Não é incomum que adolescentes façam listas a respeito de quem são os mais bonitos da sala de aula, o que significa que os excluídos serão considerados mais feios; isso se não há uma lista completa e alguém terá o desprazer de se encontrar em último. Não é incomum também que pessoas façam comentários a respeito do corpo de outrem, tachando a pessoa de gorda ou dizendo que ela está fora de forma.
Foi a partir dessas situações comezinhas, muitas delas discutidas em sala de aula, que ocorreu nos ocorreu de escrevermos neste artigo.
A ideia é tratar de direitos da personalidade, com ênfase no direito à honra.
Sobre os direitos da personalidade
Existem vários direitos da personalidade, tais como imagem, privacidade, sobre o próprio corpo e outros. Não há discussão a respeito da existência de alguns deles, eis que previstos de modo expresso no Código Civil, entre seus artigos 11 e 21; outros são implícitos, extraídos do sistema jurídico, segundo a corrente monista, a partir do que é considerado direito geral da personalidade.
A doutrina majoritária entende que esse direito geral da personalidade corresponde à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento da República Federativa do Brasil insculpido no artigo 1º, III, da CF/1988. (1) Um direito da personalidade implicitamente previsto no sistema jurídico pátrio é o da identidade, a respeito do qual foi publicado artigo em data relativamente recente (2).
No mais das vezes, as situações que se apresentam adequam-se a um ou outro direito da personalidade com precisão. Por exemplo, se uma pessoa adentra em nossa casa sem consentimento viola a nossa vida privada, pois o domicílio é o centro de exercício típico desse direito. Se outra pessoa faz publicar a nossa fotografia em uma revista sem que tivesse prévia concordância específica, por certo, ofenderia o nosso direito à imagem, no caso, sempre, pelo ponto de vista restrito da imagem-retrato.
Há outras situações fáticas, entretanto, que são mais difíceis, quer porque colocam-se praticamente no limiar entre dois direitos distintos, quer porque fazem com que o intérprete do direito se questione se, de acordo com as peculiaridades apresentadas, ainda assim há ofensa ao direito de que se trata.
Se alguém verifica nosso extrato bancário haveria ofensa à nossa vida privada, segundo o c. STF, que tem vários julgamentos nesse sentido, malgrado algo antigos (3). Mas isso também poderia ser entendido como uma ofensa ao direito de proteção dos próprios dados, direito esse que ganhou ou vem ganhando autonomia em relação àquele (4) e que diz respeito à autodeterminação informativa, ou seja, à liberdade de definir se, como e até quando seus dados pessoais podem ser de conhecimento alheio. A LGPD, certamente, contribuiu para esse ganho de autonomia do direito aos dados pessoais.
Para resolver essas dúvidas o intérprete do Direito deve ter em mente o conteúdo adequado dos direitos da personalidade de que se trata, diferenciando-os dos demais que lhes são correlatos. Isso é especialmente importante quando se trata do direito à honra na atualidade, pois ele se aproxima bastante, dentre outros direitos, do direito à identidade.
Sobre a honra
Qualquer um de nós tem uma boa noção a respeito do que se entende por honra, mas se tivéssemos que defini-la, provavelmente, encontraríamos dificuldade, como lembra Jean Carbonnier, autor francês de renome internacional quando se trata de direito civil. Segundo ele, a honra diz respeito à dignidade da pessoa: quer a noção que cada pessoa tem da própria dignidade, quer a noção que os outros têm dela. (4) Sem dúvida, essa definição, por mais abrangente que seja, está conectada à noção kantiana de que a dignidade corresponde àquilo que não tem preço.
Essa divisão entre a ótica que os outros têm da minha dignidade e que eu tenho da minha própria dignidade, consoante exposto acima, é o que dá ensejo à classificação encontrada na doutrina sobre a honra objetiva e a subjetiva.
Tomando como base justamente essa noção de dignidade como cerne da honra, Carlos Alberto Bittar diz que a honra subjetiva é a consciência da própria dignidade, ao passo que a honra objetiva corresponde à reputação, que abrange o bom nome e a fama (5).
Cláudio Luiz Bueno de Godoy, por sua vez, diz que a honra é emanação direta da personalidade do homem, que supõe não apenas um elemento corpóreo, mas também um componente espiritual, revelado pela dignidade que se lhe reconhece. A honra, no seu entender, compreende a autoestima, o amor próprio, o sentimento da própria dignidade, de um lado (honra subjetiva), e o apreço, o respeito, a fama, a reputação, de outro lado (honra objetiva) (6).
Essa dicotomia é encontrada também no direito penal. Damásio E. de Jesus diz que a honra subjetiva é o sentimento de cada um a respeito de seus atributos físicos, intelectuais, morais e demais dotes da pessoa humana, ou seja, aquilo que cada um pensa de si mesmo em relação a tais atributos, ao passo que a honra objetiva é a reputação, aquilo que os outros pensam a respeito da pessoa no tocante a esses mesmos atributos (7).
