CNJ faz mutirão para tribunais avaliarem 500 mil processos penais

Trinta tribunais de Justiça estaduais e regionais federais do país receberam nesta semana relatório preliminar do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para revisão de 496.765 processos penais.

Quatro tipos de processos serão revisados pelos tribunais. Mais de 324 mil processos (65% do total) são relativos à concessão de indultos de Natal para pessoas presas por crimes sem uso de violência ou grave ameaça. Apenas 13% dos casos analisados são considerados graves.

Cerca de 65 mil casos são relacionados a pessoas que foram flagradas portando maconha ou cultivando a planta dentro dos presídios e estão respondendo procedimento disciplinar por esse motivo.

Os tribunais deverão avaliar se o porte era de até 40 gramas da droga ou se o flagra foi de mais de seis pés de planta de maconha, volumes considerados pelo Supremo Tribunal Federal como “ilícito administrativo” e não penal.

Os tribunais também deverão rever a manutenção de prisões preventivas, sem qualquer condenação portanto, com duração maior que um ano. Além desses, deverão ser avaliados os processos de execução penal em que não haja mais pena restante a cumprir ou que a pena está prescrita, bem como processos que caberiam progressão de regime ou livramento condicional.

O CNJ foi criado pela Emenda Constitucional 45, no ano de 2004, e iniciou as atividades em junho de 2005. Desde 2008, o conselho realiza mutirões. No ano passado, 80 mil processos foram revisados pelos tribunais e 21 mil pessoas tiveram reconhecido o direito à alteração no regime de pena.

Os processos em revisão não incluem casos dos tribunais de justiça da Bahia, do Espírito Santo e do Rio de Janeiro, que não prestaram informações para a elaboração do relatório preliminar do CNJ.

Fonte: EBC

Há abalo à honra quando se chama alguém de ‘gordo’ ou ‘feio’?

Não é incomum que adolescentes façam listas a respeito de quem são os mais bonitos da sala de aula, o que significa que os excluídos serão considerados mais feios; isso se não há uma lista completa e alguém terá o desprazer de se encontrar em último. Não é incomum também que pessoas façam comentários a respeito do corpo de outrem, tachando a pessoa de gorda ou dizendo que ela está fora de forma.

Foi a partir dessas situações comezinhas, muitas delas discutidas em sala de aula, que ocorreu nos ocorreu de escrevermos neste artigo.

A ideia é tratar de direitos da personalidade, com ênfase no direito à honra.

Sobre os direitos da personalidade

Existem vários direitos da personalidade, tais como imagem, privacidade, sobre o próprio corpo e outros. Não há discussão a respeito da existência de alguns deles, eis que previstos de modo expresso no Código Civil, entre seus artigos 11 e 21; outros são implícitos, extraídos do sistema jurídico, segundo a corrente monista, a partir do que é considerado direito geral da personalidade.

A doutrina majoritária entende que esse direito geral da personalidade corresponde à dignidade da pessoa humana, que é o fundamento da República Federativa do Brasil insculpido no artigo 1º, III, da CF/1988. (1) Um direito da personalidade implicitamente previsto no sistema jurídico pátrio é o da identidade, a respeito do qual foi publicado artigo em data relativamente recente (2).

No mais das vezes, as situações que se apresentam adequam-se a um ou outro direito da personalidade com precisão. Por exemplo, se uma pessoa adentra em nossa casa sem consentimento viola a nossa vida privada, pois o domicílio é o centro de exercício típico desse direito. Se outra pessoa faz publicar a nossa fotografia em uma revista sem que tivesse prévia concordância específica, por certo, ofenderia o nosso direito à imagem, no caso, sempre, pelo ponto de vista restrito da imagem-retrato.

Há outras situações fáticas, entretanto, que são mais difíceis, quer porque colocam-se praticamente no limiar entre dois direitos distintos, quer porque fazem com que o intérprete do direito se questione se, de acordo com as peculiaridades apresentadas, ainda assim há ofensa ao direito de que se trata.

Se alguém verifica nosso extrato bancário haveria ofensa à nossa vida privada, segundo o c. STF, que tem vários julgamentos nesse sentido, malgrado algo antigos (3). Mas isso também poderia ser entendido como uma ofensa ao direito de proteção dos próprios dados, direito esse que ganhou ou vem ganhando autonomia em relação àquele (4) e que diz respeito à autodeterminação informativa, ou seja, à liberdade de definir se, como e até quando seus dados pessoais podem ser de conhecimento alheio. A LGPD, certamente, contribuiu para esse ganho de autonomia do direito aos dados pessoais.

Para resolver essas dúvidas o intérprete do Direito deve ter em mente o conteúdo adequado dos direitos da personalidade de que se trata, diferenciando-os dos demais que lhes são correlatos. Isso é especialmente importante quando se trata do direito à honra na atualidade, pois ele se aproxima bastante, dentre outros direitos, do direito à identidade.

Sobre a honra

Qualquer um de nós tem uma boa noção a respeito do que se entende por honra, mas se tivéssemos que defini-la, provavelmente, encontraríamos dificuldade, como lembra Jean Carbonnier, autor francês de renome internacional quando se trata de direito civil. Segundo ele, a honra diz respeito à dignidade da pessoa: quer a noção que cada pessoa tem da própria dignidade, quer a noção que os outros têm dela. (4) Sem dúvida, essa definição, por mais abrangente que seja, está conectada à noção kantiana de que a dignidade corresponde àquilo que não tem preço.

Essa divisão entre a ótica que os outros têm da minha dignidade e que eu tenho da minha própria dignidade, consoante exposto acima, é o que dá ensejo à classificação encontrada na doutrina sobre a honra objetiva e a subjetiva.

Tomando como base justamente essa noção de dignidade como cerne da honra, Carlos Alberto Bittar diz que a honra subjetiva é a consciência da própria dignidade, ao passo que a honra objetiva corresponde à reputação, que abrange o bom nome e a fama (5).

Cláudio Luiz Bueno de Godoy, por sua vez, diz que a honra é emanação direta da personalidade do homem, que supõe não apenas um elemento corpóreo, mas também um componente espiritual, revelado pela dignidade que se lhe reconhece. A honra, no seu entender, compreende a autoestima, o amor próprio, o sentimento da própria dignidade, de um lado (honra subjetiva), e o apreço, o respeito, a fama, a reputação, de outro lado (honra objetiva) (6).

