Segregação de atividades: Carf e Receita avaliam modelos lícitos

A adoção de um modelo de negócios que envolve a segregação de atividades entre empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico sempre foi alvo de atenção por parte das autoridades fiscais, especialmente quando tais estruturas garantem uma melhor eficiência tributária para a operação.

É comum que contribuintes segreguem suas atividades de importação, fabricação e distribuição de produtos em diferentes empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico, visando a obter uma melhor eficiência operacional e gestão tributária. Ao dedicar cada empresa a uma parte específica do negócio, é possível obter ganhos de produtividade e competitividade, além de eventuais ganhos fiscais que impactam positivamente os resultados.

No entanto, estruturas criadas artificialmente, com o único propósito de economizar impostos, são facilmente questionadas. Quando há abuso de forma ou confusão de atividades, com o mero intuito de reduzir a carga tributária, as autoridades fiscais tendem a desconsiderar essas operações. O resultado são autos de infração, exigindo a diferença dos tributos devidos, muitas vezes com multas pesadas, calculadas sobre a receita ou lucro da empresa mais rentável.

Alguns elementos sempre foram considerados como fortes indícios de que a estrutura adotada era simulada, tais como a existência de atividade lucrativa em apenas uma empresa; a prática de atividades idênticas ou complementares; o compartilhamento de instalações e empregados; similaridade do quadro societário entre as empresas, dentre outros.

Propósito de redução de tributos

Com base nesses critérios, muitas autuações foram mantidas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), sob o argumento de que as estruturas não tinham propósito negocial, sendo criadas apenas para reduzir tributos.

Recentemente, alguns julgamentos favoráveis reconheceram a legitimidade de estruturas de segregação, mesmo com algum nível de “confusão” entre as atividades. Destacam-se os Acórdãos nº 1401-007.372 (28/01/2025) e nº 3402-012.431 (11/02/2025), publicados nos últimos meses.

No Acórdão nº 1401-007.372, o Carf analisou um planejamento tributário aplicável à operação de importação em que houve acusação de interposição fraudulenta de terceiros do mesmo grupo, sob o argumento de que a importação era realizada, na verdade, pelo adquirente brasileiro já pré-determinado. A existência de exclusividade na aquisição das mercadorias importadas, o compartilhamento de funcionários e a margem de lucros negativa na operação de revenda de mercadorias importadas foram os elementos utilizados pela fiscalização para lavrar o auto de infração combatido.

Na ocasião, contudo, o Carf entendeu que não havia comprovação ou forte indício para desconsiderar a legitimidade da operação do grupo econômico, não tendo sido demonstrada a incapacidade financeira do importador e o fluxo financeiro suportado pelo adquirente brasileiro. Segundo consta no acórdão, as empresas haviam firmado um contrato de compartilhamento de custos para amparar esse modelo de negócios.

Exemplo de empresas de transporte

Já no Acórdão nº 3402-012.431, foi analisado um planejamento tributário que envolvia a atuação de duas empresas de transporte, ambas pertencentes ao mesmo grupo econômico e sujeitas ao regime do lucro presumido. Durante a fiscalização, as autoridades fiscais argumentaram que a segregação das atividades de transporte ocorreu de forma fraudulenta, devido à falta de substância econômica. Como evidências, citaram o compartilhamento de instalações físicas entre as empresas interpostas e a autuada, a coexistência de sócios em comum, e o compartilhamento da estrutura administrativa e logística. Tais fatores foram cruciais para a lavratura do auto de infração, que visava exigir a diferença de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), sob a alegação de omissão de receitas resultante de uma fragmentação fraudulenta da atividade econômica.

Apesar disso, o Carf concluiu que não houve dissimulação e validou a segregação operacional. Mais importante, o tribunal reconheceu que o propósito negocial não é um requisito essencial, pois carece de base legal.

No âmbito da Receita Federal, a Solução de Consulta COSIT nº 72 (16/04/2025), reconheceu a possibilidade de duas pessoas jurídicas do mesmo grupo econômico optarem por regimes de tributação distintos, desde que sejam independentes entre si.

Licitude de estruturas de segregação de atividades

Esses precedentes recentes no âmbito do Carf e da própria Receita Federal apontam no sentido de um caminho para o reconhecimento da licitude de certas estruturas de segregação de atividades em grupos econômicos, desde que não haja simulação comprovada.

Essas decisões são positivas para os contribuintes, na medida em que validam alternativas adotadas em decorrência de decisões gerenciais e que sustentam um modelo de negócios mais eficiente, não só sob o ponto de vista tributário, mas também sob outros aspectos negociais.

É importante notar, contudo, que as decisões ponderaram elementos fáticos de cada caso, observando se as operações praticadas possuíam substância, de modo que, apesar de estarmos diante de uma tendência favorável com relação aos planejamentos tributários de segregação das atividades, isso não significa que todo e qualquer tipo de planejamento tributário seria considerado legítimo. Para que isso aconteça, é imprescindível que existam elementos suficientes a comprovar a veracidade das operações.

O post Segregação de atividades: Carf e Receita avaliam modelos lícitos apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

TJ-PR aplica prazo de prescrição de 5 anos a ação da Sanepar

Conforme a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, as regras de prescrição previstas no Código Civil não se aplicam quando a ação envolve uma empresa estatal prestadora de serviços públicos essenciais (sem concorrência nem finalidade lucrativa). Nesses casos, deve ser aplicada a prescrição de cinco anos prevista no Decreto 20.910/1932.

Assim, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná afastou a prescrição de três anos do Código Civil a uma ação na qual a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) é ré e determinou o retorno do caso à primeira instância para prosseguimento. Os desembargadores aplicaram o prazo de cinco anos do decreto de 1932, o que garante a continuidade do processo.

Na ação, uma empresa prestadora de serviços de limpeza e conservação alega ter direito à repactuação de um contrato administrativo firmado com a Sanepar em 2011, devido aos custos significativos.

A 1ª Vara da Fazenda Pública de Curitiba considerou que a ação estava prescrita, pois foi ajuizada mais de três anos após o contrato. Na decisão, foi aplicada a regra do Código Civil, com a justificativa de que a Sanepar é uma sociedade de economia mista. A autora recorreu e apontou que o prazo de cinco anos previsto no decreto não foi descumprido.

No TJ-PR, prevaleceu o voto do desembargador Abraham Lincoln Merheb Calixto. Ele explicou que, de acordo com os precedentes do STJ, empresas públicas e sociedades de economista mista são destinadas a finalidades estatais. Elas fazem as vezes do próprio ente público ao qual se vinculam e, com isso, podem receber tratamento semelhante ao do Estado, em certa medida.

A Sanepar é responsável pelo saneamento básico e fornecimento de água no Paraná. Calixto indicou que a empresa presta serviço público essencial, “sem exploração econômica, em regime não concorrencial e sem intuito primário de lucro”.

Atuaram no caso os advogados Clóvis Alberto Bertolini e Maria Eduarda Liebl Fernandes, do escritório Bertolini Advogados, e Luiz Carlos Moreira.

Clique aqui para ler o acórdão

O post TJ-PR aplica prazo de prescrição de 5 anos a ação da Sanepar apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Vicissitudes da operação ‘fonte não pagadora’: compensação de débitos de IRRF e malha fiscal

Para cumprir os princípios informadores da generalidade, da universalidade e da progressividade [1], o regime de tributação da renda das pessoas físicas exige, em regra [2], a consolidação de todos os rendimentos tributáveis na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda (DAA), quando calculados de acordo com a tabela progressiva de alíquotas, a fim de apurar o imposto de renda efetivamente devido [3].

