A jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal entende que as regras básicas do processo legislativo federal constituem normas de observância obrigatória para estados, Distrito Federal e municípios. Deriva-se disso o que a doutrina denomina de princípio da simetria.
Não deixa de ser peculiar que a Constituição Federal trate apenas do processo legislativo da União, referindo-se apenas ao Congresso Nacional, ao presidente da República e a outras autoridades federais, sem que haja sequer um artigo mandando aplicar essas mesmas regras aos demais níveis federativos. Talvez porque se pressuponha essa aplicação simétrica/imediata.
A questão, contudo, é um tanto quanto controvertida, pois, em matéria de simetria, menos é mais. É dizer: quanto menos exigente se é com a adoção desse princípio, mais liberdade e autonomia se atribui aos entes subnacionais, o que é, em certa medida, a própria razão de ser de se adotar a forma federativa de Estado.
Precisamos dar, contudo, alguns passos atrás, e rememorar a própria fonte mais imediata da extração desse princípio, bem como suas limitações.
De acordo com o artigo 25, caput, da Constituição, os estados-membros organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios estabelecidos na Constituição. Dessa norma o STF induz o chamado princípio da simetria, segundo o qual os estados, o DF e os municípios devem adotar, nas linhas gerais, os mesmos princípios básicos aplicáveis na esfera da União.
No âmbito do processo legislativo, é firme a posição do Supremo Tribunal Federal no sentido de que “as regras básicas do processo legislativo federal –— incluídas as de reserva de iniciativa —, são de absorção compulsória pelos Estados, na medida em que substantivam prisma relevante do princípio sensível da separação e independência dos poderes” (STF, Pleno, ADI 430/DF, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 1/7/1994).
Pode-se afirmar, assim, que as normas relativas ao processo legislativo federal são verdadeiros princípios extensíveis — isto é, normas delineadas para a União, mas que se aplicam também aos estados, ao DF e aos municípios. Segundo a interpretação majoritariamente adotada, essa aplicação só cede espaço para a autonomia estadual ou municipal quando assim expressamente previsto na CF (por exemplo: artigo 27, § 4º que atribui à lei — estadual — a definição das regras para a iniciativa popular em âmbito estadual). Também não incide a simetria quando a regra federal for juridicamente inaplicável às demais esferas, como é o caso da dinâmica do bicameralismo (artigo 65), obviamente impossível de se aplicar em entidades federativas com uma Casa legislativa só.
O problema, porém, é que se registra recente tendência do STF à valorização (ou endurecimento?) desse princípio, em detrimento (cada vez mais) da autonomia dos estados-membros. Assim, mesmo em “zonas cinzentas”, nas quais se poderia admitir uma certa criatividade estadual, a corte tem reiteradamente adotado uma obrigação bastante rígida de simetria: assim, por exemplo, em relação ao quórum de PEC na esfera estadual (que se passou a exigir ser igual ao de PEC na esfera federal, 3/5) e às matérias de lei complementar (que o tribunal passou a entender que não podem ser ampliadas na esfera estadual).
Vejamos com mais cuidados esses dois precedentes. Até 2022, não havia obrigatoriedade de que os estados e o DF seguissem, na reforma de suas Constituições e Lei Orgânica, o mesmo quórum de 3/5 previsto para a reforma da esfera federal. Considerava-se tratar de tema sujeito à autonomia estadual. Porém, já havia precedente do STF considerando inconstitucional norma estadual que exigia o quórum de 4/5 para a reforma, mas pelo exagero desse patamar de votos.
Todavia, no julgamento da ADI nº 6.453/RO, o Pleno do STF adotou novo entendimento, para considerar inconstitucional norma de Constituição estadual que previa quórum diferente de 3/5 (no caso, 2/3) para a aprovação de PEC naquela esfera federativa. Com a devida vênia, consideramos incorreto tal entendimento. Não há na CF norma expressa que determine quórum de aprovação de PEC na esfera estadual — e, em se tratando de um poder constituinte (embora decorrente), não se devem aplicar com rigidez mandamentos de simetria. Trata-se, contudo, de tendência claramente verificada na jurisprudência mais recente do STF, de aplicar de forma cada vez mais estrita a simetria ao processo legislativo estadual.
Ao julgar a ADI nº 5.003/SC, o Plenário do STF decidiu que a Constituição estadual não pode estabelecer reservas de lei complementar, além daquelas já estabelecida na Constituição federal. Considerou-se que a lei complementar é uma exceção ao princípio democrático, por exigir a formação de uma maioria qualificada, por um procedimento legislativo especial — logo, só pode ser exigida por determinação do Constituinte Federal 73.
Consideramos inadequado esse entendimento. Retirar do poder constituinte estadual o poder de selecionar quais temas merecem uma maior estabilidade normativa é ignorar as peculiaridades de cada um dos 26 estados e do DF: uma matéria que, em nível federal, possa ser menos relevante, pode revestir-se na esfera estadual de importância tal que justifique a exigência de lei complementar para sobre ela dispor. Mais ainda: esse entendimento do STF parece ter criado um paradoxo: se a Constituição estadual veicular o tema de lei ordinária em seu próprio corpo (o que, em regra, é possível), essa disposição somente poderá ser modificada por emenda à Constituição estadual; todavia, se o mesmo texto da mesma Constituição estadual exigir lei complementar para dispor sobre o assunto… será inconstitucional?
Segundo nosso entendimento, não pode a Constituição estadual dispensar a lei complementar nos casos em que a Constituição federal exige tal instrumento; no silêncio da CF, caberia à Constituição estadual livremente selecionar o instrumento legislativo a ser utilizado (lei ordinária ou lei complementar). Não foi essa tese, como se vê, a adotada pelo STF, o qual vem privilegiando cada vez menos a autonomia estadual…
Qual não foi a surpresa de todos, ao perceber que o STF não aplicou a simetria às regras sobre iniciativa de projeto de lei sobre defensoria pública estadual… Mas isso já é assunto para uma parte dois!
Donbass é o nome atribuído à região correspondente à bacia hidrográfica do rio Donets, que hoje abrange as unidades administrativas de Donetsk e Lugansk, situadas entre Ucrânia e Rússia. Devido à sua conformação histórica, trata-se um território que – similarmente à península da Crimeia – é partilhado por uns indivíduos que se identificam como ucranianos e outros que, em função de língua e etnicidade, sentem-se como pertencentes à Federação Russa. Justamente nesse plano é que surge a presente problemática.
No início do século 21, transcorreram na Ucrânia o Euromaidan e a Revolução Ucraniana de 2014, movimentos que buscaram maior integração com a Europa e demandaram o fim da corrupção governamental. Culminaram com a deposição do presidente eleito, Viktor Yanukovych, que não cedeu às demandas. Moscou aproveitou-se do impasse, garantindo exílio ao ex-presidente e assumindo o controle militar da Crimeia, que foi em seguida anexada à Rússia. Com a instabilidade, se radicalizaram os movimentos emancipatórios já existentes no país, recusando-se a reconhecer o novo governo ucraniano [1]. Os separatistas pró-russos de Donetsk e Lugansk tomaram parcela do território reivindicado, convocando eleições legislativas para as autodeclaradas “repúblicas populares autônomas”, ambas apoiadas pela Rússia [2]. A Ucrânia, contudo, opôs-se aos movimentos, declarando que as regiões estariam em verdade ocupadas pelos russos e deflagrando repressão armada contra os insurgentes [3]. Assim, o impasse se prolongou, com o governo de Kiev se negando a estabelecer diálogo com as províncias rebeldes, o que resultou em mais de 14 mil mortos no passar de oito anos.