Essa dicotomia é encontrada também no direito penal. Damásio E. de Jesus diz que a honra subjetiva é o sentimento de cada um a respeito de seus atributos físicos, intelectuais, morais e demais dotes da pessoa humana, ou seja, aquilo que cada um pensa de si mesmo em relação a tais atributos, ao passo que a honra objetiva é a reputação, aquilo que os outros pensam a respeito da pessoa no tocante a esses mesmos atributos (7).

O que mais importa notar a partir dessas definições é que a honra carrega consigo um juízo de valor que lhe é peculiar. São bons os atributos que a sociedade assim considera como tais, por isso as pessoas se orgulham de ostentá-los (honra subjetiva) ou essa mesma sociedade prestigia as pessoas que os ostentam (honra objetiva).

Como subsistema social que é, portanto, o Direito colhe essa informação da sociedade. É a sociedade que diz que ser honesto é bom e desonesto ruim por exemplo. Isso é relevante porque se não há esse juízo de valor não está se tratando de honra; se a ideia é apenas distinguir duas atribuições distintas, mas sem juízo de valor quanto a qualquer delas, de honra não se trata, como é o caso do já citado exemplo de ser gay.

Fixada a premissa de que a honra envolve sempre um juízo de valor, a questão que se coloca é se esse tipo de crítica, chamar alguém de “gordo” ou “feio” pode ser considerado como ofensivo à honra ou aceitar isso seria, por via reflexa, reforçar um preconceito estético.

A resposta, como é comum no âmbito jurídico, depende das circunstâncias.

Por exemplo, em um concurso de miss a beleza é critério de julgamento, por isso entender que alguém é bonito ou feio faz parte do processo e, a rigor, não pode ser considerado ofensivo, havendo inclusive concursos plus size. Anunciar isso, com o devido cuidado, sem exageros, configuraria exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião.

Ainda, ser chamado de gordo em um reality show de emagrecimento que tem por objetivo acompanhar o processo de perda de peso dos participantes, provavelmente, não é ofensivo à honra (8).

Claro que esses são exemplos mais simples, marcantes mesmo, a fim de explicar a ideia. É sabido que na sociedade as coisas se apresentam de modo mais complexo e a análise do intérprete se torna mais difícil, como é o caso da moça que diz à amiga que não quer namorar determinado garoto porque o acha feio. Será que haveria ofensa à honra dele apenas por conta disso ou seria uma conduta lícita, natural, representando excesso de sensibilidade do garoto exigir indenização por danos morais ao tomar ciência disso?

Para ajudar a responder essa questão é importante dar um passo atrás e verificar um processo julgado na Itália em 1979, o qual ajudou a definir o direito à identidade, diferenciando-o do direito à honra.

Nesse ano, o tribunal de Turim julgou o caso do político Marco Pannela. Conhecido por ser do Partido Radical Italiano, teve o seu nome mencionado em panfletos distribuídos na cidade como se fizesse parte do Partido Comunista Italiano. Em suma, era de uma vertente política, mas teria sido retratado como se fosse da vertente oposta. Na conclusão do caso, o tribunal afirmou que ser de uma vertente política ou outra não diz respeito à honra, ou seja, houve o reconhecimento de que ninguém é melhor ou pior do que outrem apenas porque adota determinada visão de mundo. Sendo assim, existiu ofensa a um direito da personalidade desse político, mas não a honra, e sim a identidade (9).

Esse caso é relevante porque define que ninguém é melhor ou pior por ser de direita ou esquerda, no ambiente político, já que se trata de exercício da liberdade decorrente da visão de mundo de cada um.

Em outras palavras, não há propriamente um juízo de valor social que permita justificar o pensamento de que alguém é melhor ou pior por seguir uma ou outra corrente política, o critério acaba por ser individual aos olhos de cada um. Sendo assim, não é ofensivo à honra, mas sim à identidade política, se o caso, atribuir a alguém visão de mundo de caráter político que divirja da realidade fática.

Mas por que essa conclusão não se aplica à situação de chamar alguém de “gordo” ou “feio”? Porque é uma realidade que a estética impõe à sociedade que é melhor ser “magro” e “bonito”. Ainda que isso, inevitavelmente, seja algo subjetivo, e que a sociedade esteja mudando para aceitar melhor a diversidade corporal, esses padrões de estética ainda têm um peso muito grande no julgamento das pessoas a respeito de si mesmas e das outras.

Como explicam Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos e Paola Uliana de Oliveira, os padrões de beleza são mutáveis. Na Grécia a aparência física e estética importava tanto quanto o conhecimento intelectual. Na Idade Média as formas arredondadas do corpo feminino, com circunferências e curvas avantajadas, eram prestigiadas, como é possível observar em telas de diversos artistas. Atualmente, segundo eles, a indústria da moda e a mídia ditam as regras e exigem um corpo “perfeito”, supervalorizando a imagem corporal, gerando, em contrapartida, a intensificação de doenças como a anorexia e a bulimia (9).

O Direito é ciência social prática. Ele deve se voltar para a sociedade para observá-la e entendê-la, com vistas à melhor interpretação – e, se o caso, aplicação – da lei. E se o padrão estético atual diz que ser “feio” ou “gordo” é pior do que ser “bonito” ou “magro”, natural compreender-se que há um juízo de valor ínsito neste julgamento.

Mas é importante compreender a questão da forma correta para que não se retire disso um reforço ao preconceito. Não estamos defendendo, de maneira alguma, que uma pessoa considerada por outros como “feia” ou “gorda” valha menos do que outra. Isso seria inconcebível e absolutamente contrário à dignidade da pessoa humana.

O que estamos reconhecido é que, em termos objetivos, faticamente, há uma “ditadura da estética”, a impor padrões. Praticamente todos sofrem com isso, por isso não é algo a ser estimulado. Contudo, também não há como simplesmente olvidar desse fato e deixar de admitirmos que ela existe e causa impacto psicológico em todos nós.

Desta maneira, ao utilizarmos esses termos para se referir a outrem, sem que as circunstâncias ajudem a explicar que se trata de uma crítica feita no exercício legítimo da liberdade de expressão da opinião, a pessoa pode praticar ofensa à honra alheia. Mas de que honra se trata, da objetiva ou da subjetiva? A nosso ver, das duas.

