TJ-SP consolida posição favorável ao contribuinte em casos de ITCMD em bens no exterior 

Entre dezembro de 2023 e fevereiro de 2025, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou ao menos 15 ações contestando cobranças do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre bens localizados no exterior. Neste período, a corte foi majoritariamente favorável ao contribuinte, reconhecendo a não incidência do imposto em 11 decisões.

 

Os dados constam em levantamento feito pelo escritório André Teixeira, Rossi, Andrade & Saadi Advogados, com o objetivo de entender melhor a atual jurisprudência da matéria no TJ-SP. 

Foram analisados somente os acórdãos proferidos depois da Emenda Constitucional 132, de 2023 (EC 132/2023), e que buscam afastar a tributação sobre heranças e doações provenientes de outros países.

Nas onze decisões favoráveis ao contribuinte, o TJ-SP concluiu que a cobrança de ITCMD, embora constitucional, depende de lei complementar federal para ser viabilizada. Esse foi o entendimento, por exemplo, que prevaleceu no acórdão (processo 1073679-17.2024.8.26.0053) proferido no último dia 7 de fevereiro, o mais recente do levantamento feito pela banca. 

Os desembargadores da 4ª Câmara de Direito Público citaram que, ainda que o artigo 16 da EC 132 supra, em tese, a necessidade de lei complementar, ele não supre a obrigação de lei específica estadual para regular a matéria, no caso a cobrança do tributo sobre doações de bens do exterior.

Dessa forma, entendimento que tem prevalecido na corte é que é necessário que os estados editem nova legislação estadual para a respectiva adequação aos termos da emenda, “imprescindível à regulação definitiva da matéria jurídica em questão”, conforme escreveram os magistrados. 

Pauta controversa

O advogado Felipe Cerqueira, associado do escritório André Teixeira, Rossi, Andrade & Saadi Advogados, afirma que as decisões evidenciam que a matéria ainda é controversa. “O tema ainda não tem uma jurisprudência consolidada. Não há dúvidas de que ainda existe uma divergência jurisprudencial”, diz.

Nas quatro decisões favoráveis à cobrança do imposto analisadas no levantamento, o TJ-SP concluiu que é possível validar as normas estaduais, que estão suspensas por declarações de inconstitucionalidade. Foram detectados também acórdãos que fizeram distinguishing — técnica que permite que os tribunais adaptem a jurisprudência a casos aparentemente similares, porém com suas especificidades —, nos quais os doadores de bens localizados no exterior são domiciliados no Brasil. Nestes casos, os desembargadores seguiram o entendimento do Supremo Tribunal Federal no Tema 825. 

“O risco de cobrança do ITCMD é agravado nos casos em que os doadores estão domiciliados no Brasil, tanto no TJ-SP quanto em outras jurisdições. Apesar disso, entendemos cabível defender a impossibilidade de cobrança pela declaração de inconstitucionalidade de diversas bases normativas previstas nas leis estaduais”, diz o advogado.

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Justiça tributária tem de se basear no império da lei

Jornais de grande circulação têm destacado informações do relatório PGFN em Números 2025 – Dados 2024. Observa-se, nesses casos, uma tendência à normalização das declarações da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional sobre a arrecadação de 2024 e as metas para 2025. A relevância do tema é inquestionável, uma vez que a arrecadação tributária é fundamental para o funcionamento do Estado e o financiamento de políticas públicas. No entanto, parece-nos que as premissas que embasam tais declarações merecem uma análise mais criteriosa, especialmente no que diz respeito à observância estrita dos ditames legais e à preservação da segurança jurídica.

A arrecadação tributária deve ocorrer nos limites da legislação vigente, respeitando-se o princípio da legalidade tributária consagrado constitucionalmente. Ainda que tal assertiva pareça evidente, verifica-se que a observância desse princípio tem sido relativizada. Qualquer estratégia arrecadatória que se distancie desse fundamento básico gera preocupação, pois pode comprometer a imparcialidade dos órgãos de julgamento e afetar garantias fundamentais do contribuinte, como o devido processo legal e o direito à propriedade.

Embora o tema afete todas as instâncias, a politização do debate tributário é especialmente preocupante no caso do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). A PGFN divulgou que “evitou perdas” de R$ 321,4 bilhões em sua representação no órgão em 2024, o que representaria um aumento de 195% em relação a 2023. Conforme informado pela própria procuradoria, a retomada do voto de qualidade nos casos de empate foi decisiva para esse resultado.

Quando a arrecadação passa a ser tratada como um objetivo que tem prioridade em relação à estrita observância das normas, corre-se o risco de contaminação das instâncias administrativas que julgam contenciosos fiscais. Decisões que deveriam ser pautadas exclusivamente pela lei e pelos fatos podem passar a sofrer influência de metas fiscais, comprometendo a isonomia e a previsibilidade das relações jurídicas.

O viés da arrecadação, quando exacerbado, também impacta negativamente o ambiente de negócios no Brasil [1]. A insegurança jurídica decorrente de interpretações fiscais orientadas pelo interesse arrecadador afasta investimentos e dificulta o planejamento empresarial, gerando efeitos deletérios para a economia. Nenhum país pode prosperar sem um sistema tributário estável e previsível, que permita aos agentes econômicos tomar decisões com confiança na integridade das regras aplicáveis.

Império da lei

As procuradorias fazendárias desempenham um papel essencial na defesa dos interesses do Estado e, por essa razão, têm uma enorme responsabilidade institucional. Paralelamente, a revisão administrativa de débitos tributários contestados pelos contribuintes deve ocorrer em um ambiente de imparcialidade, sem influências indevidas de objetivos arrecadatórios. A observância rigorosa da legalidade deve prevalecer sobre qualquer pressão fiscal.

Como instância administrativa responsável pela apreciação de autuações fiscais, o Carf deve atuar com independência, assegurando que suas decisões estejam estritamente fundamentadas na legislação e na jurisprudência consolidada. Prática diversa tende a levar a um incremento da litigiosidade, notadamente no que se refere à judicialização excessiva das questões fiscais.

Esse efeito, aliás, gera ineficiências e custos ao próprio Estado, na medida em que, na Justiça, há o pagamento de honorários em caso de derrota.

A exemplificar situações desse tipo, vale mencionar a discussão relativa à dedução dos juros sobre capital próprio (JCPs) relativos a exercícios anteriores na apuração do IRPJ e CSLL. Na instância máxima do Carf, a questão tem sido decidida em favor do Fisco pelo voto de qualidade (Acórdão 9101-007.291) [2], enquanto no Judiciário o tema é pacífico nas duas Turmas de julgamento que tratam de matéria tributária, além dos Tribunais Regionais Federais (AgInt no REsp nº 2.146.879/MS [3] e REsp nº 1.950.577/SP [4]).

Em síntese, a justiça tributária deve se basear no império da lei, e não na suposição de que os recursos públicos são mais valiosos do que aqueles que estão na posse dos contribuintes. A arrecadação deve ser conduzida de forma justa e previsível, respeitando a segurança jurídica e os direitos fundamentais. Qualquer outra abordagem compromete a confiança no sistema, reduz a competitividade econômica e, a longo prazo, fragiliza o próprio Estado, cuja sustentabilidade depende de um ambiente tributário equilibrado e transparente.


[1] SOUZA, Hamilton Dias. Carf arrecadador prejudica negócios. Consultor Jurídico, 30 maio 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-30/carf-arrecadador-prejudica-negocios-hamilton-dias-souza/. Acesso em: 20/3/2025.

[2] Rel. original Cons. Jandir Jose Dalle Lucca; Rel. des. Cons. Edeli Bessa J: 6/2/2025.

[3] Rel. Min. Regina Helena Costa, 1ª Turma, J: 30/9/2024.

[4] Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª Turma, J: 3/10/2023.

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Depósito judicial por si não garante imissão de posse, decide juiz

No julgamento do Tema 472, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que o depósito judicial do valor apurado pelo corpo técnico do ente público, quando inferior ao arbitrado pelo perito judicial e ao valor de cadastro do imóvel, inviabiliza a imissão provisória na posse.

Juiz aplicou entendimento do STJ no julgamento do Tema 472 para afastar imissão de posse sem perícia prévia
Juiz aplicou entendimento do STJ no julgamento do Tema 472 para afastar imissão de posse sem perícia prévia  – Freepik

 

Esse foi o fundamento aplicado pela 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais para revogar a ordem concedida em favor da Companhia Energética de Minas Gerais para imissão provisória na posse de um imóvel de uma consultoria de agronegócio. 