Hoje, todavia, o reavivamento da guerra entre Ucrânia e Rússia trouxe novos contornos aos enclaves separatistas do Donbass. O interregno que antecedeu a invasão russa em 2022 foi marcado por uma escalada constante da tensão, oriunda da postura ucraniana inclinada em direção a se tornar membro da Otan. Tal fervor atingiu seu ápice com o reconhecimento oficial da independência de Donetsk e Lugansk por Putin (21 de fevereiro de 2022), seguido da invasão desses territórios sob o pretexto de proteger de um genocídio os russos étnicos do Donbass, três dias depois (24 de fevereiro de 2022). À época, diversos estados e organizações internacionais – como os EUA, a Inglaterra, a França, a Alemanha, a Comissão Europeia e a própria Otan – se posicionaram contra a ação, chegando a afirmar o primeiro-ministro britânico que “isso [seria] claramente uma violação do direito internacional. [Seria] uma violação, uma violação flagrante da soberania e integridade da Ucrânia” [4]. Em contrapartida, nos meses subsequentes, Venezuela [5], Síria [6] e Coreia do Norte [7] reconheceram a independência da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, declarando apoio ao Kremlin. Por derradeiro, em setembro de 2022, a Rússia assinou, sustentando-se em referendos populares, a anexação de quatro territórios separatistas ucranianos: Donetsk, Luhansk, Kherson e Zaporizhzhia[8]. Em resposta, a assembleia-geral da (ONU) aprovou uma resolução condenando os “referendos ilegais” e a “tentativa de anexação“, tendo se posicionado a favor da medida 143 países, cinco contra (Rússia, Síria, Nicarágua, Coreia do Norte e Belarus), e 35 se abstido [9]. Destarte, queda ainda em aberto a questão separatista do Donbass, cujas especificidades serão destrinchadas a seguir.
Questão jurídica A questão aqui posta é: com base nos conceitos de Direito Internacional Público, podem Donetsk e Lugansk serem reconhecidos como Estados independentes?
Cumpre, a priori, expor brevemente os elementos considerados indispensáveis à existência de um Estado independente, para que sejam aprofundados adiante. Nesse sentido, o professor Hedley Bull, da Universidade de Oxford, em sua obra A Sociedade Anárquica, conceitua “Estado” como uma comunidade política independente que possui governo efetivo e afirma a sua soberania sobre um território e uma população[10], definição que vai de encontro ao definido pelo artigo 1º da Convenção de Montevidéu sobre os Direitos e Deveres dos Estados [11]. Portanto, são imperativos quatro critérios para que se possa identificar um Estado: (1) população permanente, (2) território determinado, (3) governo efetivo e (4) soberania.
1. População permanente Nesse ponto, exige-se do Estado um “contingente humano” que coexista em determinado espaço e que tenha com ele um vínculo de pertencimento [12]. Esse vínculo corresponde à nacionalidade, aqui adotada em sua concepção sociológica, significando o sentimento de fazer parte de determinado grupo, por partilhar com ele atributos comuns como língua ou costumes [13]. Neste particular, não cabe considerar a nacionalidade em sua acepção jurídico-política. Vale dizer, como sendo o status outorgado por um Estado a um indivíduo. Fazê-lo seria tautológico, posto que o Estado precede à nacionalidade (no sentido de vínculo jurídico), e não o contrário [14]. Assim, basta que haja uma população que se reconheça como integrante da comunidade política em questão, não sendo necessário um Estado que lhe tenha conferido nacionalidade na forma da lei.
Analisando o caso concreto, seria possível que o critério populacional fosse preenchido pelos habitantes de Donetsk e Lugansk. Além de evidentemente configurarem um “contingente humano”, uma parcela populacional expressiva da região do Donbass sente-se como pertencente a uma nação própria – a russa – tendo língua e tradições particulares em função de suas raízes étnico-culturais historicamente construídas. Além disso, em 2019, o parlamento ucraniano aprovou algumas medidas de desincentivo à utilização da língua russa [15], o que resultou em um enorme descontentamento da população de etnia russa que habita nessa região, visto que a língua materna desses povos vem sendo subutilizada. Dessa maneira, fato é que existe um vínculo de nacionalidade à parte, sendo então o problema que esse laço é direcionado a uma nação que já possui um Estado próprio. Não se satisfaz, nessa perspectiva, o critério populacional, dado que o vínculo de pertencimento não é com uma nação específica de Donetsk ou Lugansk, mas sim com a nação russa.
2. Território determinado No que tange a esse elemento, é preciso que haja um certo espaço físico sobre o qual o Estado exerce sua jurisdição e onde seus poderes são efetivamente aplicados. Não se exige a definição absoluta de suas fronteiras, o que naturalmente não é possível em locais onde haja litígios fronteiriços, sendo suficiente o controle efetivo de parcela substancial do espaço reivindicado, independentemente da incerteza quanto aos seus limites [16]. Ademais, o domínio do território não pode ter origem na violação do direito à integridade territorial de um Estado por outro já existente [17].
Nessa ótica, observa-se que há de fato um espaço físico sobre o qual as autoridades de Lugansk e Donetsk exercem suas respectivas autoridades. A questão é controversa, porém, no que diz respeito ao princípio da higidez territorial. É preciso indicar, para dirimir essa complicação, que no direito internacional a violação da integridade territorial é aplicável apenas às relações interestaduais. Nessa linha, não se aplica a violações oriundas de dentro do próprio território do Estado precedente. Desse modo, caso se considere que a região foi conquistada precipuamente devido à atuação dos indivíduos de dentro do território, as leis internacionais não vedariam o ato, revestindo o que demanda o requisito em tela. Entretanto, caso se julgue que o território foi adquirido em virtude da intervenção russa (uma força externa), haveria violação da integridade territorial ucraniana, não podendo daí surgir um novo Estado.
3. Governo efetivo Tratando-se do requisito de governo efetivo, o delineamento se torna um pouco mais turvo devido à dificuldade de se classificar na prática o que configura ou não tal efetividade. O relevante aqui é que a autoridade instituída seja capaz de atingir expressivamente os efeitos buscados em sua atuação. Isto é, consiga cumprir com suas funções de governo de maneira satisfatória. Nesse espectro, defende-se que a exigência é condicionada às particularidades do caso concreto. Na hipótese de criação de um novo Estado, sua aplicação é mais rígida (exige-se maior efetividade), enquanto em cenários de continuidade de um Estado estabelecido, a observância seria flexibilizada (bastando um patamar mínimo de efetividade) [18]. Desse modo, tratando-se da primeira situação, é preciso verificar o exercício real da autoridade e a legitimidade de tal exercício [19].
Aferir essas características com precisão não é uma tarefa simples. Mostra-se necessário nesse tópico levar em conta que foram realizadas eleições locais nos territórios, tendo participado aproximadamente 80% da população. No pleito, venceram os líderes pró-Rússia Denis Pushilin e Leonid Pasechnik, com 60,9% dos votos em Donetsk e 68,4% em Lugansk, respectivamente. Sem embargo, a Ucrânia e os países ocidentais se manifestaram em contrariedade às eleições, descrevendo-as como farsas [20]. De fato, quando se tem em vista a ocupação russa, a legitimidade do processo é questionável. Cabe, contudo, reconhecer que nos últimos tempos quem tem efetivamente tomado as decisões políticas, logísticas e estratégicas na região – vale dizer, quem tem governado – é a administração das repúblicas populares separatistas. Portanto, conferindo-se o benefício da dúvida às eleições realizadas, pode-se considerar que a votação majoritária seria capaz de garantir a necessária legitimidade ao comando recém-instituído. Por conseguinte, verifica-se que há governo efetivo, uma vez que a autoridade é exercida de forma real e (aparentemente) legítima.
4. Soberania Passando ao último e mais intrincado elemento, impende separar a soberania em interna e externa. Quanto à primeira, é definida como a supremacia do Estado sobre todas as autoridades dentro de seu território e com relação à sua população, encontrando-se ele acima dos demais sujeitos de direito. No tocante à segunda, refere-se à independência do Estado com respeito às autoridades externas, i.e., a não subordinação a nenhum outro ente internacional [21]. Dessa forma, o Estado surge assim que se impõe como soberano no sistema internacional, independente de qualquer ato de outro ente soberano. Não obstante, ainda que em tese não se dependa de reconhecimento externo, este costuma ser almejado pelos Estados recém-formados, visto que representa uma forma de legitimar e sustentar sua declaração de independência, conferindo-lhe a capacidade de entrar em relações com os demais Estados. O reconhecimento, nesse plano, pode se dar de maneira explícita, através de mecanismos formais, ou de forma tácita, por meio de comportamentos concludentes dos quais se pode depreender a cognição (e.g. o firmamento de um tratado internacional, a recepção de uma autoridade local como autoridade de Estado).
Ante essa perspectiva de soberania, nota-se que a dimensão interna é preenchida, pois, como explicitado supra, a autoridade dos governantes eleitos de Donetsk e Lugansk está acima das demais forças existentes dentro dos territórios. No entanto, a dimensão externa da soberania das regiões separatistas é onde se encontra o maior empecilho à sua categorização como estados independentes. Nesse viés, para Donetsk e Lugansk serem dotados de soberania externa, é preciso que sejam independentes de qualquer outro ente do direito internacional. Verifica-se, no entanto, que a região do Donbass é extremamente subordinada à Rússia em sua empreitada separatista, não podendo ser considerada, por isso, soberana.