As necessidades estatais e a demanda de arrecadação, contudo, não aguardam o encerramento dos exercícios para obter as receitas e o fluxo de caixa necessários para o suprimento de gastos e despesas oriundos das políticas públicas.

Por isso, o legislador tributário adota a sistemática de tributação por antecipação — pay-as-you-earn (paye), a partir da qual os rendimentos do trabalho assalariado e os demais rendimentos pagos por pessoa jurídica a pessoa física passam a estar sujeitos à retenção do imposto sobre a renda devido, no momento do seu pagamento aos beneficiários e titulares do rendimento [4], como salários [5] e remunerações decorrentes da prestação de serviços [6].

Nessa sistemática, a fonte pagadora, geralmente uma pessoa jurídica, ostenta a condição de responsável tributária [7], retendo o imposto sobre a renda na fonte e repassando aos beneficiários apenas o valor líquido.

O valor do imposto retido é considerado mera antecipação do valor do imposto de renda devido por ocasião da DAA, situação em que a pessoa física deverá apurar o saldo do imposto de renda a pagar ou o valor a ser restituído, relativamente aos rendimentos que tenham sido percebidos durante o ano-calendário [8].

Essa delicada relação entre a retenção e o recolhimento de débitos de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) promovidos pelas pessoas jurídicas, fontes pagadoras dos rendimentos, e o valor do imposto retido por antecipação e incluído na DAA pelo contribuinte pessoa física, beneficiário do pagamento recebido, é alvo de constantes fiscalizações pela Receita Federal, que, inclusive, possui iniciativas fiscalizatórias próprias para analisar a compatibilidade das informações declaradas por contribuintes e por fontes pagadoras de rendimentos.

Por meio da operação “fonte não pagadora” [9], a Receita realiza fiscalizações com base em indícios de infrações relacionadas ao recolhimento do IRRF, a partir do cruzamento eletrônico de dados declaratórios. A análise verifica a consistência entre as informações prestadas pelas pessoas jurídicas na Declaração do Imposto sobre a Renda Retido na Fonte (Dirf), os documentos relativos à constituição de débitos tributários federais — como a DCTF e a DCTFWeb — e os comprovantes do efetivo recolhimento, como Darfs e eventuais DComps.

Essa iniciativa fiscalizatória pode, inclusive, ensejar a identificação da prática de crime de apropriação indébita tributária, nos casos em que a fonte pagadora efetua a retenção do imposto, repassa o valor líquido ao beneficiário pessoa física, mas deixa de recolher aos cofres públicos o montante retido, descumprindo seu dever legal como responsável tributário.

Constatadas irregularidades ou divergências entre as informações declaradas nas obrigações acessórias, é comum que a Receita comunique as pessoas jurídicas e fontes pagadoras, concedendo prazo para a regularização da situação, sob pena de aplicação das sanções cabíveis. Por sua vez, as pessoas físicas beneficiárias dos rendimentos costumam receber notificações de pendências em procedimentos de malha fiscal logo após a entrega da DAA, que, em regra, exigem a apresentação de esclarecimentos e documentos comprobatórios, tanto para subsidiar o cruzamento de informações realizado pela Receita quanto para viabilizar a restituição de eventuais valores de imposto de renda pagos a maior no decorrer do ano-calendário.

Ocorre que, nos últimos anos, tem se tornado cada vez mais comum a abertura de procedimentos de malha fiscal e a indicação de pendências nas declarações apresentadas por pessoas físicas em razão exclusiva de as pessoas jurídicas e fontes pagadoras dos rendimentos terem optado por quitar os débitos declarados de IRRF por meio de compensação tributária — ou seja, mediante a transmissão de DComps que informam a utilização de créditos para a liquidação do débito —, ainda que não haja qualquer outra divergência quanto aos valores declarados, efetivamente recolhidos ou às informações prestadas nas obrigações acessórias.

Na perspectiva da Receita, o fato de os débitos de IRRF quitados mediante compensação estarem sujeitos à posterior homologação dos créditos indicados nas DComps seria, por si só, suficiente para justificar a abertura de procedimentos de malha fiscal e o apontamento de pendências nas DAAs das pessoas físicas beneficiárias dos rendimentos.

Como consequência, as declarações dessas pessoas físicas permanecem retidas na malha fina até que a Receita conclua a análise dos créditos compensados, procedimento interno sem prazo legal definido. Nesse período, os contribuintes ficam impedidos de receber eventual restituição do imposto de renda e, na prática, ficam à mercê da própria administração tributária. Agrava esse cenário o fato de que, conforme comunicado padrão da Receita, a entrega de documentos comprobatórios via e-CAC para que seja iniciada uma análise sobre a malha somente é permitida a partir de janeiro do ano seguinte, retardando ainda mais a possibilidade de regularização e recebimento da restituição da pessoa física.

Trata-se de um equívoco quanto à sistemática do exercício do direito de compensação tributária. Isso porque a compensação é uma das formas legalmente previstas para a extinção de débitos tributários pelos contribuintes. O artigo 156, inciso II, do Código Tributário Nacional (CTN) expressamente dispõe que a compensação constitui causa de extinção do crédito tributário — ao lado do pagamento, por exemplo —, produzindo os mesmos efeitos jurídicos no que se refere à quitação de débitos fiscais próprios do contribuinte.

No âmbito federal, a própria evolução normativa dos regimes de compensação de débitos administrados pela Receita — resultante das sucessivas alterações na legislação de regência — evidencia o desacerto do entendimento atualmente adotado pelas autoridades fiscais [10].

Originalmente, conforme artigo 66 da Lei nº 8.383/1991 [11], a compensação entre débitos e créditos da mesma espécie de tributo era realizada diretamente pelo contribuinte, independentemente de prévia autorização administrativa, sendo suficiente o registro da compensação na declaração fiscal apresentada pelo próprio sujeito passivo.

Como a compensação é realizada por iniciativa e sob responsabilidade do contribuinte, compete à Receita, no prazo legal de cinco anos, examinar a escrituração fiscal correspondente. Caso não promova a fiscalização nesse período — ou, ao fazê-la, não identifique inconsistências —, considera-se definitivamente extinto o crédito tributário, tendo-se a compensação como homologada tácita e integralmente quitado o débito correspondente.

Com o advento da Lei nº 9.430/1996, e redação original do artigo 74 [12], foi instituído um regime no qual a compensação envolvendo créditos tributários de espécies distintas e/ou com destinação diversa passou a depender de prévio requerimento dirigido à Secretaria da Receita Federal do Brasil, podendo ser formalizado pelo próprio contribuinte.

Embora a Lei nº 9.430/1996 tenha ampliado as possibilidades de compensação entre diferentes espécies de tributos federais, também impôs novas exigências ao contribuinte. O artigo 74 passou a exigir a formulação de um pedido formal de compensação dirigido à Receita, como condição prévia à extinção do crédito tributário. Tal exigência não existia sob a vigência do artigo 66 da Lei nº 8.383/1991, que permitia a compensação direta e automática pelo contribuinte. Na prática, ainda que possuísse créditos líquidos e certos perante o Fisco, o contribuinte ficou impedido de utilizá-los para quitar débitos até que houvesse a análise e aprovação expressa da Receita [13].

Diante da coexistência de dois regimes distintos de compensação de créditos tributários no âmbito federal, o governo federal editou a Medida Provisória nº 66/2002, posteriormente convertida na Lei nº 10.637/2002. Essa norma promoveu a alteração da redação do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, unificando o regime de compensação aplicável aos tributos administrados pela Receita e estabelecendo, de forma definitiva, um procedimento próprio para sua realização [14].