No recurso, a empresa cita a jurisprudência do STJ que é firme no sentido que é necessária a recomendação de perícia prévia e a complementação do depósito judicial para imissão de posse. 

Também sustentou que o laudo técnico apresentado pela concessionária, “além de desprezar a existência de contrato de parceria agrícola, com vigência até 2028, que gera considerável receita não computada no valor do depósito prévio e com perdimento da produtividade da área, deixa de considerar que o imóvel encontra-se em área de expansão urbana, com possibilidade de parcelamento do solo e instituição de loteamento”.

Ao analisar o recurso, o relator, desembargador Carlos Levenhagen, explicou que  a Cemig não comprovou que o valor ofertado preenche os requisitos do artigo 15, §1º, do Decreto-Lei nº 3.365/41, o que afasta a princípio, a imissão provisória na posse.

“Desta forma, ressalvando o entendimento pessoal deste Relator, trata-se de precedente vinculante, de observância obrigatória pelos tribunais e juízes pátrios, nos termos do artigo 927, III, do CPC, revelando-se despiciendo qualquer adensamento da análise, superada pela tese jurídica fixada pelo Superior Tribunal de Justiça”, resumiu. 

O autor foi representado pelo advogado Paulo Henrique Fagundes Costa.

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Processo  5007927-18.2024.8.13.0271

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Desembargador critica governo e anula quarentena para transação tributária

O artigo 18 da Portaria da PGFN 6.757/2022, que veta nova transação tributária de contribuintes que já tiveram parcelamento cancelado por inadimplência, configura restrição de direitos e viola o princípio da legalidade.

Esse foi o entendimento do desembargador Francisco Alves dos Santos Júnior, da 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, para declarar a ilegalidade da quarentena de dois anos para a celebração de nova transação tributária por empresas que rescindiram acordos com a Fazenda Pública.

A decisão liminar determinou a suspensão de todos os débitos tributários de uma empresa inadimplente, bem como o fornecimento de certidão positiva com efeito de negativa (CPEN), se necessário, até que a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) celebrasse com ela nova transação tributária.

A empresa autora da ação oferece cursos preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio. A companhia, que já tinha celebrado outra transação tributária em 2021 com a Fazenda, optou por não pagar o débito, o que resultou em inscrição do valor em dívida ativa.

Na decisão, o magistrado afirmou que o dispositivo que veda nova transação restringe direitos e não pode ser objeto de ato infralegal da Fazenda, mas de lei complementar, por criar obrigação tributária.

Críticas ao governo

Santos Júnior também criticou a edição de novas portarias pelo governo federal que restringem direitos dos contribuintes. Segundo ele, a portaria “prejudica a todos, principalmente a economia do país”.

“O governo federal está desesperado para aumentar a arrecadação, porque a sua coluna de despesas está bem maior que a coluna de receitas, por isso anda criando todo tipo de parcelamento, como o consignado no invocado Edital PGDAU 6/2024, publicado em 05 de novembro de 2024, para, além de aumentar as receitas, facilitar a vida do combalido contribuinte, que está querendo aderir, para poder funcionar legalmente, e vem uma autoridade de terceiro escalação criando o mencionado irrazoável e desproporcional tipo de empecilho”, afirmou.

“O precedente ora analisado, inobstante não ter efeito erga omnes, isto é, validade jurídica para todos, é de extrema relevância aos contribuintes que se encontram em situação semelhante, com transações rescindidas por inadimplementos com menos de dois anos, e que desejam manter a regularidade de suas obrigações tributárias mediante a celebração de nova transação”, analisa a advogada Larissa Lauri Destro, do escritório Maia & Anjos Advogados, que atuou na causa.

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Processo 0801350-37.2025.4.05.0000

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Retroatividade de ANPP: os impactos da decisão do STF e os milhares de processos em risco

Após o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluir, em 18 de setembro de 2024, o julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF, destaquei, em artigo redigido e publicado nas semanas seguintes — “Decisão do STF sobre ANPP impacta milhares de processos em tramitação (ConJur, 3.out.2024) [1] — que a decisão recém-proferida teria um impacto significativo sobre milhares de processos em andamento no Poder Judiciário brasileiro.

Naquela ocasião, mesmo sem a publicação do inteiro teor do acórdão pelo STF — o que só ocorreria posteriormente, em 19 de novembro de 2024 —, apoiei minha análise nas informações já disponíveis: além de recorrer às teses do julgamento divulgadas pelo STF, realizei uma análise de casos julgados pelos tribunais brasileiros, nos quais se discutiam os limites da retroatividade do acordo de não persecução penal (ANPP), instituído pela Lei nº 13.964/2019.

Não apenas utilizei uma terminologia que pode ser considerada exagerada (milhares), como também citei dois exemplos concretos — aplicáveis a uma infinidade de situações semelhantes — em que as teses fixadas pelo STF no julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF poderiam ser empregadas de forma eficaz.

Com a publicação do inteiro teor do acórdão, em 19 de novembro de 2004, e após se debruçar na análise dos argumentos apresentados nos votos dos ministros, distribuídos ao longo de 256 páginas, é possível concluir que as considerações feitas anteriormente estavam corretas.

Não é só.

Desafios para aplicação de ANPP

A aplicação do ANPP, apesar de estar claramente definida na decisão do STF, ainda enfrenta desafios de compreensão por parte de seus aplicadores, especialmente em alguns tribunais e juízos.

Embora a tese do julgamento relacionada ao Habeas Corpus nº 185.913/DF tenha sido definida na sessão realizada no dia 18 de setembro de 2024, o STF, anteriormente, em 8 de agosto de 2024, por maioria, já havia concedido a ordem para reconhecer a aplicação retroativa do acordo de não persecução penal (ANPP).

O período de suspensão do processo se mostrou imprescindível, pois faltavam informações essenciais para a correta fixação das teses do julgamento.

O próprio ministro presidente do STF, Luís Roberto Barroso, sugeriu que a redação das teses fosse adiada para outra sessão, ao perceber que questões fundamentais ainda careciam de esclarecimento. Entre elas, destacavam-se: quem deveria suscitar a aplicação retroativa do ANPP e qual seria o prazo para isso.

Inicialmente, o ministro presidente indagou se seria necessário peticionar na primeira manifestação no processo logo após a publicação ata. [2]

Na sequência, o ministro Alexandre de Moraes defendeu que apenas o Ministério Público deveria se manifestar sobre o oferecimento do ANPP no prazo de 120 dias. [3]

Diante dessa sugestão, o ministro Flávio Dino, em tom descontraído, propôs uma média aritmética entre os diferentes prazos debatidos: 120, 60 e 90 dias. [4]

Durante o debate, o ministro presidente fez um alerta: “Estamos trabalhando no escuro, sem saber o número de processos com que estamos lidando” e, se “(…) a gente pudesse suspender e chegar aqui com um número de processos, porque se forem 500 é diferente de serem 50 mil”[5]

Diante dessa incerteza, o ministro presidente decidiu suspender o julgamento e solicitou um levantamento junto ao Conselho Nacional da Justiça (CNJ) para obter uma avaliação quantitativa precisa. [6]

Antes, porém, do encerramento da sessão de 8 de agosto de 2024, o ministro André Mendonça antecipou seu posicionamento: se o Ministério Público não se manifestar sobre a aplicação do ANPP, caberá ao juiz solicitar formalmente a sua manifestação. [7]

Quantidade de processos

No início da sessão do dia 18 de setembro de 2024, o ministro presidente revelou os números do levantamento realizado pelo CNJ: “no primeiro grau de jurisdição, encontram-se 1.573.923 processos; no segundo grau, 101 mil; e nos tribunais superiores, 20 mil. Um total de 1.695.455″[8]

Neste momento, retomo uma reflexão feita na redação do artigo anterior. Naquela ocasião, mesmo sem acesso ao teor completo do Acórdão e aos fundamentos que o embasaram, já era possível, contudo, antever o impacto da decisão: “As referidas teses possuem, seguramente, potencial para alterar a história de inúmeros processos em tramitação nas diversas instâncias do Poder Judiciário brasileiro.”