O que mais importa notar a partir dessas definições é que a honra carrega consigo um juízo de valor que lhe é peculiar. São bons os atributos que a sociedade assim considera como tais, por isso as pessoas se orgulham de ostentá-los (honra subjetiva) ou essa mesma sociedade prestigia as pessoas que os ostentam (honra objetiva).
Como subsistema social que é, portanto, o Direito colhe essa informação da sociedade. É a sociedade que diz que ser honesto é bom e desonesto ruim por exemplo. Isso é relevante porque se não há esse juízo de valor não está se tratando de honra; se a ideia é apenas distinguir duas atribuições distintas, mas sem juízo de valor quanto a qualquer delas, de honra não se trata, como é o caso do já citado exemplo de ser gay.
Fixada a premissa de que a honra envolve sempre um juízo de valor, a questão que se coloca é se esse tipo de crítica, chamar alguém de “gordo” ou “feio” pode ser considerado como ofensivo à honra ou aceitar isso seria, por via reflexa, reforçar um preconceito estético.
A resposta, como é comum no âmbito jurídico, depende das circunstâncias.
Por exemplo, em um concurso de miss a beleza é critério de julgamento, por isso entender que alguém é bonito ou feio faz parte do processo e, a rigor, não pode ser considerado ofensivo, havendo inclusive concursos plus size. Anunciar isso, com o devido cuidado, sem exageros, configuraria exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião.
Ainda, ser chamado de gordo em um reality show de emagrecimento que tem por objetivo acompanhar o processo de perda de peso dos participantes, provavelmente, não é ofensivo à honra (8).
Claro que esses são exemplos mais simples, marcantes mesmo, a fim de explicar a ideia. É sabido que na sociedade as coisas se apresentam de modo mais complexo e a análise do intérprete se torna mais difícil, como é o caso da moça que diz à amiga que não quer namorar determinado garoto porque o acha feio. Será que haveria ofensa à honra dele apenas por conta disso ou seria uma conduta lícita, natural, representando excesso de sensibilidade do garoto exigir indenização por danos morais ao tomar ciência disso?
Para ajudar a responder essa questão é importante dar um passo atrás e verificar um processo julgado na Itália em 1979, o qual ajudou a definir o direito à identidade, diferenciando-o do direito à honra.
Nesse ano, o tribunal de Turim julgou o caso do político Marco Pannela. Conhecido por ser do Partido Radical Italiano, teve o seu nome mencionado em panfletos distribuídos na cidade como se fizesse parte do Partido Comunista Italiano. Em suma, era de uma vertente política, mas teria sido retratado como se fosse da vertente oposta. Na conclusão do caso, o tribunal afirmou que ser de uma vertente política ou outra não diz respeito à honra, ou seja, houve o reconhecimento de que ninguém é melhor ou pior do que outrem apenas porque adota determinada visão de mundo. Sendo assim, existiu ofensa a um direito da personalidade desse político, mas não a honra, e sim a identidade (9).
Esse caso é relevante porque define que ninguém é melhor ou pior por ser de direita ou esquerda, no ambiente político, já que se trata de exercício da liberdade decorrente da visão de mundo de cada um.
Em outras palavras, não há propriamente um juízo de valor social que permita justificar o pensamento de que alguém é melhor ou pior por seguir uma ou outra corrente política, o critério acaba por ser individual aos olhos de cada um. Sendo assim, não é ofensivo à honra, mas sim à identidade política, se o caso, atribuir a alguém visão de mundo de caráter político que divirja da realidade fática.
Mas por que essa conclusão não se aplica à situação de chamar alguém de “gordo” ou “feio”? Porque é uma realidade que a estética impõe à sociedade que é melhor ser “magro” e “bonito”. Ainda que isso, inevitavelmente, seja algo subjetivo, e que a sociedade esteja mudando para aceitar melhor a diversidade corporal, esses padrões de estética ainda têm um peso muito grande no julgamento das pessoas a respeito de si mesmas e das outras.
Como explicam Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos e Paola Uliana de Oliveira, os padrões de beleza são mutáveis. Na Grécia a aparência física e estética importava tanto quanto o conhecimento intelectual. Na Idade Média as formas arredondadas do corpo feminino, com circunferências e curvas avantajadas, eram prestigiadas, como é possível observar em telas de diversos artistas. Atualmente, segundo eles, a indústria da moda e a mídia ditam as regras e exigem um corpo “perfeito”, supervalorizando a imagem corporal, gerando, em contrapartida, a intensificação de doenças como a anorexia e a bulimia (9).