O novo modelo de compensação trouxe duas vantagens relevantes aos contribuintes em comparação aos regimes anteriores. Primeiro, passou a admitir a compensação entre créditos e débitos de naturezas jurídicas distintas ou com destinações constitucionais diversas. Em segundo lugar, instituiu um regime declaratório, que permite a compensação de forma direta, por iniciativa do contribuinte, sem a necessidade de requerimento formal ou de autorização prévia por parte da Receita.

Embora o novo regime não exija mais autorização prévia da Receita para a compensação, a legislação estabelece que o contribuinte deve apresentar uma Declaração de Compensação (DComp). Nesse documento, devem constar de forma expressa o valor do débito a ser quitado, a natureza e a origem dos créditos utilizados, bem como demais informações necessárias à identificação e à validação da operação compensatória.

Ao ser transmitida, essa declaração já produz efeitos de extinção do débito, embora sua validade fique condicionada à homologação posterior por parte da RFB, nos termos do § 2º do artigo 74 da mesma lei [15] — ao prever de forma expressa que a extinção do crédito tributário se sujeita à condição resolutória de ulterior homologação.

Indicação de pendências impõe ônus adicionais

Considerando que as condições resolutórias (ou resolutivas, nos termos do artigo 127 do Código Civil) não impedem a produção de efeitos do negócio jurídico até a sua realização, não se pode negar o efeito extintivo do crédito tributário à compensação tributária no momento transmissão da DComp — e não no posterior momento de sua homologação tácita ou expressa.

Dessa forma, no regime atual de compensação de créditos tributários na esfera federal, todos os efeitos decorrentes da extinção do crédito tributário pelo exercício do direito de compensação — formalizado por meio da elaboração, preenchimento e transmissão da DComp — produzem-se de imediato, independentemente de se aguardar a posterior homologação por parte da Receita.

Eventual não homologação ou a não declaração do DComp transmitido pela fonte pagadora, com a finalidade de compensar o débito de IRRF declarado, gera efeitos exclusivamente em face da própria fonte pagadora, e não do contribuinte pessoa física beneficiário do rendimento. Uma vez comprovada a efetiva retenção do imposto de renda sobre o valor pago, o ônus tributário já foi suportado pelo beneficiário, e a responsabilidade pelo recolhimento do tributo torna-se integral e exclusiva da fonte pagadora, nos termos do Parecer Normativo CST nº 1/2002 [16].

A própria Receita já consolidou o entendimento de que o imposto de renda retido exclusivamente a título de antecipação do tributo devido por pessoas físicas configura débito de responsabilidade da fonte pagadora. Trata-se, portanto, de obrigação própria da fonte, que pode ser extinta mediante compensação. Isso porque, caso a compensação seja considerada não declarada ou não homologada, a cobrança do valor correspondente ao imposto retido e não extinto será direcionada exclusivamente à fonte pagadora. Quanto à pessoa física beneficiária do rendimento, permanece a obrigação de oferecê-lo à tributação na DAA, podendo utilizar o valor efetivamente retido para deduzir do imposto devido [17].

Por essa razão, a indicação de pendências em procedimento de malha fiscal de pessoas físicas, motivada unicamente pela quitação dos débitos de IRRF pelas fontes pagadoras por meio de compensações (DComp), afronta não apenas a própria sistemática de compensação de tributos no âmbito federal, como também impõe indevidamente ônus adicionais a quem já arcou com o imposto retido, seja por meio da burocracia dos procedimentos de malha, seja pela postergação da restituição do IRPF a que faz jus.


[1] Art. 153, § 2º,  I, da CF.

[2] Existem casos de retenção exclusiva do imposto sobre a renda que não são incluídos na declaração de ajuste anual – normalmente existentes por motivações extrafiscais ou indutoras -, que não serão objeto de análise no presente artigo.

[3] Arts. 78 e 79 do RIR/2018.

[4] Art. 22, da IN RFB nº 1.500/2014.

[5] Art. 7º,  I, da Lei nº 7.713/1988 e art. 681 do RIR/2018.

[6] Art. 7º,  II, da Lei nº 7.713/1988 e art. 22, I, da IN RFB nº 1.500/2014.

[7] Art. 121, I, do CTN.

[8] Artigo 78 do RIR/2018.

[9] Aqui.

[10] Donovan Mazza. Manual de compensação tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 155-160

[13] MOREIRA, André Mendes. Da Compensação de Tributos Administrados Pela Receita Federal – Evolução Legislativa e Modalidades. Revista Dialética de Direito Tributário, São Paulo, n. 95, ago. 2003, p. 12.

[16] “IRRF RETIDO E NÃO RECOLHIDO. RESPONSABILIDADE E PENALIDADE.

Ocorrendo a retenção e o não recolhimento do imposto, serão exigidos da fonte pagadora o imposto, a multa de ofício e os juros de mora, devendo o contribuinte oferecer o rendimento à tributação e compensar o imposto retido.”

[17] Neste sentido: Solução de Consulta Cosit nº 377, de 22 de dezembro de 2014; Solução de Consulta DISIT/SRRF06 nº 6.025, de 20 de maio de 2016.

O post Vicissitudes da operação ‘fonte não pagadora’: compensação de débitos de IRRF e malha fiscal apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Empresas não precisam pagar ITBI em permuta com reserva de fração

A permuta por reserva de fração não concede o terreno a um novo dono e, dessa forma, não há motivo para o pagamento do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Essa decisão foi atingida pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em um caso onde duas empresas entraram com recurso após serem ordenadas pela Secretaria de Fazenda de Gramado a arcar com o imposto.

O recurso foi julgado pela desembargadora Isabel Dias Almeida, que reforçou: “É necessário observar que não houve transmissão de propriedade sobre essas unidades” e que o projeto ocorreu dentro do acordado entre as empresas.

Uma delas, incorporadora de empreendimentos imobiliários, queria uma porção do terreno da outra para construir um edifício. Como pagamento, a segunda companhia, que cedeu a área, receberia algumas unidades para administrar.

“Trata-se, portanto, de uma permuta por área construída, sem transmissão de domínio, não se configurando o fato gerador do ITBI”, afirmou a desembargadora.

A magistrada apontou ainda a ausência de legislação municipal que autorize a cobrança do imposto sobre construção entregue em permuta com reserva de fração ideal e citou duas súmulas do Supremo Tribunal Federal:

Súmula 110 – O imposto de transmissão inter vivos não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada pelo adquirente, mas sobre o que tiver sido construído ao tempo da alienação do terreno.

Súmula 470 – O imposto de transmissão inter vivos não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada, inequivocamente, pelo promitente comprador, mas sobre o valor do que tiver sido construído antes da promessa de venda.

O município de Gramado, que ficou vencido no caso, argumentou “ilegitimidade passiva” e defendeu a cobrança do ITBI em contratos de permuta, já que “houve a incorporação de novo imóvel ao terreno”.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 5008316-40.2023.8.21.0101

O post Empresas não precisam pagar ITBI em permuta com reserva de fração apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

35 anos do ECA e as decisões do STJ na garantia integral dos direitos de crianças e adolescentes

O último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que o Brasil tem 54,5 milhões de crianças e adolescentes, o que representa 26,8% da população total do país. Para garantir que esse público tenha seus direitos respeitados e promovidos, buscando seu pleno desenvolvimento, foi criado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A lei trata de direitos fundamentais como vida, saúde, educação, cultura e convivência familiar.