Após refletir sobre a quantidade de processos, o ministro presidente manifestou seu posicionamento: “acho que esses números, de certa forma, confirmam o Ministro Gilmar, Relator. Eu penso e, com a vênia de quem pensa diferente, o acerto da decisão.”

Em seguida, apresentou as teses propostas pelo relator, que, ao final, foram as teses fixadas pelo STF:

  1. Compete ao membro do Ministério Público oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno;
  2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da Lei nº 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado;
  3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o Ministério Público, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo;
  4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo Ministério Público, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso. [9]

Aplicação retroativa do ANPP

As incertezas que ainda persistiam na sessão de 8 de agosto de 2024 foram definitivamente esclarecidas na sessão de 18 de setembro de 2024, como demonstram as teses fixadas pelo STF.

O STF foi categórico ao estabelecer que o Ministério Público, seja de ofício, a pedido da defesa ou por provocação do magistrado, deverá suscitar a aplicação retroativa do ANPP na primeira oportunidade em que se manifestar nos autos, logo após a publicação da ata. [10]

Além disso, a tese fixada não deixou margem para interpretações divergentes: embora a defesa e o magistrado possam instar o Ministério Público a se manifestar, este não poderá se omitir na oferta do ANPP em processos ainda não transitados em julgado, desde que preenchidos os requisitos necessários para a negociação e celebração do acordo.

As controvérsias em torno da aplicação retroativa do ANPP começaram a surgir ainda em 2024.

Identificaram-se processos em andamento que preenchiam integralmente os requisitos estabelecidos pelo STF, mas, ainda assim, o Ministério Público permaneceu inerte, sem se manifestar sobre seu cabimento. Além disso, o juiz não determinou qualquer diligência para oportunizar a propositura do acordo.

Decisões incoerentes em relação ao STF

Em consequência, há sentenças e acórdãos em que o trânsito em julgado ocorreu após a publicação da ata do julgamento do HC 185.913/DF, [11] mesmo quando os requisitos fixados pelo STF estavam presentes.

Qual o problema? A ausência de manifestação do Ministério Público sobre a viabilidade ou não do ANPP impediu sua aplicação, o que resultou em decisões incoerentes com o entendimento consolidado pelo Supremo.

Diante desse cenário de omissão e de crescente insegurança jurídica, qual será o caminho para corrigir essa distorção?

O ministro Gilmar Mendes, ao proferir uma nova decisão no Habeas Corpus nº 185.913/DF, reafirmou a eficácia vinculante das teses fixadas no julgamento:

“A decisão proferida nestes autos projeta efeitos em relação a todos os juízos e tribunais, na forma do art. 927, V, do CPC. Em caso de afronta, cabe habeas corpus perante o Juízo competente e, caso ele seja indeferido, a defesa pode alçar o assunto ao Tribunal mediante o recurso cabível.”

Não há dúvida, portanto, que as teses fixadas pelo STF possuem eficácia vinculante e devem ser rigorosamente observadas por tribunais e juízos.

Impetração de habeas corpus

Caso o trânsito em julgado tenha sido reconhecido por omissão do Ministério Público, ainda que os requisitos estabelecidos na tese do STF estivessem preenchidos, o interessado poderá questionar essa falha por duas vias distintas, a fim de corrigir o grave vício identificado.

Primeiro, nada impede a impetração do habeas corpus diretamente no tribunal onde o processo tramita, pois o STF determinou que a análise sobre a celebração do acordo deve ser feita pelo órgão ministerial competente “na instância e no estágio em que estiver o processo“.

O impetrante deverá demonstrar a existência de constrangimento ilegal, evidenciado pelo reconhecimento do trânsito em julgado da sentença penal ou do acórdão sem que o feito tenha sido convertido em diligência para viabilizar a oferta do ANPP, conforme expressamente determinado pelo STF no julgamento referido.

A concessão da ordem resultará, por conseguinte, na anulação da sentença ou do acórdão para a conversão do julgamento em diligência. A ação penal será desarquivada e o juízo ou membro do tribunal provocará o Ministério Público para que avalie a possibilidade de oferecer o ANPP ou apresente justificativa idônea para a sua recusa. [12]

Além disso, o vício também poderá ser questionado na fase de execução penal, consoante autorizado pelo artigo 66, I, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84):

Art. 66. Compete ao Juiz da execução:

I – aplicar aos casos julgados lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado;”

Há, portanto, a possibilidade de desconstituição da sentença condenatória transitada em julgado, já que se trata da aplicação de uma norma penal mais benéfica, nos termos do artigo 5º, inciso XL, da Constituição. [13]

O próprio STF reconheceu essa tese ao fixar suas diretrizes no julgamento do Habeas Corpus nº 185.913/DF. Da mesma forma, como realmente deveria ser, o próprio STF passou a aplicar os entendimentos vinculantes aos processos em andamento.

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL. APLICAÇÃO RETROATIVA. OFERTA. ANÁLISE DE POSSIBILIDADE. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. ATENDIMENTO. NECESSIDADE. HC 185913. BALIZAS DECISÓRIAS. CONFORMIDADE. ADEQUAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. A inexistência de argumentação apta a infirmar o julgamento monocrático conduz à manutenção da decisão agravada.

2. Cabível a retroatividade do art. 28-A do CPP, para determinar que o Tribunal de origem, suspendendo a certificação do trânsito em julgado da ação penal em questão, abra vista ao Ministério Público, a fim de oportunizar a propositura do Acordo de Não Persecução Penal ao paciente, desde que preenchidos os requisitos e em conformidade com as teses fixadas, pelo colegiado maior desta Suprema Corte, no julgamento do HC 185913.

3. Agravo regimental não provido. [14]

Suspensão da execução da pena

Dessa forma, a execução da pena deverá ser suspensa até que o Ministério Público analise a viabilidade de ofertar o ANPP ou apresente justificativa para sua não aplicação. Os efeitos da condenação só serão restabelecidos caso o acordo não seja celebrado.

Se sentenças ou acórdãos transitaram em julgado após a publicação da ata do julgamento do HC 185.913/DF, sem que o Ministério Público sequer se manifestasse sobre o cabimento do ANPP — mesmo quando preenchidos todos os requisitos fixados pelo STF —, essa omissão não pode ser ignorada. Nesta hipótese, há um vício insanável que deve ser reconhecido para que a legalidade seja plenamente restabelecida.

Dessa forma, ao reconhecer a aplicação retroativa do ANPP, o STF não apenas garantiu um direito, mas reafirmou um princípio essencial: no processo penal, a justiça deve prevalecer sobre a inércia e a desigualdade.

Os números são avassaladores. Como destacou o ministro presidente, 1.695.455 processos estão em tramitação nas diversas instâncias do Judiciário, todos diretamente impactados pelas teses fixadas pelo STF. O destino de milhares de pessoas está em jogo.

Permitir que a omissão do Ministério Público negue o direito à aplicação do ANPP significa perpetuar um sistema desigual, em que alguns terão acesso à Justiça e outros carregarão o peso de uma condenação que poderia ser evitada. Para uns, o acordo será oferecido e celebrado, garantindo a correção de rumos e a efetividade do direito; para outros, restará apenas o fardo de uma sentença penal condenatória.


[1] ROCHA, Renato Lopes. Decisão do STF sobre ANPP impacta milhares de processos em tramitação. Disponível: <https://www.conjur.com.br/2024-out-03/decisao-do-stf-sobre-anpp-impacta-milhares-de-processos-em-tramitacao>. Acesso em: 27 jan. 2025.

[2] Pág. 201 do inteiro teor do acórdão.

[3] Pág. 208 do inteiro teor do acórdão.

[4] Pág. 210 do inteiro teor do acórdão.

[5] Págs. 209 e 210 do inteiro teor do acórdão.

[6] Pág. 211 do inteiro teor do acórdão.

[7] Pág. 212 do inteiro teor do acórdão.

[8] Pág. 236 do inteiro teor do acórdão.

[9] Pág. 237 do inteiro teor do acórdão.

[10] Logo após a proclamação do resultado do julgamento em 18/09/2024, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a aplicar aos processos em andamento os entendimentos vinculantes fixados pelo STF: HC n. 845.533/SC, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 8/10/2024; REsp n. 1.890.343/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 23/10/2024; AgRg no AREsp n. 2.295.371/SC, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 4/11/2024; PET no AREsp n. 2.601.262/BA, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 5/11/2024.