O Direito é ciência social prática. Ele deve se voltar para a sociedade para observá-la e entendê-la, com vistas à melhor interpretação – e, se o caso, aplicação – da lei. E se o padrão estético atual diz que ser “feio” ou “gordo” é pior do que ser “bonito” ou “magro”, natural compreender-se que há um juízo de valor ínsito neste julgamento.
Mas é importante compreender a questão da forma correta para que não se retire disso um reforço ao preconceito. Não estamos defendendo, de maneira alguma, que uma pessoa considerada por outros como “feia” ou “gorda” valha menos do que outra. Isso seria inconcebível e absolutamente contrário à dignidade da pessoa humana.
O que estamos reconhecido é que, em termos objetivos, faticamente, há uma “ditadura da estética”, a impor padrões. Praticamente todos sofrem com isso, por isso não é algo a ser estimulado. Contudo, também não há como simplesmente olvidar desse fato e deixar de admitirmos que ela existe e causa impacto psicológico em todos nós.
Desta maneira, ao utilizarmos esses termos para se referir a outrem, sem que as circunstâncias ajudem a explicar que se trata de uma crítica feita no exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião, a pessoa pode praticar ofensa à honra alheia. Mas de que honra se trata, da objetiva ou da subjetiva? A nosso ver, das duas.
Isso porque ao proceder desse modo a pessoa que se manifesta a respeito da outra a coloca numa escala inferior da sociedade, no que diz respeito à estética; na classificação que se faz a partir desse critério de julgamento, a pessoa considerada “feia” ou “gorda” é rebaixada em relação às demais. E a pessoa que toma ciência dessa manifestação também pode passar a se sentir menosprezada, com a sua autoestima abalada.
Breve conclusão
Os direitos da personalidade estão em constante evolução, pois representam a extensão da dignidade da pessoa humana. Em tempos de modernidade líquida, consoante explicado por Zygmunt Bauman, tudo muda o tempo todo, por isso as pessoas também mudam sempre. Natural, destarte, esperar que os direitos da personalidade acompanhem essa mudança.
O direito à honra, um dos direitos da personalidade mais conhecidos e que já foi utilizado como argumento para práticas mais do que conservadoras, verdadeiramente retrógradas e abusivas, como é o caso do feminicídio e das agressões contra mulheres, é outro que acompanha essa mudança na sociedade.
Ele contempla um juízo de valor social que parte do princípio da presença de um atributo positivo ou negativo, pessoal a cada grupo ou individuo . Se a pessoa é chamada por outras de criminosa, recebe um rótulo ruim e, por conta disso, é rebaixada socialmente. Por outro lado, se ela é rotulada como honesta, recebe um rótulo positivo e, por conseguinte, sobe um degrau na escala social.
A conclusão é mais fácil quando se trata de alguns atributos, como os vistos acima, mas a situação é mais complexa quando se trata de outros. É o caso dos atributos de beleza, tais como ser “bonito”, “feio”, “magro” ou “gordo”.
O objetivo deste breve artigo foi mostrar que os termos considerados negativos podem ensejar ofensas à honra porque existe um padrão estético na sociedade e ele não pode ser simplesmente desprezado. Os rótulos sociais são importantes na maneira como as pessoas pensam, em geral, inclusive sobre o que pensam sobre si e sobre os outros.
Não havendo razão jurídica que justifique a utilização desses termos por parte de quem emite opinião, pode haver, sim, ofensa à honra, quer objetiva, quer subjetiva.
(1) BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 125; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 30.
(2) https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/417379/o-direito-a-identidade-direito-a-espera-de-alguem-que-chame-pelo-nome
(3) RE 612.687 AgR, 1ª T., rel. Min. Roberto Barroso, j. 27.10.2017, DJ 14.11.2017; ADI 7276, Pleno, rel. Min. Cármem Lúcia, j. 09.09.2024, DJ 20.09.2024.
(4) A propósito desse movimento: SCHEDELOSKI, Mariana Almirão Sousa. Comércio de dados pessoais.
(4) CARBONNIER, Jean. Droit civil. Les personnes:personnalité, incapacites, personnes Morales. 19. ed. Paris: PUF, 1994, p. 129.
(5) BITTAR, Carlos Alberto. Direitos da personalidade. 6. ed., rev. e ampl. por Eduardo C.B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 133
(6) GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo : Editora Atlas, 2001, p. 38-39.
(7) JESUS, Damásio E. de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 2, p. 177
(8) É o caso, por exemplo, do programa da NBC chamado The biggest loser, que estreou em 2004 e fez muito sucesso.
(9) SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidade personal cit., p. 65; ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Onore, reputazione e identità personale cit., p. 28-29.
(10) SILVA, Katia Moraes da. Estética e sociedade. Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos, Paola Uliana de Oliveira. 2. ed. – São Paulo: Érica, 2014, p. 118-120.
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