Conclusão Evidencia-se, ex positis, que o reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e de Lugansk como estados independentes pela comunidade internacional seria, no momento, uma decisão precipitada. Ainda que se possa considerar que as unidades administrativas analisadas tenham jurisdição sobre territórios determinados e que, nesses espaços, exerçam governo efetivo, não são revestidos os critérios da população e – menos ainda – o da soberania. Nessa lógica, inexiste um vínculo de pertencimento a uma nação propriamente “donetskiana” ou “luganskiana” como existe em outros casos de nações que lutam pelo separatismo, vide a nação catalã ou a nação basca. Ademais, todo o contexto de emancipação da região do Donbass se deu sob o pretexto de intervenção e orientação russa, não podendo afirmar-se que as repúblicas populares são independentes de qualquer outro ente autônomo no plano internacional. Assim, tudo indica que o caminho trilhado por Donetsk e Lugansk levará um destino similar àquele que teve a Criméia, não resultando na formação de dois novos estados independentes, mas na anexação de dois territórios ucranianos à Rússia.
[1] GONTIJO, Fabiano. Nação, Simbolismo e Revolução na Ucrânia: Experiência etnográfica Tensa na/da Liminaridade. Revista De Antropologia, vol. 63, nº 3, 2020. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ra/article/view/178853. Acesso em: 25 mar. 2023.
[12] BRANT, Leonardo. Teoria Geral do Direito Internacional Público. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020, p. 472 e 473.
[13] KOHN, Hans. The idea of nationalism.New York: Macmillan, 1967, p. 12.
[14] VERGNAUD, Pierre. L’idée de la nationalité et de la libre disposition des peuples dans ses rapports avec l’idée de l’État. Paris: Montchrestien, 1955, p. 123.
A partir de 2018, com a edição da Lei Federal nº 13.756, as apostas esportivas foram disciplinadas no nosso país, atraindo o interesse e a atenção de milhares de brasileiros que, sedentos pelo resultado positivo, destinam parte de seus orçamentos em busca do êxito.
O Decreto-Lei nº 3.688/41, intitulado de Lei das Contravenções Penais, no artigo 50, parágrafo 3º, alínea “c””, vedava quaisquer apostas sobre competições esportivas. Nessa senda, durante setenta e sete anos, não se admitiu a mencionada atividade no Brasil, tendo, inclusive, a Lei n.º 13.155/2015 vedado os jogos de azar pela Internet ou qualquer outro meio de comunicação.
Não obstante, o crescimento da dita modalidade por meio de plataformas estrangeiras [1], que se tornaram acessíveis para qualquer pessoa, conduziu o legislador a optar por a admitir, coadunando-se com a realidade que emergia.
Trata-se da espécie lotérica denominada de “apostas de quota fixa”, prevista no artigo 29 da Lei nº 13.756/2018, em que o interessado efetiva o pagamento de um montante referente a um evento real de temática esportiva, podendo ganhar em caso de acerto do prognóstico. Consistia em um serviço público exclusivo da União, cuja competência para legislar acerca do tema foi reconhecida nas ADPFs nºs 492 e 493, julgadas, no ano de 2020, pelo Supremo Tribunal Federal [2].
Sucede que, em 24 de julho de 2023, a Medida Provisória nº 11 2 alterou o aludido dispositivo e possibilitou a exploração comercial da atividade mediante concessão, permissão ou autorização por parte do Ministério da Fazenda. Deverá ser expedida regulamentação sobre a outorga onerosa para as pessoas jurídicas que atendam aos critérios estabelecidos.
Importante salientar que somente poderão atuar como agentes operadores das apostas esportivas pessoas jurídicas — e não físicas —, nacionais ou estrangeiras, que estejam devidamente estabelecidas no território nacional e que cumpram os requisitos exigidos. No entanto, o Projeto de Lei nº 3626/2023 tenciona prever a regra de que estas devem ser constituídas segundo a legislação brasileira e possuir sede administrativa no Brasil.
O apostador terá que ser uma pessoa física, nos termos do art. 29-A, inciso II, da multicitada Lei, e dúvidas não pairam acerca da sua qualificação como consumidor, eis que é destinatário final de um produto cultural: as competições esportivas [3]. A vulnerabilidade desses sujeitos é patente, nos termos do artigo 4º, inciso I, da Lei n.º 8.078/90, sobretudo para a maioria da população brasileira, que não dispõe de vultosos recursos financeiros e optam por apostas de menor porte.
Ainda que o apostador venha a investir altas somas, não deixa de estar protegidos pelo microssistema consumerista, posto que vulnerabilidade não se confunde com hipossuficiência e engloba também os aspectos informacional, técnico e jurídico [4]. Não podem ser olvidados os recentes escândalos envolvendo esquemas de manipulações de resultados em partidas de futebol profissional no Brasil, que engendraram a instalação, em 26 de abril de 2023, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, cujas atividades foram finalizadas em 26 de setembro do ano em curso.
As operações “Penalidade Máxima” e “Jogada Ensaiada”, iniciadas, respectivamente, em Goiás e Sergipe, detectaram falcatruas que se espraiaram para outras unidades federativas no País [5]. Os apostadores, na condição de consumidores, foram aviltados quanto aos seus direitos de participação de um negócio jurídico ético, caracterizado pelo “fair play”, e tiveram as suas legítimas expectativas frustradas em decorrência da patente fraude.
Apesar de não ter avançado, de forma satisfatória, na proteção dos consumidores, as inovações propiciadas pela MP n.º 1182/2023 podem ser examinadas sob quatro enfoques: 1) restrições quanto aos apostadores; 2) deveres dos agentes operadores; 3) atribuições do Ministério da Fazenda; e 4) destinação dos valores arrecadados. Quanto ao primeiro aspecto, não poderão ingressar no universo das apostas esportivas sujeitos que não possuam capacidade de discernimento dada a sua faixa etária e aqueles que possam se valer de sua condição para antever os resultados.
A legislação veda a participação dos menores de 18 anos, mas o ideal seria adotar as regras da incapacidade insculpidas pelo Código Civil. Ademais, estão coibidos o próprio agente operador e todos aqueles que façam parte da sua estrutura societária e de funcionamento, bem como os que estejam interligados com as competições esportivas e possam exercer influência no seu desfecho.
Do mesmo modo, não se admite a presença dos envolvidos com as atividades fiscalizatórias e os que tenham acesso a sistemas informatizados interligados com a sistemática negocia l[6]. Note-se que os inscritos em cadastros de proteção ao crédito não estão autorizados a realizar as apostas, almejando o legislador evitar agravar, ainda mais, o seu estado de desequilíbrio financeiro. No que concerne aos operadores, devem cumprir obrigações legais de natureza: 1) patrimonial; 2) informacional; 3) estrutural; e 4) publicitária.
Além de terem que arcar com o valor da outorga, devem pagar a taxa de fiscalização e reterão 82% do valor arrecado, destinando o restante para a seguridade social, o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Ministério dos Esportes e o setor educacional. Compete-lhes empreender ações para mitigar a manipulação de resultados e a corrupção, comunicando-as, no prazo de cinco dias, para a autoridade competente. Em caso de suspeita de lavagem de dinheiro, são obrigados a noticiá-la ao Coaf.
As pessoas jurídicas, que obtiverem o aval para atuar na seara, ainda sob a ótica estrutural, devem integrar organismo nacional ou internacional destinado ao monitoramento da integridade esportiva. Devem adrede valer-se de mecanismos de segurança e integridade, incluindo o zelo pelos dados pessoais dos consumidores. Não podem adquirir, licenciar ou financiar a aquisição de direitos sobre a exibição de sons e imagens de eventos esportivos, consoante o artigo 33-A, inserido pela MP em epígrafe.
Quanto à atividade publicitária, determina o artgo 33, caput e parágrafo 1º, que, além de atender à regulamentação do Ministério da Fazenda, necessitam promover ações informativas de conscientização dos apostadores para se prevenir o transtorno do jogo patológico. Previu-se a elaboração de códigos de conduta e de difusão de boas práticas com o desiderato de não ser incentivada a compulsão [7].