Para marcar os 35 anos do ECA, instituído pela Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, a Secretaria de Comunicação Social do Superior Tribunal de Justiça (STJ) produziu uma reportagem especial, com reflexões sobre a importância da proteção integral de crianças e adolescentes, depoimentos de especialistas e um panorama das decisões da corte nessa temática.  

Clique na imagem para assistir à reportagem especial:

Fonte: STJ

Plano não pode reajustar mensalidade acima do previsto pela ANS

Os planos de saúde devem seguir o limite de reajuste de 6,06%, conforme estipulou a Diretoria de Normas e Habilitação dos Produtos da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) em junho deste ano.

O entendimento é da juíza auxiliar Simone Rodrigues Valle, da 1ª Vara Cível de Bragança Paulista (SP), que acatou pedido de tutela de urgência para afastar um reajuste de 39,9% no plano de saúde de uma criança. A ação foi movida por sua mãe.

“O alto percentual de reajuste praticado pela operadora de saúde, além de aparentar possível abusividade, também poder tornar insustentável a continuidade dos pagamentos por parte da beneficiária, sendo recomendável a concessão da tutela de urgência pretendida para evitar eventual rescisão contratual por inadimplência, durante o trâmite da presente ação”, afirmou a juíza.

A juíza ainda determinou que a empresa que oferece o plano de saúde deve manter o valor da mensalidade inalterado até que o mérito da causa seja julgado, sob pena de multa diária de R$ 200.

“Não haverá qualquer prejuízo para a ré, pois se trata de medida reversível, podendo ela cobrar a diferença se o caso”, disse a juíza.

Atuou na defesa da autora o advogado Cléber Stevens Gerage.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1006001-07.2025.8.26.0099

O post Plano não pode reajustar mensalidade acima do previsto pela ANS apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Prazo para reparo de defeito não afeta direito ao ressarcimento de danos materiais

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu que o prazo de 30 dias do artigo 18, parágrafo 1º, do Código de Defesa do Consumidor (CDC) não limita a obrigação do fornecedor de indenizar o consumidor, o qual deve ser ressarcido integralmente por todo o período em que sofreu danos materiais.

Na ação de danos materiais e morais ajuizada contra uma montadora e uma concessionária, o autor afirmou que comprou um carro com cinco anos de garantia e que, em menos de 12 meses, ele apresentou problemas mecânicos e ficou 54 dias parado nas dependências da segunda empresa ré, devido à falta de peças para reposição.

O caso chegou ao STJ após o Tribunal de Justiça de Mato Grosso decidir que, além da indenização por dano moral, o consumidor tinha o direito de ser indenizado pelos danos materiais apenas em relação ao período que excedeu os primeiros 30 dias em que o carro permaneceu à espera de reparo. A corte local se baseou no parágrafo 1º do artigo 18 do CDC.

CDC não afasta responsabilidade do fornecedor

O relator na 4ª Turma, ministro Antonio Carlos Ferreira, disse que o CDC não exclui a responsabilidade do fornecedor durante o período de 30 dias mencionado no dispositivo, mas apenas dá esse prazo para que ele solucione o defeito antes que o consumidor possa escolher a alternativa legal que melhor lhe atenda: substituição do produto, restituição do valor ou abatimento do preço.

O ministro destacou que o prazo legal “não representa uma franquia ou tolerância para que o fornecedor cause prejuízos ao consumidor nesse período sem responsabilidade alguma”.

De acordo com o relator, uma interpretação sistemática do CDC, especialmente em relação ao artigo 6º, inciso VI – que trata do princípio da reparação integral –, impõe que o consumidor seja ressarcido por todos os prejuízos materiais decorrentes do vício do produto, sem limitação temporal.

“Se o consumidor sofreu prejuízos em razão do vício do produto, fato reconhecido por decisão judicial, deve ser integralmente ressarcido, independentemente de estar dentro ou fora do prazo”, completou.

Consumidor não pode assumir risco em lugar da empresa

Antonio Carlos Ferreira comentou que uma interpretação diversa transferiria os riscos da atividade empresarial para o comprador, contrariando a lógica do sistema de proteção ao consumidor.

Conforme apontou, o CDC busca evitar que a parte mais fraca arque com os prejuízos decorrente de defeitos dos produtos.

O ministro ressaltou, por fim, que “este entendimento não deve ser interpretado como uma obrigação genérica dos fornecedores de disponibilizarem produto substituto durante o período de reparo na garantia.

O que se estabelece é que, uma vez judicialmente reconhecida a existência do vício do produto, a indenização deverá abranger todos os prejuízos comprovadamente sofridos pelo consumidor, inclusive aqueles ocorridos durante o prazo do artigo 18, parágrafo 1º, do CDC”. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

Clique aqui para ver o acórdão
REsp 1.935.157

O post Prazo para reparo de defeito não afeta direito ao ressarcimento de danos materiais apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Negacionismo judicial: a hipótese do reconhecimento fotográfico

Parece não haver mais dúvidas que o reconhecimento a partir da exibição de fotografias é uma das principais fontes de injustiça nos julgamentos criminais. A ausência de cuidado e a violação de limites jurídicos, éticos e epistemológicos potencializa o que Daniel L. Shacter chamou de “pecados da memória”. [1]

Reprodução

A questão torna-se mais grave pelo desconhecimento demonstrado por juízes sobre o funcionamento da memória. Para entender a dinâmica do reconhecimento, é preciso compreender fenômenos como a transitoriedade, a distração, a distorção óptica, o bloqueio da memória, a sugestionabilidade da testemunha e, por fim, a atribuição equivocada da autoria.

Não é mais admissível que juízes ignorem avanços da ciência relativos à memória. Como haver um inegável enfraquecimento da memória com o tempo. A transitoriedade e a fragmentariedade dos dados são características que vão repercutir em falhas no processo de recordar. Informações juridicamente relevantes à cognição não chegam a ser registradas e, muitas vezes, isso ocorre em razão da distração, ruptura na interface entre a atenção para um determinado dado e a memória que se exige da testemunha.

Os juízes também não podem ignorar que é frequente a ocorrência de bloqueio, especialmente em situações traumáticas. Outro fenômeno bastante comum é a atribuição errada: confusão entre uma fantasia ou imaginação e o evento, por exemplo, quando a testemunha se lembra de determinada conduta, mas a atribui a uma pessoa que ela até já viu, mas que não foi a autora.

Pecados da memória

No campo do reconhecimento, os principais pecados da memória são a sugestionabilidade e a distorção. Lembranças são fabricadas a partir de comentários, imagens ou perguntas tendenciosas. Como explica Daniel L. Schacter, a “sugestionabilidade na memória pode ser descrita como uma tendência do indivíduo a incorporar informações enganadoras de fontes externas (…) a recordações pessoais” [2], que não raro transformam sugestões em lembranças e daí em uma atribuição errada. A sugestão é sempre fruto de uma ação de terceiros, mas quando é um agente estatal (policial, promotor ou juiz), a conduta se torna ainda mais danosa, porque tende a ativar o viés de confirmação.

A distorção é fenômeno que traduz a existência de fortes influências das informações que a vítima ou testemunha adquiriram após o fato sobre a maneira como elas se lembram e descrevem o evento. Se a vítima é informada que a pessoa que acabou de identificar, com hesitação, como o autor de um crime é conhecido por ser suspeito de crimes similares, tende à dúvida em certeza.