Isso porque ao proceder desse modo a pessoa que se manifesta a respeito da outra a coloca numa escala inferior da sociedade, no que diz respeito à estética; na classificação que se faz a partir desse critério de julgamento, a pessoa considerada “feia” ou “gorda” é rebaixada em relação às demais. E a pessoa que toma ciência dessa manifestação também pode passar a se sentir menosprezada, com a sua autoestima abalada.

Breve conclusão

Os direitos da personalidade estão em constante evolução, pois representam a extensão da dignidade da pessoa humana. Em tempos de modernidade líquida, consoante explicado por Zygmunt Bauman, tudo muda o tempo todo, por isso as pessoas também mudam sempre. Natural, destarte, esperar que os direitos da personalidade acompanhem essa mudança.

O direito à honra, um dos direitos da personalidade mais conhecidos e que já foi utilizado como argumento para práticas mais do que conservadoras, verdadeiramente retrógradas e abusivas, como é o caso do feminicídio e das agressões contra mulheres, é outro que acompanha essa mudança na sociedade.

Ele contempla um juízo de valor social que parte do princípio da presença de um atributo positivo ou negativo, pessoal a cada grupo ou individuo . Se a pessoa é chamada por outras de criminosa, recebe um rótulo ruim e, por conta disso, é rebaixada socialmente. Por outro lado, se ela é rotulada como honesta, recebe um rótulo positivo e, por conseguinte, sobe um degrau na escala social.

A conclusão é mais fácil quando se trata de alguns atributos, como os vistos acima, mas a situação é mais complexa quando se trata de outros. É o caso dos atributos de beleza, tais como ser “bonito”, “feio”, “magro” ou “gordo”.

O objetivo deste breve artigo foi mostrar que os termos considerados negativos podem ensejar ofensas à honra porque existe um padrão estético na sociedade e ele não pode ser simplesmente desprezado. Os rótulos sociais são importantes na maneira como as pessoas pensam, em geral, inclusive sobre o que pensam sobre si e sobre os outros.

Não havendo razão jurídica que justifique a utilização desses termos por parte de quem emite opinião, pode haver, sim, ofensa à honra, quer objetiva, quer subjetiva.


(1) BODIN DE MORAES, Maria Celina. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 125; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2001. p. 30.

(2) https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-notariais-e-registrais/417379/o-direito-a-identidade-direito-a-espera-de-alguem-que-chame-pelo-nome

(3) RE 612.687 AgR, 1ª T., rel. Min. Roberto Barroso, j. 27.10.2017, DJ 14.11.2017; ADI 7276, Pleno, rel. Min. Cármem Lúcia, j. 09.09.2024, DJ 20.09.2024.

(4) A propósito desse movimento: SCHEDELOSKI, Mariana Almirão Sousa. Comércio de dados pessoais.

(4) CARBONNIER, Jean. Droit civil. Les personnes:personnalité, incapacites, personnes Morales. 19. ed. Paris: PUF, 1994, p. 129.

(5) BITTAR, Carlos Alberto. Direitos da personalidade. 6. ed., rev. e ampl. por Eduardo C.B. Bittar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 133

(6) GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. São Paulo : Editora Atlas, 2001, p. 38-39.

(7) JESUS, Damásio E. de. Direito penal. São Paulo: Saraiva, 1988. v. 2, p. 177

(8) É o caso, por exemplo, do programa da NBC chamado The biggest loser, que estreou em 2004 e fez muito sucesso.

(9) SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidade personal cit., p. 65; ZENO-ZENCOVICH, Vincenzo. Onore, reputazione e identità personale cit., p. 28-29.

(10) SILVA, Katia Moraes da. Estética e sociedade. Katia Moraes da Silva, Michel Rezende dos Santos, Paola Uliana de Oliveira. 2. ed. – São Paulo: Érica, 2014, p. 118-120.

O post Há abalo à honra quando se chama alguém de ‘gordo’ ou ‘feio’? apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Cobrança extrajudicial de dívidas prescritas: o impacto do Tema 1.264 no STJ

A inclusão de dívidas prescritas em plataformas de negociação, como o “Serasa Limpa Nome”, tem acendido um debate acirrado no Brasil, tanto no âmbito jurídico quanto econômico. A questão central é: até que ponto é legítimo cobrar extrajudicialmente dívidas prescritas sem ferir os direitos do consumidor e o alcance da prescrição?

Em análise no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Tema Repetitivo 1264 promete lançar luz sobre essa controvérsia, estabelecendo um entendimento vinculante que afetará credores e devedores, especialmente em setores que dependem da recuperação de crédito, como o mercado de securitização.

Para entender o cerne da discussão, é crucial compreender o efeito jurídico da prescrição no direito brasileiro. Consumidores argumentam que, após o prazo prescricional de cinco anos para ação judicial, a dívida não deveria ser cobrada, nem mesmo extrajudicialmente, e muito menos constar em plataformas como o “Serasa Limpa Nome”.

Apoiam-se no Código de Defesa do Consumidor (CDC), que limita a permanência de informações negativas em cadastros de crédito a cinco anos, sugerindo que a prescrição extinguiria qualquer possibilidade de cobrança.

Os credores, por sua vez, reconhecem que a prescrição extingue a pretensão judicial, ou seja, o direito de exigir coercitivamente o cumprimento da obrigação por meio do Judiciário. No entanto, eles argumentam que a dívida em si não é extinta pela prescrição. Essa distinção é fundamentada no Código Civil brasileiro, que separa a existência da dívida da possibilidade de sua exigência judicial.

O artigo 189 do Código Civil estabelece que “violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue pela prescrição”. Isso significa que a pretensão  o poder de exigir judicialmente o cumprimento da obrigação  se extingue com a prescrição, mas não o direito material em si. Já o artigo 882 dispõe que “não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”. Ou seja, se o devedor voluntariamente paga uma dívida prescrita, não pode exigir a devolução do valor pago, o que reforça a ideia de que a obrigação subsiste.

Defendem que essa separação entre a dívida e a pretensão coercitiva permite que os credores busquem a satisfação de seus créditos por meios extrajudiciais, mesmo após o prazo prescricional, desde que não utilizem coação ou práticas abusivas.

