Em 2006, a lei já exemplificava as diversas formas de violência doméstica, em seu artigo 7º.

Dentre as formas de violência lá descritas, está a violência psicológica, que apenas passou a ser criminalizada, no Código Penal, em 2021.

No entanto, seguindo o raciocínio proposto pela lei, desde 2006, a mulher em situação de violência psicológica poderia requerer medida protetiva de urgência.

Não fosse esse o pensamento, estaria explícito na lei a necessidade de existência prévia da tipificação do crime de violência psicológica para a concessão das protetivas de urgência, ou haveria ressalvas quanto a essa concessão específica nos artigos que tratam das medidas protetivas.

Não há. E nunca houve. São incontáveis as mulheres que foram mantidas em contexto de violência psicológica entre os idos de 2006 e 2021 por absoluta relutância do sistema de justiça em aplicar a Lei em essência.

E ainda mais grave, são incontáveis os casos que evoluíram, nesse recorte de tempo, de violência psicológica para crimes mais graves, que poderiam ter sido evitados com a devida concessão das medidas protetivas de urgência.

Por fim

A Lei Maria da Penha é um marco nacional na defesa dos direitos das mulheres em situação de violência doméstica. Apesar de celebrarmos os 18 anos recém completados de promulgação, ainda precisamos pedir o óbvio: que haja perspectiva de gênero na aplicação da própria Lei Maria da Penha.


[1] AgRg no REsp 1.441.022/MS, 5ª Turma, rel. ministro Gurgel de Faria, DJe 2/2/2015.

[2] RHC 94.320/BA, 5ª Turma, rel. ministro Felix Fisher, DJe 24/10/2018.

[3] Artigo 22 da Lei 11.340/06.

[4] Artigo 23 da Lei 11.340/06.

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