A memória não reproduz os fatos como ocorreram; os reconstrói a partir de elementos que não guardam relação necessária com a facticidade. As informações captadas pelos órgãos sensoriais ao longo da vida são transformadas e armazenadas como traços de memória. Nesse procedimento de criação e recriação, com frequência, recorre-se a elementos que não ocorreram no contexto do fato como forma de preencher lacunas ou dar coerência a um relato. A memória, para ser ativada, exige três fases: a codificação (entrada de um traço da memória), o armazenamento (manutenção de alguns traços da memória, enquanto outros são descartados) e a evocação (tentativa de reconstrução do fato e produção de memória apta a ser descrita pela linguagem). Distorções podem ser produzidas em cada uma dessas fases -a codificação pode se dar a partir de uma distorção óptica, ser fruto de uma distração ou mesmo de um preconceito do observador.

Se a prova testemunhal é oportunidade para produção desses vícios, no procedimento de tentativa de reconhecimento fotográfico, conduzido sem cuidados mínimos, os riscos aumentam exponencialmente. Com frequência, a testemunha é submetida à sugestão, até de forma involuntária.  Sempre que essa pessoa é informada que os suspeitos retratados em álbum de reconhecimento são conhecidos por crimes similares, ela tende a acreditar que o criminoso se encontra no álbum e acaba por reconhecer uma das pessoas que lhe foram mostradas. A técnica da exibição do álbum de suspeitos, por si só, já tem o poder de influenciar em falsas atribuições.

Problema dos erros de reconhecimento: tradição autoritária e racionalidade neoliberal

Outros fenômenos são também decisivos para o grande número de erros de reconhecimento.

Em primeiro lugar, a tradição autoritária que condiciona a atuação tanto de quem vai efetuar o reconhecimento, como de quem vai cuidar de operacionalizá-lo e, ainda, do juiz responsável por avaliar a legitimidade e a qualidade da prova.

Por tradição autoritária entende-se o conjunto de sistemas simbólicos ligados à ideia de força e desconfiança do conhecimento: valores que se tornam hegemônicos, percepções da realidade, pré-compreensões, preconceitos e práticas sedimentadas que apostam no uso da força e, ao mesmo tempo, desconfiam do saber.

É possível identificar na sociedade brasileira todos os sintomas da personalidade autoritária descritos por Theodor Adorno na pesquisa [3] que conduziu nos EUA, no pós-guerra, para verificar tendências antidemocráticas -convicções políticas, econômicas e sociais que formam a mentalidade autoritária. Dentre esses sintomas, destacam-se o convencionalismo (aderência rígida aos valores da classe média), a submissão autoritária (postura submissa e acrítica diante da autoridade), o pensamento estereotipado (forma de pensar por categorias rígidas, recorrendo a preconceitos como premissas), a simplificação excessiva da realidade (tendência a recorrer a explicações primitivas) e a dureza (preocupação de agir no sentido de reforçar as ideias de força e dureza, do domínio e submissão).

É inegável que considerável parcela da classe média brasileira é conservadora, classista, racista, sexista, punitivista e percebe os direitos fundamentais como obstáculos à eficiência repressiva do Estado. As pessoas envolvidas no reconhecimento tendem a reproduzir: práticas que levam à eliminação da diferença; diversas violências: intersubjetivas, sistêmicas e simbólicas e incapacidade de reflexão. Se a classe média violenta naturaliza a tortura e os linchamentos, os envolvidos no ato de reconhecimento também tendem a violar os limites éticos, jurídicos e epistemológicos no ato de indicar uma outra pessoa, não raro percebida como um inimigo a ser neutralizado.

O sintoma social da submissão autoritária faz com que as pessoas que devam fazer o reconhecimento tendam a confirmar as hipóteses defendidas por figuras de autoridade numa manifestação do viés de confirmação. Mais, percebe-se uma tendência a ser intolerante, repudiar e castigar as pessoas apontadas como suspeitas.

A dureza faz com que as pessoas apostem em respostas de força e não aceitem deixar escapar criminosos em potencial. Para eles, suspeitos devem ser tratados de forma exemplar, sem hesitações ou empatia. Há uma espécie de deslocamento imaginário e semântico que faz o suspeito ser tratado como inimigo.

A simplificação excessiva da realidade e o pensamento estereotipado fazem com que o cuidado com procedimento de reconhecimento acabe desconsiderado, já que se pode chegar ao resultado sem tantas formalidades. Com características do pensamento autoritário, os preconceitos atuam mais decisivamente na produção do resultado. Assim, o reconhecimento positivo se constrói a partir de preconceitos transformados em premissas, tais como “se a pessoa está ali entre os suspeitos, deve ser culpada de algo”, “negros são violentos”, “mulheres não prestam”.

Tradição autoritária

A tradição autoritária também faz com que direitos fundamentais sejam percebidos como obstáculos à eficiência punitiva. Bom lembrar que a sociedade brasileira nunca foi capaz de elaborar adequadamente fenômenos como a escravidão e a ditadura. Por isso, ainda hoje, no Brasil, naturaliza-se uma espécie de hierarquização: pessoas matáveis e pessoas que não devem ser mortas, pessoas dignas de proteção do Estado e pessoas que não merecem ser tratadas com dignidade. E, incapazes de elaborar o que ocorreu durante a ditadura instaurada em 1964, amplos setores acreditam que os anos de chumbo foram marcados por paz, tranquilidade e ausência de corrupção. Ocorre no Brasil o fenômeno da retrotopia, [4] identificado por Bauman: o desejo de voltar a um passado idealizado, que nunca se fez presente. Como demonstram diversas pesquisas conduzidas por historiadores que revelam inúmeros casos de arbítrio, opressão, violações dos direitos mais básicos e, ainda, muita corrupção durante o regime militar.

Também a hegemonia da racionalidade neoliberal ajuda a compreender a naturalização das injustiças no reconhecimento. Por racionalidade neoliberal, entende-se um certo modo de ver e atuar que trata tudo e todos como objetos negociáveis. [5] Esse modo de pensar (e julgar) por cálculos na busca por vantagens tornou-se a regra. [6] No Estado condicionado pela racionalidade neoliberal dá-se uma reaproximação pornográfica entre poder político e poder econômico. [7] O Judiciário, por exemplo, passa a atuar preponderantemente como mero homologador das expectativas dos detentores do poder econômico, como agência de controle das populações indesejáveis.

A partir da hegemonia dessa racionalidade, juízes passaram a decidir, não mais com base em regras e princípios que miram na concretização do projeto constitucional, mas a partir de cálculos entre os interesses em jogo. Em matéria penal, muitas vezes, julgamentos são construídos para agradar maiorias forjadas na desinformação e transformam a ideia de punição em paixão nacional. [8] Fenômenos como o punitivismo e o populismo penal, que crescem a partir da manipulação do medo e da sensação de insegurança da população, passaram a influenciar a aplicação da lei penal, até mesmo o processo de reconhecimento.

Uma das manifestações destes cálculos de interesse ocorre na retórica da proteção da sociedade. Juízes recorrem a uma ponderação entre direitos fundamentais concretos e o direito abstrato à segurança. Ignoram, assim, a advertência de Dworkin de que só é possível e juridicamente legítimo ponderar direitos e interesses de igual densidade [9]. Um direito concreto individual não pode ser ponderado com um direito abstrato coletivo, sob pena de relativização e negação de todos os direitos individuais.

Antídotos ao negacionismo judicial em matéria de reconhecimento fotográfico

Diante dos avanços científicos na compreensão das falhas da memória, como explicar que tantos juízes continuem a relativizar os cuidados exigidos no artigo 226 do CPP? Como explicar que sigam a considerar que o reconhecimento por fotografia possa ser efetivo sem que outras fotos de pessoas semelhantes figurem ao lado do suspeito? Como admitir tantos reconhecimentos em descompasso com os procedimentos que foram desenvolvidos como garantias do valor verdade? Trata-se de puro negacionismo (científico, histórico e cultural), com pitadas de punitivismo.