Violação do Código do Consumidor

Outro ponto crítico é a alegação de que a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas violaria o CDC, especialmente o artigo 43, que protege o consumidor contra informações desatualizadas em cadastros de crédito. Este artigo estabelece os direitos do consumidor em relação aos cadastros de crédito, incluindo o prazo máximo de cinco anos para a manutenção de informações negativas e a exigência de que os dados sejam exatos e atualizados.

Sobre este ponto, as securitizadoras defendem que plataformas restritas de negociação, como o “Serasa Limpa Nome”, funcionam como ambientes seguros onde apenas o devedor tem acesso. Nessas plataformas, o devedor pode visualizar suas dívidas e negociar diretamente com os credores, sem exposição pública. Elas diferem dos registros públicos de inadimplência porque não tornam a dívida visível a terceiros. Argumentam que, por facilitarem a negociação e evitarem a exposição, essas ferramentas não infringem o CDC e não podem ser consideradas mecanismos de cobrança indevida.

Com relação ao ônus da prova, os devedores alegam que a cobrança de dívidas prescritas é, por si só, abusiva, argumentando que a simples tentativa de cobrança já viola seus direitos.

Do lado dos tribunais, muitos precedentes têm entendido que a tentativa de negociação extrajudicial não configura abuso, desde que não haja pressão indevida ou práticas coercitivas. Além disso, conforme o artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, que estabelece que o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito, cabe ao devedor provar eventuais abusos ou coação na cobrança.

Suspensão de processos

Com a afetação do Tema 1.264 ao regime dos repetitivos, o STJ reconheceu a pertinência do tema e determinou a suspensão de todos os processos relacionados, em todas as instâncias, até o julgamento final. A decisão que será proferida terá efeito vinculante, promovendo uniformidade jurisprudencial e evitando decisões conflitantes que poderiam gerar insegurança jurídica.

É importante ter em mente o impacto do julgamento do Tema 1.264 pelo STJ, que tem implicações diretas no mercado de crédito, especialmente para empresas de securitização e recuperadoras de crédito que adquirem carteiras de dívidas prescritas visando à negociação extrajudicial. A prescrição limita a cobrança judicial, tornando a via extrajudicial essencial para a recuperação desses créditos.

Do ponto de vista econômico, a possibilidade de cobrança extrajudicial de dívidas prescritas é uma prática legítima e necessária para a gestão de riscos e manutenção de custos de crédito acessíveis. Restringir ou proibir essa prática pode gerar efeitos adversos, como o aumento da inadimplência e a redução da liquidez em carteiras de crédito, impactando negativamente o acesso a crédito novo pela população. Poderia, ainda, resultar na elevação das taxas de juros, refletindo o maior risco percebido pelos credores.

Nos últimos anos, tanto o STJ quanto o Supremo Tribunal Federal têm adotado cada vez mais fatores econômicos nas fundamentações de suas decisões. Como destaca Guilherme Mendes Resende, assessor especial da Presidência do STF para assuntos econômicos, em artigo publicado no Valor Econômico em novembro de 2023, essa prática busca aprimorar a transparência e a eficiência das decisões judiciais ao considerar os impactos econômicos no sistema como um todo.

Viabilização de negociação de dívidas

A futura decisão do STJ no Tema 1264 vai muito além de resolver uma controvérsia jurídica específica. Ela representa uma oportunidade de equilibrar a proteção dos direitos dos consumidores com a eficiência econômica indispensável. A interpretação de que a prescrição limita apenas a exigibilidade judicial da dívida, sem extingui-la, permite que credores e devedores busquem soluções extrajudiciais respeitosas, sem recorrer a práticas abusivas ou constrangedoras.

Ao viabilizar a negociação de dívidas prescritas em plataformas de acesso restrito, evitam-se barreiras ao crédito e aos investimentos, protegendo a economia de efeitos adversos como o aumento da inadimplência e a elevação das taxas de juros. Nesse contexto, é essencial que o Judiciário considere não apenas os aspectos legais, mas também os impactos econômicos de suas decisões.

Ao incorporar essa perspectiva, o STJ tem a chance de proferir uma decisão que não apenas pacifica entendimentos jurídicos divergentes, mas também promove um ambiente econômico mais estável. Equilibrar os direitos individuais com a eficiência econômica não é apenas desejável, mas necessário para uma sociedade que busca justiça e prosperidade.

O post Cobrança extrajudicial de dívidas prescritas: o impacto do Tema 1.264 no STJ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Comerciantes condenados por ocupação de área pública podem regularizar construções de acordo com nova lei

Segundo o relator do caso, ministro Paulo Sérgio Domingues, a imutabilidade da decisão transitada em julgado pressupõe a manutenção do estado de direito existente ao tempo de sua prolação.

A Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) permitiu que comerciantes de Brasília condenados a demolir construções irregulares possam regularizar a situação de acordo com lei distrital editada posteriormente ao trânsito em julgado da ação movida pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). O colegiado concedeu o prazo de dois anos para que os comerciantes finalizem os procedimentos administrativos necessários. 

Alguns estabelecimentos comerciais e o Distrito Federal foram condenados em ação civil pública devido à ocupação irregular de áreas públicas na quadra 204 Norte de Brasília. A condenação transitou em julgado em 2011, mas o DF não cumpriu a obrigação de demolir as estruturas.

Em vez disso, o ente público requereu a suspensão da execução do julgado, tendo em vista a superveniência de lei distrital que modificou o regime jurídico anterior, vigente ao tempo da sentença. A legislação passou a autorizar a ocupação das áreas públicas contíguas aos blocos comerciais, mediante outorga onerosa de uso, e deu o prazo de dois anos para que os estabelecimentos comerciais se adequassem às novas regras.

O pedido de suspensão foi indeferido em primeiro grau e também pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), ao fundamento de que a nova lei não afetaria decisões judiciais anteriores com trânsito em julgado.

Alteração do estado de direito existente no momento da condenação

Segundo o relator do caso no STJ, ministro Paulo Sérgio Domingues, o instituto da coisa julgada – ou o atributo da intangibilidade ou da imutabilidadedo conteúdo da sentença transitada em julgado – não é um dogma absoluto e se submete a limitações de ordem subjetiva, objetiva e temporal.

Nesse último aspecto, explicou, a imutabilidade do conteúdo pressupõe a manutenção do estado de direito existente ao tempo da prolação da decisão (artigo 505 do Código de Processo Civil).