[11] Ata de Julgamento foi divulgada no DJE 19/09/2024, publicada em 20/09/2024.

[12] Parece haver um consenso de que a proposta de acordo não deve considerar informações contidas na sentença ou no acórdão, sob risco de comprometer a imparcialidade de um procedimento que, por sua própria essência, deve se restringir à fase pré-processual.

[13] XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

[14] HC 230092 AgR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 16/12/2024, publicado em 08/01/2025.

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Projeto de Estatuto da Vítima reforça direito a indenização, mas tem pouco efeito prático

Em dezembro do último ano, a Câmara aprovou o projeto de lei que cria o Estatuto da Vítima. Uma das regras previstas é que a vítima de um crime tem direito a receber indenização do autor do delito por “prejuízos materiais, morais e psicológicos”. O texto, que ainda precisa passar pelo Senado, também propõe que o infrator restitua valores gastos pela vítima ou pela família com tratamento médico e psicológico e com funeral.

Mulher sendo assaltada

 

 

 

Segundo o projeto, o direito de indenização por danos materiais, morais e psicológicos valeria tanto dentro do processo judicial quanto fora dele, ou seja, em acordos entre as partes. Já a restituição dos gastos médicos e funerários ocorreria somente em caso de condenação com sentença transitada em julgado.

Criminalistas consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico explicam que o PL não inova quanto a esse tema. “A legislação processual já assegura os direitos da vítima nesse sentido”, indica Antonio Pedro Melchior, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

Essa possibilidade de indenização já existe desde a Lei 11.719/2008, segundo a qual o juiz, ao estabelecer uma condenação criminal, deve fixar um valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, “considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”.

Mas Paula Moreira Indalecio, sócia do escritório Mattos Filho, explica que, na prática, essa norma “tem uma efetividade limitada”. Muitas vezes, o Ministério Público não solicita tal reparação quando oferece a denúncia.

E, mesmo quando o pedido existe, é comum que ele seja negado pelos juízes. Geralmente, a justificativa é que seria mais adequado analisar eventual indenização em uma ação cível.

Quando uma indenização é fixada na ação penal, a sentença pode ser usada em uma vara de execução cível para garantir o recebimento dos valores. Mas, segundo Paula, a condenação “dificilmente se materializa em ganhos para a vítima”, pois a maioria delas não tem advogados constituídos para executar a sentença.

Além disso, muitos réus têm recursos financeiros limitados. Para ela, isso, somado à frequente demora para execução de uma indenização penal, levaria a um cenário semelhante ao das penas de multa. Como já mostrou a ConJur, a imensa maioria dessas sanções não é paga em São Paulo, muitas vezes devido à incapacidade financeira dos condenados.

Confusão conceitual

Aury Lopes Jr., professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), acredita que a vítima tem todo o direito de pedir um ressarcimento pelos danos sofridos. Mas, na sua visão, já existe uma via adequada para isso: a cível.

“É uma deturpação do processo penal querer misturar um interesse patrimonial, indenizatório, privado, neste espaço de punição. É um grande erro, que pode levar inclusive ao uso indevido do processo penal, que é muito mais coator e punitivo que o processo civil, para satisfação de interesses privados, de natureza patrimonial”, opina.

De acordo com o criminalista, ainda que a preocupação com a reparação da vítima seja legítima, essa mistura de conceitos é perigosa e tecnicamente inadequada: “É uma degeneração fazer isso pela via do processo penal”.

Ajuda à vítima

A ideia do PL é detalhar direitos das vítimas de crimes, outras infrações, desastres e calamidades públicas. A proposta também contém regras para a chamada Justiça restaurativa, que busca encorajar o infrator a reparar os danos causados.

Na visão de Alberto Zacharias Toron, a regra de indenização à vítima é positiva, pois garante o ressarcimento pelos “gastos decorrentes do delito que se abateu sobre ela”. Mas ele não acredita que a medida tenha “um caráter de combater a criminalidade”.

Antonio Melchior concorda que as regras previstas no projeto “não previnem, tampouco se dirigem a evitar crimes, mas a assegurar assistência mais efetiva e abrangente à vítima”.

Embora reconheça que a proposta deve enfrentar desafios na prática, Paula Indalecio vê bons pontos no texto. “Historicamente, o processo penal sempre foi muito centrado na figura do Ministério Público como o titular da ação penal e a vítima permaneceu com um papel secundário no processo”, indica.

“Dessa forma, um dos aspectos positivos da proposta é que ela traz mais centralidade à vítima no processo penal, reconhecendo seus direitos de forma mais clara.”

Outro ponto positivo, segundo ela, é que a previsão de um direito à indenização facilita o acesso à Justiça. Isso porque, uma vez que a indenização é estabelecida no processo penal, sua execução na esfera cível pode ser mais rápida e eficaz.

A advogada considera que a obrigação “aparentemente reforça a responsabilidade individual e pode ter um efeito dissuasório, desencorajando a prática de novos crimes”. Mas ressalta que a prevenção de crimes envolve uma série de fatores, como políticas públicas, educação e medidas de segurança. Assim, ela não crê que a indenização tenha “impacto direto” sobre a repressão de delitos.

“Além disso, o foco da proposta é mais reparatório do que punitivo, buscando mais proporcionar algum alívio (muitas vezes tardio) às vítimas do que efetivamente prevenir a ocorrência de delitos”, completa.

Prerrogativas

O presidente do IBCCRIM afirma que a redação do PL “parece admitir a decretação de medidas cautelares patrimoniais que incluam o valor relativo ao dano moral e psicológico”. Segundo ele, isso é controverso, principalmente devido à “tensão envolvida com a presunção de inocência enquanto regra de tratamento”.

Para o advogado, a preocupação com a proteção integral da vítima “não deve conduzir a uma ampliação excessiva do objeto do processo penal, uma vez que isto afeta os limites do contraditório e da ampla defesa no âmbito do processo criminal”.

Ele defende que a indenização à vítima deve ser garantida, “com maiores restrições em sede cautelar” e “maior abrangência na sentença condenatória”. Em qualquer caso, deve-se exigir pedido expresso da autora e garantir o contraditório e a ampla defesa do acusado.

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Literatura ajuda a conhecer a si próprio e aos outros

Certa vez, ao entrar no gabinete de um juiz para despachar uma petição, o advogado Pedro Pacífico foi surpreendido pelo grito de um assessor, revelando sua identidade de influenciador literário: “É o Bookster!”.

Ele ficou sem reação. Afinal, estava em um ambiente formal, cumprindo rituais do Direito, que eram gravados. Mas a fala do assessor descontraiu o recinto, e o juiz se interessou pela atividade paralela de Pacífico.

“Nesse momento eu percebi que a minha tentativa inicial de separar quem era o influenciador e quem era o advogado não era sustentável. Eu sou as duas coisas, essas duas pessoas”, afirma Pacífico à revista eletrônica Consultor Jurídico.

Desde então, ele parou de ter receio de ser “descoberto” por colegas do meio jurídico. E isso, inclusive, o fez conhecer “pessoas muito interessantes do Direito, as quais eu talvez não tivesse conhecido se mantivesse com temor de me expor”.

Leituras desinteressantes

No fim do ensino médio, Pacífico prestou vestibular para Medicina em diversas faculdades, menos a Universidade de São Paulo, na qual tentou Direito. Ele se matriculou no curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no campus de Sorocaba (SP). Porém, não gostou do trote longo e exagerado.

Antes do fim de sua primeira semana na PUC-SP, foi aprovado para a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e resolveu ver como era. Logo de cara, gostou mais do ambiente, do perfil dos alunos, da politização e das discussões. E continuou no curso, também influenciado por seu pai e sua irmã, que são advogados.

O seu primeiro estágio foi na área de Direito Tributário, com o professor da USP Luís Eduardo Schoueri, no escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri. No quarto ano, passou a trabalhar com contencioso cível estratégico e arbitragem na banca Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados, da qual virou sócio em 2024.

Pacífico sempre gostou de ler e brinca que foi enganado por quem disse que Direito era um curso bom para ele por esse motivo. “Na faculdade, as pessoas liam, mas não liam literatura. Elas liam só textos acadêmicos e técnicos.”

Devido à alta carga de leitura demandada pela graduação, ele deixou a literatura de lado. No fim da faculdade, fez um intercâmbio na Universidade de Sorbonne, na França. Lá, viu como a literatura era forte e importante para os franceses e quis retomar o hábito da leitura.