Malgrado a Lei n.º 13.756/2018 e a Medida Provisória, que a alterou, não se refiram, de modo expresso, às vedações atinentes ao ato publicitário, constantes no artigo 37, do CDC, estas aplicam-se à divulgação das apostas esportivas. De acordo com o parágrafo 2º do citado artigo 33, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária poderá estabelecer “restrições e diretrizes adicionais à regulamentação do Ministério da Fazenda”, bem como “expedir recomendações específicas para a comunicação, de publicidade e de marketing da loteria de quota fixa”.
Não se desconsidera a relevância da autorregulamentação, mas esta não possui o condão de reduzir o poder de atuação do órgão fiscalizador e este terá que atentar para as premissas do microssistema consumerista — conjunto normativo de ordem pública e interesse social —, que se sobrepõe aos demais [8].
O Ministério da Fazenda foi erigido como o órgão encarregado de tratar das questões que envolvam as apostas esportivas e as suas atribuições podem ser congregadas em três conjuntos: 1) regulatória; 2) fiscalizatória; e 3) sancionatória. O detalhamento das regras referentes ao exercício da atividade, a previsão dos requisitos necessários e a outorga decorrerão de ato deste órgão público. O acompanhamento das atividades pelos agentes operadores e a instauração de procedimento administrativo fazem parte da exclusiva órbita da sua atuação.
As infrações administrativas encontram-se elencadas no artigo 35-C, introduzido pela MP nº 1.182, e aglutinam-se em quatro conjuntos, quais sejam: 1) violação ao obrigatório aval do poder público; 2) publicidade ilícita; 3) embaraços à fiscalização; e 4) atos fraudulentos ou interferências indevidas.
Constituem conduta infracional ofertar apostas esportivas sem a prévia outorga do aparato público, desenvolver atividades em desacordo com o ato de autorização e efetivar divulgações antes da chancela estatal. Óbices e embaraços para a fiscalização, incluindo-se a não disponibilização de dados, informações e/ou documentos, ou o descumprimento de prazos, configuram atos atentatórios.
O cometimento de fraudes ou interferências consistentes em práticas atentatórias à integridade, incerteza, transparência, igualdade entre os competidores, lisura ou higidez dos certames esportivos, são também violações. As sanções aplicáveis podem ser a advertência, a multa, suspensão, proibição de nova autorização e/ou de participar de licitação. Salienta-se que, dentre os fatores que podem agravar a penalidade, o artigo 35-B da Lei nº 13.756/2018 fixou o grau de lesão ou de perigo para a economia, o esporte, os consumidores[9] e terceiros.
Digna de registro é a exígua menção à figura do consumidor na Lei nº 13.756/2018 e na MP nº 1182, restringindo apenas ao quanto, acima, externalizado. A despeito de não pairarem dúvidas sobre a aplicação do microssistema consumerista em prol da tutela dos apostadores, considera-se de inquestionável valia a aprovação do PL nº 3626/2023, para estatuir a sua explícita incidência, primando-se pelo reconhecimento dos direitos básicos assegurados pelo CDC.
As prerrogativas sobre a precisa, clara e ostensiva informação nas apostas esportivas e um serviço de atendimento qualificado desvelam-se de crucial mérito, sobretudo no capitalismo “das plataformas”, como aponta Nick Srnicek [10]. Em regra, dada a comodidade, os indivíduos optam pelas apostas no ambiente virtual, tornando-se essencial a presença de uma firme regulação, segundo Woods e Perrin [11], e uma fiscalização ativa por parte do Ministério da Fazenda, que deverá também se valer de uma atuação integrada e coesa com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
[1] Cf.: PASQUALE, Frank. Platform Neutrality: Enhancing Freedom of Expression in Spheres of Private Power, Theoretical Inquiries in Law, vol. 17, nº 2, p. 487-513, 2016, p. 488.
[4] MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. Ricardo Lorenzetti trata também do princípio quanto ao momento em que se manifesta, referindo –se à “vulnerabilidade atual” e “potencial”, bem como levando em consideração a dimensão dos atingidos, apontando a “vulnerabilidade geral (estrutural)” ou “especial (conjuntural)”. LORENZETTI, Ricardo L. Consumidores. Buenos Aires: Rubinzal Culzoni, 2003, p. 87.
[6] De acordo com ao artigo 35-E, parágrafo 1º, da Lei em análise, as proibições estendem-se aos cônjuges, companheiros e parentes, da linha reta e colateral, até o segundo grau.
[7] Cf.: BARBER, Benjamin R. Consumido. Como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2009. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
[8] Cf.: MARQUES, Claudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 9. ed. rev. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 39-64.
[9] Sobre a proteção dos consumidores, cf.: BOURGOIGNIE, T. Droit de la consommation: un droit rebelle. Revista de Direito do Consumidor, 113, 26, p. 19-27, 2017. PAISANT, G. Défense et illustration du droit de la consommation. Paris: LexisNexis, 2015, p. 7-15; 16-22.
Decisões do Poder Judiciário que vetam a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas oferecem ao mercado mais segurança jurídica e aumentam o risco da cessão dos chamados créditos podres, mas há dúvidas sobre o real impacto que podem causar na realidade brasileira.
Esse cenário foi desenhado por especialistas no assunto consultados pela revista eletrônica Consultor Jurídico depois de a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça proibir uma empresa de recuperação de créditos de cobrar uma dívida prescrita de maneira extrajudicial.
A cobrança era feita por meio de telefonemas, e-mails e mensagens de texto de celular (SMS e WhatsApp). Esse é o modo de operação das empresas que trabalham com os créditos podres, ativos que são classificados como de difícil recuperação por parte do credor.
Esses créditos são adquiridos em grandes lotes, em regra cedidos por instituições bancárias, por preços consideravelmente menores do que seus valores nominais. Com eles em mãos, as empresas de cobrança contatam os devedores com ofertas de quitação mediante grandes descontos.
O lucro no negócio dos créditos podres surge da diferença entre o valor de compra e o montante obtido na negociação com o devedor. E não é pouca coisa. Dados divulgados pelo jornal O Estado de S. Paulo no ano passado indicaram que o mercado de oferta de créditos podres poderia alcançar R$ 60 bilhões por ano.
É improvável que decisões como a do STJ desestimulem a cobrança dos créditos podres pelas empresas de recuperação, ainda que essa jurisprudência esteja se consolidando. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), por exemplo, já fixou enunciado para orientar seus juízes sobre o tema.
O impacto real vai depender de cada devedor saber que não precisa pagar dívidas que existem há mais de cinco anos. E é muita gente para saber disso. Neste ano, o Brasil tem 78,3% de suas famílias endividadas, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Convencer o devedor O advogado Ricardo Vicente de Paula explica que as empresas de recuperação de crédito montaram configurações e metodologias de cobrança que não são transparentes, geram confusões para os consumidores e criam pressão psicológica sobre as pessoas, afetando a vida e saúde delas.
O maior exemplo é a plataforma Serasa Limpa Nome, na qual credores conveniados informam dívidas — prescritas ou não — passíveis de transação, com o objetivo de facilitar a negociação e a quitação. Seu uso é discutido em muitos dos precedentes sobre o tema.
O Judiciário tem afastado a ilegalidade desse cadastro porque ele não serve para negativar o nome do devedor, nem tem impacto sobre o score de crédito — a forma como birôs como o SPC ou a própria Serasa calculam o risco da concessão de crédito a partir do histórico do consumidor.
Cobrança extrajudicial vem com ofertas generosas de descontos para dívidas que, na prática, já não poderiam ser cobradas katemangostar/Freepik
Para o advogado, até o uso do termo Limpa Nome foi pensado para confundir. Ele critica o fato de essas plataformas deixarem as cobranças em destaque, escondendo o campo de consulta de nome limpo ou sujo. E também a forma abusiva como contatam o devedor.
“A maioria esmagadora dos consumidores não tem o conhecimento de que esse tipo de cobrança é ilegal e acaba por firmar acordos para se verem livres das cobranças. É um mercado de bilhões. Como a minoria busca seus direitos, é excessivamente vantajoso para as empresas que cobram.”
Marcelo Tapai, sócio do escritório Tapai Advogados, acrescenta que a pessoa que é alvo da cobrança raramente é informada sobre quem é o real credor. Ele também contesta a suposta falta de impacto de plataformas como o Serasa Limpa Nome no score dos consumidores.