O relator lembrou que essa compreensão está detalhada nas razões de decidir do Tema 494 da repercussão geral, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que a força vinculativa das sentenças sobre relações jurídicas de trato continuado permanece enquanto se mantiverem inalterados os pressupostos fáticos e jurídicos adotados pelo juízo na decisão.

No caso, o ministro ponderou que o advento de legislação distrital que passou a regularizar as construções sub judice “promoveu a alteração substancial do plano normativo (estado de direito) existente ao tempo da sentença, implementando-se, assim, a condição resolutiva implícita que faz cessar a sua eficácia (cláusula rebus sic stantibus)”.

Para o relator, nesses casos, não é necessária a interposição de ação rescisória ou revisional, pois é possível invocar a questão como argumento de defesa em impugnação ao cumprimento da própria sentença ou em embargos do executado.

Fonte: STJ

PEC que garante direito à vida para fetos volta à pauta da Comissão de Constituição e Justiça

A proposta de emenda à Constituição que garante a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção (PEC 164/12) continuará na pauta da reunião da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados desta quarta-feira (13). 

 
Discussão e votação de propostas legislativas. Dep. Caroline de Toni (PL-SC).
Reunião da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania – Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Nesta terça-feira (12), foi aprovada a inversão da pauta da comissão, com 29 votos favoráveis contra 12 contrários e duas abstenções, para que a PEC começasse a ser analisada, mas não houve tempo hábil para a análise, devido ao início das votações no Plenário.

A Constituição já garante a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, mas não há definição do momento em que esse direito começa a vigorar. 

Apresentada pelos ex-deputados Eduardo Cunha (RJ) e João Campos (GO) em 2012, a PEC visa determinar que esse direito valerá a partir da concepção do feto, e não do nascimento do bebê. A matéria estava parada na Comissão de Constituição e Justiça desde que foi apresentada.

Na prática, a proposta proíbe o aborto no Brasil nas situações hoje autorizadas em lei. Atualmente, o aborto é permitido em três casos no País: risco de morte para a gestante, gravidez resultante de estupro e anencefalia fetal (má-formação do cérebro).

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Discussão e votação de propostas legislativas. Dep. Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP)
Paulo Bilynskyj: “Proposta não trata só de direitos das mulheres”

Discussão
O parecer da relatora, deputada Chris Tonietto (PL-RJ), foi pela admissibilidade da proposta. “Não se vislumbram quaisquer incompatibilidades entre a alteração que se pretende realizar e os demais princípios e regras fundamentais que alicerçam a Constituição vigente e nosso ordenamento jurídico”, disse. “Portanto, entendemos não haver quaisquer óbices constitucionais para a regular tramitação da referida proposição pelas Casas Legislativas”, acrescentou.

O deputado Bacelar (PV-BA), vice-líder do governo, orientou a base à obstrução da proposta. A deputada Erika Kokay (PT-DF) afirmou que se trata de uma “PEC em defesa do estuprador”, após a tentativa de votação, no Plenário da Câmara, do que chamou de “PL do estupro”.

Em junho, o Plenário aprovou a urgência para o Projeto de Lei 1904/24, que equipara a pena para a interrupção da gestação acima de 22 semanas à de homicídio – 20 anos de prisão –, mesmo para mulheres vítimas de estupro. Mas a votação do projeto não avançou devido à forte reação de setores da sociedade. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL) anunciou a criação de uma comissão com representantes de todos os partidos para debater o texto, o que ainda não ocorreu.

Bruno Spada/Câmara dos Deputados
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
Érika Kokay: “PEC em defesa do estuprador”

A deputada Sâmia Bomfim (Psol-SP) avalia que, caso a PEC 164/12 seja aprovada, outros direitos sexuais e reprodutivos serão atingidos. “A proposta interrompe pesquisas com células troncos, impede a fertilização in vitro, o congelamento de óvulos, o acesso e uso da pílula do dia seguinte, crianças vítimas de estupro serão mães, mulheres também, gestações anencéfalas precisarão ser levadas adiante, gestações com risco de morte para gestante também”, afirmou. “Isso é uma atrocidade daqueles que dizem defender a vida, mas detestam a vida das mulheres”, acrescentou.

O deputado Delegado Paulo Bilynskyj (PL-SP), por sua vez, alegou que não se trata só dos direitos das mulheres. “Um bebê tem 50% do material genético da mãe, os outros 50% se trata de outro ser humano, outro material genético. Logo, o bebê não é parte do corpo da mãe. Se o deputado não tem capacidade de reconhecer dois seres humanos diferentes, ele não pode nem estar aqui representando nada, porque ele não tem formação suficiente”, disse. 

Outra polêmica
Também foi incluída na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania desta quarta-feira a proposta que autoriza os estados e o Distrito Federal a legislarem sobre questões específicas de Direito Penal, incluindo o aumento de penas dos crimes previstos no Código Penal. A medida está contida no Projeto de Lei Complementar (215/19), do deputado Lucas Redecker (PSDB-RS)

Nesta terça-feira, o projeto, que também provoca muita polêmica, começou a ser discutido, mas o debate foi interrompido pelas votações em Plenário.

Fonte: Câmara dos Deputados

Provedor não precisa de ordem judicial para remover conteúdo contrário aos seus termos de uso

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que um provedor de aplicação de internet, como o YouTube, pode, por iniciativa própria, remover, suspender ou tornar indisponíveis conteúdos de usuários que violem seus termos de uso.

“É legítimo que um provedor de aplicação de internet, mesmo sem ordem judicial, retire de sua plataforma determinado conteúdo (texto, mensagem, vídeo, desenho) quando este violar a lei ou seus termos de uso, exercendo uma espécie de autorregulação regulada: autorregulação ao observar suas próprias diretrizes de uso, regulada pelo Poder Judiciário nos casos de excessos e ilegalidades porventura praticados”, disse o relator do caso no STJ, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva.

Com esse entendimento, o colegiado negou provimento ao recurso de um médico para que fossem restabelecidos vídeos da sua conta no YouTube, removidos pela plataforma em 2021. Na época, ele postou conteúdo orientando sobre tratamentos para a Covid-19 não referendados pela Organização Mundial da Saúde, inclusive com a utilização de hidroxicloroquina.

O YouTube avaliou que a publicação era incompatível com a sua “Política sobre desinformação médica da Covid-19”, divulgada aos usuários da plataforma.