No entanto, quando voltou ao Brasil, estava perdido sobre o que ler, já que seus colegas e conhecidos não falavam muito de livros. Então descobriu pessoas que abordavam literatura nas redes sociais e conheceu obras muito diferentes das que estava acostumado.

Reprodução/ InstagramO advogado Pedro Pacífico, conhecido como Bookster

 

Depois de um ano, veio a ideia de criar seu próprio espaço. Inicialmente, não desejava necessariamente ser um influenciador, apenas ter uma página para divulgar suas opiniões sobre livros e trocar ideias com interessados no assunto. Em 2017, nasceu o perfil Bookster no Instagram.

Aos poucos, a página foi crescendo. Pelo receio de atrapalhar a sua carreira como advogado, não se expunha. E só foi contar do projeto para alguns conhecidos após atingir cerca de dez mil seguidores.

O perfil foi indicado a interessados em leitura e recebeu um impulso durante a pandemia de Covid-19, quando milhões de pessoas passaram a tentar preencher o tempo livre de forma mais rica. Segundo Pacífico, a página cresceu — hoje tem mais de 600 mil seguidores — por causa do seu gosto por livros, sem ser, todavia, um especialista em literatura. E os seguidores passaram a confiar em suas recomendações.

E chegou uma hora em que não fazia mais sentido esconder quem era o Bookster, e Pacífico passou a se identificar na página. A recepção foi boa, melhor do que ele esperava entre seus colegas. “Deve ter gente que criticou, mas não fiquei sabendo. Não tive nenhum prejuízo na carreira. Mas talvez teria se falasse de algum assunto considerado mais superficial.”

“As novas gerações não estão satisfeitas em seguir uma carreira por toda a vida. As pessoas vivem cada vez mais tempo. Não quero pensar que só vou fazer uma coisa para o resto da minha vida. Eu tenho outros interesses, eu sou múltiplo”, aponta Pacífico.

Não é fácil conciliar a carreira de advogado com a de influenciador literário. Ele costuma gravar conteúdos para sua página aos sábados e domingos, para ir publicando durante a semana. Se tem algo mais urgente ou um evento, marca bem cedo ou à noite para não atrapalhar sua rotina no escritório.

Muitos perguntam a Pacífico se ele pensa em largar a advocacia e se concentrar em seu projeto literário. Ele diz que talvez um dia possa reformular a balança de quanto tempo cada atividade ocupa na sua rotina. Mas não agora — está feliz no escritório e gosta da rotina de advogado.

Livros recomendados

Pedro Pacífico lançou, em 2023, a obra Trinta Segundos Sem Pensar no Medo: Memórias de um Leitor (Intrínseca). Ele conta sua trajetória profissional e de vida e como os livros o alegraram e ajudaram em seu processo de aceitação como um homem gay. No momento, Pacífico está escrevendo seu primeiro romance, ainda sem data para ser publicado.

Alguns de seus autores preferidos são Gabriel García Márquez, José Saramago, Lygia Fagundes Telles e Valter Hugo Mãe. Entre os contemporâneos, cita Mariana Salomão Carrara, que também concilia literatura e Direito (clique aqui para ler o perfil dela feito pela ConJur). Dos influencers literários, menciona Mell Ferraz (Literature-se), Paulo Ratz (Livraria em Casa) e Gabriela Mayer (Põe na Estante).

Pacífico ressalta a importância de profissionais do Direito lerem literatura, não apenas textos técnicos. “Com a leitura, aprende-se a enxergar e conhecer o mundo a partir da perspectiva do outro. Foi algo essencial para eu me aceitar como homem gay, mas também para entender as diferenças no outro. A compreender que está tudo bem ser diferente. E o Direito é entender o problema do outro e tentar resolvê-lo”.

Além disso, destaca, a narrativa é muito importante no meio jurídico. Um advogado ou promotor deve saber contar bem a história de seu representado, de forma a convencer o juiz e obter uma decisão favorável. Contudo, Pacífico ressalta que não se deve ler literatura pensando apenas em benefícios práticos.

“Leia as leis, os manuais jurídicos, mas leia literatura, por prazer, por entretenimento. As pessoas falam ‘mas eu não leio porque já passo o dia inteiro lendo’. A única coisa em comum nos autos de um processo e em um livro de literatura é o ato de ler. Um é profissão, o outro é entretenimento. É preciso separar o que é trabalho de uma leitura por prazer. Para isso, é preciso escolher livros legais, que te interessem, de temas diferentes.”

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O Direito Tributário protege a propriedade, não a liberdade

Será o tributo a expressão da liberdade, o que se encontra disseminado na doutrina, tendo como destaque no Brasil a obra de Ricardo Lobo Torres? Ele afirma em diversas partes de sua enciclopédica obra que o tributo libertou a humanidade da servidão, que se caracterizava pelo Estado Patrimonial, correspondente histórico do feudalismo e do absolutismo, em que o poder dos senhores feudais e dos monarcas sobre a vida das pessoas era completo. Afirma que, com o advento do Estado Fiscal, baseado na arrecadação dos tributos, a humanidade se libertou e passou a ter essas relações reguladas pelo Direito, delimitando o poder do monarca.

Para compreensão deste aspecto, é necessário dar um passo atrás e entender que a grande distinção histórica, da qual decorreu a criação da tributação, foi a modificação na estrutura da propriedade durante o período absolutista, e que, com as revoluções burguesas, se transformou em propriedade privada individual, e, após, com a revolução industrial, foi criada nova dinâmica econômica baseada não mais na conservação da propriedade, mas em sua circulação. Tudo isso impactou fortemente a forma pela qual foi feita a arrecadação para sustentação do Estado ao longo do tempo.

É necessário analisar a relação de causa e efeito, sendo a alteração do sistema de propriedade a causa, e a instituição do sistema de tributação seu efeito. O modelo de propriedade em cada fase histórica do Estado é que determina a arrecadação para sua sustentação, sendo que a tributação surge na passagem do Estado Absoluto (Estado Moderno) para o Estado Liberal, daí advindo o Estado de Direito.

No período absolutista, ainda em decorrência da anterior fase feudal, pertenciam ao monarca todas as propriedades existentes em seu reino, sendo admitido que a nobreza e o clero também dispusessem da propriedade mais importante de todas, que era a das terras. Aos camponeses não era permitido ter propriedades, e trabalhavam nas terras de seus senhores, constituindo-se em seus súditos, aos quais deviam servidão e para os quais pagavam em trabalho ou em produtos que cultivavam em troca de proteção contra a ameaça de outros soberanos, de outros senhores feudais, ou ainda, de bandidos.

Não se nega que a limitação do poder dos soberanos absolutos foi um passo importante para a civilização, e que a criação de mecanismos de contenção de seu poder de arrecadar foi muito relevante, se afigurando como essencial a concordância da assembleia dos súditos para vários dos poderes absolutos que os soberanos exerciam, como se vê na Magna Carta, de 1215, e nos documentos históricos dos direitos fundamentais que se lhe seguiram.

Nesse período se encontra o embrião do princípio da legalidade e, por conseguinte, do Estado de Direito. Posteriormente, o que era uma assembleia da nobreza passou a ser de representantes do povo, tendo sido instituídos mecanismos jurídicos mais completos e complexos para regular diversas matérias, concentradas na constituição, instituto criado pelos norte-americanos nos albores de sua independência, há pouco mais de dois séculos, e que se configurou como um marco no surgimento do Estado Liberal.

Considerando os documentos históricos dos direitos fundamentais, a afirmação da propriedade privada como um direito individual surge na Declaração de Direitos da Virgínia, ocorrida em 1776, em seu art. 6º. É obvio que existia propriedade privada individual antes dessa Declaração, como se pode ver nos debates teóricos acerca do tema, por exemplo, entre Locke e Rousseau. A novidade dessa Declaração foi sua afirmação por colonos que declaravam seu território independente da Inglaterra, isto é, contra o poder soberano da monarquia britânica.

Logo após, em 1789, os franceses proclamaram por meio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, ser a propriedade um direito inviolável e sagrado. Observe-se que esta proclamação não se refere ao povo francês, mas a todos os homens. E nem decorre de uma declaração de independência contra o jugo de outra nação, como ocorreu com os norte-americanos, cuja afirmação foi fruto de um confronto com a nação colonizadora. Esta Declaração surge como uma afirmação de um direito de todos os homens, individualmente considerados.