“O sistema bancário é todo interligado. A partir do momento em que há uma plataforma pública, não acho que os bancos não saibam disso e não vão restringir crédito. Da mesma forma, não acredito que, depois de prescrita a dívida, não exista uma lista negra. A forma como se calcula o score é uma caixa preta.”
Risco do negócio Eduardo Maciel, do escritório MFBD Advogados, ressalta que a formação dos créditos podres não decorre de desconhecimento do credor, mas simplesmente do desinteresse em fazer a cobrança pela via judicial, por causa do alto custo do pagamento de advogados, custas judiciais e despesas processuais.
“O impacto dessa posição (do STJ) aumenta a segurança jurídica. Assim, se uma pessoa é devedora, caberá ao credor o efetivo exercício do seu direito, seja na via administrativa ou judicial, e não simplesmente apontar seu nome eternamente num banco de dados que gere score negativo a essa pessoa.”
“O impacto que o mercado sente é o risco do negócio. Tanto o credor inicial quanto a empresa que comprou o crédito sabem disso. Se o direito de fazer a cobrança não foi exercido no prazo legal, o risco é ser impedido de cobrar do devedor”, destaca Marcelo Tapai.
Para Ricardo Vicente de Paula, o veto à cobrança de dívidas prescritas ainda pode ser bom para a economia brasileira, sendo base para a reanálise de diversos pontos econômicos que causam a falta de valor da nossa moeda, além da alta taxa de juros e do baixo poder de compra do brasileiro.
“Isso enfraquece a economia, prejudica a circulação de riquezas e, ao final, gera essa bola de neve de dívidas antigas e não pagas. Vale a reflexão. Quem sabe esses precedentes do STJ podem gerar alterações benéficas à economia”, diz ele.
Dyna Hoffmann, do SGMP Advogados, explica que a dívida, ainda que prescrita, continua a existir. A prescrição não representa a quitação. Logo, ela afetará o histórico de crédito do devedor pelo menos em relação àquela instituição financeira para a qual ficou devendo por mais de cinco anos.
Em sua opinião, posições como a do STJ darão uma nova dinâmica à avaliação e à negociação de créditos podres. “Certamente, o ajuizamento de ações de execução, ações monitórias e ações ordinárias de cobrança vai crescer para que não ocorra a prescrição. Medidas alternativas de solução desse tipo de conflito também serão mais utilizadas.”
Aproveitamento tributário Para que servem, então, dívidas prescritas? O ex-procurador do município de São Paulo Carlos Mourão, do escritório Nascimento e Mourão Advogados, indica que resta muito pouco a fazer sobre o assunto. Elas não podem ser cobradas, nem servem para fazer a compensação com outros créditos. “Mas nada impede o pagamento voluntário por parte do devedor”, diz ele.
Para o credor, há ainda a possibilidade de impacto tributário na base de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IPRJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Essa possibilidade decorre da aplicação do artigo 9º da Lei 9.430/1996, conforme explica a advogada Stephanie Makin, do Machado Associados.
A norma diz que as perdas no recebimento de créditos decorrentes das atividades da pessoa jurídica poderão ser deduzidas como despesas, para determinação do lucro real. O parágrafo 1º indica as hipóteses em que tais créditos podem ser registrados como perdas.
“Em regra, o credor vai ter esse crédito como um ativo, por ser um valor a receber. Quando ocorre a baixa, vira despesa e resultado. Aí pode entrar como despesa dedutível na apuração de IRPJ e CSLL, mas desde que seja analisado o caso a caso”, ressalta a advogada.
A acusação baseada uma norma penal em branco, como é a do crime de poluição, depende da indicação de leis complementares que estabeleçam critérios e parâmetros para a tipificação, de modo a possibilitar a defesa adequada e a eficiência da produção probatória.
Denúncia não especificou quais substâncias foram liberadas pela empresa, nem o dano Reprodução
Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a um recurso em mandado de segurança para trancar uma ação penal por poluição ajuizada contra a White Martins, empresa fabricante de gases industriais.
A denúncia do Ministério Público do Pará enquadrou a empresa no artigo 54 da Lei 9.605/1998, por poluição sonora e atmosférica. Trata-se de norma penal em branco, pois se baseia em preceito genérico, indeterminado e incompleto.
Com isso, a jurisprudência do STJ se fixou no sentido de que sua aplicação depende da indicação, na denúncia, de legislação complementar ao tipo penal em branco, de modo a possibilitar à defesa a correta compreensão da acusação.
Seria preciso definir pontos como o que é poluição, com quais materiais ou substâncias ela ocorre, em quais quantidades e em quais ambientes, por exemplo. Apesar disso, as instâncias ordinárias receberam a denúncia e rejeitaram o pedido de trancamento da ação feito pela empresa.
“Verifica-se que a denúncia não indicou qualquer ato regulatório extrapenal emitido pelo poder público destinado à concreta tipificação do ato praticado, que aponte parâmetros e critérios para a criminalização das condutas ali expostas, o que consubstancia a inépcia da denúncia”, analisou a ministra Laurita Vaz, relatora da matéria.
Ela ainda apontou que a denúncia é genérica por afirmar que a White Martins “emite para a atmosfera substâncias odoríferas desagradáveis, que causam dor de cabeça e dificuldade de respirar, prejudicando, assim, a saúde das pessoas que residem nas circunvizinhanças do estabelecimento”.
Segundo a relatora, não há especificação dessas substâncias odoríferas, nem a comprovação de sua relação com eventuais danos causados à saúde humana. Assim, fica impossibilitada a defesa da pessoa jurídica.
“Nesse contexto, observa-se que a denúncia não traz, quanto ao crime do art. 54, caput, da Lei 9.605/1998, todas as nuances necessárias à tipificação do delito, o que torna inepta a inicial acusatória”, concluiu a ministra. A votação na 6ª Turma foi unânime.
Embora a Lei 14.532/2023 tenha sido produzida com o objetivo de reprimir com maior rigor a injúria racial, existe o risco de que essa novidade legislativa acabe beneficiando os réus, especialmente em episódios ocorridos nas redes sociais.
FreepikPesquisa analisou ações judiciais julgadas entre 2010 e 2022
Estudo da Faculdade Baiana de Direito, elaborado em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e o portal Jusbrasil, destaca que, de acordo com a nova norma, a pena mínima para a injúria racial em comunidades virtuais passou a ser de dois anos de reclusão, o que diverge da previsão do §2º do artigo 141 do Código Penal, que determina, no mínimo, três anos (um ano elevado ao triplo).
A nova norma pode retroagir para beneficiar todos os acusados por crimes raciais cometidos nas redes sociais que ainda não tenham sido condenados em definitivo, ou que ainda não tenham terminado de cumprir suas penas.
O grupo de trabalho analisou casos de crimes raciais julgados em todo o país entre 2010 e 2022. Após a aplicação de filtros, a pesquisa chegou a 54 condenações e 40 absolvições. Dos réus punidos, nenhum foi obrigado a cumprir a pena em regime fechado (49 em regime aberto, três em semiaberto e duas sem detalhamento). A pena média para o crime de injúria racial foi 16,4 meses (136,66% da pena mínima) e para discriminação racial, 28,3 meses (111,16% da pena mínima).
Esses dados mostram que a cultura judicial de aplicação da pena mínima no Brasil se repete nos crimes raciais e que a maior distância do mínimo legal no caso da injúria racial se deve à incidência da causa de aumento de pena do artigo 141, III, do Código Penal, que eleva em um terço as sanções dos crimes contra a honra quando cometidos na presença de várias pessoas.
O professor e advogado Diogo Guanabara, integrante da equipe de coordenação científica do estudo, ressalta que ele confirma a vocação do Judiciário brasileiro para aplicar penas mínimas.
“A tendência agora é que as penas sejam menores do que as que estavam previstas anteriormente. Mas isso só pode ser confirmado com as próximas observações. Essa mudança legislativa, aliada a uma verificação estatística de que as condenações pelos tribunais levam em conta as penas mínimas, nos leva a essa conclusão.”
Uma alternativa, segundo Guanabara, seria aplicar penas calculadas acima do mínimo previsto. “Uma saída seria uma condenação partindo de uma mediana de três anos, podendo chegar aos cinco anos da máxima.”