O médico reclamou que estaria sendo vítima de censura, pois o Marco Civil da Internet garantiria o direito do usuário à inviolabilidade do fluxo de comunicações. Ele ajuizou ação para determinar o restabelecimento do conteúdo removido, mas tanto o juízo de primeiro grau quanto o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negaram o pedido.

Interpretação do recorrente contraria esforço social de combate às fake news

O ministro Villas Bôas Cueva explicou que o artigo 19 do Marco Civil da Internet estabelece que o provedor de aplicações só será responsabilizado civilmente por publicações de terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar medidas para tornar o conteúdo ofensivo indisponível.

Para o relator, isso não significa que o provedor só poderá tornar o conteúdo indisponível se houver ordem judicial para tanto, como argumentou o médico.

Além de dar à lei um sentido não previsto, o ministro comentou que a interpretação restritiva do artigo 19, tal como sustentada pelo recorrente, contraria o esforço feito pela comunidade nacional e internacional, pelo poder público, pela sociedade civil e pelas empresas contra a desinformação (fake news) e práticas ilícitas na internet.

Exercício da liberdade de expressão exige zelo e responsabilidade

Em sua decisão, o relator também rechaçou a alegação do médico de que estaria sofrendo shadowbanning, ou banimento às escuras. Segundo explicou, essa prática – vedada em documentos regulatórios – consiste na moderação de conteúdo por meio de rebaixamentos em sistemas de recomendação ou outras formas de banimento de difícil detecção pelo usuário.

No entanto, no caso em análise, o ministro entendeu que essa prática não foi adotada pela empresa, que notificou o usuário do conteúdo irregular e o retirou do ar.

“A liberdade de expressão, estabelecida no caput do artigo 19 do Marco Civil da Internet, é um princípio democrático de alta hierarquia, que se impõe sobre todas as relações, tanto públicas quanto entre particulares, e recebe tratamento especial no ordenamento jurídico. É ela que possibilita o exercício do livre pensamento e da transmissão de informações, opiniões e críticas e autoriza o acesso a informações de interesse coletivo. Seu titular, do mesmo modo, tem o dever de exercê-la com grande zelo e responsabilidade”, concluiu.

Fonte: STJ

Importância da priorização das práticas restaurativas promovida pelo CNJ

Ainda no Réveillon de 1988, sob intermitente chuva fina e mar agitado, a proa do Bateau Mouche IV foi avistada adernando nas proximidades da Ilha de Cotunduba, próxima ao morro do Leme. Cinquenta e cinco vidas perdidas e o sofrimento de sobreviventes e familiares na tragédia da Baía de Guanabara povoam nosso imaginário até hoje. Se foi a irregularidade por excesso de passageiros, ou se uma reforma no convés superior (instalação de piso de cimento e a colocação de duas caixas-d’água, que pode haver comprometido a estabilidade do barco) [1], o que importa mesmo é o trauma que perpassa gerações e a sensação perene de “justiça não distribuída” [2].

Movidos pela comoção popular, vários atores e instituições se mobilizaram para defesa das famílias das vítimas e intensivo acompanhamento dos processos no Judiciário. O tempo “lento” dos meios convencionais de justiça acaba se convertendo, ele próprio, em mais um fator indireto de vitimização (“vitimização secundária”). Foragidos para a Europa desde 1994, nunca mais se teve notícia dos sócios do Bateau Mouche. As carências que a perda sem reparação traz na vida dos sobreviventes e familiares se prolonga os efeitos traumáticos no tempo, causando múltiplos níveis de vitimização (PTSD — post traumatic stress disorders).

Lamentavelmente, acumulam-se ao longo dos anos casos sem solução. Porém, as evidências científicas apontam que, na maioria das vezes, vítimas ou familiares (vitimização terciária) não querem vingança ou punição. O que lhes move é apenas o reconhecimento de que houve um crime, de que seus direitos foram violados, de que merecem atenção e cuidado.

A ausência de reconhecimento da vítima tem provocado questionamentos de fundo ao conhecimento convencional sobre sentidos e finalidades da pena. Não apenas porque as teorias preventivas não resistem à verificação empírica sobre o real efeito dissuasório, mas porque elas têm sentido prático quase nenhum.

Bastaria com o exemplo primeiranista da Lei de Talião: “olho por olho, dente por dente” seria a retribuição na sua expressão mais básica, ao mesmo em que simplesmente se preenche todo o sentido da prevenção ao reafirmar que vigora uma lei taliônica universalmente válida. Pior ainda é que se fia pela dimensão alienante da juridificação (Verrechtlichung) ou do procedimento voltado à “difusão da insatisfação gerada pelo conflito” [3], reduzida à mera descrição da “verdade” dos fatos  com todas as limitações dos meios de prova , sendo incapaz de capturar a dimensão narrativa dos conflitos que introjeta os dramas das vítimas na solução do conflito. Na fina leitura de Lawrence Sherman, as narrativas preenchem a composição do conflito com a dimensão emocional das vítimas, promovendo o “giro emocional” (emotional turn[4] no endereçamento da justiça.

Práticas restaurativas na solução de conflitos

É em função deste contexto que o Ato Normativo do CNJ recomendou a priorização das práticas restaurativas na solução de conflitos [5], buscando reposicionar as alternativas de solução do conflito por meio de medidas de composição juntos às vítimas. Com este ato, o CNJ renova as expectativas em torno da autocomposição dialogada e, em grande medida, atualiza a normativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)  as Resoluções nº 125/2010 e 225/2016 [6].

Além de reparação condizente com a natureza dos fatos e alinhada à orientação jurisprudencial, a solução por meio da autocomposição é menos aflitiva e mais ágil do que o tempo lento do processo tradicional, permitindo oferecer acolhimento multiprofissional (desde a possibilidade de melhor tratamento clínico possível até o indispensável cuidado psicológico) e uma combinação inteligente com a postura colaborativa por parte dos ofensores [7].

É bem verdade que as evidências científicas sobre a efetividade das práticas restaurativas na redução da criminalidade são adstritas a comportamentos não-violentos. No entanto, é igualmente verdadeiro que viabiliza soluções mais dinâmicas  e em tempo hábil  diante de processos de múltipla vitimização, especialmente diante da escassez de recursos públicos para levar adiante as investigações mais complexas, exigindo meios de prova pouco usuais, perícias sofisticadas ou mesmo teste de novas tecnologias.