Romper com o negacionismo é apostar no conhecimento que contribui para a justiça das decisões e, portanto, para evitar que inocentes acabam condenados. A resposta passa por reconhecer a importância de constrangimentos epistemológicos e jurídicos que funcionem como obstáculos a reconhecimentos indevidos. É preciso apostar em limites legais, éticos e epistemológicos ao reconhecimento por fotografia.

A admissão pelo STF da repercussão geral (Tema 1.380) parece ser uma boa oportunidade para reafirmar a ciência e evitar condenações injustas. O caminho para a incorporação jurisprudencial dos avanços científicos e o abandono das mistificações foi aberto pelo Superior Tribunal de Justiça e encontram-se, com destaque, nas teses firmadas no Tema 1.258 e ainda na Resolução 484/2022 (CNJ):

  1. só é possível o reconhecimento de suspeito por fotografia se não for possível o reconhecimento pessoal;
  2. o procedimento de reconhecimento por fotografia deve reproduzir os cuidados exigidos pelo artigo 226 do CPP, com destaque para a formalização prévia da descrição do autor do delito e a exibição de fotos do suspeito ao lado de fotos de pessoas que se pareçam com a descrição fornecida pela vítima;
  3. o reconhecimento (pessoal ou fotográfico) deve ser tido como irrepetível; o vício do primeiro procedimento de reconhecimento contamina os seguintes;
  4. a única exceção feita à vedação da produção de novos reconhecimentos é a possibilidade da realização de um novo ato a pedido da defesa;
  5. por ocasião do reconhecimento por fotografia, não podem ser adotadas as técnicas da exibição de álbum de fotografia ou a do show-up (exibição de uma única foto), mas a técnica do alinhamento, a exibição simultânea da foto de várias pessoas alinhadas;
  6. nas fotos exibidas por alinhamento devem constar exclusivamente retratos de pessoas de tipo físico semelhante, com as fotografias obedecendo o mesmo padrão;
  7. qualquer foto (em redes sociais, aparelhos celulares etc.), imagem ou vídeo da pessoa a ser identificada que for exibida antes do reconhecimento contamina o resultado;
  8. qualquer informação sobre as pessoas exibidas à testemunha ou vítima também contamina o reconhecimento;
  9. é preciso que sejam dadas instruções adequadas para que a testemunha ou vítima compreenda que o autor do delito pode não se encontrar retratado nas fotos;
  10. o responsável pelo procedimento de reconhecimento não pode dar qualquer informação relativa à confirmação do reconhecimento de um suspeito;
  11. o reconhecimento positivo não exclui o dever do Estado de trazer aos autos todas as provas possíveis à confirmação da hipótese acusatória, tais como gravações do local do crime, imagens das câmeras corporais de agentes policiais. A perda de qualquer chance probatória fragiliza o reconhecimento da autoria delitiva.

Espera-se que o STF apresente parâmetros adequados à normatividade, afastando-se das mistificações e negacionismo típicos do populismo penal.


[1] SCHACTER, Daniel L. Os setes pecados da memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.

[2] Ob. cit., p. 143.

[3] ADORNO, Theodor W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Unesp, 2019.

[4] BAUMAN, Zygmunt. Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

[5] Sobre a racionalidade neoliberal: DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016; CASARA, Rubens. Contra a miséria neoliberal. São Paulo: Autonomia Literária, 2021.

[6] SUPIOT, Alain. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayard, 2015.

[7] Sobre a mutação neoliberal do Estado: CASARA, Rubens. Estado pós-democrático. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

[8] FASSIN, Didier. Punir: une passion contemporaine. Paris: Le Seuil, 2017.

[9] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Fonte: Conjur

Turbinamos as incoerências da tributação indireta?

A tributação indireta, no Brasil, convive com incoerências antigas. Uma das principais — e mais persistentes — é a dúvida sobre quem seria o “verdadeiro contribuinte”. Às vezes é o consumidor final. Às vezes, o comerciante que vende a mercadoria. Depende do interesse envolvido.

Abordei esse tema de forma mais detida no livro Repetição do Tributo Indireto: Incoerências e Contradições (Malheiros, 2011). Mais tarde, num estágio de pós-doutorado, pude comparar a jurisprudência brasileira com a europeia. E lá, embora também haja dificuldades, notei maior preocupação com a coerência e com a efetividade do sistema. Já que se importou tanta coisa na construção dos anteprojetos, bem que poderíamos ter trazido junto a orientação do Tribunal de Justiça da União Europeia, segundo a qual o fornecedor não precisa provar que não repassou o tributo ao consumidor se quiser reavê-lo (clique aqui).

Esse é o problema de copiar e colar textos legais alienígenas. A jurisprudência formada lá fora em torno deles nem sempre vem junto.

A propósito, quanto ao tema, no Brasil as coisas funcionam assim: se o fornecedor pede restituição do tributo, dizem que ele não é o “verdadeiro contribuinte”, porque teria repassado o encargo ao consumidor. Se, por sua vez, é o consumidor quem pede a restituição, dizem que ele não é contribuinte, mas mero destinatário econômico da carga tributária, sem legitimidade para reclamar nada.

Algo semelhante acontece com as isenções e imunidades subjetivas, e com os efeitos do inadimplemento. Quando o contribuinte “de direito” recebe o preço mas não paga o tributo, é acusado de apropriação indébita, pois teria apenas o dever de repassar valores que lhe foram entregues pelo consumidor. Mas se o consumidor não paga, e o fornecedor fica sem receber, o discurso muda: o tributo deve ser recolhido de todo modo, já que a obrigação é do fornecedor — o “verdadeiro contribuinte”, nesse caso.

Simplificando: como costumo dizer aos meus alunos, o verdadeiro contribuinte, no Brasil, é sempre quem não estiver reclamando. Apareceu alguém pedindo algum direito? Pronto: já não é o verdadeiro contribuinte.

Roupa nova

Cheguei a escrever, há algum tempo, aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico, que a reforma tributária poderia ser a chance de corrigir essas distorções (clique aqui, e aqui e aqui). Infelizmente, com pouca participação de quem paga a conta e forte influência de quem a cobra, os projetos não apenas mantiveram os problemas — deram a eles uma nova roupagem e mais força normativa.

Um bom exemplo é o artigo 38 da LC 214/2025, que piora — e muito — as exigências do já problemático artigo 166 do CTN. Antes era difícil obter a restituição do tributo indireto. Agora, parece impossível. Mas o problema não para aí.

Surge também uma dúvida nova: quem é o “verdadeiro credor” do IBS? Será o estado (e o município) de destino? Os de origem? O Comitê Gestor? Ou, como na lógica anterior, será sempre aquele contra quem não se estiver reclamando? O tempo dirá. Mas há duas contradições relevantes já visíveis na nova legislação, que merecem atenção.

A primeira decorre do próprio artigo 38. Ele condiciona a restituição do tributo ao não aproveitamento do crédito pelo adquirente. A lógica é a de que, se houve creditamento, o valor pago a mais não gerou prejuízo, visto que abatido pelo elo seguinte da cadeia — então, não cabe devolução. Mas essa lógica, se for levada a sério, precisaria valer também no outro sentido: se um fornecedor recolheu a menos e, por isso, seu cliente aproveitou crédito menor, esse prejuízo já foi compensado no elo seguinte. O Fisco, nesse caso, não teria prejuízo — então também não deveria autuar o fornecedor.