Ricardo Stuckert/PRLei 14.532/2023 foi sancionada pelo presidente Lula no começo deste ano
Outros especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico reforçam a conclusão do estudo, mas lembram que a aplicação das penas com base na nova lei deve seguir cada caso concreto. Na avaliação deles, a norma foi aprovada pelo Congresso sem uma análise mais técnica das penas, com legisladores preocupados demais com a opinião pública em razão da delicadeza do tema.
Criminalista pós-graduado em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Rafael Valentini afirma que a nova lei foi mais um exemplo de desconhecimento e falta de técnica dos legisladores sobre o sistema jurídico para editar normas penais.
“Aquilo que possivelmente não era suficiente agora ficou pior. A nova lei, que certamente visou ao recrudescimento dos atos racistas no âmbito virtual, como uma resposta à escalada dessas práticas criminosas, acabou por afrouxar a resposta penal nesse contexto. Golaço do legislador, que talvez tenha se preocupado mais em postar nas redes sociais sua concordância com o projeto de lei que deu origem a essas alterações do que com o seu conteúdo em si.”
Para Valentini, as previsões do Código Penal já eram suficientes e mais firmes. “Diante da publicação da Lei 14.532/2023, o juiz terá de aplicar as novas disposições por diversos motivos. Entre eles, por se tratar de norma nova mais benéfica ao réu (o que vale para os que já estão processados ou condenados pelas disposições anteriores do Código Penal). Salvo situações em que o juiz poderá incrementar a pena diante de circunstâncias ainda mais negativas verificadas no caso concreto, a nova lei, como regra, será mais branda com os racistas.”
Doutor e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Matheus Falivene também acredita que as alterações promovidas pela Lei 14.532/2023, apesar de importantes no combate ao crime de injúria racial, revelam a atuação apenas simbólica dos legisladores.
“Ao invés de pensar de maneira sistemática eventual mudança legislativa, optou-se pelo caminho fácil do aplauso da opinião pública. Isso porque, ao categorizar a injúria racial como crime de racismo, e não mais como crime contra a honra, o legislador afasta, ao menos no âmbito hipotético, a aplicação da causa de aumento de pena para os crimes contra a honra cometidos por meio das redes sociais, prevista no artigo 141, §2º, do Código Penal.”
Tal situação, segundo Falivene, faz com que, na prática, não haja maior reprovabilidade das injúrias raciais cometidas por meio das redes. “É um local onde há grande visibilidade para o fato e em que, a depender das circunstâncias do caso concreto, a pena de uma injúria comum talvez seja equivalente ou até mesmo maior, o que demonstra a falta de cuidado com a sistematização do legislador.”
O criminalista Fábio F. Chaim também entende que a atual tipificação do crime de injúria racial praticada em redes sociais poderá ser mais favorável ao acusado, a depender das circunstâncias do caso concreto.
“Primeiramente, para crimes praticados entre o advento da Lei 13.964/2019 e a Lei 14.532/2023, a nova redação possui uma dosimetria menor de pena, o que em si não apenas é mais favorável como também permite o oferecimento de benefício que no período em questão não era possível (suspensão da execução da pena). Por outro lado, caso a vítima não tenha exercido o direito de representação no tempo do fato, a tipificação antiga do delito é mais benéfica ao acusado, eis que operada a decadência, inexistindo condição de procedibilidade para o ingresso de ação penal por parte do Ministério Público.”
Contudo, Chaim ressalta que, com relação à tipificação da conduta para fatos anteriores à Lei 13.964/2019, a nova norma acaba sendo mais prejudicial ao acusado, pois pode suprimir a necessidade de representação para o ingresso de ação penal. “Sendo a nova redação prejudicial aos interesses do acusado, não há de se falar em sua retroatividade. Dessa forma, se a tipificação da conduta, trazida nos termos da Lei 14.532/2023, é benéfica ou prejudicial ao acusado, vai depender do contexto em que a análise é realizada, nos termos acima trazidos.”
OAB-SP diverge Por outro lado, o presidente da Comissão de Igualdade Racial da seccional de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), Irapuã Santana, acredita que a interpretação dos pesquisadores não faz sentido. Ele diz que não se pode comparar a nova lei com o que estava previsto no artigo 140 do Código Penal, que trata a injúria de uma forma geral.
“É um levantamento bom, mas nesse ponto há uma interpretação equivocada. Antes, a gente tinha a injúria racial colocada no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que previa uma pena de um a três anos. Agora, a pena é de dois a cinco anos. Não tem como o aumento da pena melhorar para o réu. Pelo contrário”, disse ele. “Comparar com o dispositivo anterior é outra coisa. Temos de comparar a injúria racial com a injúria racial. Não dá para compará-la com a injúria comum. Nesse sentido, a lei ficou mais gravosa.”
Santana lembrou ainda que, nos casos de crimes raciais, não cabe mais o acordo de não persecução penal. “Não se pode mais fazer transação penal. O réu deve responder ao processo penal.”
Na semana passada, o senador Eduardo Braga apresentou seu relatório sobre a PEC 45-A, o qual será submetido nos próximos dias à Comissão de Constituição e Justiça daquela Casa. Diversos aspectos foram aperfeiçoados, o que demonstra o esforço do senador em consertar o que era e permanece ruim, embora muitos pontos que deveriam ter sido alterados estão intocados. O fato é que estamos defronte a uma Reforma Tributária do Improviso.
Não foi feito um plano de voo. Sabe-se que o foco é a reforma tributária voltada ao consumo, visando a introdução do IVA no Brasil, mas seria muito importante saber o que pensa o atual governo, que está em seu primeiro ano de mandato, sobre as demais incidências básicas: a renda e o patrimônio. O que será feito nesses âmbitos? Não é para fazer todas as reformas ao mesmo tempo, mas daria segurança jurídica saber o rumo do atual governo nesses aspectos. Sem um plano de voo tudo fica mais obscuro e as incertezas aumentam.
Não foi feito um estudo de impacto econômico. Não se trata de saber a alíquota, o que só poderá ser delimitada ao final do atual processo legislativo, mas saber o impacto da adoção de um IVA (CBS + IBS) nos diversos setores da economia. Há muita incerteza no horizonte e versões contraditórias. Quando se escuta o setor do agronegócio, a impressão é que será uma catástrofe, reduzida pelas exceções introduzidas ao longo do caminho. O mesmo ocorre quando se escuta o setor de serviços. Já o segmento exportador aplaude o encaminhamento que vem sendo adotado.
O setor industrial é só apoio. Há também o silêncio eloquente do setor financeiro, o que indica aprovação. O fato é que nenhum estudo oficial de impacto econômico foi apresentado até aqui, e as votações estão sendo realizadas ao sabor dos lobbies setoriais, sem dados confiáveis, o que, mais uma vez, demonstra o improviso.
Ao apresentar seu Relatório, o Senador Eduardo Braga previu aumento de 50% — cinquenta por cento! — no Fundo de Desenvolvimento Regional. Os valores anuais passarão de R$ 40 bilhões para R$ 60 bilhões, e, ao que tudo indica, com anuência do Ministro da Fazenda. Não sei se isso é bom ou ruim, mas posso afirmar que se trata de um improviso, fruto da inexistência do plano de voo e dos estudos de impacto econômico acima mencionados. Afinal, um plano bem-feito jamais admitiria um aumento anual de 50% de dispêndios. Ou é improviso ou é balelapara inglês ver. Isso aumenta a despesa pública, com impactos financeiros.
Outra medida curiosa é a trava (mais uma regra de teto) proposta no Relatório. Não há dúvida que se trata de uma proposta bem-intencionada, mas como se dará o controle? Qual a sanção? O método de apuração dessa trava inclui no cálculo a média dos dez últimos anos, o que insere todo o período pandêmico e algumas recessões. Estará adequado? Pode ser que sim ou que não, o que revela mais um improviso, à míngua de dados concretos.
Estão sendo criados regimes específicos para algumas atividades, sem que se saiba exatamente o que isso significa, exceto que se trata de uma fuga do regime geral. Qual seu impacto?
Com o Relatório surgiram duas diferentes cestas básicas: a cesta básica-básica e a cesta básica-estendida — o que isso significa só será descoberto efetivamente na lei complementar, que será um outro campo de batalha.