A modificação no sistema arrecadatório para sustentação do Estado ocorreu nessa fase histórica, não pela criação do sistema tributário, que surgiu como um subproduto da modificação do sistema de propriedade, que passou a normativamente assegurar e proteger a propriedade privada individual. A dinâmica da circulação da propriedade foi intensificada durante a revolução industrial, influenciando, por conseguinte, a tributação das riquezas e da propriedade, modificando a sistemática da arrecadação.

O Estado protegido do poder

Essa trajetória histórica demonstra que uma das formas de resguardar a propriedade privada dos cidadãos foi a de estabelecer mecanismos limitados para a arrecadação aos cofres reais, que se tornaram cofres públicos, por meio de normas jurídicas que delimitassem esse poder e carreassem os recursos para o erário, para uso em prol da sociedade, e não do governante de plantão. Ao longo das revoluções burguesas e com o advento do constitucionalismo monárquico, até mesmo o Rei passou a ser obrigado a respeitar a Constituição de seu país e as leis que dela adviessem.

Para delimitação do poder do Estado sobre a propriedade privada é que, em decorrência, foram criados os mecanismos tributários, que se agregaram a outros institutos jurídicos para garantia do conjunto das liberdades consagradas e delimitadas pelas constituições, sendo uma delas a de usar, gozar e dispor de sua propriedade privada, podendo defendê-la contra todos.

Foi essa modificação no sistema de propriedade, e na delimitação dos poderes por parte das constituições, que se configurou efetivamente o Estado de Direito e, com isso, a separação da propriedade real absoluta, posteriormente transformada em propriedade pública, da propriedade privada, devendo os indivíduos contribuírem para o custeio dos serviços governamentais por meio da tributação, e não pela imposição forçada decorrente do poder absoluto dos monarcas. Posteriormente se chegou ao Estado Democrático de Direito, com o advento de outros institutos e direitos ao sistema.

Exatamente por isso que se deve ter cautela quando contemporaneamente se classifica as receitas públicas em originárias, decorrentes da exploração do patrimônio do Estado, e derivadas, como aquelas que decorrem do poder de império do Estado — esta afirmação requer como complemento que tal poder é exercido “de conformidade com o ordenamento jurídico existente”, e não por meio do vetusto conceito de “poder de império”, abandonado desde a queda do modelo de Estado Absoluto.

Nada obsta que se alinhe a tributação à defesa das liberdades, ao invés da defesa da propriedade privada, mas esta decorre de uma conclusão inafastável à luz do direito posto, uma vez que os direitos fundamentais são dos contribuintes, e visam defender seu patrimônio, isto é, sua propriedade privada.

É óbvio que no sistema vigente nos países ocidentais, a defesa da propriedade privada se insere como uma defesa das liberdades, mas são dois passos distintos, pois uma coisa é defender a propriedade privada, e outra coisa é considerar que ser livre é ter o direito de poder ser proprietário de algoe dele usar, gozar e dispor.

Não é apenas a propriedade privada que faz o homem ser livre. O tributo delimita o espaço entre o reconhecimento da propriedade privada e a receita pública, que é a arrecadação do Estado. Essa delimitação decorre do Estado democrático de Direito, sendo o tributo um elemento de todo esse conjunto. Ser livre decorre de outros fatores, estudados por Amartya Sen, dentre outros, e passa pela análise de diversas disciplinas que envolvem liberdade e igualdade. O tributo, como instrumento de contenção do poder estatal em face dos governos, é um dos múltiplos institutos fundamentais para o exercício dessa liberdade, como contenção do poder governamental sobre a propriedade privada dos indivíduos.

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Motoapp: é preciso regular, não proibir

São Paulo não tem trânsito eficiente. Muito menos amigável. Também não tem transporte suficiente para atender adequadamente a demanda, especialmente nas periferias, aquela que mais precisa de transporte público.

O viário, bem público, é disputado por todos os modais. Historicamente, foi dada preferência ao automóvel, ineficiente para a boa mobilidade urbana. Vivemos enredados entre a prevalência do transporte individual, os interesses em torno do transporte coletivo (individual e coletivo) e a irracionalidade alocativa da destinação do viário, o que torna o trânsito hostil aos mais vulneráveis: pedestres, motociclistas, ciclistas, usuários de patinetes elétricos.

Nesse contexto, se insere a polêmica em torno do motoapp, opção de deslocamento a custo menor do que táxis e automóveis e com previsibilidade maior que os ônibus.

O município de São Paulo sempre despontou como fonte de inovação em políticas de modalidade. Agora resolveu andar na contramão da lei e das evidências. Há dois anos, a municipalidade publicou decreto suspendendo temporariamente o transporte individual de passageiros em motos por aplicativo. Desafiou a lei alegando que precisava realizar maiores estudos. Passado esse tempo o máximo que conseguiu produzir foi um relatório cuja conclusão final é que viagens em motocicleta ensejam riscos!

Não foi feita uma pesquisa comparativa com outros municípios. Não se demonstrou porque viagens intermediadas por aplicativos são mais perigosas que caronas diárias em motocicletas. Não se comparou riscos de viagens de entregadores de encomendas e de transporte de passageiros.

Não se fez análise de impacto regulatório, nem análise de custo benefício. Tampouco se regulou a atividade, estabelecendo condições de segurança e idoneidade para oferta de serviço. Simplesmente se pretendeu proibir que aplicativos ofereçam tais viagens sob a alegação que, do contrário, haveria uma “carnificina”. Algo que não sobreveio em outros municípios, mesmo da Região Metropolitana em contam com o serviço há anos.

A pretensão afronta a lei, carece de fundamento e vai contra o interesse público. Municípios não têm competência para proibir transporte individual por motocicletas e muito menos a intermediação por aplicativos.

Compete à União legislar sobre trânsito, transporte e mobilidade (Constituição, artigo 21, IXe XI). Proibir o motoapp seria o mesmo que a Municipalidade vetasse viagens de motocicleta ou motos com dois passageiros na Cidade. Proibir os aplicativos em âmbito municipal corresponderia a dizer que no território paulistano bets são vedadas.

A Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana PNMA (L. 12.587/12) separa transporte público (ônibus, táxi) do transporte remunerado privado individual de passageiros, que é expressamente admitido independente do veículo. Já a Lei 13.640/18 delimita estritamente os limites do poder regulatório do município, o que torna qualquer outra exigência ilícita e, tacitamente, veda a proibição de algum destes modais de transporte individual. Fosse pouco, a Lei se Liberdade Econômica (L. 13.874/19) determina ser abuso regulatório, ilícito portanto, impedir o exercício de atividade econômica sem fundamento necessário e suficiente.

A motivação declarada pela municipalidade, por sua vez, é absolutamente inconsistente. Alega-se que a atividade seria temerária, fomentando mortes e acidentes. Sem nenhum estudo. E contra as evidências colhidas onde já opera o serviço, como demonstram as estatísticas. Pior: contra o verificado nos dias em que o serviço esteve ativo em São Paulo: em mais de 500 mil viagens, só duas ocorrências, ambas leves. Estatisticamente, um risco menor que andar de patinete. Alega-se ainda que este modal sobrecarregaria a rede de saúde e a previdência. Para além da absoluta falta de estudos sérios e mesmo evidências, a alegação vai contra a PNMA que exige para tal transporte a contratação de seguro (artigo 11A, II).

No último ano, segundo dados do Infosiga, 483 pessoas morreram em sinistros envolvendo motocicletas na capital paulista, algo lamentável. Atribuir isso ao transporte individual por aplicativo é contornar a verdade. Não há estatística oficial atribuindo uma fração destas motes a aplicativos. A presunção, aliás, vai em sentido contrário pois em 2024 o serviço não era oferecido por boa parte do ano.

Interesse do cidadão

É contrafactual pretender atribuir esse aumento aos condutores que utilizam apps. Em todo o país, eles representam 2,3% do total da frota. São 800 mil trabalhadores autônomos para um contingente de 34,2 milhões de motos. Um dos aplicativos disponíveis já intermediou um bilhão de corridas nessa modalidade. Apurou índice de acidentes ou incidentes de 0,0003% de todos os deslocamentos realizados pelas motocicletas. O serviço de motoapp oferecido em cidades como o Rio de Janeiro e outras 24 capitais de estado brasileiras, mostram as estatísticas, não elevou o número de sinistros.