Será que observaremos essa coerência?

A segunda contradição está no artigo 47 da mesma lei complementar, que exige o efetivo pagamento do tributo como condição para o direito ao crédito, mesmo fora das hipóteses excepcionais previstas pela Constituição. Isso transfere ao adquirente o risco do inadimplemento do fornecedor — rompendo com a tradição do IVA (e também do ICMS e do IPI), segundo a qual o crédito nasce da incidência, e não da arrecadação.

O resultado é um sistema que permite cobrança em duplicidade: nega-se o crédito ao adquirente (que assim paga o seu tributo e o devido pelo elo anterior) mas, ao mesmo tempo, mantém-se a exigência contra o fornecedor inadimplente, que, quando a pagar, fará com que o Fisco receba duas vezes. Se o crédito depende do pagamento, o não creditamento deveria gerar a remissão da dívida anterior. Do contrário, como dito, a Fazenda ganha duas vezes — o que não parece compatível com os princípios da não cumulatividade, da neutralidade e da coerência.

É como se o sistema tivesse montado uma gangorra tributária com um só lado, o da Fazenda, sempre em cima, sorridente. Enquanto isso, os contribuintes oscilam entre ser e não ser o “verdadeiro” titular de direitos, conforme a conveniência da cobrança. Se há crédito, não há restituição; se não há crédito, há autuação. Se o tributo foi pago, ótimo — e se não foi, melhor ainda, porque alguém acabará pagando mesmo assim. O que se perde, com esse jogo de pesos e contrapesos falsamente equilibrado, não é apenas dinheiro, mas o próprio eixo da justiça fiscal. A própria juridicidade do Direito. Ao invés de um sistema de engrenagens bem ajustadas, temos um carrossel viciado, em que o contribuinte gira, gira… e termina sempre no mesmo lugar: pagando a conta.

Fonte: Conjur

Inconstitucionalidade do artigo 24-A do Estatuto da OAB: direito penal do amigo e inimigo estrutural

O artigo 24-A do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906/94) garante ao advogado o recebimento de até 20% dos bens universalmente bloqueados do cliente como forma de pagamento dos honorários advocatícios, exceto em crimes da Lei de Drogas.

Esta ressalva, alvo de crítica neste artigo, fere princípios fundamentais da CRFB/88 como da dignidade humana e devido processo legal. A análise se dá com base em um estudo jurídico, histórico e político, visando demonstrar a inconstitucionalidade da exceção contida no dispositivo aplicada aos delitos da Lei 11.343/06.

Direito de constituir advogado como instrumento do processo democrático

A Constituição (artigo 133) assegura que o advogado é indispensável à administração da justiça, e a constituição do defensor é parte inegociável do devido processo legal (artigo 5º, LIV e LV). A limitação imposta pelo artigo 24-A do EOAB nega ao acusado o direito de constituir advogado com recursos próprios. A norma, ao excluir a Lei de Drogas, afronta os pilares da processualidade democrática.

O Código de Processo Penal estabelece, em seu artigo 261, que ninguém poderá ser acusado sem a presença de um defensor. Já o artigo 263 dispõe que, caso o acusado não tenha um defensor constituído, o juiz deverá nomear um, ressalvando-se o direito do acusado de indicar outro de sua confiança.

Assim, a marcha processual depende não apenas da atuação de um defensor, mas daquele de livre escolha e confiança do acusado. Portanto, o direito de constituir advogado de sua confiança é uma garantia constitucionalizada, irrenunciável e indisponível. Se não há advogado legitimamente constituído, não há processo.

Autobiografismo político como gestador do dispositivo do EAOAB

O artigo 24-A do EAOAB tem origem legislativa no Projeto de Lei nº 5284/2020, de autoria do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), que propunha alterações em diversos dispositivos do Estatuto da Advocacia. No entanto, o referido projeto, em sua proposição inicial, não continha o dispositivo em discussão.

Posteriormente, o PL recebeu diversas alterações propostas pelo deputado Lafayette de Andrada (REP-MG), que, entre os anos de 2020 e 2022, introduziu o dispositivo e realizou modificações em sua redação. Em um primeiro momento, acertadamente, previa-se o direito da parte ré, nos casos de bloqueio universal, à destinação de até 20% do montante ao advogado constituído, para pagamento de honorários advocatícios e custas da defesa, mediante autorização judicial.

Entre o ano de 2020 e a apresentação do Parecer Preliminar de Plenário nº 10, às 11h38 do dia 15 de fevereiro de 2022, o projeto de lei não continha qualquer ressalva à Lei de Drogas. Contudo, ao anoitecer da mesma data, às 19h40, foi apresentado o Parecer Preliminar de Plenário nº 11, pelo relator, deputado Lafayette de Andrada, já incluindo a controversa — e inconstitucional — ressalva ao referido dispositivo, sem que houvesse qualquer emenda parlamentar que justificasse tal modificação.

Não bastasse a inclusão realizada ao final do expediente, momento em que muitos parlamentares já não se encontravam na Casa, chama atenção o fato de que, já na manhã do dia seguinte, 16 de fevereiro de 2022, o projeto foi submetido à votação e aprovado pela maioria. E menos de cinco meses depois, foi sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro, cuja retórica política sempre esteve fortemente pautada no combate ao tráfico de drogas.

Faz-se imprescindível delinear a trajetória do deputado Lafayette de Andrada, relator do projeto de lei e responsável pela apresentação da redação do artigo 24-A. Lafayette é deputado federal, advogado, professor de Direito e Ciência Política; filho, neto e sobrinho de deputados; além de descendente do jurista e patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, e do inconfidente mineiro José Aires Gomes. Suas principais atuações incluem os cargos de vice-líder do Partido Republicanos, vice-presidente da Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, e presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Advocacia Pública no Congresso. Verifica-se, portanto, que a “ciência” do Direito, a prática da advocacia e sua relação ancestral com a política não são meros detalhes.

Ocorre que Lafayette de Andrada foi também o autor da inclusão, no “pacote anticrime” (Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019), do artigo 316 do Código de Processo Penal, que dispõe que o juiz poderá, de ofício, revogar ou novamente decretar a prisão preventiva, desde que presentes os requisitos legais.

Em 10 de outubro de 2020, com base no artigo 316 do Código de Processo Penal — incluído no “pacote anticrime” por iniciativa de Lafayette de Andrada —, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liberdade a André Oliveira Macedo, conhecido como “André do Rap”, apontado como um dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC). Após a expedição do alvará de soltura e a ampla repercussão midiática, o Supremo Tribunal Federal foi alvo de duras críticas. No mesmo dia, o então presidente do STF, Luiz Fux, revogou a decisão e determinou novamente a prisão de André do Rap. No entanto, ele já havia fugido e, até o momento (2025), permanece foragido.

decisum do ministro Marco Aurélio, em 2020, gerou intenso debate sobre a soltura de um conhecido membro do crime organizado e levantou críticas ao artigo 316 do CPP, incluído por iniciativa do deputado Lafayette de Andrada, bem como de sua pessoa [1].

As críticas vieram, em grande parte, de eleitores da direita, apontando uma incompatibilidade político-ideológica entre a família Bolsonaro e o deputado. Isso porque, além de ser o autor do dispositivo utilizado para fundamentar a soltura, de ofício, de um narcotraficante por um magistrado, Lafayette de Andrada dividia com Flávio Bolsonaro o mesmo partido político.