Foi mantida a tributação pelos Fundos estaduais — a famigerada contribuição estadual –, tendo sido afastada as expressões antes contidas no texto, que só permitiam sua incidência sobre “produtos primários e semielaborados”. Independente disso, foi estabelecida uma incidência de 1% do Imposto Seletivo sobre a atividades de extração de produtos naturais não renováveis, o que inclui mineração e petróleo. Onde estão os estudos acerca do impacto desse tributo na inflação, pois alcança desde o tijolo e o cimento (produtos minerais) até a gasolina? Será que a tributação estadual afastará a federal, ou vice-versa?
O Imposto Seletivo — IS foi ligeiramente aperfeiçoado, ao ser estabelecido que incidirá uma única vez sobre o bem ou serviço, embora ainda exista uma enorme zona de incerteza em face das cadeias produtivas. Uma vez tributado pelo IS um bem que se insere em uma cadeia produtiva, não poderá haver nova incidência desse mesmo tributo? Se o açúcar vier a ser tributado, os produtos decorrentes, como os refrigerantes, sofrerão a mesma incidência?
Para tornar breve uma longa história, respondo à pergunta formulada no título: quem vai pagar a conta desse aumento de carga tributária, fruto do improviso, não é o contribuinte – isso mesmo caro leitor! Não será o contribuinte a pagar, pois, como regra, transferirá o custo do aumento de tributos para o preço dos bens e serviços que produz ou comercializa.
Quem pagará a conta é o consumidor, salvo raríssimas exceções. Essa conta é composta pelo aumento da carga tributária e pelo aumento da despesa pública. Isso inexoravelmente implicará em majoração de todos os preços.
O terremoto tributário que se avizinha não tem paralelo na história brasileira e seus impactos não estão sendo dimensionados. Ancora-se todas as esperanças em seu dilatado prazo de início de vigência, como se fosse uma boia de salvação. Há muita complexidade à vista e contínuas alterações constitucionais. Com o Relatório já se computam 43 páginas de alterações constitucionais apenas em matéria tributária – algo jamais visto em qualquer país.
Como se costuma dizer nos insossos comunicados corporativos: parabéns aos envolvidos.
O reconhecimento da prescrição impede qualquer cobrança do débito, inclusive aquela feita fora do processo. Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial de uma empresa de recuperação de créditos.
A posição representa uma correção de rumos da jurisprudência do colegiado, já que há acórdãos em que se admitiu a cobrança extrajudicial de dívidas prescritas, mediante a errônea interpretação de um precedente da 3ª Turma julgado em 2017.
Em suma, a prescrição torna inviável apenas a cobrança da dívida. Isso não significa que ela deixou de existir, nem que houve a quitação do saldo devedor. Ainda assim, o credor perde o direito de exercer qualquer pretensão, seja através do processo ou fora dele.
No caso julgado, a ação foi ajuizada por um particular que passou a ser alvo de cobranças feitas pela empresa de recuperação de créditos por meio de telefonemas, e-mail, mensagens de texto de celular (SMS e WhatsApp). Ele teve seu nome inscrito em cadastro de inadimplentes.
A sentença entendeu que a cobrança como estava sendo feita pela empresa seria possível, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento à apelação por entender que a prescrição da dívida a torna inexigível e veda qualquer cobrança, seja judicial ou extrajudicial.
Relatora, a ministra Nancy Andrighi manteve essa interpretação. Ela explicou que a prescrição atua encobrindo a eficácia da pretensão de cobrar a dívida, a qual se submete ao princípio da indiferença das vias. Ou seja, a pretensão de cobrança não pode ser mais exercida por qualquer meio existente.
Ao cobrar extrajudicialmente o devedor, o credor está, efetivamente, exercendo sua pretensão, ainda que fora do processo, já que não é apenas em juízo que se exercem as pretensões. Para a ministra Nancy Andrighi, essa ação está inviabilizada pela ocorrência da prescrição.
“Logo, se a pretensão é o poder de exigir o cumprimento da prestação, uma vez paralisada a sua eficácia em razão do transcurso do prazo prescricional, não será mais possível exigir o referido comportamento, ou seja, não será mais possível cobrar do devedor a dívida”, resumiu.
“Pouco importa a via ou instrumento utilizado para a realização da cobrança, porquanto a pretensão — que é o instituto de direito material que confere ao credor esse poder — encontra-se praticamente inutilizada pela prescrição”, acrescentou. A votação foi unânime.
A absolvição pelo Tribunal do Júri em razão do quesito genérico é soberana e não pode ser impugnada — nem reformada por novo julgamento — com a justificativa de que os jurados decidiram de forma contrária às provas dos autos.
Mendonça lembrou que a Constituição assegura a soberania dos veredictos do júri Carlos Moura/SCO/STF
Seguindo esse entendimento, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, restabeleceu veredicto do Tribunal do Júri de Florianópolis que absolveu uma mulher acusada de cometer assassinato.
De acordo com os autos, a ré foi submetida ao Tribunal do Júri em 2021, com a acusação de ter matado o marido, um coronel aposentado da Polícia Militar. Ao fim do julgamento, ela foi absolvida, mas o Ministério Público recorreu da decisão. Posteriormente, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) entendeu que o resultado do julgamento foi contrário às provas dos autos e anulou a absolvição.
Sustentando a soberania do veredicto do júri, a defesa impetrou Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça e, por fim, o caso chegou ao Supremo. Nesse intervalo, contudo, o juízo de Florianópolis não esperou a definição do caso pelo STF e marcou um novo júri. Resultado: a mulher foi condenada a oito anos de prisão por homicídio privilegiado.
A palavra final sobre o caso, porém, veio na segunda-feira (23/10), no encerramento da sessão virtual em que o STF julgou o agravo regimental em Habeas Corpus da defesa. Na decisão, prevaleceu o entendimento do ministro André Mendonça.
Divergindo do ministro relator, Dias Toffoli, que negou seguimento ao HC, Mendonça ressaltou que a Constituição assegura, entre os princípios da instituição do júri, a soberania dos veredictos.
Assim, prosseguiu o ministro, dessa garantia decorre a conclusão de que a decisão coletiva proferida pelos jurados não pode, no mérito, ser modificada por juízo ou tribunal. “De outra forma, estaria sendo afastada a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida”, explicou Mendonça.
Sobre o caso concreto, o magistrado disse que a acusada confessou ter praticado o crime devido às “constantes práticas de violência doméstica e ameaça de morte por parte da vítima”. Diante disso, acrescentou o ministro, a defesa pleiteou o “reconhecimento do homicídio privilegiado, ao argumento de que a acusada cometeu o delito sob o domínio de violenta emoção”, além da absolvição por clemência.
Por fim, Mendonça lembrou que ambas as turmas do STF “já decidiram ser incabível determinar a realização de novo julgamento, partindo-se da premissa segundo a qual estaria a decisão de absolvição dos jurados, com base no quesito genérico, contrária aos elementos probatórios”. Dessa forma, ele concluiu pelo restabelecimento da absolvição. Acompanharam o voto os ministros Kassio Nunes Marques e Gilmar Mendes.
A defesa foi patrocinada pelo advogado Caio Fortes de Matheus, do escritório Dalledone e Advogados Associados.
Clique aqui para ler o voto do ministro André Mendonça HC 231.024
Em sessão realizada no dia 19/9/2023, a CSRF da 3ª Seção decidiu pela incidência de PIS/Cofins para as cooperativas de crédito em contraposição a entendimento vinculante do STJ (Tema 363), ao fundamento que a questão teria sido afetada pelo STF (Tema 536) e que o próprio STJ estaria sobrestando casos análogos em trâmite naquela tribunal, o que afastaria a imposição trazida pela regra do artigo 62, § 1º, inciso II, alínea “b” do Ricarf [1], que vincula o Tribunal Administrativo à precedentes judiciais definitivos, veiculados sob o rito da repetitividade.
De fora muito sumária, por ser de pouca valia para o raciocínio que será desenvolvido adiante, a questão de fundo diz respeito a incidência ou não de PIS e Cofins sobre as receitas de cooperativas de créditos. Em sede de julgamento de recursos repetitivos (REsp nº 1.164.716 e nº 1.141.667) o STJ havia consolidado o entendimento no sentido de que não incide a contribuição destinada ao PIS/Cofins sobre os atos cooperativos típicos realizados pelas cooperativas. Trata-se, portanto, de precedente vinculante, nos exatos termos do artigo 927, inciso III do CPC [2].