Segundo a Coordenadora do Grupo USP Restaura, Cristina Rego de Oliveira, vale mesmo é como poderoso instrumento de desformalização, reconhecimento, inclusão e participação mais efetiva dos “esquecidos” do Sistema de Justiça Criminal [8].

O desafio para as práticas restaurativas é ainda maior quando se pensa na responsabilidade empresarial. Apesar da profusão de teses sobre os modelos de imputação às empresas, não há quase nenhuma construção positiva em torno dos modelos de sanção [9]. No campo empresarial, a prática restaurativa deveria atender a alguns passos essenciais:

1) reconhecimento da responsabilidade. É a principal manifestação de humildade por parte do ofensor de que a colaboração tem o real propósito[10] de restauração. Consequência disso, como mecanismo de imediata gestão de crise, os envolvidos devem ser afastados da posição que os levou à prática do ato e providenciadas todas as mudanças necessárias para que não mais se repita o comportamento indesejável, em quaisquer hipóteses ou circunstâncias.

2) delimitação do dano e mapeamento do conflito [11]: apreendida a responsabilidade, adquire-se melhor compreensão sobre processos de produção de dano e vitimização. Deve-se delimitar o dano em todas as suas dimensões (vitimização tangível e também intangível, de mais difícil mensuração). Com base nesta medida objetiva do dano, aos stakeholders afetados garante-se a oportunidade de discutir o impacto do dano em suas vidas e o que deve ser realizado para superá-lo [12].

3) arrependimento sincero e pedido de desculpas: apoiada nesta medida objetiva do dano, discutem-se as medidas de reparação e inicia-se o processo restaurativo com as desculpas do ofensor, a partir da oportunidade que é franqueada às vítimas para que possam exercer o seu direito a perdoar, reforçando a centralidade da vítima em toda a prática restaurativa.

Com a promoção das práticas restaurativas pelo CNJ, conferindo-lhes às vítimas voz e lugar na solução dos conflitos,  mesmo com toda a cautela para não reduzir o sistema de autocomposição a uma mera negociação de acordos e escusa de responsabilidade aos ofensores [13], é bem possível avançar muito na experimentação de soluções menos traumáticas às vítimas e a seus familiares.

Estamos diante de estratégia promissora para a evolução dos modelos de sanção, permitindo que o sistema de justiça possa de fato priorizar seus recursos em relação a comportamentos efetivamente mais danosos e para os quais a solução dialogada é inviável.


[1] SANT´ANNA, Ivan. “Bateau Mouche, uma tragédia brasileira”.

[2] TYLER, Tom. Procedural Justice, Legitimacy, and the Effective Rule of Law. Crime and Justice, 30/2003.

[3] FERRAZ JR., Tercio. Revisão e apresentação do livro Legitimação do Procedimento. In: LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Editora UnB, 1980.

[4] SHERMAN, Lawrence. Reasons for emotions: reinventing justice with theories, innovation and research. Criminology, 41/2006.

[5] O Ato Normativo 0006689-50.2024.2.00.0000, aprovado pelo Plenário do CNJ durante a 13.ª Sessão Ordinária (22.10.2024).

[6] O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – Resoluções n. 118/2014, 40/2016 e 243/2021 – atua em sentido semelhante: as quais orientam a autocomposição das partes, a reparação dos danos e a reconciliação com as vítimas.

[7] SAAD-DINIZ, Eduardo. Ética negocial e compliance. RT: 2019; SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. Tirant: 2019.

[8] OLIVEIRA, Cristina Rego. Justiça Restaurativa Aplicada. Blimunda, 2021. Mais detalhes, OLIVEIRA, Cristina Rego; SAAD-DINIZ, Eduardo (org) Justiça Restaurativa em ação: diálogos do Projeto USP-Restaura. LiberArs, 2022.

[9] LAUFER, William. “The missing account of progressive corporate criminal law”. New York University Journal of Law & Business, 2017.

[10] BRAITHWAITE, John. “Restorative Justice: theories and worries”. In: Visiting Experts’ Papers, 123rd International Senior Seminar, Resource Material Series No. 63. Tokyo: 2005.

[11] NIETO MARTIN, Adán; CALVO, Raul (org) Justicia restaurativa empresarial: un modelo para armar. Madrid: Reus, 2023.

[12] STRANG, Heather, “Is restorative justice imposing its agenda on victims?”. In: ZEHR, Howard et al., (org.), Critical issues in Restorative Justice. New York: Monsey, 2004, ps. 95-106.

[13] LAUFER, William. “Corporate crime and making amends”. American Criminal Law Review, 2007.

O post Importância da priorização das práticas restaurativas promovida pelo CNJ apareceu primeiro em Consultor Jurídico.

Informativo aborda inadmissibilidade de recurso especial contra acórdão que nega mandado de segurança e julga IRDR

A Secretaria de Biblioteca e Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) divulgou a edição 832 do Informativo de Jurisprudência. A equipe de publicação destacou dois julgamentos nesta edição. 

No primeiro processo destacado, a Primeira Seção, por maioria, decidiu que é inadmissível a interposição de recurso especial contra decisão que, embora fixe tese em incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR), denega mandado de segurança no tribunal de origem. A tese foi fixada no AgInt no REsp 2.056.198, de relatoria do ministro Gurgel de Faria. 

Em outro julgado citado na edição, a Sexta Turma, por unanimidade, definiu que a fixação da competência da Justiça Federal para o julgamento do crime de racismo mediante divulgação de conteúdo em rede social exige a demonstração da natureza aberta do perfil que realizou a postagem, a fim de possibilitar a verificação da potencialidade de atingimento de pessoas para além do território nacional. O AgRg no HC 717.984 teve como relator o desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo.

Fonte: STJ

Turma Nacional de Uniformização fixa tese sobre benefício de aposentadoria por idade

O pedido de uniformização foi julgado pelo Colegiado da TNU na sessão de 16 de outubro

A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Federais (TNU) decidiu, por unanimidade, na sessão de julgamento de 16 de outubro, dar provimento ao pedido de uniformização, nos termos do voto do relator, juiz federal Giovani Bigolin, julgando a questão como representativo de controvérsia e fixando a seguinte tese: 

“1. Tempo de contribuição e carência são institutos distintos. 2. Carência condiz com contribuições tempestivas. 3. O art. 18 da EC 103/2019 não dispensa a carência para a concessão de aposentadoria” – Tema 358. 