O que se verifica em municípios em que o serviço é admitido, é que motociclistas profissionais, que já usam a moto para entregas, migrem para este serviço, em tempo parcial ou sazonalmente. A se tomar pelo raciocínio temerário das autoridades, o próximo passo será proibir entregadores em motocicletas para evitar acidentes.

Mas o pior efeito dessa cruzada contra o motoapp é a desconsideração do interesse do cidadão paulistano. Esse modal de transporte é muito útil e empregado na primeira ou última milha de uma viagem. É utilizado por pessoas de sua casa, especialmente em comunicasses mais periféricas, até a conexão com o modal de transporte radial (ônibus, trem, metro). Na periferia dos grandes centros substitui as viagens a pé. Para as mulheres é alternativa para trajetos nos quais são expostas a violência, pois os motoristas passam por crivo e controle rigorosos.

O valor médio das viagens fica ente cinco e dez reais. Em seminário da Folha de S.Paulo, Geovana Borges, da Cufa, afirmou a importância do motoapp para as mulheres da periferia. Destacou ainda que a atividade é uma alternativa de renda para famílias mais vulneráveis. Fatores simplesmente desprezados pelo município de São Paulo.

Regular qualquer atividade é prerrogativa do poder público. Mas como todo dever deve ser realizado com responsabilidade, fundamentação exaustiva. Proibir uma atividade que já existe há anos em mais de 3.300 das 5.571 cidades brasileiras baseado em raciocínios intuitivos ou alegações genéricas tangencia a inconsequência.

Andar de moto é perigoso? Sim. Vamos proibir as motocicletas? Claro que não. A circulação de motos no país desde há muito foi regulamentada, e cabe aos agentes públicos fiscalizá-la e executar boas políticas de educação de trânsito. Vale o mesmo para o transporte individual de passageiros por motoapp. A lei nacional já determinou que é proibido proibir. Cabe aos municípios regular. Sem abuso, Com motivação e ponderação. E sem bravatas.

*artigo a pedido da 99 Táxi 

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Alternativas à não validação de recolhimentos do segurado facultativo de baixa renda

O Regime Geral da Previdência Social (RGPS) é um sistema de natureza contributiva, com o objetivo de assegurar aos seus beneficiários meios de subsistência em face de riscos sociais como incapacidade laboral, idade avançada, maternidade, falecimento, entre outros (artigo 201, CF/88).

TRF-1 suspendeu eficácia de instrução normativa que limitava oferta de crédito consignado

Marcello Casal Jr./Agência Brasil

A Emenda Constitucional nº 103/2019 reforçou o caráter contributivo do sistema e criou uma norma essencialmente importante aos segurados, pois permite o rearranjo das contribuições vertidas a fim de que sejam potencializados seus direitos: o ajuste de contribuições previsto no artigo 29 da EC 103/19 para os fins do artigo 195, §14, da Constituição.

Nesse sistema contributivo, houve uma multiplicação de regras de contribuição para garantia de sua sustentabilidade financeira. No entanto, a complexidade dessas regras dificulta o entendimento da população, resultando em erros frequentes nas contribuições.

Por isso, é preciso analisar os meios de se garantir ao segurado contribuinte que suas contribuições tenham validade perante o regime previdenciário, ainda que, para isso, sejam necessários ajustes, aportes ou reenquadramentos formais.

Modalidades contributivas para o segurado facultativo

O segurado facultativo, nos termos do artigo 13 da Lei 8.213/91, é aquele que, sendo maior de 14 anos de idade, não estando enquadrado como segurado obrigatório do RGPS (empregado, empregado doméstico, trabalhador avulso, contribuinte individual e segurado especial), opta por contribuir ao sistema visando a garantir proteção previdenciária.

As modalidades de contribuição para essa classe de segurado, segundo o artigo 21 da Lei 8.212/91, são:

  • Plano Normal (Código 1406):  20% sobre o salário de contribuição.
  • Plano Simplificado (Código 1473):  11% sobre o salário-mínimo mensal.
  • Plano do segurado facultativo de baixa renda — SFBR (Código 1929): 5% sobre o salário-mínimo mensal.

O segurado facultativo de baixa renda (SFBR) é uma categoria específica criada pela Lei nº 12.470/2011 com o objetivo de facilitar o acesso à Previdência Social para pessoas que se dedicam exclusivamente ao trabalho doméstico. Por isso, tal modalidade contributiva ficou conhecida como a “contribuição da dona de casa” e constituiu um marco na inclusão previdenciária dessas pessoas que, até então, estavam excluídas por não terem renda pessoal, nem familiar, em condições de suportar a contribuição de 11% sobre o salário-mínimo.

Para ser considerado SFBR, o segurado deve atender aos requisitos do artigo 21, §2º, II, ‘b’, da Lei nº 8.212/91:

  • Não possuir renda própria
  • Dedicação exclusiva ao trabalho doméstico residencial
  • Família de baixa renda (até 2 salários-mínimos)
  • Cadastro Único atualizado.

Sem respeito a esses requisitos legais, as contribuições pagas pelo segurado serão consideradas inválidas pelo INSS e não surtirão efeitos para fins previdenciários.

Invalidação das contribuições do SFBR e as consequências do recolhimento irregular

Muito embora a categoria do SFBR remonte a 2011, muitos segurados não têm conhecimento dos requisitos legais e, também, sequer sabem se as suas contribuições estão válidas perante o INSS.

O segurado que recolhe pelo Código 1929 precisa verificar se suas contribuições estão sendo reconhecidas como válidas. Para isso, o INSS disponibiliza pela plataforma Meu INSS, o serviço de “validação das contribuições do segurado facultativo de baixa renda”, que permite o cruzamento de dados a fim de aferir se os requisitos legais estão cumpridos em cada período contributivo.

Após solicitar o serviço, o INSS fará um relatório informando problemas como:

  • Existência de renda pessoal.
  • Renda familiar superior ao limite de dois salários-mínimos
  • Ausência de inscrição no Cadastro Único ou desatualização

A não validação de contribuições pode acarretar prejuízos significativos no reconhecimento de direitos previdenciários, como a falta de tempo para aposentadoria por idade, ausência de qualidade de segurado ou carência para auxílio-doença e salário-maternidade, entre outros.

Nestes casos, o segurado precisará adotar, com a máxima brevidade, providências para regularizar as contribuições, sob pena de ter prejuízos financeiros (perda de valores) ou prejuízos previdenciários (impossibilidade receber benefícios).

Soluções para a não validação das contribuições do SFBR

Em caso de não validação dos recolhimentos o INSS irá mencionar no relatório de análise os períodos e os motivos. Sabendo disso, o segurado pode adotar medidas para regularização:

  1. Complementação de contribuições: o segurado pode complementar o valor das contribuições que fez (5% do salário-mínimo) até alcançar o valor correspondente à alíquota de 11% do salário-mínimo ou de 20% do salário-de-contribuição.
  2. Contestação da decisão administrativa: o segurado pode discordar da análise do INSS e apresentar os meios de prova que possui para demonstrar que cumpria os requisitos legais para ser considerado SFBR.
  3. Pedido de restituição das contribuições: se não ocorreu o fato gerador das contribuições pagas, o segurado pode solicitar a restituição dos valores perante a Receita Federal em face do pagamento indevido.

A partir da reforma da Previdência promovida pela EC 103/2019, há exigência geral de que os recolhimentos observem o limite mínimo do salário-mínimo para que as contribuições valham como tempo de contribuição. Caso isso não ocorra, a regularização de contribuições inválidas pode ocorrer por três formas de ajustes contributivos, segundo o artigo 29 da EC 103/2019:

  • Complementação: permite ao segurado complementar o valor pago para atingir o salário-mínimo. Exige aporte novo de recursos do segurado.
  • Utilização: possibilita utilizar o excedente de contribuições de uma competência para completar e atingir o valor mínimo em outra. Essa modalidade não exige aporte novo de recursos do segurado, pois transfere o excesso de aporte de um mês para outro.
  • Agrupamento: autoriza o segurado a agrupar contribuições inferiores ao salário-mínimo para criar contribuições que respeitem esse limite. Essa modalidade também não exige aporte novo de recursos do segurado, pois agrupa aportes anteriores para respeitar o mínimo em uma ou mais competências.