A controvérsia ganhou ainda mais repercussão quando os eleitores passaram a ver Lafayette não apenas como desalinhado aos ideais do ex-presidente, mas como o responsável pela medida que resultou na impunidade de um narcotraficante. Em contrapartida, o deputado declarou que:

“Repudio com veemência as reportagens veiculadas na imprensa que, por desconhecimento ou malícia, associam a soltura do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, a meu nome” […] “Não havia motivo para a soltura de André do Rap. Sou contrário à liberdade para criminosos. Fui autor de várias modificações que endureceram o texto do pacote anticrime. Entre eles, o que dificulta a progressão de regime, o que proíbe a ‘saidinha’ para crimes hediondos, o que amplia a pena para crimes cometidos com armas de uso proibido, entre outros. Esclareço, por fim, que sou daqueles que pensa que lugar de bandido é na cadeia” (UOL, 2020).

O deputado Lafayette de Andrada, ainda que sem intenção, acabou simbolizando, por alguns anos, a figura de um político contrário às causas defendidas pela “direita” e conivente com a perpetuação do crime de tráfico de drogas no país. Esse episódio parece ter abalado sua relação com a família Bolsonaro e com os eleitores então no “poder” — especialmente quando se observa, neste trabalho, que a criação do artigo 24-A do EOAB teria representado, supostamente, sua principal tentativa de defesa ou reafirmação política.

Curiosamente, desde a soltura de “André do Rap”, em 10 de outubro de 2020, até a tarde do dia 15 de fevereiro de 2022, o artigo 24-A apresentava apenas a redação que assegurava a destinação de até 20% do patrimônio universalmente bloqueado ao advogado regularmente constituído.

Contudo, na 11ª versão do parecer — apresentada às 19h40 do dia anterior à votação do projeto — foi incluída, sem qualquer justificativa jurídico-democrática plausível ou emenda parlamentar, a ressalva inconstitucional referente aos procedimentos regidos pela Lei de Drogas. Menos de cinco meses depois, o projeto seria sancionado pelo então presidente Jair Bolsonaro.

Após o deputado federal Lafayette de Andrada — que, à época, integrava o mesmo partido de Flávio Bolsonaro — ter sido publicamente apontado por eleitores de Jair Bolsonaro como um parlamentar que contribuiu, por meio do artigo 316 do Código de Processo Penal, para a soltura de um notório traficante internacional e líder do PCC, sua aparente decisão de incluir, no artigo 24-A, uma exceção excessivamente combativa — e flagrantemente inconstitucional — ao tráfico de drogas, na noite anterior à votação do projeto e a apenas cinco meses da sanção presidencial, sugere um possível gesto de realinhamento político com o então presidente da República e sua base eleitoral.

A inserção tardia e silenciosa da medida sugere uma possível tentativa de evitar questionamentos midiáticos que pudessem barrar o sancionamento da redação. Ao mesmo tempo, o deputado ainda teria, durante o governo Bolsonaro, uma espécie de “trunfo” nas mãos, caso sua posição político-criminal voltasse a ser questionada.

Por que a ressalva para a Lei de Drogas?

O artigo 24-A, visa garantir o direito à defesa mesmo em caso de bloqueio total de bens, mas negar essa garantia em crimes de drogas, fere diametralmente a Constituição. Ainda que o tráfico de drogas seja tratado de forma mais rigorosa em diversas normas e tratados, não há base constitucional para a supressão de direitos fundamentais.

Ademais, sustentar que a Defensoria Pública poderia suprir essa lacuna também não possui cabimento e previsão legal: a Defensoria é voltada apenas aos hipossuficientes e não possui estrutura equiparada (isonômica) ao Ministério Público.

A exclusão aos crimes da Lei de Drogas prejudica milhares de advogados criminalistas e atinge de forma desproporcional populações vulneráveis, principalmente negras e pobres. Ao impedir o exercício pleno do direito de defesa nesses casos, cria-se uma distorção inaceitável do processo penal democrático.

Direito penal do inimigo estrutural como garantia do direito penal do amigo

Surge a seguinte questão: qual seria a razão de não incluir, nessa ressalva, crimes como organização criminosa, prevaricação, corrupção, terrorismo, homicídio, comércio ilegal de armas de fogo, crimes ambientais, lavagem de dinheiro e outros delitos financeiros e fiscais, considerando que muitos, de alguma forma, estão conectados ao narcotráfico ou garantem a sua perpetuação?

A resposta está no fato de que o Direito Penal do Inimigo garante, por sua vez, o direito penal do amigo. Os crimes geralmente associados às classes desfavorecidas ganham os holofotes, enquanto os crimes que ameaçam a ordem financeira, o meio ambiente e a administração pública — em grande parte cometidos pela alta sociedade burguesa — permanecem sob o próprio controle dos holofotes: ninguém os vê. Assim, resta a esses grupos a alternativa de, inteligentemente, adequar, burlar e instrumentalizar o Direito para atender às suas próprias vontades. O Direito Penal do Inimigo, ao reforçar uma ordem social desigual, acaba por perpetuar essa desigualdade.

Conclusão

A razão para a flagrante inconstitucionalidade de parte do artigo 24-A insere-se no contexto do Estado de Coisas Inconstitucional, em que tudo parece diametralmente oposto à proposta da Constituinte de 1988. Diversos motivos se apresentam para justificar a inclusão da ressalva relativa aos crimes previstos na Lei de Drogas e, embora aparentemente dispersos, eles não são desconexos. De um lado, é possível que a ressalva tenha se originado de uma manobra política voltada à reaproximação do relator do projeto com figuras no poder e à proteção contra acusações de suposta leniência com o tráfico de drogas. De outro, ela reflete um processo histórico de enfrentamento ao narcotráfico na América Latina, frequentemente marcado pela ausência de limites legais.

Entretanto, há algo ainda mais profundo: a presença do direito penal estrutural do inimigo em diversas instituições públicas, autarquias e fóruns. Esse direito penal estrutural, claramente voltado para o desvio de atenção dos ilícitos praticados pelos “amigos”, contaminou até mesmo a instituição que deveria ser a maior defensora da processualidade democrática: a Ordem dos Advogados do Brasil.

Por fim, este trabalho propõe um debate técnico, com a participação dos legitimados do processo, da comunidade jurídica e acadêmica, para sustentar a inconstitucionalidade parcial do artigo 24-A do EAOAB perante o STF, em defesa dos princípios do Estado democrático de Direito.


Referências

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal, disponível aqui

BRASIL. Lei Nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas. Disponível aqui.

BRASIL. Lei nº 13.964 de 24 de dezembro de 2019, aperfeiçoa a legislação penal e processual penal, acesso em: 28 de novembro de 2024, disponível aqui.

BRASIL. Lei Nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, disponível aqui.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5.284/2020. Projeto de Lei. Altera a Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, para incluir disposições sobre a atividade privativa de advogado, a fiscalização, a competência, as prerrogativas, as sociedades de advogados, o advogado associado, os honorários advocatícios e os limites de impedimentos ao exercício da advocacia.

FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024.

GUNTHER, Jakobs. Direito Penal do Inimigo. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008.

UOL. Autor de artigo que baseou saída de André do Rap se exime e critica soltura. 12 out. 2020. Disponível aqui.

WIKIPÉDIA. Lafayette Andrada. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/ Lafayette_Andrada. Acesso em: 28 de nov. 2024.

[1] FÓRUM. Deputado bolsonarista é o autor de artigo usado para libertar chefe do PCC: Lafayette de Andrada é deputado federal por Minas Gerais e pertence ao Republicanos, mesmo partido de Flávio Bolsonaro e Celso Russomanno, mas passou maior parte de sua vida política no PSDB. 12 out. 2020. Disponível aqui. 2024

Fonte: Conjur