A TNU responde a um pedido de uniformização interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra acórdão da 1ª Turma Recursal da Seção Judiciária de Pernambuco (PE), em ação de concessão do benefício de aposentadoria por idade. 

No caso em análise, a Turma Recursal de origem decidiu em favor da parte autora, condenando o INSS a conceder aposentadoria por idade com base no art. 18 da EC n. 103/2019. A decisão considerou que seria possível computar as contribuições pagas em atraso após a perda da qualidade de segurado — ou mesmo quando a primeira contribuição não foi realizada dentro do prazo — sem a aplicação da ressalva prevista no art. 27, II, da Lei n. 8.213/1991

O colegiado recursal da TNU, no entanto, acolheu a tese do INSS (também ratificada pelo IBDP), estabelecendo que para fins de concessão de aposentadoria por idade urbana com DER após a EC 103/2019, permanece a necessidade de cumprimento do requisito da carência, particularmente para quem precisa usar a regra de transição do art. 18 da EC 103, de forma que as contribuições recolhidas em atraso pelo contribuinte individual (relativas ao período entre a perda da qualidade de segurado e a sua requisição ) não podem ser computadas para fins de carência.  

Fonte: CJF

Acordo prévio à citação não enseja extinção da execução por falta de interesse do credor

A celebração de acordo entre credor e devedor, antes de realizada a citação e prevendo a suspensão da execução até o pagamento final do débito, não é fundamento para a extinção da ação por falta de interesse de agir.

Embora o tema pareça simples, ele envolve consequências jurídicas e práticas que podem afetar o direito de o credor receber o crédito devido.

Esse assunto foi recentemente julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em acórdão da 3ª Turma, no Recurso Especial nº 2.165.124/DF.

No caso, uma instituição financeira havia ajuizado ação de execução e, antes da citação do devedor, as partes firmaram acordo para pagamento parcelado, requerendo a homologação judicial e a suspensão da execução até o pagamento final. No entanto, o juiz de primeira instância extinguiu o processo sem resolução de mérito, entendendo que teria havido a perda do interesse de agir da instituição financeira (artigo 485, VI, CPC). A sentença de extinção, sem homologação do acordo, foi mantida pelo TJ-DF, que sustentou que a simples comunicação do acordo sem a citação do devedor indicava falta de interesse de agir e de utilidade do processo, aplicando a consequência de indeferimento da petição inicial [1].

O STJ, contudo, modificou essa conclusão. De forma acertada, a relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que o Código de Processo Civil prevê duas modalidades de suspensão do processo: para ações de conhecimento, a suspensão é limitada a seis meses (artigo 313, II c/c §4º, CPC [2]); para execuções, é autorizada a suspensão durante o prazo concedido pelo exequente para o pagamento voluntário da obrigação (artigo 922, caput, CPC [3]).

Argumentos para suspensão do processo

Assim, tratando-se de uma ação de execução, seria possível a suspensão do processo até o pagamento, mesmo que o acordo tenha sido firmado antes da citação do devedor.

Existem dois argumentos relevantes para a manutenção da suspensão do processo até o pagamento final. Primeiro, o impacto psicológico e prático sobre o devedor, já que, se o acordo for descumprido, o processo pode ser retomado imediatamente, sem necessidade de nova distribuição ou citação. Ou seja, o inadimplemento comunicado ao Juízo levará à pronta retomada do processo e à prática de atos de constrição de patrimônio, de forma rápida e eficiente.

Segundo, a manutenção do processo preserva o crédito original executado e, especialmente, os consectários da mora do devedor, caso seja necessário retomar o andamento processual.

Mostra-se integralmente correta a decisão do Superior Tribunal de Justiça ao se alinhar com princípios basilares cristalizados no Código de Processo Civil de 2015: de um lado, privilegia a duração razoável do processo (artigos 4º e 6º [4]), pois torna muito mais célere a eventual retomada do processo em caso de inadimplemento, além de suprir a repetição de atos já praticados (como citação, intimação, prazo de defesa); de outro lado, privilegia a primazia do julgamento de mérito (artigos 4º [5], 932, parágrafo único [6], 938, §1º [7], dentre outros, além da doutrina [8]), uma vez que homologa acordo em julgamento de mérito (artigo 487, III, alínea b), em detrimento da solução extintiva sem resolução de mérito (artigo 485, VIII).

Autonomia ao credor

Mas o principal efeito é o “psicológico”, pois dá mais autonomia e ingerência ao credor sobre o devedor, o que pode reforçar a efetividade daquele acordo.

Se o processo de execução é o grande gargalo do Poder Judiciário, e a recuperação de crédito é extremamente tortuosa e ineficiente, deve ser comemorada toda posição de tribunais superiores no sentido de privilegiar a celeridade, a efetividade e o direito de o credor reaver os valores buscados em Juízo.

Assim, seja porque juridicamente coerente com a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil, seja porque efetivamente aumenta a eficácia da recuperação do crédito, a decisão do Superior Tribunal de Justiça é um marco interessante na prática forense do processo executivo.


[1] Processo nº 0731183-70.2023.8.07.0001

[2] Art. 313. Suspende-se o processo:

II – pela convenção das partes;

§ 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II.

[3] Art. 922. Convindo as partes, o juiz declarará suspensa a execução durante o prazo concedido pelo exequente para que o executado cumpra voluntariamente a obrigação.

[4]   Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.

[5] Art. 4º As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa.

[6]  Art. 932. Incumbe ao relator:

Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.

[7] Art. 938. A questão preliminar suscitada no julgamento será decidida antes do mérito, deste não se conhecendo caso seja incompatível com a decisão.

§ 1º Constatada a ocorrência de vício sanável, inclusive aquele que possa ser conhecido de ofício, o relator determinará a realização ou a renovação do ato processual, no próprio tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, intimadas as partes.

[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Princípio da Primazia da Resolução do Mérito e o Novo Código de Processo Civil. Revista da EMERJ. Rio de Janeiro. v. 18, n. 70, p. 42-50, set-out. 2015

O post Acordo prévio à citação não enseja extinção da execução por falta de interesse do credor apareceu primeiro em Consultor Jurídico.