Acontece que, após a consolidação da sobredita decisão, o STF resolveu, sob a perspectiva constitucional, submeter a questão à repercussão geral, o que está retratado no RE nº 672.215, oportunidade em que o Tribunal definirá se há ou não incidência de PIS, Cofins e CSLL sobre o produto de ato cooperado ou cooperativo em face dos conceitos constitucionais relativos ao cooperativismo, mais precisamente no caso das expressões constitucionais: “ato cooperativo”, “receita da atividade cooperativa” e “cooperado”.
Após a afetação do sobredito recurso extraordinário à condição de leading case por parte do STF, o próprio STJ passou a sobrestar casos análogos em trâmite naquele tribunal, aguardando o desfecho dessa discussão na Corte Constitucional.
Essas breves considerações são feitas aqui apenas para situar a discussão, uma vez que o objetivo do presente texto é outro: o de analisar a validade ou não de o Carf seguir com o julgamento dos seus processos para a questão de fundo em oposição ao precedente vinculante do STJ [3]. Foi o que aconteceu no âmbito do processo nº 13826.000171/2005-90, de relatoria da conselheira Semíramis Duro, cujo acórdão encontra-se pendente de publicação.
Acompanhando o julgamento do caso, o que se viu foi a posição da relatora no sentido de negar provimento ao recurso especial da Fazenda por aplicar o precedente vinculante do STJ. Tal posição, todavia, foi contraposta pelo conselheiro Rosaldo Trevisan, que deu provimento ao recurso fazendário em oposição ao referido precedente ao fundamento que se o próprio STJ está sobrestando casos que tramitam naquela corte é sinal de que o precedente do STJ teria perdido o status de vinculante e, por conseguinte, o Carf não estaria mais obrigado a segui-lo. Essa posição foi seguida pela maioria dos julgadores, resultando em um placar de 5×3 pelo provimento do recurso especial fazendário.
Antes, todavia, de analisar o que fora decidido pela CSRF, mister se faz dar um passo atrás para repisar quais são os propósitos de um modelo de stare decisis[4] ou, em outros termos, quais os valores jurídicos que se pretende tutelar nesse sistema.
De forma muito suscinta, até porque o tema aqui analisado é riquíssimo [5], o objetivo de um modelo metodologicamente adequado de valorização de precedentes é, em última análise, valorizar uma segurança jurídica de índole material, de modo que as decisões dos tribunais sejam previsíveis, até porque no Common Law tais decisões são tratadas como fonte material do direito e, por conseguinte, são fontes legítimas para fins de orientação de condutas dos seus destinatários.
Ademais, ao perseguir uma segurança jurídica de caráter substancial, esse modelo também tutela o valor justiça [6], com especial ênfase para uma das suas expressões, o valor igualdade, na medida em que evita decisões arbitrárias por serem contrapostas à jurisdicionados que se encontram em situações análogas.
No âmbito da realização prática do direito por intermédio das decisões de caráter jurisdicional, a preocupação com tais valores se afunila para a ideia de integridade do direito (artigo 926 do CPC [7]), segundo o qual as diferentes decisões dos diferentes órgãos de caráter jurisdicional conformam um mesmo continuum prático ou, como prefere Dworkin [8], um mesmo “romance em cadeia” (chain novel). Logo, aquele autor que acresce uma nova página a esse romance não pode simplesmente ignorar os capítulos pretéritos dessa história, já que o respeito aos precedentes envolve o ato de segui-los, distingui-los ou revogá-los, jamais ignorá-los[9].
É bem verdade que em modelo jurisdicional em que diferentes tribunais possuem diferentes parcelas de competência para a resolução de um mesmíssimo problema jurídico, essa busca pela integridade torna-se mais complexa. É o que acontece, v.g., em matéria tributária, onde uma mesma lide pode ser objeto de decisão tanto do STJ quanto do STF. Soma-se a isso o fato de que no Brasil, no plano federal, existe ainda a figura do Carf, que também decide questões tributárias passíveis de resolução pelos tribunais judiciais, o que na prática potencializa o problema de integração das decisões.
Foi exatamente por reconhecer esse problema que o legislador previu institutos como o do sobrestamento de casos passíveis de afetação por um leading case, da modulação de efeitos e, ainda, para também fomentar a integração de decisões judiciais e administrativas, a aplicação subsidiária do CPC em processos administrativos, nos exatos termos do art. 15 do referido Código [10]. Aliás, o já citado artigo 62, § 1º, inciso II, alínea “b” do Ricarf, é um reflexo, ainda que tímido, da necessidade dessa integração entre decisões judiciais e administrativas.
Tecidas tais considerações, já é possível retornar ao caso sob análise na coluna de hoje.
Diferentemente do que fora alegado pelo Carf no voto vencedor proferido no processo administrativo nº 13826.000171/2005-90, ao determinar o sobrestamento dos casos que lá tramitam e que tratam da (não) incidência de PIS/Cofins para as cooperativas de crédito, o STJ não reconhece a perda do status de vinculante do seu precedente (Tema 363), condição essa que, em verdade, poderá até ser potencializada, a depender do resultado do julgamento do leading case com trâmite no STF (Tema 536).
Em verdade, ao determinar tais sobrestamentos, o STJ antevê a possibilidade — e aqui, de fato, se trata de uma hipótese possível — de existir um overruling por parte do STF para a matéria de fundo, o que, se ocorrer, poderá ainda ser objeto de modulação de efeitos, exatamente como se discute, v.g., no Tema 985 do Pretório Excelso [11]. Será apenas nesse momento que haverá a superação do entendimento por parte do STF e que o precedente do STJ deixará ser vinculante.
Em verdade, ao já determinar o sobrestamento dos seus casos, o STJ, com elogiosa prudência, entende perfeitamente seu papel nesse cipoal de órgãos jurisdicionais que, embora fracionados em razão de diferentes competências, exercem uma única função: jurisdicional. Ao assim fazer, portanto, o STJ se antecede a futuros problemas na hipótese de eventual posição contraposta a sua por parte do STF, já antecipadamente prestigiando a necessidade de integridade das decisões.
Era exatamente esse o papel que também se esperava do Carf e que não foi cumprido em concreto. Ao promover o julgamento do caso aqui analisado, independentemente do seu resultado favorecer o fisco ou o contribuinte, o Carf antecipadamente atenta contra a ideia de integridade do direito. Em outros termos, o órgão que deveria ser parte na solução pela busca de decisões íntegras, acaba por ser um dos problemas para se prestigiar esse importante valor jurídico.
Essa postura temerária, por sua vez, redundará em mais processos judiciais, a ser conduzido com um notório custo econômico pela já assoberbada Procuradoria da Fazenda Nacional, perante um também sobrecarregado Poder Judiciário, o que também causa um impacto econômico para esse Poder. E, a depender do resultado do tema no STF, tudo isso podendo implicar em imposição de verbas sucumbenciais em prejuízo do Erário público, o que nos remete a pergunta-título do presente texto: quem ganha com um Carf que desconhece o seu papel em um modelo de stare decisis?
[1] Art. 62. Fica vedado aos membros das turmas de julgamento do Carf afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.
§ 1º. O disposto no caput não se aplica aos casos de tratado, acordo internacional, lei ou ato normativo:
(…).
II – que fundamente crédito tributário objeto de:
(…).
b) Decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento realizado nos termos dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, ou dos arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº 13.105, de 2015 – Código de Processo Civil, na forma disciplinada pela Administração Tributária;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
[4] Termo esse que provém da expressão latina stare decisis et non quieta movere, i.e., respeitar as coisas decididas e não alterar o que está estabelecido.
[5] Por todos: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[6][…] neste caso a certeza é de todo compatível com a “justiça”, pois não é mais do que a estabilização histórico-cultural, em termos de vigência, de uma intenção normativa material – a objectivação sincrónica dessa intenção, e que sempre poderá existir, e que existirá mesmo, num direito exclusiva ou predominantemente intencionado à justiça. (NEVES, Antonio Castanheira. Instituto dos assentos. Coimbra: Coimbra Editora, 2014. p. 38.).
[7] Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. (grifos nosso)
[8] DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 221 e ss.
[9] BRAGA, Paulo Sarno; DIDIER JÚNIOR, Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil. v. 2, 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2015. p. 480.
[10]Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
[11] Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 97, 103-A, 150, § 6º, 194, 195, inc. I, al. a e 201, caput e § 11, da Constituição da República, a natureza jurídica do terço constitucional de férias, indenizadas ou gozadas, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal e no qual, no mérito, se fixou a seguinte tese: é legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias.
Fonte: Conjur
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