A norma constitucional estabeleceu que esses ajustes somente poderão ser feitos ao longo do mesmo ano civil.

Para efetivar os ajustes, o INSS disponibiliza pela plataforma Meu INSS o serviço de “ajustes para alcance do salário mínimo — Emenda Constitucional 103/2019”, por meio do qual o segurado escolhe o ano civil e recebe da autarquia uma simulação com as opões existentes para regularização das contribuições, seja apenas com utilização ou agrupamento, seja com complementação de valores, se necessária.

Entretanto, para o caso do SFBR, o INSS somente disponibiliza a opção de complementação das contribuições. Não há, até agora, na esfera administrativa, nenhuma ferramenta que permita ao SFBR efetuar ajustes contributivos sem pagamento de novos aportes, o que nos faz refletir sobre a legalidade dessa medida.

Possibilidade do ajuste via agrupamento para o SFBR

Embora a Lei 8.212/91 mencione no artigo 21, §5º, a complementação como meio de regularizar as contribuições do SFBR não validadas, fato é que, de forma superveniente, a Emenda Constitucional nº 103/2019 inovou o ordenamento jurídico com mais duas alternativas viáveis para ajustes contributivos, quais sejam, a utilização e o agrupamento.

Ainda que, neste caso do SFBR, esteja esvaziada a modalidade de utilização como ferramenta legal de ajuste, pois ela pressupõe excesso contributivo em pelo menos uma competência, o agrupamento permite, justamente, a concatenação de contribuições inválidas para montar competências válidas.

Por mais que o artigo 29 da EC 103/2019 se refira expressamente aos ajustes de contribuições pagas sobre salário-de-contribuição abaixo do salário-mínimo (o que excluiria do escopo a contribuição do SFBR, pois é paga sobre 5% do salário-mínimo), entende-se que a ratio legis da norma é permitir a regularização de contribuições inválidas e garantir um equilíbrio entre direitos e deveres no regime previdenciário.

Nessa linha de entendimento, o artigo 194, §14, da Constituição, com a redação dada pela EC 103/2019, estabeleceu que “o segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições”.

A norma constitucional, portanto, expressamente assegura o agrupamento contributivo para os casos em que a contribuição da categoria de segurado facultativo tenha sido paga sobre valor inferior à contribuição mínima exigida.

Qualquer interpretação restritiva dessa norma, impedindo o SFBR de acessar o ajuste por agrupamento, se revela manifestamente inconstitucional por violar o artigo 195, §14, e os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da proteção social, todos consagrados na Constituição. Mais grave ainda, chancelaria o enriquecimento ilícito do Estado em detrimento do cidadão vulnerável (donas de casa), que, na maioria das vezes, já contribuiu com enorme esforço financeiro, de boa-fé, e não terá condições de complementar as contribuições invalidadas de vários anos.

É oportuno, ainda, criticar a postura do INSS de sequer analisar cautelarmente a validade das contribuições que recebe mensalmente para informar aos segurados, contemporânea e tempestivamente, eventual impedimento para seu enquadramento legal como facultativo de baixa renda. Ou seja, há um vetor de séria omissão estatal que contribui para o agravamento do quadro desses segurados, vulneráveis, e que muitas vezes irão descobrir a invalidade das contribuições somente após décadas.

A legislação previdenciária estabelece que é dever do INSS, por meio do serviço social, esclarecer junto aos beneficiários seus direitos sociais e os meios de exercê-los e estabelecer conjuntamente com eles o processo de solução dos problemas que emergirem da sua relação com a Previdência Social, tanto no âmbito interno da instituição como na dinâmica da sociedade (artigo 88 da Lei 8.213/91).

Diante desse cenário, é imperioso que, nos casos em que o SFBR não tenha condições de fazer a complementação das contribuições, seja porque são muitas competências para regularizar, seja porque o acréscimo de alíquota mais a correção monetária e os juros torna o valor inacessível a sua realidade econômica, a possibilidade de agrupamento das contribuições pode ser a única alternativa para que o segurado não tenha um prejuízo irreparável em seu patrimônio e em seu histórico contributivo.

A possibilidade de o SFBR optar pelo agrupamento de suas contribuições feitas à alíquota de 5% do salário-mínimo, “transformando-as” em menos contribuições sob a alíquota de 11% do salário-mínimo, não causa prejuízo ao equilíbrio financeiro e atuarial do sistema e garante a proteção social de um segmento vulnerável da população que, muitas vezes, sequer recebeu orientação acerca dos requisitos legais dessa contribuição específica.

Esse estado de coisas inconstitucional já foi, inclusive, objeto de decisão judicial na qual o julgador entendeu possível o agrupamento de 12 contribuições como segurada facultativa de baixa renda (5%) para composição de cinco contribuições válidas (à alíquota de 11%), nos seguintes termos:

“A de cujus possui conjunto de contribuições como facultativa no período de 01/08/2021 a 31/08/2022. Assiste razão ao INSS quanto à impossibilidade de validação em razão de o CADUNICO informar a presença de renda, o que afasta o requisito de que trata o art. 21, §2º, II, b, da lei 8212/91. Entretanto, conforme reconhecido pelo próprio INSS, trata-se de CID que dispensa carência, de modo que bastaria à de cujus única contribuição para que adquirisse qualidade de segurada. Considerando-se que a de cujus possui 12 contribuições em 5%, é possível sua unificação para resultar em 5 (art. 29, III, da EC103/19), o que lhe garante o necessário para ter qualidade de segurado.”(PROCESSO: 1065575-04.2023.4.01.3900, Juízo Federal da 8ª Vara Federal de Juizado Especial Cível da Seção Judiciária do Pará, Juiz Federal PAULO CESAR MOY ANAISSE, Data 15/10/2024).

Com efeito, para além da análise formal da legalidade dos atos administrativos, a função jurisdicional deve priorizar o acertamento da relação jurídica de proteção social, assegurando a máxima correspondência entre a normatividade e a efetividade da tutela dos direitos. Isso significa que, ao invés de se ater a uma interpretação restritiva das normas que dificultam a validação das contribuições do SFBR, o juiz deve buscar soluções que garantam a sua inclusão previdenciária e sua proteção social, com a possibilidade de agrupamento de contribuições para atingir valor equivalente à alíquota mínima exigida da categoria.

O ajuste por agrupamento como mecanismo de regularização das contribuições do SFBR, ainda que não esteja disponível em nenhuma ferramenta específica no Meu INSS, decorre diretamente do princípio da máxima efetividade aplicado ao direito da seguridade social, que impõe ao intérprete do direito previdenciário a obrigação de buscar soluções que maximizem a proteção social dos segurados, especialmente daqueles em situação de vulnerabilidade.

Conclusão

Diante do exposto, torna-se evidente que as contribuições do SFBR, ainda que parcialmente invalidadas pelo INSS, representam um ativo valioso do segurado e que pode ser aproveitado por meio do agrupamento. Essa modalidade de ajuste, garantida constitucionalmente, permite a composição de contribuição no Plano Simplificado, impede o enriquecimento ilícito do Estado, e abre caminho para o acertamento da relação jurídica previdenciária que até então estava obstado.

Diante do exposto, conclui-se que:

  1. O SFBR precisa solicitar a “Validação das Contribuições” para verificar a regularidade de seus recolhimentos e evitar surpresas futuras.
  2. Caso tenha contribuições invalidadas, o SFBR tem direito de contestar a decisão do INSS apresentando provas que comprovem o cumprimento dos requisitos legais para essa contribuição.
  3. Se a contestação for inviável, o SFBR pode optar pela complementação das contribuições, solicitando o cálculo e a emissão da GPS ao INSS. Caso não haja interesse em complementar, pode requerer à Receita Federal a restituição dos valores pagos, observando as normas de direito tributário aplicáveis.
  4. Com a EC 103/2019, surgiu a possibilidade fazer ajuste contributivo por agrupamento, que, para o SFBR, consiste em reunir contribuições pagas em 5% do salário-mínimo e convertê-las em menos contribuições com alíquota de 11% do salário-mínimo (Plano Simplificado). Essa pode ser a única alternativa preservar o patrimônio e histórico contributivo do SFBR, que muitas vezes não teve acesso tempestivo aos requisitos legais da contribuição e só tomou ciência da situação tardiamente, quando ocorrido o evento social protegido no RGPS.

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